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A sorte da democracia está ligada, já o verificámos, à sorte do movimento operário. Mas a evolução da democracia terá tornado supérflua ou impossível uma revolução proletária visando a conquista do poder do Estado, a conquista do poder político?
Bernstein resolve este problema sopesando cuidadosamente os aspectos negativos da reforma legal e da revolução, mais ou menos como se estivesse a pesar pimenta ou canela numa cooperativa de consumo. No caminho legal, vê a acção da razão, no revolucionário, a do sentimento, no trabalho reformista, um método lento, na revolução, um método rápido de progresso histórico; na legalidade, uma força metódica, na insurreição, uma violência espontânea.
É de facto por demais conhecido que o reformador pequeno-burguês vê em tudo um lado "bom" e um lado "mau" e que anda por todos os caminhos. É também um facto bem conhecido que o curso real da história não se inquieta absolutamente nada com as combinações pequeno-burguesas e deita abaixo os andaimes bem construídos e os seus melhores cálculos, sem considerar os "lados bons" das coisas, tão bem escolhidos na mistura.
De facto, na história, a reforma legal ou a revolução põem-se em marcha por motivos mais poderosos que o cálculo das vantagens ou dos inconvenientes comparados entre os dois métodos.
Na história da sociedade burguesa, a reforma legal teve por efeito reforçar progressivamente a classe ascendente até se sentir suficientemente forte para tomar o poder político, deitar abaixo o sistema jurídico e construir um novo. Bernstein, condena os métodos de conquista do poder político, censurando-os por retomarem as teorias blanquistas da violência, contribuição prejudicial do blanquismo ao que, desde há anos, é o eixo e a força motriz ,da história humana. Desde que existem sociedades classistas e que a luta de classes constitui o motor essencial da história. a conquista do poder político foi sempre o objectivo de todas as classes ascendentes, assim como ponto de origem e ponto final de todo o período histórico. É o que constatamos nas longas lutas dos camponeses contra os financeiros e a nobreza na antiga Roma, nas lutas entre a nobreza e o clero e artesãos contra fidalgos na Idade Média, tal como da burguesia contra o feudalismo nos tempos modernos.
A reforma legal e a revolução não são métodos diferentes do progresso histórico que se possam escolher à vontade como se se escolhessem salsichas ou carnes frias para almoçar, mas factores diferentes da evolução da sociedade classista, que se condicionam e completam reciprocamente, excluindo-se, como, por exemplo, o pólo Norte e o pólo Sul, a burguesia e o proletariado.
Em cada época, a constituição legal é um simples resultado da revolução. Se a revolução é acto de criação política na história de classe, a legislação é a expressão, no plano político, da existência vegetativa e contínua da sociedade. O trabalho legal das reformas não tem nenhuma forma motriz própria, independente da revolução; só se realizará em cada período histórico na direcção que lhe foi impulsionada pela última revolução, e também durante o período de tempo em que essa impulsão se continuar a fazer sentir ou, para falar concretamente, exclusivamente no quadro da forma social originada pela última revolução. Estamos agora no centro do problema.
É inexacto e contrário à verdade histórica apresentar-se o trabalho de reforma como uma revolução diluída no tempo, e a revolução como uma reforma condensada. Uma revolução social e uma reforma legal não são elementos que se distingam pela sua duração, mas pelo seu conteúdo; todo o segredo das revoluções históricas, da conquista do poder político, reside precisamente na passagem de simples modificações quantitativas, numa nova qualidade ou, concretizando, na passagem de uma dada forma de sociedade a outra num período histórico.
Quem se pronuncie a favor da reforma legal, em vez do encontro do poder político e da revolução social, na realidade não escolhe uma via mais agradável, mais lenta e segura, conduzindo ao mesmo fim; mas tem um objectivo diferente; em vez de procurar edificar uma sociedade nova, contenta-se com modificações sociais da sociedade anterior. Assim, as teses políticas do revisionismo conduzem à mesma conclusão que as suas teorias económicas. Na essência, não visam realizar o socialismo, mas reformar o capitalismo, não procuram abolir o sistema do salariado, mas dosear ou atenuar a exploração, numa palavra: querem suprimir os abusos do capitalismo, mas não o capitalismo.
No entanto, o que acabamos de dizer das funções da reforma legal e da revolução não será unicamente válido para uma luta de classes passada?
Será tarefa da reforma legal, devido à evolução do sistema jurídico burguês, fazer passar a sociedade de uma fase histórica a outra? A conquista do poder do Estado pelo proletariado, não se terá tornado uma "frase vazia de sentido", como pretende Bernstein?
O contrário é que é verdade. O que distingue a sociedade burguesa das outras sociedades classistas, da sociedade antiga e da sociedade feudal? É o facto de o domínio de classe não repousar nos "direitos adquiridos" mas em verdadeiras relações económicas, no facto do salariado não ser uma relação jurídica mas uma relação puramente económica. Não se encontrará em todo o actual sistema jurídico nenhum estatuto legal de dominação de classe. Se existem traços, são sobrevivências da sociedade feudal, tal como o regula- mento do estatuto da criadagem.
Então, como suprimir progressivamente a escravatura do salariado "pela via legal", se não se traduz em leis? Bernstein que pretende, por intermédio da reforma legal, abolir o capitalismo, encontra-se na mesma situação do polícia russo de Ouspenski, que contava assim a sua aventura: "Ràpídamente apanhei o brincalhão pelo colarinho! Mas que vejo? O miserável não tinha colarinho!" Eis o problema...
"Todas as sociedades anteriores se baseavam no antagonismo entre a classe opressora e a classe oprimida" (Manifesto Comunista). Mas, nas precedentes fases da sociedade moderna, esse antagonismo traduzia-se em relações jurídicas bem determinadas; por esse facto, podia permitir, de certa maneira, um lugar para as novas relações no quadro das antigas. "Mesmo no apogeu da servidão, o servo era elevado à categoria de membro da comuna" (Manifesto Comunista). Como era isso possível? Peja progressiva supressão de todos os privilégios no domínio do território: dias de trabalho gratuito, direito de vestuário, taxas sobre herança, direito do melhor catel (direito que tinham os senhores de, pela morte do vassalo, escolher o melhor dos móveis do defunto), imposto pessoal, obrigar ao casamento, direitos de sucessão, etc., cujo conjunto constituía precisamente a servidão.
Mas, dessa maneira, o pequeno~burguês da Idade Média, conseguia igualmente "sob o jugo do absolutismo feudal, elevar-se à categoria de burguês" (Manifesto Comunista). Por que meios? Pela abolição parcial e for- mal ou pelo afrouxamento efectivo dos elos corporativos, pela transformação progressiva da administração das finanças e do exército.
Se se considera o problema em absoluto e não numa perspectiva histórica, pode-se, pelo menos, imaginar no quadro das antigas relações de classe, uma via legal, reformista, de passagem da sociedade feudal à sociedade burguesa. Na realidade demonstra-se que aí não foram as reformas legais que tornaram inútil a tomada do poder político pela burguesia, pelo contrário, serviram para a preparar e para a introduzir. Em regra, foi necessária uma revolução política e social para abolir a servidão e para suprimir o feudalismo. Hoje a situação é outra. Nenhuma lei obriga o proletariado a submeter-se ao jugo do capital, é a miséria e a falta de meios de produção que o constrangem. Mas nenhuma lei do mundo pode dar-Ihe esses meios de produção no quadro da sociedade burguesa, porque não foi uma lei, mas o desenvolvimento económico que o desapossara desses meios de produção.
Igualmente a exploração no interior do sistema salarial não se baseou em nenhuma lei, porque o nível dos salários não foi fixado por via jurídica, dependendo dos factores económicos. O próprio facto de a exploração não ter tido por origem uma disposição legal, tem um fundamento puramente económico, a saber, a força do trabalho é equivalente à situação da mercadoria, e mesmo mais que o valor consumido pelo operário para a sua subsistência.
Numa palavra, é impossível transformar as relações fundamentais da sociedade capitalista, que são as da dominação de uma coisa por outra, com as reformas legais que respeitarão o seu fundamento burguês; essas relações não são produto de uma legislação burguesa, não se encontram traduzidas em leis. Bernstein aparentemente ignora-o, pois propõe uma "reforma socialista", mas reconhece-o implicitamente, quando escreve na pág. 10 do seu livro que o "motivo económico mascara hoje, tanto quanto antigamente era mascarada, toda a espécie de relações de dominação e de ideologia".
Isto não é tudo. O regime capitalista tem uma característica particular; todos os elementos da sociedade futura, ao progredirem, em vez de se orientarem para o socialismo, pelo contrário, afastam-se. A produção tem um carácter cada vez mais social. Mas que carácter social? Ganha a forma de grande empresa, da sociedade por acções, da concentração, no seio das quais os antagonismos capitalistas, a exploração, a opressão da força do trabalho, se exasperam em extremo.
No exército, a evolução do capitalismo conduz à extensão do serviço militar obrigatório, à redução em tempo desse, serviço; parece que se tende para um sistema de milícia popular. Mas essa evolução efectiva-se dentro do militarismo moderno; a dominação do povo pelo Estado militarista manifesta-se claramente, assim como a índole de classe do Estado.
No campo da política, a evolução do sistema conduz, se o terreno é favorável, à democracia, à participação de todas as camadas da população na vida política, orientando-se, de qualquer maneira, para um "Estado popular" mas, dentro da situação do parlamentarismo burguês, onde os antagonismos de classe, muito longe de se resolverem, aparecem à luz do dia. A evolução do capitalismo oscila entre as contradições. Para libertar o núcleo socialista da ganga capitalista, é preciso que o proletariado conquiste o poder político e que o sistema capitalista seja totalmente destruído.
Dessas constatações, Bernstein conclui coisas totalmente diferentes, se é verdade que a evolução do capitalismo deve exasperar e não atenuar as contradições capitalistas. Então, a "social-democracia deveria", acreditando nisso, "não tornar a sua tarefa mais difícil, travando o caminho às reformas sociais e impedindo a extensão das instituições democratas" (p. 71). O que seria correcto, se a social-democracia tivesse a preocupação pequeno-burguesa de escolher cuidadosamente os bons e os maus lados da história. Nesse caso, deveria, para ser consequente, "barrar o caminho", a todo o capitalismo porque é o terrível criminoso que põe obstáculos ao socialismo. De facto, o capitalismo, pondo obstáculos ao socialismo, oferece-lhe as únicas possibilidades de realizar o programa socialista. Isto é igualmente válido para a democracia. A democracia é talvez inútil ou menos inquietante para a burguesia actual. Para a classe operária é necessária, digamos mesmo indispensável.
É necessária porque criou as formas políticas (auto-administração, direito de voto, etc.) que servirão ao proletariado como trampolim e sustentáculo na sua luta pela transformação revolucionária da sociedade burguesa. Mas também é indispensável porque é lutando pela democracia e exercendo os seus direitos que o proletariado terá consciência dos seus interesses de, classe e das suas tarefas históricas.
Numa palavra, a democracia é indispensável, não porque torne inútil a conquista do poder político pelo proletariado; pelo contrário, torna necessária e simultâneamente possível a conquista desse poder. Quando Engels, no prefácio à Luta de Classes em França, revia a táctica do movimento operário moderno, opondo as barricadas à luta legal, não apontava – e cada linha do prefácio demonstra-o – ao problema da conquista do poder político, mas à luta quotidiana do momento. Não analisava a atitude do proletariado frente ao Estado capitalista no momento da conquista do poder, mas a sua atitude no interior do Estado capitalista. Em resumo, Engels dava directrizes ao proletariado oprimido e não ao proletariado vitorioso.
Em contrapartida, a célebre frase de Marx sobre a questão agrária em Inglaterra, de que Bernstein se serve como argumento – "regular-se-ia mais fàcilmente comprando os senhores da terra" – essa frase não se relaciona com a atitude do proletariado antes, mas depois da sua vitória. Porque só se pode falar em comprar as classes dominantes quando a classe operária está no poder. O que Marx encarava era o exercício pacífico da ditadura do proletariado e não a substituição da ditadura pelas reformas sociais capitalistas.
Marx e Engels nunca puseram em dúvida a necessidade da conquista do poder político pelo proletariado. Estava reservado para Bernstein considerar o pântano do parlamentarismo burguês como o instrumento chamado a realizar a transformação social mais formidável da história, quer dizer, a transformação das estruturas capitalistas em estruturas socialistas.
Expondo a sua teoria, Bernstein começa por exprimir simplesmente o receio de que o proletariado conquistasse excessivamente cedo o poder. Se isso acontecesse, uma tal acção, segundo Bernstein, conduziria a deixar a sociedade burguesa na situação em que está, e o proletariado sofreria uma terrível derrota. Esse receio mostra ao que se confina pràticamente, a teoria de Bernstein: a aconselhar o proletariado, no caso das circunstâncias o levarem ao poder, a ir-se deitar. Mas, mesmo aí, essa teoria julga-se a si própria, revela-se como uma doutrina condenando o proletariado, nos momentos decisivos da luta, à inacção, a uma traição passiva da sua própria causa.
Se o nosso programa não pode ser aplicável a todas as eventualidades ou a todos os momentos da luta, não passa de um mísero bocado de papel. Formulação global da evolução histórica do capitalismo, o nosso programa deve descrever, igualmente, nas suas linhas fundamentais, todas as fases transitórias dessa evolução e orientar em cada instante a atitude do proletariado na sua marcha para o socialismo. Pode-se concluir que não existe nenhuma circunstância em que o proletariado seja obrigado a abandonar o seu programa ou a ser abandonado por ele.
Concretamente isto quer dizer que não existe nenhum momento em que o proletariado, levado pelas circunstâncias ao poder, não possa, ou não esteja preparado para tomar certas medidas visando realizar o seu programa, medidas de transição para o socialismo. Afirmar que o programa socialista se pode revelar impotente numa fase qualquer da conquista do poder e incapaz de dar as directivas para a sua realização, é repetir a afirmação de que o programa socialista é, de um modo geral e sempre, irrealizável.
Mas se as medidas transitórias são prematuras?
Esta objecção revela uma série de mal-entendidos quanto à natureza real e ao desenrolar de uma revolução social. Primeiro mal-entendido: a conquista do poder político pelo proletariado, quer dizer, a grande classe popular, não se faz artificialmente. Excepto em casos excepcionais – como a Comuna de Paris, onde o proletariado não obteve o poder no fim de uma luta consciente, mas onde o poder lhe coube como herança que ninguém queria – a conquista do poder político implica uma situação política e económica que atingiu um determinado grau de maturidade. É esta a diferença básica entre os golpes de Estado, no estilo blanquista, levados a efeito por uma minoria actuante, desencadeados num momento qualquer e, de facto, sempre inoportunos, e a conquista do poder político pela grande massa popular consciente; uma tal conquista só pode ser o produto da decomposição da sociedade burguesa, contém em si própria a justificação económica e política da sua oportunidade.
Se se considerarem as condições sociais da conquista do poder, a revolução só se pode produzir prematuramente, só é prematura exclusivamente em função das consequências políticas quando se trata de conservar o poder.
A revolução prematura, espectro que povoa as noites de Bernstein, ameaçadora como a espada de Dâmocles, não pode ser esconjurada por nenhuma oração, nenhuma súplica, todas as angústias e transes são impotentes. E isso por duas razões muito simples.
Em primeiro lugar uma mutação tão formidável como a passagem da sociedade capitalista para sociedade socialista não se pode produzir de um salto, por um golpe feliz do proletariado. Imaginá-lo é fornecer mais uma
vez provas de concepções decididamente blanquistas. A revolução socialista implica uma luta longa, sustentada com obstinação no decorrer da qual e, muito provàvelmente, por mais de uma vez, o proletariado ficará em desvantagem. Se se olhar o resultado final da luta global, o seu primeiro ataque terá sido prematuro: teria chegado cedo de mais ao poder.
Ora – e este é o segundo ponto – essa conquista "prematura" do poder político é inevitável, porque esses ataques prematuros do proletariado são um factor, factor muito importante, da criação de condições políticas para a vitória definitiva; na realidade, é durante a crise política que acompanha a conquista do poder, durante longas e obstinadas lutas, que o proletariado adquirirá o grau de maturidade política que lhe permita obter a vitória definitiva da revolução. Assim esses assaltos "prematuros" do proletariado ao poder do Estado são, em si mesmos, factores históricos importantes, que contribuem para provocar e determinar o momento da vitória definitiva. Nessa perspectiva, a ideia de uma conquista "prematura" do poder político pelos trabalhadores é um contra-senso que deriva de uma concepção mecânica da evolução da sociedade; uma tal concepção pressupõe para a vitória da luta de classes um momento fixo fora e independentemente da luta de classes.
Ora já vimos que o proletariado não pode fazer outra coisa além de apoderar-se "prematuramente" do poder político, ou por outras palavras, só o pode conquistar uma ou várias vezes mais cedo para o conseguir conquistar definitivamente; por esse facto, opor-se a uma conquista "prematura" do poder, resulta no opor-se, em geral, à aspiração de conquista do poder do Estado, pelo proletariado.
Todos os caminhos levam a Roma: chegamos lògicamente, e mais uma vez, a esta conclusão: o conselho revisionista para se abandonar o objectivo final socialista é o abandono do movimento socialista no todo.
Ao rever o programa socialista, Bernstein começa por abandonar a teoria do desmoronamento do capitalismo. Ora essa teoria é a pedra de fecho do socialismo científico. Rejeitando-a, Bernstein provoca necessàriamente o desabamento de toda a sua concepção socialista. Ao longo da discussão, é obrigado, para sustentar a sua afirmação inicial, a abandonar sucessivamente, uma após outra, as posições socialistas.
Sem a derrocada do capitalismo, a expropriação do capitalismo é impossível. Bernstein renuncia a essa expropriação e coloca como objectivo do movimento operário a realização progressiva do "princípio cooperativo". Mas o sistema cooperativo só pode ser realizado no interior de um regime capitalista. Bernstein renuncia à socialização da produção e contenta-se em propor a reforma do comércio, o desenvolvimento das cooperativas de consumo.
Mas a transformação da sociedade através das cooperativas de consumo, mesmo com o apoio dos sindicatos, é incompatível com o desenvolvimento natural e efectivo da sociedade capitalista. Bernstein renuncia, portanto, à concepção materialista da história.
Mas a sua própria concepção do desenvolvimento económico é incompatível com a teoria marxista da mais-valia. É por isso que Bernstein abandona a teoria marxista do valor e da mais-valia e, simultâneamente, toda a doutrina económica de Marx.
Não pode haver luta proletária de classes sem um objectivo final determinado e sem base económica na sociedade actual. Bernstein abandona a luta de classes e prega a reconciliação com o liberalismo burguês.
Entretanto, numa sociedade de classes uma tal reconciliação é um fenómeno natural e inevitável; Bernstein contesta, por fim, a própria existência de classes na nossa sociedade: a classe operária é para ele uma massa de indivíduos isolados e dispersos, não só política e intelectualmente, mas também econòmicamente. A burguesia, aglomerada politicamente por interesses económicos, também não constitui, segundo ele, uma classe, e a sua coesão só é mantida por uma pressão exterior de cima ou de baixo.
Mas, se não existe fundamento económico na luta de classes e, se se nega, no fim de contas, a própria existência de classes, afirma-se, por isso mesmo, a impossibilidade não só de uma luta futura do proletariado contra a burguesia, mas ainda a sua luta anterior. A própria social-democracia e os seus êxitos tornam-se totalmente incompreensíveis. Ou então explicam-se como o resultado da pressão política do governo; surgem não como uma consequência natural, histórica, mas como o resultado fortuito da política dos Hohenzollern; representam não os filhos legítimos da sociedade capitalista mas os bastardos da reacção. É assim que Bernstein passa, com uma lógica rigorosa, da concepção materialista da história para a do Frankfurter Zeitung ou do Vossische Zeitung.
Depois de ter abjurado de qualquer critica socialista da sociedade capitalista, contenta-se em considerar satisfatório o sistema actual, pelo menos no seu conjunto. É um passo que Bernstein não hesita em dar; considera que na Alemanha de hoje, a reacção não é muito forte: "nos países da Europa Ocidental não se pode falar em reacção política"; pensa que em todos os países do Ocidente a "atitude das classes burguesas em relação ao movimento socialista é mais ou menos uma atitude de defesa e não de opressão" (Vorwärts, 26 de Março de 1899). Não existe pauperização, mas uma melhoria do nível de vida dos operários; a burguesia é politicamente progressiva e mesmo moralmente sã. Não se pode falar de reacção ou de opressão. Tudo é feito para melhorar o melhor dos mundos... Depois de ter dito o A, Bernstein é, lógica e consequentemente, levado a recitar todo o alfabeto. Começou por abandonar o objectivo final do movimento. Mas, como na prática não pode haver movimento socialista sem finalidade socialista, é obrigado a renunciar ao próprio movimento.
Toda a doutrina socialista de Bernstein se desmorona dessa maneira. A orgulhosa e admirável construção simétrica do sistema marxista é, para ele, um montão de escombros onde os destroços de todos os sistemas, os fragmentos do pensamento de todos os grandes e pequenos espíritos encontraram a vala comum. Marx e Proudhon, Leo von Buch e Frantz Oppenheimer, Friedrich-Albert Lange e Kant, Prokopovitch e o doutor Ritter von Neupauer, Herkner e Schulze-Gaevernitz, Lassalle e o professor Julius Wolff: todos contribuíram para o sistema de Bernstein. A cada um foi buscar o seu bocado. Que tem isto de espantoso? Abandonando a perspectiva de classe, perdeu todo o ponto de referência marxista; renunciando ao socialismo científico perdeu o eixo de cristalização intelectual em torno do qual os factos isolados se agrupavam num conjunto orgânico de uma concepção coerente do mundo.
Esta doutrina composta por fragmentos de todos os sistemas possíveis, sem distinção, pode parecer, à primeira vista, uma abordagem livre de preconceitos. Com efeito, Bernstein não quer ouvir falar numa "ciência de partido" ou, mais precisamente, de uma ciência de classe, de um liberalismo de classe ou de uma moral de classe. Julga representar uma ciência abstracta, universal, humana, um liberalismo abstracto, uma moral abstracta.
Mas a sociedade real compõe-se de classes com interesses, aspirações, concepções diametralmente opostas e de uma ciência humana universal no campo social. Um liberalismo abstracto, uma moral abstracta são a consequência da fantasia e da utopia pura. O que Bernstein julga ser a sua ciência, a sua democracia, a sua moral universal, tão impregnada de humanismo, é simplesmente a moral da classe dominante, quer dizer, a ciência, a democracia e a moral burguesas.
Na realidade, negar o sistema económico marxista e converter-se às doutrinas de Bernstein, Boehm-Jevons, Say, Julius Wolff, não será trocar a base científica da emancipação da classe operária pela apologética da burguesia? Evocando o carácter universalmente humano do liberalismo, degradando o socialismo até o transformar numa caricatura, Bernstein retira ao socialismo o seu carácter de classe, o seu conteúdo histórico, em resumo, todo o seu conteúdo; inversamente, faz da burguesia campeã do liberalismo na história, a representante do interesse universalmente humano.
Bernstein condena a excessiva importância atribuída "aos factores materiais" considerados como forças todas-poderosas da evolução, guerreia o "desprezo pelo ideal" da social-democracia; institui-se campeão do idealismo, da moral, enquanto, simultâneamente, se ergue contra a única fonte de conhecimentos morais para o proletariado, a luta de classes revolucionária; fazendo-o, acaba por pregar para as classes operárias o que é a quintessência da moral burguesa, a reconciliação com a ordem estabelecida e a transposição da esperança para a lei do universo moral. Por fim, reservando os ataques mais violentos contra a dialéctica, não estará a visar o modo de pensar específico do proletariado consciente, lutando pelas suas aspirações? Não será a dialéctica o instrumento que deve ajudar o proletariado a sair das trevas onde mergulha o seu futuro histórico, a arma intelectual que permite ao proletariado, ainda sob o jugo material da burguesia, triunfar, convencê-la de que está condenada a morrer, a provar-lhe a certeza infalível da sua vitória? Esta arma não terá desempenhado a sua obrigação no âmbito do espírito da revolução? Bernstein, abandonando a dialéctica, entrega-se ao jogo intelectual menor das fórmulas equilibristas tais como "sim, mas", "por um lado, por outro lado", "ainda que, contudo", "mais ou menos", adopta, lógicamente, o modo de pensar histórico da burguesia decadente, modo de pensar que reflecte fielmente a sua existência social e a sua acção política. O jogo menor do equilíbrio político traduzido por fórmulas: "por um lado, por outro lado", "sim, mas", preciosas para a burguesia actual, encontra o seu fiel reflexo no modo de pensar de Bernstein; e o modo de pensar de Bernstein é o mais sensível e seguro sintoma da sua ideologia burguesa. Mas, para Bernstein, o termo burguês já não designa uma classe; é um conceito social universal. O que significa simplesmente – lógico até às suas últimas consequências, até ao último ponto colocado sobre o último i – que, abandonando a ciência, a política e o modo de pensar do proletariado, abandona igualmente a linguagem histórica do proletariado pela da burguesia. Porque por Bürger (burguês e cidadão) Bernstein entende sem diferenciações, burguês e proletário, homem em geral. É que efectivamente o homem é para ele o burguês, e a sociedade humana é idêntica à sociedade burguesa.
O livro de Bernstein teve para o movimento operário alemão e internacional uma grande importância histórica: foi a primeira tentativa para dar às correntes oportunistas da social-democracia uma base teórica.
Se considerarmos algumas manifestações esporádicas que aparecem à luz do dia – pensamos por exemplo na famosa questão da subvenção concedida às companhias marítimas (9) – as tendências oportunistas no interior do nosso movimento vêm de longe. Mas sòmente em 1890 se esboçou uma tendência declarada e única nessa via: depois da abolição da lei de excepção contra os socialistas, quando a social-democracia reconquistou o terreno da legalidade. O socialismo de Estado à Vollmar, a votação do orçamento na Baviera, o socialismo agrário na Alemanha do Sul, os projectos de Heine tendentes a instituir uma política mercantil, as opiniões de Schippel sobre a política alfandegária e sobre a milícia (10): essas são as principais etapas que demarcam a via, da prática oportunista.
O sinal distintivo do oportunismo era, na altura, a hostilidade à "teoria". O que é natural porque a nossa "teoria" – quer dizer, os princípios do socialismo científico – limitam firmemente a acção prática em relação aos objectivos visados, aos meios de luta e, por fim, ao modo da própria luta.
Também os que só procuram resultados práticos têm um pendor natural para reclamar liberdade de manobra, quer dizer, separar a prática da "teoria", torná-Ias independentes.
Mas, a cada tentativa de acção prática, a teoria cai-Ihes sobre a cabeça: o socialismo de Estado, o socialismo agrário, a política de mercados, o problema da milícia, são outras tantas derrotas para o oportunismo. É por demais evidente que, para afirmar a sua existência contra os nossos princípios, essa corrente, muito logicamente, acabaria por organizar uma teoria própria, princípios próprios. Melhor que ignorá-Ios, tentar desacreditá-Ios e construir uma teoria própria. A teoria de Bernstein foi uma tentativa desse género. E vimos que no Congresso de Estugarda, todos os elementos oportunistas se agruparam à volta do pendão de Bernstein.
Se as diversas correntes do oportunismo prático são um fenómeno naturalíssimo, explicável pelas condições da nossa luta e pelo crescimento do nosso movimento, a teoria de Bernstein é, por outro lado, uma tentativa não menos natural para reunir essas correntes numa expressão teórica que lhe seja própria e entre em guerra com o socialismo científico. A doutrina de Bernstein serve de legitimação científica ao oportunismo e submete-o à prova do fogo. Como suporta o oportunismo essa prova? Já o vimos: o oportunismo não está à altura de construir uma teoria positiva que resista, um mínimo que seja, à crítica. Só é capaz de atacar alguns princípios isolados da doutrina marxista; mas, como essa doutrina constitui um edifício solidamente implantado, acaba por atacar todo o sistema, do último andar aos alicerces. O que prova que o oportunismo prático é incompatível, pela sua natureza e fundamentos, com o sistema marxista.
Isso prova igualmente que o oportunismo é incompatível com o socialismo em geral; a sua tendência intrínseca é orientar o movimento operário para a via burguesa, ou dito de outra maneira: paralisar completamente a luta de classes proletária. Sem dúvida que, se os considerarmos numa perspectiva histórica, a luta de classes proletária e o sistema marxista não são idênticos. Antes de Marx e independentemente dele, houve um movimento operário e diversos sistemas socialistas; cada um a seu modo e segundo as condições da época, traduziram no plano teórico as aspirações de emancipação da classe operária. Todas as componentes da doutrina de Bernstein se encontram em sistemas anteriores ao marxismo: um socialismo fundamentado em noções morais de justiça, a luta dirigida mais contra o modo de repartição da riqueza do que contra o modo de produção, uma concepção de antagonismos de classe reduzidos ao antagonismo entre ricos e pobres; a vontade de enxertar na economia marxista o sistema do "cooperativismo". Ora, em seu tempo, eram teorias autênticas da luta de classes proletária, foram o alfabeto histórico onde o proletariado aprendeu a ler.
Mas depois da evolução da luta de classes e das suas condições sociais, uma vez abandonadas essas teorias e formulados os princípios do socialismo científico – não pode existir, pelo menos na Alemanha, outro socialismo que não seja o socialismo marxista, nem outra luta de classes socialista que não seja a da social-democracia. Retornar às teorias socialistas anteriores a Marx, não é apenas voltar ao b-a-ba, ao primeiro grande alfabeto do proletariado, é balbuciar o catecismo anacrónico da burguesia.
A teoria de Bernstein foi a primeira e a última tentativa para fornecer ao oportunismo uma base teórica. Dizemos, "última" porque com a doutrina de Bernstein, o oportunismo foi tão longe – negativamente na abjuração do socialismo científico e positivamente na confusão teórica, amálgama incoerente de todos os elementos disponíveis nos outros sistemas – que nada fica para lhe acrescentar. O livro de Bernstein marca o fim da evolução teórica do oportunismo, extraindo-lhe as últimas consequências.
A doutrina marxista não se limita a ser capaz de a refutar teoricamente, é a única capaz de explicar esse fenómeno histórico que é o oportunismo no interior da evolução do partido. A progressão histórica do proletariado até à vitória não é efectivamente uma coisa muito simples. A originalidade desse movimento reside no seguinte: pela primeira vez na história, as massas populares decidem realizar por si mesmas a sua vontade opondo-se a todas as classes dominantes; pela primeira vez, a realização dessa vontade é situada para além da sociedade actual, numa ultrapassagem dessa sociedade. A educação dessa vontade só se pode realizar numa luta permanente contra a ordem estabelecida e no interior dessa ordem. Reunir a grande
massa popular polarizada por objectivos situados para lá da ordem estabelecida, aliar a luta quotidiana com o projecto grandioso de uma reforma do mundo, é o problema que se põe ao movimento socialista e que deve nortear a sua evolução e progressão, é o cuidado em evitar dois escolhos: não deve sacrificar nem o carácter do movimento de massa, nem o objectivo final; deve evitar simultâneamente fechar-se numa seita e transformar-se num movimento reformista burguês; tem que se defender, ao mesmo tempo, do anarquismo e do oportunismo.
O arsenal teórico do marxismo, desde há meio século, que nos oferece, indubitàvelmente, as armas capazes de evitar um e outro desses perigos opostos. Mas o nosso movimento é um movimento de massa e os perigos que o ameaçam não são uma invenção de cérebros individuais, mas produto de condições sociais; também a doutrina marxista não podia, antecipadamente, uma vez por todas, pôr-nos ao abrigo de desvios anarquistas e oportunistas: sòmente quando os desvios se traduzem na prática é que podem ser ultrapassados pelo próprio movimento – mas exclusivamente com o auxílio das armas fornecidas por Marx.
A social-democracia já ultrapassou o menor desses perigos, a doença infantil anarquista, com o "movimento dos independentes" (11). Agora está a ultrapassar o segundo e mais grave desses males: a hidropisia oportunista.
Se se considerar a enorme expansão do movimento no decursos dos últimos anos e o carácter complexo das condições em que se deve travar a luta, assim como os objectivos que deve ter, era inevitável que num determinado momento se manifestasse uma certa flutuação: cepticismo quanto à possibilidade de atingir os grandes objectivos finais, hesitações quanto ao elemento teórico do movimento. O movimento operário não pode nem deve progredir de outra forma; os instantes de hesitação, de descrença, estão muito longe de surpreender os marxistas, pelo contrário, foram previstos e preditos desde há muito por Marx:
"As revoluções burguesas", escrevia Marx, há meio século no seu Dezoito Brumário "como as do século XVIII, precipitam-se ràpidamente de acontecimento em acontecimento, os seus efeitos dramáticos ultrapassam-se ràpidamente, homens e coisas parecem engastados no brilho dos diamantes, o entusiasmo estático é a mentalidade quotidiana, mas têm uma vida curta. Atingem ràpidamente o seu apogeu e um longo marasmo apodera-se da sociedade antes que ela aprenda a apropriar-se tranquilamente dos resultados do período tempestuoso. Inversamente, as revoluções proletárias, como a do século XIX, autocriticam-se permanentemente, interrompem a cada momento o seu curso, voltam ao que já parecia estar feito para o recomeçar de novo, zombam impiedosamente das suas insuficiências, das fraquezas e misérias das suas primeiras tentativas, parecem não abater o seu adversário que, tirando da terra novas forças, se endireita novamente, mais gigantesco, têm um medo constantemente renovado frente à imensidade infinita do seu próprio objectivo, até que seja atingida a situação que torna impossível qualquer recuo e que as próprias circunstâncias lhe gritem:
"Hic Rhodus, hic salta!"
"É aqui que está a rosa! É aqui que é preciso dançar!"
Tudo isto continua a ser verdade, mesmo depois de ter sido edificado o socialismo científico. O movimento proletário, mesmo na Alemanha, não se fez de repente socialista, faz-se um pouco em cada dia, faz-se corrigindo os desviacionismos opostos: o anarquismo e o oportunismo; um ou outro erro são fases do movimento considerado como um processus contínuo.
Nessa perspectiva não é a aparição de uma corrente oportunista que deve surpreender, é sobretudo a sua fragilidade. Tanto quanto se manifestou em ocasiões isoladas, a propósito da acção prática do partido, poder-se-ia imaginar que se apoiava numa base teórica séria.
Hoje, lendo os livros de Bernstein, a expressão teórica máxima dessa tendência, grita-se com estupefacção: Como? É tudo o que têm para dizer? Nem sombra de pensamento original! Nem uma ideia que o marxismo já não tivesse, há dezenas de anos, refutado, esmagado, ridicularizado, reduzido a pó! Bastou que o oportunismo começasse a falar para demonstrar que nada tinha para dizer. É isso que dá, para a história do partido, tanta importância ao livro de Bernstein.
Bernstein abandonou as categorias do pensamento do proletariado revolucionário, a dialéctica e a concepção materialista da história; ora é a elas que deve as circunstâncias atenuantes da sua mudança. Porque só a dialéctica e a concepção materialista da história podem mostrá-lo, com grande magnanimidade, tal como o foi inconscientemente: o instrumento predestinado que, revelando à classe operária um desfalecimento passageiro do seu ardor, a forçou a rejeitá-Io com um gesto de desprezo escarnecedor.
Tínhamos dito: o movimento torna-se socialista corrigindo os desviacionismos anarquistas e oportunistas que são uma consequência inevitável do seu crescimento. Mas ultrapassá-los não significa fazer tudo com toda aquela tranquilidade que agradaria a Deus. Ultrapassar a corrente oportunista actual significa rejeitá-Ia.
Bernstein termina o seu livro com um conselho ao partido: que ouse parecer o que é, quer dizer, um partido reformista, socialista e democrata. O partido, ou seja, o seu órgão supremo, o Congresso deveria, em nossa opinião, seguir esse conselho propondo a Bernstein, parecer o que é: um progressista democrata pequeno-burguês.
A primeira edição terminava com estes dois parágrafos que Rosa Luxemburg suprimiu por lhe parecer terem perdido oportunidade.
Notas:
(9) Foi em 1884 e em 1885 que se discutiu no Parlamento a questão da subvenção que Bismark pretendia conceder às companhias marítimas, em particular àquelas que faziam carreiras para as primeiras (ou futuras) colónias alemãs. As opiniões da social-democracia sobre este problema apresentaram-se bastante diversificadas. (N. T.). (retornar ao texto)
(10) Votação do orçamento na Baviera: A partir dos anos 90 foi introduzida no partido socialista da Baviera a tradição de votar o orçamento do Land. Isto era contrário às tradições do Partido no seu conjunto: no Reichstag, os deputados socialistas recusavam todos os anos em bloco o orçamento. (retornar ao texto)
(11) O "movimento dos Independentes" foi iniciado pelo grupo dos "Junge" de tendências anarquistas, no interior do S. P. D. (N. T.). (retornar ao texto)
Inclusão | 15/01/2005 |