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Primeira Edição: Escrito por Victor Meyer em fins de 1999 para uma publicação em CD organizada por Eduardo Stotz. Incluído no livro “O tempo no Planetário e outros ensaios”, Stotz, Eduardo Navarro, Ed. do Autor, Rio de Janeiro, 2008. A presente versão segue de acordo com original digitado pelo próprio Autor.
Fonte: Centro de Estudos Victor Myer.
Transcrição: Pery Falcón
HTML: Fernando A. S. Araújo
No começo de 1961, no interior de São Paulo, realizava-se o Congresso de fundação da Organização Revolucionária Marxista Política Operária, mais conhecida como POLOP. Seu impacto intelectual sobre o pensamento radical de esquerda no Brasil, sua influência política sobre frações importantes da esquerda organizada, do movimento estudantil e mesmo do movimento operário, seriam fortemente crescentes ao longo dos anos 60. Na década seguinte, período de auge da ditadura militar, mergulharia num doloroso processo de isolamento social, seja pelos cruentos ataques que sofreu da polícia política — DOPS, Polícia Federal, OBAN e demais signos do terror anticomunista daqueles anos seja pela diáspora dos quadros no exílio e recorrentes fragmentações internas. Somente nos primeiros anos da década de 80 se firmaria um movimento interno de “volta às raízes”, longamente preparado: tarde demais, pois o contingente de militantes remanescentes estava demasiadamente reduzido e distante do centro dinâmico das lutas sociais brasileiras, na maré montante das greves, da fundação do PT e da gestação da CUT. A POLOP reconheceu a importância política própria do PT, mas ao mesmo tempo entendeu os seus limites; por isso, aderiu ao novo Partido, mas ao mesmo tempo tentou manter-se como organização autônoma. Sem êxito nesse último projeto, extinguiu-se no decorrer da primeira metade dos anos 80.
Durante a fase ascendente, até 1968, participou da Organização um número expressivo de destacados intelectuais, vários dos quais iriam adiante compor o núcleo dirigente do PT. No movimento estudantil, no seu auge histórico, a POLOP sustentou várias vice-presidências da diretoria da UNE eleita no vigésimo nono Congresso, aquela que seria posta à testa das grandes mobilizações de 1968. No movimento operário, sua presença se fez sentir com relativa importância nas greves de Contagem e Osasco. Por outro lado, ainda na sua fase expansiva, polarizou uma ação aglutinadora sobre a esquerda revolucionaria, cujo ponto mais alto foi a formação do Núcleo Marxista-Leninista, em 1967, conjugando-se com a Dissidência do PC no Estado da Guanabara e com a Dissidência do PC no Rio Grande do Sul. Juntamente com esta última Dissidência, formaria o POC (do qual se retiraria no começo de 1970). Num sentido contrário, da POLOP sairiam facções fundamentais para a construção de várias organizações que se dirigiram à guerrilha urbana: a Colina, parte da VPR, parte da VAR-Palmares, além de outros agrupamentos menores. Mais adiante, nos primeiros anos 70, da POLOP sairia a Fração Bolchevique, depois denominada MEP [Movimento de Emancipação do Proletariado].
O caráter expansivo da POLOP num contexto tão especial da história das lutas de classes no Brasil, sustentado apesar do traumático teste histórico representado pelo golpe militar de 1964, tem sua expressão máxima na elaboração de um documento básico, o Programa Socialista para o Brasil, apoiado sobre um conjunto de textos de fundamentação que configurariam um método de análise, um ideário articulado e uma estratégia de luta.
Seria uma precipitação supor-se que tudo isso teria desaparecido pela ação do tempo. É verdade que a memória da esquerda revolucionária brasileira, de um modo geral, dentro da qual se encontram os registros particulares da POLOP, constitui-se numa dessas realidades que o curso da vida cotidiana confina à vala comum do esquecimento. Tempos de reação, os três últimos lus- tros decretaram a morte do proletariado, o fim das utopias e, nas franjas do pensamento único que a velha ordem social tentou e ainda tenta impor, a intelectualidade majoritária permitiu-se criar um índex de temas excluídos do campo das discussões. Contudo, as realizações do passado resistem em sua integridade de fatos consumados, retêm suas próprias luzes.
O presente texto ensaia uma discussão nesse terreno: um olhar sobre uma vertente da esquerda revolucionária dos anos 60 e 70, uma volta ao suposto tempo perdido.
Érico Sachs, mais conhecido pelo pseudônimo Ernesto Martins, escreveu em 1981 um texto comemorativo dos 20 anos da POLOP. Evocando o contexto em que vivia a esquerda brasileira nos últimos anos 50 e primeiros 60, disse que a nova Organização tomou para si a tarefa de “libertar as palavras de seu caráter de meros chavões”. Essa proposição suscita interrogações: o que havia de errado com as palavras?
Diríamos que todas as palavras básicas do discurso da esquerda estavam presas a grilhões, a um sentido prévio situado fora da órbita da experiência viva. Por exemplo, a singela e tão importante palavra “proletariado”: ela não continha determinações dinâmicas nem alusões a um conjunto de pessoas envolvidas numa modalidade específica de ação prática, vivendo tais ou quais problemas fundamentais de existência. O “proletariado”, falado pela boca da velha esquerda oficial, era um conceito marcado por um idealismo objetivo, por uma determinação já contida em um ou outro manual traduzido de línguas estrangeiras. O ponto de partida era o conceito (...no princípio era o verbo...): certo grupo de pessoas, no Brasil, deveria forçosamente enquadrar-se nesse conteúdo límpido, apriorístico. O mesmo se poderia dizer da palavra “revolução”. A palavra estava dicionarizada em manuais (também traduzidos do exterior) que a prognosticava em detalhes. Tanto que já não aparecia de forma solta (sugerindo dúvidas supostamente ociosas), pois vinha sempre com um complemento auto-suficiente e esclarecedor: “revolução democrático burguesa” (quer dizer: revolução em etapas, determinadas alianças na primeira etapa, outras alianças na segunda etapa, o esquema era fechado e já dado). E o que dizer da palavra “socialismo”? Também estava nos manuais, ainda que para defini-la fosse necessário recorrer a toda uma gama de palavras previamente instituídas: o socialismo adviria como superação da revolução democrático burguesa, quando o proletariado firmasse aliança com os camponeses e se fizesse ao poder com um partido único, o partido comunista. A tarefa do revolucionário seria, em primeiro lugar, assimilar o estatuto já pronto dessas e de tantas outras palavras, que assim apareciam plenas, nítidas e... aprisionadas, inutilizadas.
Declaradamente marxista, de tal modo que se intitulava Organização Revolucionária Marxista, a POLOP encarava de uma maneira radicalmente distinta a sua relação com o pensamento de Marx. O marxismo, como afirma o documento Caminhos e Caráter da Revolução Brasileira, é, sobretudo, experiência humana pensada e aproveitada. Então era preciso pensar a experiência brasileira, e por esse caminho elevar-se a uma “análise concreta da situação concreta”. Nessa perspectiva, não haveria nenhum manual que nos aliviasse a tarefa, as palavras tinham que ser reelaboradas, ou seja, preenchidas de determinações trazidas de uma observação ativa da vida social brasileira. Em que sociedade vivíamos? Importava combater mitos (como o do feudalismo, como o da burguesia nacional) para chegar-se à conclusão de que o Brasil era uma sociedade capitalista industrial, cujo Estado era composto pela burguesia integrada ao capital internacional e internamente associada ao velho latifúndio, e que, nessas circunstâncias, a única transformação social duradoura seria de caráter socialista. Essa foi uma das primeiras conclusões levadas ao documento básico, o Programa Socialista para o Brasil.
E o proletariado? Certamente não seria aquele, o da mitologia dos manuais. Sua importância política no Brasil não aparecia como mera dedução a partir de um destino transcendental já concebido, mas sim como conclusão retirada da análise específica das contradições presentes na vida nacional. E, além disso, o proletariado brasileiro tampouco era uma classe já formada como tal, em condições de exercer os papéis que lhe reservavam os manuais existentes.
Na ótica da POLOP, havia no Brasil um operariado em tortuoso movimento prático, que há décadas regredira de uma organização livre, datada dos primórdios da industrialização, para uma atitude de reboque em suas relações com o populismo burguês; regredira à condição de um operariado sem objetivos políticos próprios e sem uma organização própria, pois os sindicatos faziam parte do aparelho do Estado. Então o proletariado, enquanto classe independente, simplesmente não existia ainda no Brasil. Foram esses elementos de uma análise concreta que forneceram a matéria constitutiva dos conceitos estratégicos levados ao Programa Socialista para o Brasil: qualquer transformação duradoura na sociedade brasileira exigiria antes a formação do proletariado como classe - com ideologia, ação política e organização independentes das classes dominantes.
Críticos precipitados objetavam quanto ao caráter inexpressivo do contingente numérico da classe operária brasileira. Objeção descabida, pois a análise da POLOP prosseguia em suas considerações fundamentais. Desdenhando as teses transpostas de outras realidades, que mencionavam uma esquemática “aliança operário-camponesa”, o Programa Socialista para o Brasil constatava, pela via da análise histórica, que aqui se delineavam as condições para uma ampla frente dos trabalhadores. Ainda não se conheciam, como hoje, movimentos interclasses de grande envergadura, tais como as mobilizações e organizações populares de bairros, o Movimento dos Sem-Terra, dos Sem-Teto, de desempregados, etc. Mas a experiência viva já permitia concluir pela existência de uma gigantesca camada de trabalhadores proletarizados, em sua maioria assalariados, embora também havendo os pequenos-proprietários em proletarização, nas cidades, nos campos e na confluência cidade-campo. A história das ligas camponesas e dos sindicatos rurais, assim como a história do movimento estudantil, dos bancários e outros, já esboçavam essas potencialidades, tão evidentes aos olhos do observador de hoje, mais de 30 anos depois. Debruçada sobre a radicalização das lutas no período imediatamente anterior ao golpe de 64, o documento “Caminho e Caráter da Revolução Brasileira” via no precedente de um movimento de operários e marinheiros, no Rio de Janeiro, um exemplo ilustrativo, ainda que isolado, da possibilidade futura de hegemonia do proletariado numa frente constituída pela ampla maioria da sociedade brasileira, pelos trabalhadores da base da pirâmide social criada pelo capitalismo. O Programa Socialista para o Brasil não se dirigia apenas à classe operária: divisava a organização das massas em seu sentido mais amplo, através da consigna da Frente dos Trabalhadores da Cidade e Campo.
Fazia-se necessário, contudo, levar ainda mais longe o combate aos chavões. As concepções mais gerais acerca do movimento comunista mundial apareciam no Brasil demasiadamente presas a um dilema entre fórmulas, das quais a mais forte era, notoriamente, a retórica estalinista ou, talvez, àquela altura, neo-estalinista. Havia um modelo de revolução solidamente implantado pelo PC, transposto da União Soviética. A alternativa seria um esquema de fórmulas antigas trazidas diretamente do discurso de Trotski, o que não seria tampouco uma solução, por mais que parecessem positivas muitas das posições em seu tempo defendidas pelo fundador do Exército Vermelho. Ademais, naquele contexto já de crise da hegemonia soviética dentro do comunismo mundial, os dilemas propostos pela esquerda majoritária apareciam no Brasil com nuances variadas, já ultrapassando os antigos termos da luta interna do Partido Comunista da União Soviética. Da distante China, chegavam as ideias maoístas, arrastando com elas todo um conjunto de palavras-acorrentadas, de chavões: libertação nacional, unidade do povo, combate ao Estado Fantoche, etc. Por último, o fascínio da revolução cubana estimulava, em outra direção, um idioma centro-americano, o mito do Estado Títere e de uma luta democrática tal como sugerida por uma sociedade rural-oligárquica. A POLOP recusou o comunismo alinhado a esses diversos paradigmas mundiais. Influenciada pelo antigo núcleo crítico e independente dos comunistas alemães (Rosa Luxemburgo, Franz Mehring e August Thalheimer, entre outros), cujo pensamento havia inspirado o ideário da posterior Oposição Comunista Alemã (1929), antiestalinista, ousou propor a autonomia criadora de uma elaboração original.
A maturação do Programa Socialista para o Brasil estendeu-se desde a Convocatória para o Congresso de fundação, documento datado de 1960, até o Quarto Congresso da Organização, em 1967. Um processo dramaticamente afetado pelo golpe militar de 1964.
Mas o golpe forçou uma rediscussão generalizada dentro das diversas correntes organizadas da esquerda no Brasil e, nesse contexto, a POLOP, já então estruturada em rigorosa clandestinidade, firmou-se como alternativa ao pensamento oficial. As greves de Contagem e Osasco, em 1968, sugeriam possibilidades imediatas para a realização da linha estratégica condensada no recém-aprovado Programa Socialista.
Mas o AI-5, com o terror militar subsequente, interrompeu o processo emergente de um movimento operário radical e jogou por terra o movimento estudantil. Grande parte da classe média aderiu passivamente à nova ordem, ou simplesmente pagou para ver o milagre econômico. O movimento comunista brasileiro, em suas diversas vertentes, entre elas a POLOP, mergulhou numa zona de sombra, isolou-se de suas bases sociais possíveis. A dura travessia dos anos 70 seria aberta com as sucessivas ondas de prisões, que dizimavam em poucos dias os mais variados aparatos clandestinos construídos desde 1964. Vários dentre os quadros políticos mais experientes — precisamente por serem mais vulneráveis ao cerco militar — saíram do país e iniciaram um exílio que se estenderia por quase uma década.
A POLOP endureceu os métodos de segurança para se salvaguardar no cerco imposto pela ditadura. Desfalcada pelas quedas, renovando-se com quadros cada vez mais jovens, à medida em que as lideranças mais antigas conheciam a prisão e a tortura, a sigla mantinha-se em integridade apenas aparente. Por trás da capa da continuidade, a organização concretamente refazia-se numa instabilidade ininterrupta. Novas cabeças, que emergiam e saiam de cena como em ondas, tinham que decifrar o dilema vital entre a teoria e a prática. Pois a elaboração teórica e os êxitos práticos que tanto sensibilizaram o grupo na década anterior abriam expectativas bem definidas quanto ao que deveria ser feito; mas, por outro lado, as novas condições traziam um dado fundamental imprevisto: os trabalhadores não se manifestavam, fazia-se um pesado silêncio no Brasil.
Imersa naquele mundo, dentro da POLOP se perdeu um elo fundamental com a tradição metodológica que presidira a elaboração do Programa Socialista para o Brasil. O enigma em que então se transformara a relação entre a teoria e a prática foi resolvido pelo apelo às meras deduções da teoria. Esquecendo-se de que a realidade, mesmo que sob aquela forma especial de uma inóspita paralisia, sugeria suas próprias verdades, a Organização operou um giro sobre si própria e passou a tomar como referencial a própria teoria acumulada nas elaborações pretéritas. Impactada pelo vazio aparente do movimento real, voltou-se para os textos. Paradoxalmente, repetia-se o problema que combatia desde o seu surgimento: as palavras desligaram-se do campo das experiências sociais para autoalimentar-se em si próprias. Perderam a dimensão da liberdade, tornaram-se os grilhões que iriam aprisionar a Organização durante longos anos. Assim voltada para dentro de si, todo consenso obtido internamente seria precário. O referencial arbitrário da pura teoria somente poderia suscitar a cizânia, e esse foi o destino da POLOP durante quase toda a década de 70.
O movimento de volta às raízes partiu do Grupo no Exílio, onde estava Érico Sachs, o Ernesto Martins. Os primeiros documentos de crítica lembravam que a codificação das conclusões teóricas no corpo de um programa, como foi o caso do Programa Socialista para o Brasil, apenas indicava uma possibilidade para o curso da vida prática. As meras possibilidades não podiam validar-se por si mesmas nem ser elevadas automaticamente ao status de guia para a prática imediata. O conhecimento das necessidades, por outro lado, tinha que apoiar-se numa reflexão da prática social efetiva e não na mera interpretação da teoria. Dessa forma, o Grupo no Exílio voltava aos pontos de partida dos tempos da fundação. Os textos clássicos do marxismo foram novamente retomados numa outra perspectiva: não como conclusões, mas como premissas. Lembrou-se de Marx: não basta que a ideia exija a sua realização, é preciso sobretudo que a realidade aceite a ideia. Lembrou-se de Lênin: não se pode substituir o primado da prática pelos conceitos histórico-universais: a verdade é concreta. O grupo começou um lento movimento de recusa às letras mortas. Mas já era muito tarde para refazer uma organização nos padrões passados, dadas as novas circunstâncias históricas. O ano já era o de 1978.
A história dos “rachas” da POLOP nos anos 70 tornou-se motivo de anedotas em alguns círculos da esquerda. Essa atitude de escárnio se explica, em parte, por um certo espírito autofágico então criado, aqui e ali, pelo isolamento da clandestinidade; e, em parte, porque não poucos segmentos da esquerda já então começavam a transitar explicitamente para fora do marxismo e precisavam de argumentos fáceis para mostrar-se superior à bêtise dos marxistas. De uma forma ou de outra, a demolição da memória da militância não seria uma ação dirigida unicamente contra a POLOP, mas contra toda a esquerda revolucionária brasileira. Criou-se uma quase unanimidade, esmagadora e hostil, um rolo compressor contrário a todos os signos de um passado recente, de uma ação política organizada que, em seu devido tempo, parecia heróica. Gerações mais generosas, quem sabe, poderão fazer a crítica da crítica, decompondo e desmistificando, por sua vez, o sentido geral dessa unanimidade condenatória que se abriu contra a esquerda revolucionária dos anos 70. O pensamento da contra-militância poderá talvez ser visto, por sua vez, como mera expressão de um rebaixamento das pretensões humanas, simples reação contra o férreo compromisso com o futuro da humanidade, tão presente na militância revolucionária. E, afinal, onde a reação anti-militância vê o infantilismo da ação concreta da esquerda revolucionária dos anos 70, outros talvez possam ver o “errar criador do pensamento crítico”. Os julgamentos não são nem serão jamais definitivos (mas tudo aquilo que foi feito persiste intocável, em sua irreversibilidade).
No entanto, voltando à POLOP dos anos 70, parece que nem tudo foi confusão. A organização teria conseguido, naqueles anos trevosos, pelo menos uma elaboração fecundamente original: as teses de crítica que sustentou frente ao movimento pelas liberdades democráticas.
Não se tratava de mais uma volta aos textos para a reafirmação de princípios. A organização argumentava que o movimento pelas liberdades democráticas, tal como desenvolvido na segunda metade dos anos 70, estava limitado ao terreno da ordem constituída, não representava uma plataforma revolucionária de crítica à ditadura e, nessa medida, apenas ajudava a oposição burguesa a retirar “suas castanhas do fogo”, livrando-se dos seus tutores fardados, cuja rigidez e código de continências já eram, então, indesejados.
A evolução social e política brasileira, posteriormente, iria dar razão a essa crítica. É certo que a década seguinte foi marcada pela expansão do PT e da CUT, grandes marcos da história das lutas sociais; mas essas grandes novidades nasceram sob a iniciativa das greves de 1978-80, cuja gênese e desenvolvimento estavam desligados do movimento pelas liberdades democráticas. Esse último teve o seu desfecho na luta pelas Diretas-já, um movimento de índole utópica que se manteve sempre preso a um certo cretinismo parlamentar. Tanto que, quando o Parlamento ultra-reacionário, longamente manipulado pela ditadura militar, finalmente votou contra as diretas, em abril de 1984, o movimento pelas liberdades democráticas não pôde continuar, foi ao chão, imobilizado pelos seus próprios limites legalistas. De certa forma ajudou a Frente Liberal (depois Nova República) a retirar suas castanhas do fogo (de dentro da ditadura). Um segundo round, avassalador, sepultaria esse movimento alguns anos depois, ao se tornar afinal uma realidade a Assembléia Constituinte (consigna central na plataforma das liberdades democráticas) e cujo epílogo foi a hegemonia do Centrão.
O movimento de volta às raízes não conseguiu salvar o grupo remanescente da POLOP, nos primeiros anos 80. Numericamente insignificante, isolado do epicentro das grandes mobilizações que envolviam o nascimento do PT e da CUT, ainda fragmentado em mini-facções regionais, fez-se uma dissolução lenta sem um desfecho bem definido no tempo.
Entretanto, enquanto o grupo organizado se desfazia, parecia que o PT, em suas posições iniciais, em seus documentos programá- ticos, assumia — se bem que de forma contraditória — as linhas gerais de uma tese que, já nos idos de 1961, fora defendida isoladamente pela POLOP: a perspectiva de independência dos trabalhadores frente à burguesia, a defesa de uma política independente contra as diluições populistas e os pactos sociais da velha esquerda reformista antes dominante, a reafirmação (implícita, é verdade) de um núcleo duro representado pela classe operária industrial no interior de um amplo e multiforme movimento de trabalhadores (esboço de uma Frente dos Trabalhadores da Cidade e do Campo?'). Essa realidade era, certamente, contraditória: pois, se parecia verdade que o PT assumia uma perspectiva de independência dos trabalhadores frente à burguesia, apoiado sobretudo no núcleo operário do ABC paulista, era também verdade que esse núcleo agia de forma pragmática, afastando-se de um posicionamento ideológico mais definido, recusando discussões mais sistemáticas sobre as perspectivas de longo prazo. Nos espaços em aberto mantidos por essa indefinição, passaram a se desenvolver, dentro do novo partido, facções políticas e ideológicas posicionadas num espectro muito amplo: não faltando, inclusive, uma forte corrente social-democrata, que via valores universais ali onde a tradição da esquerda revolucionária entendia existir um inconciliável antagonismo social; tampouco faltando, em dimensão nacional e até aqui com grande êxito arregimentador, uma tendência ao acomodamento institucional, presente numa opção preferencial pelas práticas eleitorais.
A POLOP propugnava, já na sua fundação, em 1961, que a emergência de um proletariado como classe, em meio a uma ampla frente de trabalhadores, abalaria a correlação de forças secularmente calcada numa dominação burguesa-latifundiária incontestada. Em 1964 um possível movimento contestatório de massas foi abortado pela intervenção militar. Mas o aprendizado dos trabalhadores prosseguiria sob a superfície, e iria se impor às claras em 1978, daí decorrendo o indisfarçável desconforto desde então revelado pelas classes dominantes brasileiras. Os movimentos de 1978-80 não representavam, ainda, uma ação de classe bem clara em sua plataforma política: a linguagem dominante no movimento tinha, ainda, as ambiguidades de um horizonte muito imediato. Mas, embora dentro desses limites, representavam uma manifestação de ruptura com a tradição de várias décadas de conciliação de classes. As classes dominantes brasileiras sentiram o fato novo e mergulharam numa instabilidade política recorrente nos anos posteriores, entremeada por surtos de estabilidade muito efêmeros, fazendo sobressair-se de forma intermitente um impulso bonapartista.
Os últimos documentos da POLOP observavam a reação agressiva das classes dominantes brasileiras, que assim buscavam avançar sobre os pontos fracos do movimento emergente, visando barrar-lhe novas iniciativas e recuperar o velho status quo. Nesse contexto, o movimento dos trabalhadores colocava-se diante de um desafio ditado pelas forças da ordem e, para enfrentá-lo, precisaria livrar-se de todas as heranças remanescentes de um passado no qual apenas figurava como massa de manobra. O acerto de contas com o passado, dada a urgente necessidade de preparar-se para os desafios do presente, exigia, pelo menos, a depuração radical da organização atrelada, que impregnou o sindicalismo brasileiro desde 1930 e durante décadas funcionou como uma camisa de força imposta pelo Estado.
De modo que, uma curiosa circunstância envolve a morte da POLOP: a organização desapareceu num momento em que suas teses se mostravam em sintonia com o movimento histórico real. Num momento em que as possibilidades divisadas nos idos de 1961 e anos seguintes começavam a acontecer concretamente, ainda que numa forma instável e imatura.
Esse paradoxo instiga uma pergunta: se o antigo ideário mostrava-se atual e ainda com potencial transformador, o que teria, afinal, morrido? Morreu a sigla, é evidente, acabou o velho grupo, seus últimos integrantes se dispersaram em diferentes caminhos. Mas, isso talvez não encerre o assunto. Se for certo que as perspectivas políticas abertas nos primeiros anos 60 pela extinta Organização estavam presentes na hora da sua morte, como tendência em desenvolvimento no cenário vivo das lutas sociais brasileiras, contendo em si novas possibilidades de desdobramentos para o futuro, se a tendência política em referência efetivamente existe, se ela não é pura abstração, pura fantasia, não seria legítimo concluir-se que a sua organização também existe, subjacente, mesmo que de modo difuso, informe e sem nome?
O ponto final dessa existência agônica, na tormentosa obsessão de ver realizar-se a formação do proletariado como classe e a emancipação dos trabalhadores no Brasil, pode ser, quem sabe, este ponto de interrogação.
Referências Bibliográficas:
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ORM-PO. Programa Socialista para o Brasil. Edição mimeografada, 1967.
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ORM-PO. Um nome e um Programa. 1961. Republicado in: Revista Marxismo Militante, Edição Comemorativa dos 20 anos da PO. RJ: 1981.
ORM-PO. Convocatória para o Primeiro Congresso. 1960. Republicado in: Revista Marxismo Militante, Edição Comemorativa dos 20 anos da PO. RJ: 1981.
SACHS, Érico (Ernesto Martins). Andar com os próprios pés. Belo Horizonte, SEGRAC, 1995.
SADER, Eder (Raul Villa). Os ensinamentos de Mao e a Guerra Revolucionária no Brasil. Edição mimeografada, 1968.
Uma colaboração do |
Inclusão | 02/03/2013 |