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A maior conquista da luta da classe proletária, no decurso do seu evoluir, foi descobrir que a realização do socialismo encontra apoio nos fundamentos económicos da sociedade capitalista. Até esse momento o socialismo que era um "ideal", objecto dos sonhos milenários da humanidade, tornou-se uma necessidade histórica.
Bernstein contesta a existência, na sociedade actual, desses fundamentos económicos do socialismo. A sua argumentação sobre este assunto sofreu uma evolução deveras interessante. A princípio, na Neue Zeit. constava simplesmente a rapidez do processo de concentração industrial e baseava-se numa comparação dos números de estatística profissional na Alemanha de 1895 e de 1882. Para poder adaptar esses resultados aos seus fins, foi obrigado a recorrer a procedimentos sumários e mecânicos. Mas, mesmo na melhor das hipóteses, Bernstein, demonstrando a sobrevivência tenaz das empresas médias, não podia enfraquecer minimamente a análise marxista. O marxismo não implica, como condição para a realização do socialismo, nem um certo ritmo de concentração industrial, quer dizer um prazo determinado para a realização do objectivo final do socialismo, nem, como o demonstramos, a desaparição absoluta dos pequenos capitais, ou por outras palavras, a desaparição da pequena burguesia.
Seguidamente, Bernstein fornece, no seu livro, novo material comprovativo, a saber: a estatística das sociedades por acções que, segundo ele, deveria demonstrar que o número de accionistas cresce constantemente e por consequência, a classe capitalista, em vez de diminuir numericamente, aumenta. É espantoso verificar até que ponto Bernstein conhece pouco os documentos existentes e como os utiliza mal na defesa da sua tese!
Se tinha procurado, fundamentando-se nas sociedades por acções, provas contra a lei marxista do desenvolvimento industrial, deveria citar outros números totalmente diferentes. Qualquer pessoa que conheça a história das sociedades por acções na Alemanha, sabe que o capital inicial por empresas diminui quase regularmente. Assim, antes de 1871, esse capital ascendia a cerca de 10,8 milhões de marcos, em 1871, não ultrapassava os 4,01 milhões de marcos, em 1873 – 3,8 milhões, de 1882 a 1887 menos de um milhão; em 1891 – 0,52 milhões e em 1892 ascendia a somente 0,62 milhões de marcos. Desde que esses números começaram a oscilar à volta de um milhão de marcos, chegaram mesmo a descer dos 1,78 milhões em 1895 a 1,19 milhões de marcos no decurso do primeiro semestre de 1897 (Van der Borght: Handwörterbuch der Staatswissenschaften, 1).
Eis os números espantosos: Bernstein podia deduzir toda uma tendência antimarxista do desenvolvimento, que seria a redução das grandes empresas e o retorno às pequenas empresas. Mas, neste caso, não importa o que se lhe poderia responder, porque essas estatísticas têm um valor de prova, deve-se provar que se reportam aos mesmos sectores da indústria; deve-se demonstrar que as pequenas empresas surgem em substituição das grandes empresas, e não em sectores onde predominem o capital familiar ou mesmo o artesanato ou ainda a empresa de minúsculas dimensões. Mas esta é uma prova que não se pode fazer, porque a substituição de inúmeras empresas médias ou pequenas por sociedade por acções só se pode explicar pela penetração, em novos sectores da produção, do sistema das sociedades por acções. É verdade que esse sistema, que inicialmente só se aplicava a um pequeno número de grandes empresas, adaptou-se progressivamente às médias e mesmo pequenas empresas (constatamos mesmo a constituição de sociedades por acções com menos de mil marcos de capital!).
Mas que significa, no plano económico, a cada vez maior utilização do sistema de sociedades por acções? Significa a socialização crescente da produção no interior do capitalismo, a socialização da grande, mas também da média ou pequena produção, por consequência qualquer coisa que não contradiz a teoria marxista mas, pelo contrário, a confirma da forma mais evidente.
Com efeito, se é necessário definir económicamente a produção das sociedades por acções, dir-se-á que esse fenómeno consiste em, por um lado, reunir um grande número de pequenas fortunas num grande capital de produção e, por outro, separar a produção da propriedade do capital; consequentemente, consegue ultrapassar de duas maneiras o modo de produção capitalista sem alterar os seus fundamentos capitalistas. Perante estes factos, o que significa a estatística citada por Bernstein do grande número de accionistas participando numa empresa? Prova simplesmente que hoje uma empresa capitalista não corresponde, como outrora, a um único proprietário do capital, mas a um número cada vez mais considerável de capitalistas e que, por consequência, a noção económica do "capitalista" não dissimula um indivíduo isolado, significa que o actual capitalista industrial é uma pessoa colectiva composta por centenas ou mesmo milhares de indivíduos, e que a própria categoria capitalista tornou-se, nos quadros da economia capitalista, uma categoria social, que se socializou.
Como explicar agora o erro de Bernstein que vê no fenómeno das sociedades por acções uma dispersão e não uma concentração do capital e que descobre uma extensão da propriedade capitalista onde Marx via muito pelo contrário, a "supressão dessa mesma propriedade?" Esse erro explica-se por uma confusão económica muito simples: para Bernstein a noção de capitalista abrange não uma unidade económica mas uma unidade fiscal e por capital não entende um factor de produção mas simplesmente uma certa fortuna em dinheiro. Por isso no exemplo que cita, o de um monopólio inglês siderúrgico, não vê a fusão de 12.300 indivíduos numa só pessoa colectiva, mas a de 12.300 capitalistas individuais; assim o seu engenheiro Schulze que recebeu do usufrutuário dos rendimentos Müler, à maneira de dote da mulher, "um grande número de acções" (p. 54) é a seus olhos um capitalista. É assim que todo o mundo lhe surge como um formigueiro de "capitalistas" (6) .Esta confusão herdada da economia vulgar serve de base teórica a Bernstein para uma "vulgarização" do socialismo. Transferindo a noção de capitalista da esfera de produção para a da propriedade e "falando de homens em vez de falar em empresários" (p. 53), Bernstein transfere, igualmente o socialismo do campo da produção para o campo das relações de fortuna; transforma as relações entre o capital e o trabalho em relações entre ricos e pobres.
Eis-nos atirados de Marx e Engels para o autor do Evangelho do pobre pecador, com a diferença que Weitling, com um autêntico instinto proletário, via precisamente nesse antagonismo entre ricos e pobres os antagonismos de classe na sua forma primária, e pretendia fazer dele uma alavanca do socialismo; Bernstein vê a realização do socialismo pela transformação dos pobres em ricos, quer dizer, na atenuação dos antagonismos de classe; e aí compromete-se numa via pequeno-burguesa.
É verdade que Bernstein não se limita à estatística dos rendimentos. Fornece-nos igualmente estatísticas das empresas em Vários países: a Alemanha, a França, a Inglaterra, a Suíça, a Áustria e os Estados Unidos. O que valem essas estatísticas? Não compara esses números dos diferentes períodos em cada país, mas de cada período nos diferentes países, não compara por consequência – à excepção da Alemanha onde retorna à velha comparação entre os anos 1895 e 1882 – a estatística de um determinado país em épocas diferentes, mas unicamente números absolutos para os diferentes países (para Inglaterra em 1891, para a França em 1894 e para os Estados Unidos em 1890, etc.). Chega à conclusão de que se "a grande exploração ainda hoje domina efectivamente a indústria, mas já só representa, incluindo as empresas que dela dependem, mesmo num país tão desenvolvido como a Prússia, mais ou menos metade da população ocupada na produção". O mesmo para a Alemanha, Inglaterra, Bélgica, etc.
O que demonstra não é evidentemente tal ou qual tendência do desenvolvimento económico, mas exclusivamente a relação absoluta entre forças de diferentes formas de empresas e de diferentes classes profissionais. Pretende provar dessa maneira a possibilidade de realizar o socialismo, mas a sua argumentação fundamenta-se na tese pela qual o que decide a resultante da batalha social é a relação entre as forças numéricas materiais dos elementos que se defrontam; por consequência, a única violência. Bernstein que anteriormente invectivara de todas as maneiras o blanquismo, cai no mais grosseiro erro blanquista. Com a diferença que os blanquistas que são de tendência social-revolucionária, partem do postulado da possibilidade de realização económica do socialismo e baseiam nesse postulado as hipóteses de vitória de uma revolução violenta, mesmo que levada a efeito por uma minoria; Bernstein, ao contrário conclui que uma maioria numérica insuficiente do povo conduz à impossibilidade da realização económica do socialismo. A social-democracia não espera realizar o seu objectivo final pela violência vitoriosa de uma maioria, e muito menos de uma superioridade numérica da maioria; é a necessidade económica – e a consciência dessa necessidade que conduzirá ao derrubamento do capitalismo pelas massas populares. A expressão mais visível dessa necessidade é a anarquia capitalista.
Quanto a esse problema fulcral da anarquia na economia capitalista, o próprio Bernstein não nega as grandes crises gerais mas nega as crises parciais ou nacionais. Ao faze-lo contesta que haja muita anarquia. Admite a existência de uma certa anarquia. É, para Bernstein, na economia capitalista como, para citar Marx, essa virgem louca com o seu filho "que era muito pequeno". Mas o azar é que num assunto desta natureza, muita ou pouca anarquia tudo vai dar rigorosamente ao mesmo. Se Bernstein admite a existência de um pouco de anarquia, o mecanismo da economia-mercantil provoca automàticamente a expansão monstruosa dessa anarquia – até ao afundamento do sistema. Mas, se Bernstein espera que, enquadrada nessa economia mercantil, essa pouca anarquia dê lugar à ordem e à harmonia, cai num dos erros fundamentais da economia burguesa vulgar, considerando o modo de troca independente do modo de produção.
Não pretendemos demonstrar aqui, em toda a sua extensão a espantosa confusão que Bernstein manifesta no seu livro sobre os mais elementares princípios de economia política. Mas há um ponto a tratar sobre a questão fundamental da anarquia capitalista que devemos esclarecer ràpidamente.
Bernstein declara que a lei do valor-trabalho de Marx é uma simples abstracção; esse termo, em economia política, tem claramente, para ele, o valor de uma injúria. Ora, se o trabalho é uma simples abstracção, "uma construção do espírito", todo o cidadão normal, tendo cumprido o serviço militar, pagando regularmente os seus Impostos, tem o mesmo direito que Marx de inventar uma patetice qualquer para fazer uma "construção do espírito" semelhante à lei do valor. "Marx tem tanto o direito de abstrair das qualidades da mercadoria para as transformar em simples encarnações de quantidade de trabalho humano, como os economistas da escola de Boehm – Jevons, em abstrair de todas as qualidades das mercadorias, considerando apenas a sua utilidade".
Por consequência, o trabalho social de Marx e a utilidade abstracta de Menger, são em sua opinião equivalentes, por serem dois casos de pura abstracção. Mas Bernstein esquece completamente que a abstracção de Marx não é uma invenção pura e simples, mas uma descoberta, saída não da cabeça de Marx, mas da economia mercantil. cuja existência não é imaginária, mas tem existência social real que pode ser retalhada, pesada e ter um valor atribuído em dinheiro. O trabalho humano abstracto que Marx descobriu não ser mais que dinheiro sob forma evoluída, é uma das descobertas mais geniais de Marx. No pólo oposto, para toda a economia política burguesa, do primeiro dos mercantilistas ao último dos clássicos, o dinheiro manteve o seu carácter místico que o transformou num enigma insolúvel.
A ideia da utilidade abstracta, acarinhada por Boehm e Jevons, é de facto e efectivamente uma construção do espírito, ou melhor, uma construção do nada intelectual, uma patetice de que não se pode responsabilizar nem a sociedade capitalista nem qualquer outra sociedade humana, mas exclusivamente a própria economia burguesa vulgar. Com essa maravilhosa "construção do espírito", Bernstein, Boehm e Jevons e toda a comunidade mística, podem continuar ainda, por mais uns vinte anos, perfeitamente tranquilos frente ao mistério do dinheiro, e não descobrirão mais do que já sabem todos os sapateiros: que o dinheiro é uma coisa "útil".
Assim Bernstein impediu-se de compreender, por qualquer processo, a teoria marxista do valor. Ora é muito claro para todos os que conheçam um mínimo da doutrina económica de Marx, que sem a lei do valor, o conjunto do sistema é incompreensível. Sejamos mais concretos: se não se compreende o carácter da mercadoria e da troca, a economia capitalista e as suas relações permanecem necessàriamente misteriosas.
Por que artes mágicas conseguiu Marx penetrar nos segredos mais profundos de todos os fenómenos capitalistas, resolvendo-os com a introdução de problemas que os majores investigadores da economia política burguesa, como Smith e Ricardo, nem sequer suspeitavam existir? Simplesmente porque concebeu a economia capitalista como um todo e um fenómeno histórico, cuja história se alongava não somente antes dela, como admitia totalmente a economia clássica, projectando-se ainda no futuro; é por ter considerado não apenas o passado, a economia feudal, mas também o futuro socialista. O segredo da teoria do valor em Marx, da sua análise do dinheiro, da sua teoria do capital, da taxa de lucro e por consequência de todo o sistema económico actual é a descoberta do carácter efémero e transitório da economia capitalista, do seu afundamento e por consequência – este é aqui o aspecto complementar – o objectivo final socialista. Sòmente porque Marx considerava a economia capitalista na sua qualidade de socialista, quer dizer, na perspectiva histórica, pôde decifrar os hieróglifos; e porque se colocava numa óptica socialista, para analisar cientificamente a sociedade burguesa, pôde formular os fundamentos científicos do socialismo.
É a partir do conhecimento de tudo isto que se torna necessário julgar as observações de Bernstein no fim do seu livro, onde se lamenta da "dualidade" "que se manifesta ao longo da obra monumental de Marx", "dualidade no carácter da obra que, se por um lado, pretende ser um estudo científico, pretende, por outro, provar uma tese anterior à redacção do livro, tese que se fundamenta num esquema pré-estabelecido contendo já o resultado, e que deveria ser a conclusão do próprio estudo. O retorno ao Manifesto comunista (quer dizer, ao objectivo final socialista! R. L.) demonstra a existência de um lastro de utopismo na doutrina de Marx" (p. 77).
Classificando a dualidade teórica de Marx de "sobrevivência do utopismo", Bernstein confessa infantilmente negar a dualidade histórica existente na sociedade burguesa, os antagonismos capitalistas de classe, confessa mesmo que o socialismo não passa a seus olhos de uma "sobrevivência do utopismo". O "monismo", a unidade de Bernstein, é a unidade do regime capitalista votado à eternidade, a unidade do socialista que renunciou ao objectivo final e vê na sociedade burguesa una e inabalável a última etapa da evolução da humanidade.
Mas porque ignora a dualidade da estrutura económica do capitalismo, o germen do socialismo, precisa para salvar o programa socialista pelo menos na sua forma, de recorrer à construção idealista, exterior à evolução económica e fazer do socialismo, de fase histórica determinada da evolução social que é de facto um princípio abstracto.
O princípio do cooperativismo de Bernstein, com o qual pretende ornamentar a economia capitalista, essa magra decantação do objectivo final do socialismo, aparece como uma concessão da sua teoria burguesa feita não pelo futuro socialista da sociedade, mas pelo passado socialista de Bernstein.
O socialismo de Bernstein tende, já o vimos, a fazer participar os operários na riqueza social, a transformar os pobres em ricos. Que caminho segue para aí chegar? Nos artigos publicados na Neue Zeit e intitulados "Problemas do socialismo", só lhe fazia breves e muito vagas alusões. Em contrapartida no seu livro, fornece-nos todos os elementos desejáveis. O seu socialismo deve ser realizado por dois meios: pelos sindicatos ou, como diz, pela democracia económica e pelas cooperativas. Através dos primeiros quer suprimir o lucro industrial, pelos segundos o lucro comercial.
As cooperativas e sobretudo as cooperativas de produção são instituições de natureza híbrida dentro do capitalismo: constituem uma produção socializada em miniatura que é acompanhada por uma troca capitalista. Mas na economia capitalista a troca domina a produção; por causa da concorrência exige, para que a empresa possa sobreviver, uma impiedosa exploração da força do trabalho, quer dizer. a dominação completa do processo de produção pelos interesses capitalistas. Pràticamente, isso traduz-se numa necessidade de intensificação do trabalho, de encurtar ou prolongar a sua duração conforme a conjuntura, de contratar ou dispensar a força do trabalho conforme as necessidades do mercado, numa palavra, praticar todos os métodos, sobejamente conhecidos, que permitam a uma empresa capitalista sustentar a concorrência das outras empresas. Daí uma cooperativa de produção ter a necessidade, contraditória para os operários, de se governar a si própria com toda a autoridade absoluta necessária e de os seus elementos desempenharem entre si o papel de empresários capitalistas. Dessa contradição morre a cooperativa de produção, na acepção em que se torna uma empresa capitalista ou, no caso em que os interesses dos operários são mais fortes, se dissolve. Estes são os factos. O próprio Bernstein os constata mas, visivelmente sem os compreender, pois vê, como a senhora Potter-Webb, na falta de "disciplina" a causa da falência das cooperativas de produção em Inglaterra. O que aqui recebe a qualificação superficial e linear de "disciplina" não passa do regime absoluto que é inerente ao capital e que os operários não podem, evidentemente, utilizar contra si próprios (7).
Do que resulta que a cooperativa só pode assegurar a sua existência no seio da economia capitalista quando suprime, por um rodeio, a contradição que recebe entre o modo de produção e o modo de troca, subtraindo-se artificialmente às leis da livre concorrência. Só o pode fazer assegurando antecipadamente um mercado, um círculo constante de consumidores. A cooperativa de consumo fornece uma via. Eis a razão – é Bernstein que a revelada falência das cooperativas de produção autônomas, cuja existência só pode ser assegurada por uma cooperativa de consumo. Isto nada tem a ver com as cooperativas de compra e venda inventadas por Oppenheimer.
Verifica-se que a existência da cooperativa de produção liga-se, actualmente, à existência da cooperativa de consumo; do que resulta deverem as cooperativas de produção contentarem-se, no melhor dos casos, com pequenos mercados locais e limitarem-se aos produtos da primeira necessidade, de preferência, produtos alimentares. Todos os sectores mais importantes da produção capitalista: a indústria têxtil, mineira, metalúrgica, petrolífera, assim com as indústrias de construção de máquinas, de locomotivas e de navios estão antecipadamente excluídas da cooperativa de consumo e por consequência da cooperativa de produção. É por isso que, mesmo abstraindo do seu carácter híbrido, as cooperativas de produção não podem intervir numa reforma social geral, a realização geral implica a supressão do mercado mundial e o parcelamento da actual economia mundial em pequenos grupos de produção e de troca localizados; em suma: tratar-se-ia do retrocesso do capitalismo para a economia mercantil da Idade Média.
Mesmo nos limites da realização possível na sociedade actual, as cooperativas de produção seriam simples anexos das cooperativas de consumo; estas estariam no primeiro plano e apareceriam como a principal base da projectada reforma socialista. Por esse facto uma reforma socialista baseada no sistema das cooperativas abandona a luta contra o capital da produção, quer dizer, contra o sector fundamental da economia capitalista e contenta-se em dirigir os seus ataques contra o capital comercial, mais exactamente o pequeno e médio capital comercial. Só ataca os ramos secundários do tronco capitalista.
Quanto aos sindicatos que, na doutrina de Bernstein são o outro meio de lutar contra a exploração do capital, já demonstrámos que são incapazes de impor o domínio da classe operária no processo da produção e também no referente às dimensões de produção e seus processos técnicos.
Examinemos o aspecto puramente económlco do problema, ao que Bernstein chama "a luta do salário contra o lucro". Essa luta não se processa em abstracto, num espaço imaterial, mas no bem determinado quadro de leis dos salários que não pode destruir, mas sòmente realizar. Isso surge com clareza quando se examina o problema sob uma outra face e quando se traçam as coordenadas da questão da autêntica intervenção dos sindicatos. Bernstein atribui aos sindicados uma missão particular na luta pela emancipação da classe operária: são eles que devem travar a luta contra a taxa de lucro industrial, transformando-a progressivamente em taxa de salário; ora os sindicatos não têm nenhum poder real para poderem iniciar uma política de ofensiva económica contra o lucro porque, na verdade, não passam de uma defesa organizada pela força do trabalho contra os ataques do lucro, expressão da resistência da classe operária contra a tendência opressiva da economia capitalista. E isto por duas razões:
1º. Os sindicatos têm por tarefa organizar-se no mercado da força do trabalho; mas a organização é constantemente ultrapassada pelo processo de proletarização das classes médias que trazem permanentemente para o mercado de trabalho novos recrutas.
2º. Os sindicatos propõem-se melhorar as condições de existência, aumentar a parte de riqueza social que vai para a classe operária; mas essa parte é constantemente reduzida, com a fatalidade de um fenómeno natural, pelo crescimento da produtividade do trabalho. Para nos apercebermos disso, não é necessário ser marxista, é suficiente ter tido uma vez nas mãos o livro de Rodbertus intitulado: "Zur Beleuchtung der Sozialen Frage" "Para esclarecer a questão social". Devido a esses factores objectivos, que são a realidade da sociedade capitalista, as duas funções essenciais do sindicalismo transformam-se profundamente e a luta sindical é um autêntico trabalho de Sísifo. Esse trabalho de Sísifo é indispensável, se se quer que o operário receba a taxa de salário que lhe vem da situação conjuntural do mercado, que a lei capitalista se realize e que a tendência depressiva do desenvolvimento económico seja travada, ou mais exactamente, atenuada no seu efeito. Mas querer que os sindicatos consigam reduzir progressivamente o lucro em proveito do salário implica:
1º. Que cesse a proletarização das classes médias e o crescimento numérico da população operária.
2º. Que a produtividade do trabalho deixe de aumentar; no caso de essas condições sociais serem realizadas, tratar-se-ia ainda aqui – tal como para a economia cooperativa de consumo – de um retorno a uma economia anterior ao capitalismo.
Os dois meios com que Bernstein pretendia realizar a reforma socialista, a saber, cooperativas e sindicatos, revelam-se totalmente incapazes de transformar o modo de produção capitalista. Bernstein tinha disso consciência mais ou menos clara, mas encarava-os como meios de reduzir o lucro capitalista e de enriquecer os operários, o que equivalia a renunciar à luta contra o modo de produção capitalista e orientar o movimento socialista numa luta contra o modo de repartição capitalista. O próprio Bernstein definiu por várias vezes o seu socialismo como uma tentativa para introduzir um modo de repartição "justa", "mais justa" (p. 51 do seu livro) e mesmo "ainda mais justa" (Vorwärts, 26 de Março de 1809).
É verdade que o ferrão que atrai para o movimento socialista as massas populares é o modo de repartição "injusta" do regime capitalista. Lutando pela socialização de toda a economia, a social-democracia testemunha simultâneamente a sua aspiração natural e o desejo de uma repartição "justa" da riqueza social. Mas aprendemos com Marx que o modo de repartição de uma determinada época é a consequência natural do modo de produção dessa época: por consequência, a social-democracia intensifica a sua luta não contra o sistema de repartição no quadro da produção capitalista, mas visa suprimir a própria produção mercantil capitalista. Numa palavra, a social-democracia quer estabelecer um modo de repartição socialista suprimindo o modo de produção capitalista, enquanto o método de Bernstein consiste, pelo contrário, em combater o modo de repartição capitalista na esperança de conseguir estabelecer progressivamente, por esse mesmo meio, um modo de produção socialista.
Em que fundamenta Bernstein a reforma socialista? Em algumas das tendências determinadas da produção capitalista? Não, porque: 1º. Nega essas tendências e 2º. conforme sabemos pelo que precede, encara a transformação socialista da produção como a consequência de uma transformação da repartição e não o inverso. Os fundamentos do socialismo de Bernstein não são de ordem económica. Depois de ter invertido por completo a relação entre o objectivo e os meios do socialismo, depois de ter destruído esse fundamento económico, não pode dar ao seu programa um fundamento imperialista, é obrigado a recorrer ao idealismo.
"Para quê fazer derivar o socialismo da opressão económica?", escreve. "Para quê degradar a inteligência, o sentido da justiça, a vontade humana?" (Vorwärts, 26 de Março de 1899) .Bernstein pretende que a mais justa repartição que deseja seja realizada não por uma necessidade económica opressiva, mas pela livre vontade do homem, ou melhor, porque a vontade não passa de um instrumento, pela consciência da injustiça através da ideia de justiça.
Voltamos, pois, ao princípio da justiça, desde há milénios velho cavalo de batalha onde cavalgam os reformadores de todo o mundo, na falta de melhores meios históricos para o progresso, voltamos a esse Rocinante estafado no qual todos os D. Quixotes da história galoparam para a grande reforma do mundo, voltando perplexos e de orelhas caídas.
É este o socialismo de Bernstein, cujo fundamento social são as relações entre os ricos e os pobres, cujo conteúdo é o princípio das cooperativas, cujo objectivo é uma "repartição mais justa" e cuja legitimação histórica é a ideia de justiça. Com quanto mais força, espírito e brio, tinha Weitling defendido, há mais de cinquenta anos, essa espécie de socialismo! Certamente que o genial alfaiate ainda não conhecia o socialismo científico. Ora, para hoje, meio século mais tarde, pôr de pé a sua doutrina despedaçada por Marx e Engels, recoser os bocados e apresentá-Ios ao proletariado alemão como a última palavra da ciência é preciso outro alfaiate... mas já sem nada de genial.
Tal como os sindicatos e as cooperativas constituem o seu fundamento económico, o postulado político da teoria revisionista é o desenvolvimento crescente da democracia. As actuais explosões reaccionárias são, para o revisionismo, "sobressaltos" fortuitos e efémeros sem relevância na linha geral da luta operária. Para Bernstein, a democracia surge como uma etapa necessária da evolução da sociedade moderna. Que diz? Para ele, a democracia é, como para os teóricos burgueses do liberalismo, a lei fundamental da evolução histórica geral, para cuja realização devem tender todas as forças activas da vida política. Ora, nessa formulação absoluta, tal juízo é falso: trata-se de uma forma pequeno-burguesa e superficial de esquematizar os resultados de um período muito curto da história da burguesia, ou seja, os vinte e cinco ou trinta últimos anos. Se se examinar em pormenor a evolução da democracia na história e simultâneamente a história política do capitalismo, chega-se a uma conclusão diferente.
Encontramos a democracia nas mais diversas estruturas sociais: nas sociedades comunistas primitivas, nos Estados escravagistas da antiguidade, nas comunas da Idade Média. Do mesmo modo, encontramos o absolutismo e a monarquia constitucional nos mais diversos regimes económicos. Por outro lado, o capitalismo, desde as suas origens, no estádio da produção mercantil, fez nascer uma constituição democrática nas principais comunas da Idade Média; mais tarde, na sua forma mais evoluída, no período da produção manufacturada, encontrou na, monarquia absoluta a forma política correspondente. Por fim, no estádio da economia industrial desenvolvida, produziu necessàriamente, em França, a república democrática (1793), a monarquia absoluta de Napoleão I, a monarquia nobiliária da época da Restauração (1815-1830), a monarquia constitucional burguesa de Luís Filipe, de novo a república democrática, uma vez mais a monarquia de Napoleão IIl e, finalmente, pela terceira vez, a República. Na Alemanha, a única instituição verdadeiramente democrática, o sufrágio universal, não é uma conquista do liberalismo burguês, mas um instrumento que satisfaz, paralelamente, uma monarquia constitucional e semifeudal. Na Rússia, o capitalismo prosperou durante muito tempo sob o regime do absolutismo oriental sem que a burguesia tivesse manifestado o mínimo desejo de ver instaurada a democracia. Na Áustria, o sufrágio universal apareceu sobretudo como um meio de salvar a monarquia em decomposição. Na Bélgica, a conquista democrática do movimento operário, o sufrágio universal, é um resultado da fraqueza do militarismo e consequência da situação geográfica e política particular da Bélgica e sobretudo, esse "bocado de democracia", foi conquistado, não pela burguesia, mas contra ela.
O desenvolvimento ininterrupto da democracia, que o revisionismo, à maneira do liberalismo burguês, considera a lei fundamental da história humana, ou pelo menos da história moderna, revela-se, quando bem examinado, uma miragem. Podem estabelecer-se relações universais absolutas entre o desenvolvimento do capitalismo e a democracia. O regime político é sempre o resultado de um conjunto de factores políticos internos e externos e no interior desses limites apresentam todas as graduações da monarquia absoluta à república democrática.
Devemos renunciar à formulação de uma lei histórica universal do desenvolvimento da democracia, mesmo no quadro da sociedade moderna: se olharmos para a fase actual da história burguesa, também constatamos, na situação política, a existência de factores que saem do esquema de Bernstein e conduzem. pelo contrário, ao abandono das conquistas obtidas pela sociedade burguesa.
Por um lado, as instituições democráticas – é um facto importante – chegaram ao fim da sua intervenção no desenvolvimento da sociedade burguesa. Na medida em que ajudaram a unificar os pequenos estados e contribuíram para a criação de grandes Estados modernos (Alemanha, Itália), esgotaram a sua utilidade. Entretanto o desenvolvimento económico acabou a obra de coesão interna dos Estados.
Podem fazer-se observações sobre toda a máquina política e administrativa do Estado, passando de um organismo feudal a um mecanismo capitalista. Essa transformação historicamente inseparável do desenvolvimento da democracia está hoje tão completamente termInada que os componentes puramente democráticos da sociedade, o sufrágio universal, o regime republicano, podem ser suprimidos sem que a administração, as finanças, a organização militar pudessem retornar às formas anteriores à Revolução de Março de 1848, na Alemanha.
Constata-se que o liberalismo se torna inútil para a sociedade burguesa, chegando mesmo a entravar o seu desenvolvimento. É necessário mencionar dois factores que dominam toda a vida política dos Estados actuais: a política mundial e o movimento operário – um e outro são aspectos diferentes da fase actual do capitalismo.
Devido ao desenvolvimento da economia mundial, ao agravamento e generalização da concorrência no mercado mundial, o militarismo e as forças navais, instrumentos da política mundial, tornam-se um factor decisivo na vida interna e externa dos grandes Estados. No entanto, se a política mundial e o militarismo representam uma tendência ascendente da fase actual, do capitalismo, a democracia burguesa deve entrar, logicamente, na sua fase descendente. Na Alemanha, a era dos grandes armamentos, que data de 1893, e a política mundial iniciada pela tomada de Kiao-Tchou, encontrou compensação em dois sacrifícios pagos pela democracia-burguesa: a decomposição do liberalismo e a passagem do Partido do Centro para a oposição. As últimas eleições para o Reichstag, em 1907 (8), que se desenrolaram sob o signo da política colonial alemã, marcam o enterro histórico do liberalismo alemão.
A política exterior atira a burguesia para os braços da reacção – mas a política interna também a empurra através da ascensão da classe operária. Bernstein reconhece-o: para ele a história dos fantasmas da social-democracia, ou seja, a orientação socialista da luta operária é responsável pela traição da burguesia liberal. Aconselha o operariado, para recuperar o liberalismo assustado e afastá-Io do redil da reacção onde se refugiou, a abandonar o objectivo último do socialismo. Fazendo do abandono do socialismo uma condição primeira das premissas sociais da democracia burguesa, demonstra clara e simultâneamente que a democracia contradiz a actual orientação interna da evolução social e que o movimento operário é uma resultante directa dessa orientação.
Mas ainda prova outra coisa: pretende que a condição essencial de uma ressurreição da democracia burguesa é o abandono, pela classe operária, do seu objectivo fundamental; e por isso mesmo demonstra pelo inverso a falsidade da sua afirmação segundo a qual a democracia burguesa é condição indispensável do movimento e da vitória socialista. Aqui, a argumentação de Bernstein entra num círculo vicioso: a sua conclusão nega as próprias premissas.
Para sair desse círculo vicioso, é suficiente reconhecer a quem o liberalismo burguês vendeu a alma, assustado pela evolução do movimento operário; concluir-se-á que o movimento operário socialista é, actualmente, o único sustentáculo da democracia, não existindo nenhum outro. Verificar-se-á, então, que não é a sorte do movimento socialista que está ligada à democracia burguesa, mas, pelo contrário, é a democracia que se encontra ligada ao movimento socialista. Verificar-se-á que as oportunidades da democracia não se ligam à renúncia da classe operária à luta pela sua emancipação, mas, pelo contrário, ao facto de o movimento socialista ser suficientemente forte para combater as consequências reaccionárias da política mundial e da traição da burguesia.
Quem desejar o reforço da democracia desejará o reforço e não o enfraquecimento do movimento socialista; renunciar à luta pelo socialismo é renunciar simultâneamente ao movimento operário e à própria democracia.
Notas:
(5) Esta parte não se refere já aos artigos mas ao livro de Bernstein "Dle Voraussetzungen des Sozialismus und der Aufgaben der Sozial-Demokratie" As páginas que indicamos pertencem à edição alemã. ( N. T. ). (retornar ao texto)
(6) Bernstein vê manifestamente na grande difusão das pequenas acções uma prova de que a riqueza social começa a deixar cair a sua chuva benfazeja sobre os desprotegidos. Com efeito, quem poderia, a não ser os pequenos-burgueses, ou mesmo os operários, comprar acções pela bagatela ,de uma libra esterlina ou de vinte marcos! Infelizmente esta hipótese assenta sobre um erro de cálculo: opera-se com o valor nominal das acções em lugar de se operar com o seu valor para o mercado, o que é completamente diferente. No que respeita ao mercado mineiro, tratou-se entre outras coisas das minas sul-africanas do Rand, das acções, tudo, como a maior parte dos valores mineiros de uma libra esterlina, ou seja de vinte marcos papel. Mas, já em 1899, elas custavam três fibras esterlinas (ver contas referentes ao final do mês de Março), ou seja não vinte mas 860 marcos! O mesmo acontece por todo o lado. Na realidade, as pequenas acções são, embora tenham um aspecto bastante democrático, "uma boa segurança sobre a riqueza social" de características absolutamente burguesas e não pequeno-burguesas ou proletárias, pois apenas uma pequena minoria de accionistas consegue comprá-las pelo seu valor nominal. (retornar ao texto)
(7) "As próprias cooperativas operárias de 'produção constituem a 'primeira brecha aberta no seio do antigo sistema. embora naturalmente na sua organização real reproduzam forçosamente todas as deficiências do sistema vigente". (Marx, Capital, livro III, cap 27, t. XI, p. 287, trad. Molitor, Paris, Coste). (retornar ao texto)
(8) As eleições para o Reichstag de Janeiro de 1907 foram designadas por "eleições dos Hottentots": tiveram lugar no fim das sangrentas guerras coloniais contra os Héréros e os Hottentots e foram marcadas por um certo retrocesso social-democracia, que perdeu um grande número de lugares. A propaganda governamental conseguiu, no decorrer da campanha eleitoral, promover a união dos partidos burgueses e conservadores contra o S. P. D. (N. T.). (retornar ao texto)
Inclusão | 15/01/2005 |