MIA> Biblioteca> Guérin > Novidades
Primeira Edição: Segundo uma fala feita em Nova Iorque em 6 de novembro de 1973.
Fonte: ....
Tradução do francês: Douglas Anfra
HTML: Fernando A. S. Araújo
Direitos de Reprodução: A cópia ou distribuição deste documento é livre e indefinidamente garantida nos termos da GNU Free Documentation License.
Se for possível tratar de um tal assunto, nos encontramos na presença de muitas dificuldades. Comecemos pela primeira. O que realmente nós entendemos pela palavra “marxismo”? De que “marxismo” estamos tratando?
Eu acredito ser necessário responder imediatamente: nós chamamos aqui “marxismo” o conjunto da obra escrita pelos próprios Karl Marx e Fredrich Engels. E não aquela de seus sucessores mais ou menos infiéis, que usurparam o rótulo de “marxistas”.
Este é, em primeiro lugar, o caso do marxismo deformado, e podemos mesmo dizer traído, dos social-democratas alemães.
E eis alguns exemplos:
Durante os primeiros anos do partido social-democrata na Alemanha, durante a vida de Marx, os social-democratas lançaram o slogan de um pretenso Volkstaat (Estado Popular). Marx e Engels estavam provavelmente tão felizes e confiantes de haver enfim um partido de massas na Alemanha referendado neles que eles demonstraram uma estranha indulgência. Foi necessária a denúncia furiosa e repetida do Volkstaat por Bakunin e, ao mesmo tempo, da dos social-democratas com os partidos burgueses radicais para o qual Marx e Engels sentiram-se obrigados a condenar uma tal forma de organização e uma tal prática.
Muito mais tarde, em 1895, Engels envelhecido, assim que escreveu seu famoso prefácio à Luta de classes na França de Marx, realiza uma completa revisão do marxismo em seu sentido reformista, isto é, acentuando o uso do voto tanto como meio ideal, senão único, de tomar o poder. Engels, então, não é mais marxista no sentido que entendo.
A seguir, Karl Kautsky se torna o enganoso sucessor de Marx e Engels. Por um lado, em teoria, influenciado pela persistência no terreno da luta de classes revolucionária, mas, de fato, encobria práticas cada vez mais oportunistas e reformistas de seu partido. Neste momento, Eduard Bernstein, que também se pretendia um “marxista”, pedia para Kautsky mais clareza e repudiava abertamente a luta de classes, que estaria segundo ele, superada, em proveito do eleitorialismo, do parlamentarismo e das reformas sociais.
Kautsky, por sua vez, supunha que ele estava “inteiramente falso” em dizer que a consciência socialista seja o resultado direto da luta de classes proletária. Como não acreditava nisso, o socialismo e a luta de classes não se engendrariam um do outro. Eles surgiriam de premissas diferentes. A consciência socialista surgiria da ciência. O portador da ciência não seria o proletariado, seria o intelectual burguês. Por causa destes, o socialismo científico seria comunicado aos proletários. Para concluir:
“A consciência socialista é um elemento importado de fora para a luta de classes do proletariado, e não qualquer coisa que surge espontaneamente.”
A única teórica, dentro da social-democracia alemã, que permaneceu fiel ao marxismo original foi Rosa Luxemburgo. Entretanto, ela soube muito bem fazer compromissos táticos com a direção de seu partido; ela não criticará abertamente Bebel e Kautsky; ela somente entrará em conflito aberto com Kautsky a partir de 1910, quando seu ex-tutor deixará cair a idéia da greve política das massas e, sobretudo, ela passa a dissimular o parentesco direto entre o anarquismo e a sua concepção de espontaneidade revolucionária; ela recorreu aos simulacros de vituperações contra os anarquistas(1). Ela buscou deste modo não assustar o partido ao qual estava ligada, por sua vez, por convenção, e pode-se dizer, porquê o sabemos agora, por causa de seus interesses materiais(2).
Mas, a despeito de variantes de enunciado, não há mais uma diferença verificável entre a greve geral anarco-sindicalista e a que a prudente Rosa Luxemburgo preferia denominar “greve de massas”. Mesmo suas violentas controvérsias, a primeira com Lênin, em 1904, a última na primavera de 1918, com o poder bolchevique, não são distantes do anarquismo. E nem mesmo por suas últimas concepções, no movimento spartakista, no final de 1918, de um socialismo impulsionado de baixo para cima pelos conselhos operários. Rosa Luxemburgo é um dos traços de união entre o anarquismo e o marxismo autêntico.
Mas o marxismo autêntico não foi somente deformado pela social-democracia alemã. Ele também fio alterado, em certa medida, por Lênin. Este último agravou consideravelmente alguns dos traços jacobinos e autoritários que, por ventura, ainda que não sempre, apareciam desde os escritos de Marx e Engels(3). Ele introduziu a ele um ultracentralismo, uma concepção estreita e sectária de Partido (com um P maiúsculo) e sobretudo a prática dos revolucionários profissionais enquanto dirigentes das massas(4). Não encontramos nenhuma destas noções nos escritos de Marx, onde eles não estão senão como embrionários e subjacentes.
Entretanto, Lênin acusa violentamente os social-democratas de haver vilipendiados anarquistas e, em seu pequeno livro O Estado e a Revolução, ele consagra uma seção inteira à lhes render uma homenagem por sua fidelidade à revolução.
A aproximação de nosso presente assunto apresenta segunda dificuldade. O pensamento de Marx e de Engels é em si mesmo muito difícil de compreender, por que ele passou por uma evolução ao longo de um quarto de século de trabalho que sempre se esforçou por refletir a realidade viva de seu tempo. Apesar de todas as tentativas de alguns de seus comentadores modernos, entre os quais um padre da igreja, não há dogmatismo marxista.
Tomemos alguns exemplos.
O jovem Marx, discípulo do filósofo e humanista Ludwig Feuerbach, é bem diferente do Marx de idade madura, havendo rompido com Feuerbach e que, por seu lado, adoecerá em um determinismo científico um pouco rígido.
O Marx da Nova Gazeta Renana (Neue Rheinische Zeitung) que desejava somente ser chamado de democrata e que buscava uma aliança com a burguesia alemã avançada não parece com o Marx de 1850, comunista e mesmo blanquista, glorificador da revolução permanente e da ditadura do proletariado.
O Marx dos anos seguintes, repondo muito mais tarde a revolução internacional enfurnado dentro de uma biblioteca do Museu Britânico para se aprofundar em pesquisas científicas extensas e meditadas, é agora completamente diferente do Marx insurrecionista de 1850, que acreditava em um levante geral iminente.
O Marx de 1864-1869 interpretava agora nos bastidores o papel de conselheiro desinteressado e discreto dos operários reunidos na Primeira Internacional, se tornando subitamente, a partir de 1870, um Marx fortemente autoritário que, de Londres, regia o Conselho geral da Internacional.
O Marx que, no raiar do ano de 1871, se põe severamente em guarda contra uma insurreição parisiense não é o mesmo que, pouco depois, na famosa comunicação, publicada sob o título de Guerra Civil Na França, escrita sob as nuvens da Comuna de Paris, de onde, seja dito de passagem, ele idealiza alguns dos traços(5).
Enfim, o Marx que, neste mesmo escrito, afirma que a Comuna teve o mérito de destruir o aparelho de Estado e de trocá-lo pelo poder comunal não é o mesmo que, na Carta sobre o Programa de Gotha, se esforçará para convencer que o Estado deve sobreviver, por um longo período de tempo, antes da revolução proletária(6).
Deste modo, não pode ser questão de considerar como um bloco homogêneo o marxismo original, aquele de Marx e Engels. Nós devemos o submeter a um exame crítico cerrado e reter somente aqueles elementos que tiveram uma ligação de parentesco com o anarquismo.
Nós somos agora confrontados com uma terceira dificuldade. O anarquismo forma agora menos que o marxismo uma doutrina de corpo homogêneo. Como eu indiquei no pequeno livro que precede, a refutação da autoridade, a acentuação posta sobre a prioridade do julgamento individual incita particularmente os libertários, como dizia Proudhon em uma carta a Marx “fazendo profissão de anti-dogmático”. Assim as visões libertárias são as mais diversas, mais fluídas, mais difíceis de serem apreendidas que aquelas dos socialistas ditos autoritários. Existem diferentes correntes no seio do anarquismo: outra é a dos comunistas libertários, àquela à que em ligo, podemos nomear os anarquistas individualistas, os anarquistas societários, os anarco-sindicalistas e as outras numerosas variedades do anarquismo: anarquistas não-violentos, anarquistas pacifistas, anarquistas vegetarianos, etc.
O problema se coloca então em saber qual variedade do anarquismo pode nos oferecer um confronto com o marxismo original, com a finalidade de pesquisar sobre quais pontos as duas principais escolas do pensamento revolucionário poderiam se entender.
Me parece evidente que a variedade do anarquismo que se encontra menos distanciada do marxismo é o anarquismo construtivo, societário, o anarquismo coletivista ou comunista. E é por acaso sobre este ponto que é sobre este, e somente sobre este, em que eu tentei libertar os caminhos no pequeno livro que precede.
Se antes recordarmos disto um pouco, não é muito difícil descobrir que, no passado, o anarquismo e o marxismo se influenciavam reciprocamente.
Errico Malatesta, o grande anarquista italiano, escreveu em algum lugar:
“Quase toda a literatura anarquista do século XIX estava impregnada de marxismo.”
Diz-se que Bakunin se inclinava com respeito diante das aptidões científicas de Marx, ao ponto de ter começado a traduzir em russo o primeiro volume do Capital. De sua parte, o anarquista italiano, seu amigo Carlo Cafiero, publica um resumo da mesma obra.
Em sentido contrário, os primeiros livros de Proudhon, O que é a propriedade? (1840) e, sobretudo, seu grande livro: Sistema das contradições econômicas ou Filosofia da Miséria (1846), influenciaram profundamente o jovem Marx, mesmo se, pouco depois, o ingrato economista ultrapassará seu mestre e escreverá contra ele a venenosa Misére de la philosophie.
Apesar das querelas, Marx devia muito aos pontos de vista expressos por Bakunin. Sob risco de nos repetir, lembraremos aqui duas:
- A carta redigida por Marx sobre a Comuna de Paris é, por todas as razões indicadas mais a frente, de grande inspiração bakuninista, como Arthur Lehning, editor dos Arquivos Bakunin, sublinhou.
- É graças a Bakunin que Marx, como já foi dito, se vê obrigado a condenar a palavra de ordem do Volkstaat de seus associados social-democratas.
O Marxismo e o anarquismo não são somente influenciados um pelo outro. Eles tem uma origem comum. Eles aparecem na mesma família. Enquanto materialistas, não acreditamos que as idéias nasceram pura e simplesmente no cérebro dos seres humanos. Elas não fazem senão refletir os fatos adquiridos pelos movimentos de massas atravé das luta de classes. Os primeiros escritores socialistas, tanto anarquistas quanto marxistas, tiveram sua inspiração conjuntamente, primeiramente na grande Revolução francesa do final do século XVIII, em seguida nos esforços empreendidos franceses a partir de 1840, em vista de se auto-organizar e de lutar contra a exploração capitalista.
Raros são aqueles que sabem que houve em Paris, em 1840, uma greve geral. E, durante os anos seguintes assistiu-se a um afloramento de jornais operários, tais como L’Atelier. Ora era o mesmo ano de 1840 – a coincidência é surpreendente – que Proudhon publica seu “Memória contra a propriedade’ e, quatro anos depois, em 1844, o jovem Marx atesta, em seus célebres Manuscritos inéditos por muito tempo, o relato de sua visita aos operários franceses e a impressão viva que estes trabalhadores manuais lhe causaram. O ano precedente, em 1843, uma mulher excepcional, Flora Tristan, havia pregado aos trabalhadores da União Operária e realizou uma turnê pela França para fazer contatos com os operários das grandes cidades.
Assim como o anarquismo e o marxismo em seu início beberam na mesma fonte proletária. E, sob a pressão da classe trabalhadora recém nascida, eles assumiram a mesma tarefa final, a saber, suplantar o Estado Capitalista, confiar, os meios de produção aos próprios trabalhadores. Tal foi, por sua vez, a base do acordo coletivista concluído entre marxistas e bakuninistas no congresso de 1869 da Primeira Internacional, antes da guerra franco-alemã de 1870. É de se notar, aliás, que este acordo estava dirigido contra os últimos discípulos, que se tornaram reacionários, de Proudhon (morto em 1865). Um deles seria Tolain, que se agarrou fortemente à propriedade privada dos meios de produção.
Mencionei, a cada momento, que os primeiros porta-vozes do movimento operário francês tiraram, em uma certa medida, sua inspiração da grande Revolução francesa. Lembremos este ponto em detalhe.
Havia, de fato, no seio da Revolução francesa, dois tipos muito diferentes de revolução ou, se é preferido, duas variedades contraditórias de poderes, um formado pela ala esquerda da burguesia, outro por um protoproletariado (pequenos artesãos e assalariados).
O primeiro estado autoritário, e até mesmo ditatorial, centralizado e opressivo contra os não privilegiados. O segundo estado democrático, federalista, composto daquilo que será conhecido hoje por conselhos operários, isto é, as 48 sessões da vila de Paris associadas na quadra da Comuna parisiense e as sociedades populares nas vilas de província(7). Não êxito em dizer que este segundo poder era em essência libertário, em alguma medida o precursor da Comuna de Paris de 1871 e dos soviets russos de 1917, ao passo que o primeiro foi batizado, mais somente depois do golpe, durante o século de XIX, jacobino. Aliás, a palavra é imprópria, ambígua e artificial. Ela foi tomada de empréstimo do nome de um clube popular parisiense, a Sociedade dos Jacobinos, originada por sua vez de um convento de ordem monástica no quarteirão no qual estava instalado o clube. No que diz respeito à linha de demarcação da luta de classes entre revolucionários burgueses, de um lado, e desprivilegiados, do outro, passava no interior da Sociedade dos Jacobinos, através dela. Mais concretamente: em suas reuniões, nas quais seus membros prenunciavam uma e outra das duas revoluções que entraram em conflito.
Entretanto, na literatura política posterior, a palavra “jacobino” foi empregada correntemente para designar uma tradição revolucionária burguesa, dirigindo por cima o país e a revolução, por meios autoritários, e a palavra foi utilizada neste sentido tanto pelos anarquistas quanto pelos marxistas. Pos exemplo, Charles Delescluze, o líder da ala direita majoritária do Conselho da Comuna de Paris, se denominava a si mesmo um jacobino, um robespierrista.
Proudhon e Bakunin, em seus escritos, denunciaram o “espírito jacobino”, considerado por eles corretamente como um legado político dos revolucionários burgueses. Pelo contrário, Marx e Engels tiveram certo receio de se ligar a este mito jacobino, prestado aos gloriosos “heróis” da Revolução burguesa, entre os quais Danton (que, de fato, foi um político corrompido e um agente duplo) e Robespierre (que terminou aprendiz de ditador). Os libertários, graças à acuidade de sua visão antiautoritária, não foram logrados pelo jacobinismo. Eles afirmaram muito claramente que a Revolução francesa não foi somente uma guerra civil entre a monarquia absoluta e os revolucionários burgueses, mas que ela foi também, pouco tempo depois, uma guerra civil entre o “jacobinismo” e aquilo que eu chamarei, por uma comodidade da linguagem, o comunalismo. Uma guerra civil que terminou em março de 1794, com a defesa da Comuna de Paris e a decapitação de seus dois magistrados municipais, Chaumette e Hébert, isto é, a reversão do poder de base – tal qual a revolução de outubro na Rússia terminará com a liquidação dos conselhos de fábricas.
Marx e Engels oscilaram sem cessar entre o jacobinismo e o comunismo. Primeiramente, eles fizeram elogio da “centralização rigorosa oferecida como modelo pela França em 1793”. Mas, bem mais tarde, bem mais tarde mesmo, em 1885, Engels percebeu que eles foram induzidos em erro e que centralização citada abriu caminho à ditadura de Napoleão I. Marx chega a escrever uma vez que os Enragés, os partidários do ex-padre esquerdista Jacques Roux, porta-voz da população trabalhadora dos subúrbios, haviam sido os “representantes principais do movimento revolucionário”. Mais, em oposição, Engels pretendia, em outro lugar, que o proletariado de 1793 “poderia, no máximo, ser dado um auxílio por cima”.
Lênin, mais tarde, se mostrará agora mais jacobino que seus mestres, Marx e Engels. Segundo ele, o jacobinismo seria
“um dos pontos culminantes que a classe oprimida na luta pela sua emancipação”.
E ele gostava de auto-denominar jacobino, acrescentando posteriormente: “Um jacobino ligado com a classe operária”.
Nossa conclusão sobre este ponto é que os anarquistas só poderiam entrar em acordo com os marxistas se os segundos fossem purgados por bem de toda reminiscência de jacobinismo.
Recapitulemos agora os principais pontos de divergência entre o anarquismo e o marxismo:
Primeiramente, se eles estão de acordo sobre a abolição última do estado, os marxistas acreditam necessário, após uma revolução proletária vitoriosa, de criar um novo estado, que eles chamam “estado operário”, para um novo período indefinido de tempo; após o qual eles prometem que um tal estado, denominado às vezes de semi-estado, acabará por desaparecer. Ao contrário, os anarquistas contradizem dizendo que o novo estado seria bem mais onipotente e opressivo que o estado burguês, baseado no fato da propriedade estatal do conjunto da economia e que a sua burocracia sempre maior se negaria a desaparecer.
Em seguida, os anarquistas são um pouco desconfiados quanto às missões assinadas pelos marxistas à minoria comunista da população. Se eles consultassem as sagradas escrituras de Marx e de Engels, eles não teriam mais razão de nutrirem dúvidas quanto ao assunto. Certamente, no Manifesto Comunista, onde se lê que
“os comunistas não tem interesses separados daqueles de todo o proletariado” e que “eles representam constantemente o interesse do movimento total”.
Suas “concepções teóricas”, juram os autores do Manifesto,
“não repousam somente sobre as idéias, mas sobre os princípios inventados ou descobertos por este ou aquele reformador do mundo. Eles não são senão a expressão geral das condições efetivas de uma luta de classes que existe, de um movimento histórico que acontece sob os nossos olhos”.
Sim, certamente, e aqui, os anarquistas se dirão de acordo. Mas a frase que eu citarei é algo um pouco ambíguo ou alarmante:
“Teoricamente, eles [Os comunistas] tem sobre o resto da massa proletária a vantagem de compreender as condições, a marcha e os últimos resultados gerais do movimento proletário.”
Esta afirmação decisiva poderia significar que, do fato de uma tal “vantagem”, os comunistas pretendem ter um direito histórico de atribuírem a si mesmos a direção do proletariado. Se fosse assim, os anarquistas não o aprovariam. Eles contestam que possa haver uma vanguarda fora do próprio proletariado e eles crêem que eles devam evitar interpretar o papel, ao lado ou no próprio seio do proletariado, de conselheiros desinteressados, de “catalisadores”, a fim de ajudar os trabalhadores nos seus próprios esforços em vista de se um nível mais elevado de consciência.
Assim, somos trazidos à questão da espontaneidade revolucionária das massas, uma noção especificamente libertária. Nós encontramos, com efeito, habitualmente, “espontânea”, “espontaneidade” sob a caneta de Proudhon e de Bakunin. Mas, isto que é muito estranho, jamais nos escritos de Marx e de Engels, ao menos na redação de seus originais em alemão. Nas traduções, as palavras em questão aparecem de vez em quando, mas são equivalentes inexatos. Na realidade, Marx e Engels se referem somente à auto-atividade (Selbsttätigkeit) das massas, noção mais específica que espontaneidade. Por que um partido revolucionário não pode admitir, paralelamente à suas atividades prioritárias, uma certa dose de “auto-atividade” das massas, mas a espontaneidade, arrisca comprometer sua pretensão ao papel de dirigente. Rosa Luxemburgo foi a primeira marxista a utilizar, em alemão, a palavra spontan (espontâneo) em seus escritos, antes de tê-lo emprestado dos anarquistas,
Mas é para sublinhar que Marx jamais sondou em detalhe as vozes para as quais a autogestão poderia funcionar, tanto que Proudhon lhe consagra páginas mais páginas. Este último, que começou sua vida como operário, sabia do que ele falava; ela havia observado com uma atenção profunda as “associações operárias” nascidas durante a revolução de 1848. A razão da atitude de Marx é provavelmente que ele era inspirado e que ele estaria inspirado por e que ele considerava a questão como “utópica”. Hoje, os anarquistas foram os primeiras a remeter a ordem do dia a auto-getão(8), a qual veio a se tornar de tal maneira uma moda que ela foi depois confiscada, recuperada, alterada, por todos.
Lembremos agora como anarquistas e marxistas, desde seu nascimento político, entraram no conflito uns contra os outros.
A primeira escaramuça foi aberta por Marx-Engels contra Stirner dentro do seu livro travesso: A Ideologia Alemã(9). Ele se apóia sobre um mal entendido recíproco. Stirner não sublinhou claramente que para além da exaltação do Ego, o indivíduo considerado como um “Único”, pressupõe, de fato, uma associação voluntária deste “Único” com um outro, isto é um novo tipo de sociedade formada sobre a livre escolha federativa e o direito de secessão – uma idéia que será retomada mais tarde por Bakunin e, finalmente, mesmo por Lênin quando ele tratará da questão nacional. Por seu lado, Marx e Engels interpretaram de maneira errada as diatribes de Stirner contra o comunismo, que eles acreditavam de inspiração reacionária, enquanto Stirner, na realidade, praguejava contra uma variedade bem particular de comunismo, o “grosseiro” comunismo estatal dos comunistas utópicos de seu tempo, tal como Weitling na Alemanha e Cabet na França, porque Stirner supunha com razão que este tipo de comunismo ameaçava a liberdade individual.
Então, como já havíamos dito, se produziu o assalto furioso de Marx contra Proudhon, em parte pelas mesmas razões, a saber: Proudhon celebrava a pequena propriedade privada na mesma medida onde ele via nela um grau de liberdade pessoal. Mas Marx não sabia que, para as grandes indústrias, em outros termos, para o setor capitalista, Proudhon se fazia muito corretamente a defesa da propriedade coletiva. Não notava eles em suas anotações, que a “pequena industria é uma coisa tão ridícula quanto a pequena cultura”? Para a grande indústria moderna, ele é claramente coletivista. Aquilo que ele chama de companhias operárias terá, segundo acreditava, um papel considerável, aquele de gerar os grandes instrumentos de trabalho, tais como os trilhos de trem, a grande manufatura, o extrativismo, metalurgia, naval, etc.
Por outro lado, Proudhon no fim de sua vida, em Capacidade Política das Classes Operárias, optou pela separação total da classe operária da sociedade burguesa, isto é, pela luta de classes. Isto não impedirá que Marx tivesse a má vontade de tratar o proudhonismo de socialismo pequeno-burguês.
Agora chegamos à violenta e pouco luminosa querela entre Marx e Bakunin no seio da Primeira Internacional. Aqui também, em certa medida, um mal entendido. Bakunin atribuía a Marx horríveis intenções autoritárias, uma sede de dominação sobre o movimento operário de onde provavelmente ele exagerava um pouco no tratamento. Mas, o mais gritante era que, de fato, Bakunin se mostrou-se ainda assim, um profeta. Ele teve uma visão bem lúcida de um futuro distante. Ele previa a entrada em cena de uma “burocracia vermelha”, ao mesmo tempo que ele pressentia a tirania que deveriam um dia exercer os dirigentes da Terceira Internacional sobre o movimento operário mundial. Marx contra-ataca caluniando Bakunin da maneira mais vil fazendo votar, no Congresso de Haia, em setembro de 1872, a exclusão dos bakuninistas.
A partir de então estes pontos separam o marxismo e o anarquismo: um evento desastroso para a classe operária, porque cada um dos dois movimentos tinha necessidade de contribuir teórica e praticamente um para o outro.
Entre os anos 1880 uma tentativa de criar uma esquelética Internacional anarquista fracassa. A boa vontade não faltou, mas ela se encontrava quase que completamente isolada do movimento operário. No mesmo momento o marxismo se desenvolve rapidamente na Alemanha como cruzamento com a social-democracia e na França com a fundação do Partido operário de Jules Guesde.
Mais tarde, os diversos partidos social-democratas se uniram para criar a segunda internacional. Em seus sucessivos congressos, como já dissemos em nosso pequeno livro precedente, se produziram vivos afrontamentos com os libertários, que reduziram sua participação em seus assentos. Em Zurique, em 1893, o socialista libertário holandês Domela Nieuwnhuis fixa em termos tão violentos quanto brilhantes o processo da social-democracia alemã e foi acolhida por vaias. Em Londres, em 1896, a própria filha de Marx, Mme. Aveling, e o líder socialista francês Jean Jaurès insultaram e colocaram na rua os poucos anarquistas que puderam penetrar nos recintos do congresso enquanto os delegados dos diversos sindicatos operários. É verdade que o terrorismo anarquista que tomou a França entre 1890 e 1895 não contribuiu para a reputação histérica dos anarquistas, tratados em geral como “bandidos”. Estes reformistas tímidos e legalistas foram incapazes de compreender as motivações revolucionárias dos terroristas, seu recurso à violência enquanto protesto que repercutisse contra uma sociedade horrorizada com o fato.
De 1860 à 1914 a social-democracia alemã e mais ainda a máquina surda dos sindicatos operários alemães rejeitam o anarquismo: mesmo Kautsky, no tempo onde ele se declarava a favor da greve de massas, foi acusado pelos burocratas operários de ser um “anarquista”. Na França, é o contrário que se produziu. O reformismo eleitorialista e parlamentar de Jaurès desagradava aos trabalhadores mais avançados ao ponto que eles tomaram parte na fundação de uma organização sindical revolucionária muito mais militante, a memorável C.G.T. antes de 1914. Seus pioneiros, Fernand Pelloutier, Émile Pouget e Pierre Monatte, vindos do movimento anarquista.
A revolução russa e mais tarde a revolução espanhola acabaram por cavar um fosso entre anarquistas e marxistas, um fosso que não será jamais somente ideológico, mas também e, sobretudo, sangrento.
Para terminar estas considerações sobre o passado das relações entre anarquismo e marxismo, acrescentemos o que segue:
1º Certos marxólogos, como na França Maxilien Rubel, são, dentro de uma certa medida, tendenciosos quando eles fazem Marx passar por “libertário”.
2º Quaisquer anarquistas sectários e de espírito correto, como na França Gaston Leval, são, dentro de uma certa medida, obcecados por uma certa paixão quando eles condenam Marx como se ele fosse o diabo.
E agora, o que resta para o tempo presente ?
Sem dúvida alguma, assistimos em nossos dias a um renascimento do socialismo libertário. Tenho dificuldade de lembrar como este renascimento se produziu na França em maio de 1968. Aquele foi o mais espontâneo, o mais imprevisto, a menos preparada das rebeliões. Um vento forte de liberdade soprou sobre nosso país, tão devastador e, ao mesmo tempo, tão criador, que, com efeito, nada deveria ser mais semelhante aquilo que existia anteriormente. A vida mudou ou, se vocês preferirem, nós mudamos a vida.. Mais um tal renascimento em conjunto do movimento revolucionário, especialmente entre os jovens estudantes. Deste fato, não há mais barreiras estanques entre os movimentos libertários e aqueles que reivindicam o “marxismo-leninismo”. Existe mesmo uma certa permeabilidade não sectária entre estes diferentes movimentos. Dos jovens camaradas na França passando pelos grupos “autoritários” à grupos libertários e o inverso se produz igualmente. Grupos inteiros de maoístas demonstram sua influência libertária ou são jogados no contágio libertário. Mesmo os grupúsculos trotskistas evoluíram em algumas de suas perspectivas e abandonaram muitos de seus preconceitos em relação aos escritos e teóricos libertários. Pessoas como Jean-Paul Sartre e seus amigos expressam agora em sua revista mensal as perspectivas anarquistas e um de seus recentes artigos teve por título: “Adeus a Lênin.” Existem sempre alguns grupos marxistas autoritários que são particularmente anti-anarquistas, com encontram-se agora anarquistas que permanecem violentamente anti-marxistas.
Na França a Organização Comunista Libertária (OCL)(10) se encontra localizada na fronteira entre o anarquismo e o marxismo. Eles tem em comum com os anarquistas clássicos sua filiação com a corrente anti-autoritária que remonta à Primeira Internacional. Mas elas também tem em comum com os marxistas o fato de que uns e outros se colocam resolutamente sobre o terreno da luta de classes proletária e do combate em vista de acabar com o poder capitalista burguês. Por um lado, os comunistas libertários se esforçam pro reviver tudo aquilo que foi construído em relação ao anarquismo do passado (seja dito em passagem, esta é a tarefa almejada desde que eu publiquei o livro que precede, O Anarquismo, e a antologia do anarquismo em quatro volumes de bolso, sob o título: Nem Deus nem Patrão(11). Por outro lado, os comunistas libertários não repousam sobre aquilo que da herança de Marx e Engels lhes parece hoje válido e fecundo e, sobretudo, respondendo às necessidades de nosso tempo.
Assim como a noção de alienação contida nos Manuscritos de 1844 do jovem Marx entra em profundo acordo com as fontes da liberdade individual dos anarquistas. E assim como a afirmação de que a emancipação do proletariado deve ser obra do próprio proletariado e não de substitutos, é uma idéia que também se encontra tanto no Manifesto Comunista quanto em seus comentários posteriores e nas resoluções dos congressos da Primeira Internacional. E assim como a teoria reveladora do capital permanece, ainda hoje, uma das chaves que permitem compreender o funcionamento do mecanismo capitalista. E assim como, enfim, o famoso método da dialética materialista e histórica que permanece um dos fios condutores para uma compreensão dos eventos do passado e do presente. No entanto, uma condição é requerida: não se aplicar um método rigidamente, mecanicamente, ou como uma desculpa para não lutar sob os falsos pretextos que faltam as bases materiais para uma revolução, como os estalinistas pretenderam, por três vezes na França, em 1936, em 1945 e em 1968. Em outra o materialismo histórico não deveria se reduzir a um simples determinismo; a porta deve permanecer bem aberta à vontade individual e à espontaneidade revolucionária das massas.
Como escreveu o historiador libertário A. E. Kaminski, em seu excelente livro sobre Bakunin, uma síntese entre o anarquismo e o marxismo não é somente necessário, mas inevitável. “A história, acrescentou, constrói seus compromissos por si mesma.”
Eu gostaria de acrescentar, e este será minha própria conclusão, que um comunismo libertário, fruto de uma tal síntese, experimenta sem dúvida nenhuma os desejos profundos (mesmo se por acaso ele não seja mais, de fato, consciente) dos trabalhadores avançados, daquilo que chamo hoje em dia da “esquerda operária” mais avançada que o marxismo autoritário degenerado ou o velho anarquismo ultrapassado e fossilizado.
Notas:
(1) Cf. meu livro : Rosa Luxemburg et la spontanéité révolutionnaire, Flammarion collection “Questions d’histoire”, 1971 (Rosa Luxemburgo e a espontaneidade revolucionária, Ed. Brasileira, perspectiva) (retornar ao texto)
(2) Cf. Rosa Luxemburg, Lettres à Leon Jogichès, 2. vol., Denoël-Gonthier, 1971. (retornar ao texto)
(3) Cf. em meu livro Pour um marxisme libertaire, Robert Laffont, 1969, o capítulo “La Révolution déjacobinisée”. (retornar ao texto)
(4) Ibid., o ensaio: “Lènine ou le socialisme par em haut”. (retornar ao texto)
(5) Cf. em meu livro “La Revolution française et nous”, Maspero, 1976, o capítulo “Gare aux nouveaus Versaillais!” (retornar ao texto)
(6) É verdade que o escrito sobre a Comuna era, na verdade, um informe dirigido à Primeira Internacional: Marx, ao redigir, levou em consideração as diversas correntes daquela organização operária ou as autoridades estatistas próximas aos libertários estando obrigado a lhes fazer concessões, ainda que não os reconhecesse. (retornar ao texto)
(7) Cf. Meu livro La lutte de classes sous la Première Republique, refonte, 2 vol., Gallimard, 1968, e o condensado Bourgeois et brás nus, Gallimard, 1973; e enfin, La Révolution française et nous, já citado. (retornar ao texto)
(8) A trama essencial do pequeno livro que o precede, publicado desde 1965, é a a autogestão, de onde a revolução de Maio de 68 acentuou a sua dinâmica. (retornar ao texto)
(9) É verdadeiro dizer aquela crítica severa permanece como manuscrito e não será publicado até 1932 (em francês 1937-1947), voltando-se contra Stirner numerosos marxistas de nosso século, tal como Pierre Naville. (retornar ao texto)
(10) 33, rue dês Vignoles, 75020 Paris. (retornar ao texto)
(11) Ni Dieu ni maître. Petite Collection Maspero, 4 vols. 1970. (retornar ao texto)
Inclusão | 18/03/2010 |
Última alteração | 30/04/2014 |