A Pérsia e a China

Friederich Engels

22 de Maio 1857


Escrito: 22 de Maio de 1857
Primeira Edição:  Artigo publicado no New Tork Daily Tribune.
Fonte: amavelmente cedido por  GeoEconomia.
Tradução: Jason Borba.
HTML de  José Braz para o Marxist Internet Archive.


Os ingleses vêm neste momento de terminar uma guerra na Ásia e já se engajam numa outra. A resistência oposta pelos persas e a que os chineses até o presente opuseram à invasão britânica oferecem um contraste digno de nossa atenção. Na Pérsia o sistema de organização militar europeu foi implantado sobre a bárbarie asiática; na China a deteriorada semi-civilização do mais antigo estado do mundo faz face aos europeus com seus próprios recursos. A Pérsia sofreu uma derrota remarcável enquanto a China em desespero, semi decomposta, encontra um sistema de resistência que, se for aplicado, tornará impossível a repetição das marchas triunfais da primeira guerra anglo-chinesa.

A Pérsia se encontrava num estado semelhante àquele da Turquia durante a guerra de 1828-29 contra a Rússia. Os oficiais ingleses, franceses, russos haviam empreendido sucessivamente reorganizações do exército persa. Os sistemas foram se sucedendo e cada um se esgotando por causa do ciúme, das intrigas, da ignorância, da cupidez e da corrupção dos orientais, os quais esses mesmos sistemas deveriam transformar em oficiais e em soldados europeus. O novo exército regular jamais teve ocasião de submeter-se a um teste de sua organização e de sua força no campo de batalha. Suas façanhas ficaram reduzidas a algumas campanhas contra os curdos, os turcomanos e os afegãos, onde serviu como um tipo de núcleo de reserva à numerosa cavalaria irregular da Pérsia. Esta última enfrentou a dureza do combate real; os regulares, em geral, somente tinham que se impor ao inimigo com suas formações formidáveis apenas na aparência. E finalmente, estourou a guerra contra a Inglaterra.

Os ingleses atacaram Bouchir e aí encontraram uma resistência valente, se bem que ineficaz. Mas os homens que combateram em Bouchir não eram os regulares: eram aquelas levas irregulares de habitantes persas e árabes da costa. Os regulares estavam em vias de se concentrar a quase sessenta milhas de lá nas colinas. Eles avançaram enfim. O exército anglo-indiano os encontrou a meio caminho; e se bem que a maneira dos persas se servirem de sua artilharia merecesse louvor, e seus carros estivessem formados segundo os princípios mais consagrados, uma só carga de um único regimento de cavalaria regular indiano varreu do campo de batalha todo o exército persa, sua guarda e tropas de linha. E para podermos aquilatar o valor desta cavalaria regular indiana no exército indiano, basta nos referirmos ao livro do capitão Nolan a esse respeito. Ela é considerada, entre os oficiais anglo-indianos, como pior do que se não tivesse mesmo qualquer valor, sendo de longe muito inferior à cavalaria irregular anglo-indiana. O capitão Nolan não pôde citar em seu crédito uma só ação em que ela tivesse se engajado. E, no entanto, seiscentos homens desta cavalaria perseguiram dez mil persas! Tal foi o terror que difundiu-se entre os regulares persas que depois, com a única excessão da artilharia, eles não se firmaram em parte alguma. Em Mohammera eles se puseram fora de combate e, deixando a artilharia defender suas baterias, se retiraram a partir do momento em que elas foram reduzidas ao silêncio; e quando os britânicos desembarcaram com uma força de reconhecimento de trezentos fusileiros e cinquenta cavaleiros irregulares, o exército persa inteiro se retirou, deixando armas e bagagens nas mãos - não dos vencedores, porquanto não podemos chamá-los assim - mas dos invasores.

No entanto, tudo isso ainda não permite nem pré-julgar os persas como uma nação de covardes, nem renunciar à introdução da tática européia junto aos orientais. As guerras russo-turcas de 1806-1812 e de 1828-1829 abundam em exemplos desse gênero. A principal resistência oferecida aos russos foi a das levas irregulares das cidades fortificadas e das províncias das montanhas. Cada vez que se mostraram em campo aberto, as tropas regulares foram desbaratadas pelos russos e puseram-se em fuga ao primeiro golpe de artilharia; isso enquanto uma só companhia de irregulares arnautas, em um desfiladeiro em Varna, rechaçou o assalto dos russos durante semanas inteiras. E todavia, na última guerra, o exército regular turco derrotou os russos em cada engajamento, de Oltenitsa e Cetatea até Kars e Ingour.

O fato é que a introdução da organização militar européia nas nações bárbaras estava longe de estar concluída quando o exército novo foi subdividido, equipado e treinado à européia. Mas este não era senão um primeiro passo. A implantação de um regulamento militar europeu não basta de modo algum; ele não fará reinar a disciplina européia do mesmo modo que um regulamento de instrução europeu não produzirá por si mesmo a tática e a estratégia européias. O principal, e ao mesmo tempo o mais difícil, é criar um corpo de oficiais e sub-oficiais instruídos segundo o sistema europeu moderno, totalmente livres dos velhos preconceitos e reminiscências nacionais em matéria militar, e capazes de insuflar vida nas novas tropas. Isto demanda muito tempo e deve seguramente deter-se diante da mais obstinada oposição por parte da ignorância, da impaciência, dos preconceitos orientais e de vicissitudes de fortuna e de favor inerentes às cortes orientais. Um sultão ou um chá só estarão muito inclinados a considerar seu exército à altura de não importa qual tarefa desde que os homens saibam desfilar em parada, fazer conversão, se deslocar e postar-se em coluna sem se colocar em desordem irreparável. Quanto às escolas militares, seus frutos são tão lentos para amadurecer que com a instabilidade dos governos orientais não se pode sequer esperar que elas produzam algum. Mesmo na Turquia as disponibilidades de oficiais instruídos são tão reduzidas que o exército turco não pôde funcionar durante a última guerra sem um grande número de renegados e de oficiais europeus servindo em suas fileiras.

A única arma que em todo lugar foi excessão foi a artilharia. Nesse ponto os orientais são tão deficientes e tão incapazes que foram obrigados a deixar todo o manejo aos seus instrutores europeus. A consequência é que na Turquia como na Pérsia a artilharia colocou-se de longe muito adiante da infantaria e da cavalaria.

Que nessas condições o exército anglo-indiano pudesse dispersar facilmente os regulares persas é coisa que decorre de si mesma na medida em que é o mais antigo dos exércitos orientais organizados segundo o sistema europeu, o único que não está submetido a um governo oriental mas a uma administração exclusivamente européia e comandado quase inteiramente por oficiais europeus, sendo um exército sustentado por uma forte reserva de tropas britânicas e por uma marinha poderosa. Este revés fará muito mais bem aos persas na medida em que fosse mais patente. Eles verão doravante, como os turcos já o viram, que o uniforme europeu e o adestramento para a parada não são um talismã em si mesmos, e pode ser que em vinte anos os persas se mostrem tão temíveis quanto os turcos nas suas recentes vitórias.

As tropas que conquistaram Bouchir e Mohammera serão, a partir do que depreende-se, enviadas imediatamente à China. Lá elas encontrarão um inimigo totalmente diferente. Nenhuma tentativa de manobras à européia lhes será oposta, mas sim o ordenamento irregular das massas asiáticas. Não há dúvidas de que elas atingirão seu objetivo sem dificuldades; mas o que acontecerá se os chineses engajarem contra elas uma guerra nacional e se a barbárie levar a falta de escrúpulo até o ponto em que façam uso das únicas armas que sabem utilizar?

Os chineses do presente estão evidentemente animados de um espírito diferente daquele que mostraram na guerra de 1840 a 1842. Daquela feita o povo era calmo; ele deixava os soldados do Imperador combaterem os invasores e, após uma derrota, se submetiam ao inimigo com o fatalismo oriental. Mas no presente, ao menos nas províncias meridionais onde o conflito até o presente está circunscrito, a massa do povo toma uma parte ativa, fanática mesmo, na luta contra os estrangeiros. Os chineses envenenam o pão da colônia européia em Hong-Kong no atacado e com a mais fria premeditação. (Alguns pães foram enviados a Liebig para exame. Encontraram vestígios de arsênico, o que mostra que já havia sido incorporado à massa. A dose era no entanto forte o suficiente para agir como um emético e assim neutralizar os efeitos do veneno.) Eles embarcam com armas escondidas a bordo dos vapores de comércio e, no meio da rota, massacram a tripulação e os passageiros europeus e se assenhoram do navio. Eles sequestram e matam todo estrangeiro ao alcance da mão. Os próprios coolies emigram para o estrangeiro, coordenadamente se amotinam a bordo de cada transporte de emigrantes; eles lutam por seu controle e ou fogem com ele ou morrem nas chamas em vez de se render. Mesmo fora da China os colonos chineses, até aqui os mais submissos e mais doces sujeitos, conspiram e se sublevam subitamente em insurreição noturna, como foi o caso de Sarawak ou em Singapura; eles não são contidos senão pela força e vigilância. A política de pirataria do governo britânico provocou esta explosão universal de todos os chineses contra todos os estrangeiros e lhe deu o caráter de uma guerra de extermínio.

O que pode um exército contra um povo que recorre a tais meios de guerra? Até onde, ou até que ponto, pode ele penetrar em um país inimigo e como aí se manter? Os mercadores civilizados que atiram bombas incendiárias sobre uma cidade sem defesa e somam violação ao assassinato podem qualificar esses métodos de covardes, de bárbaros, de atrozes; mas que importa aos chineses conquanto que vençam? Na medida em que os britânicos lhes tratam como bárbaros, eles não podem lhes negar o pleno benefício de sua barbárie. Se seus sequestros, seus ataques de surpresa, seus massacres noturnos são o que nós chamamos de covardes, os mercadores civilizados não deveriam duvidar que os chineses pudessem resistir aos meios de destruição europeus fazendo uso de seus meios de guerra ordinários.

Em suma, em lugar de moralisar sobre as horríveis atrocidades dos chineses, como o faz a cavalheiresca imprensa inglesa, faríamos melhor em reconhecer que trata-se de uma guerra pro aris et focis, uma guerra nacional pela manutenção da nacionalidade chinesa e, de qualquer modo, uma guerra do povo - malgrado seus todo-poderosos preconceitos, sua douta ignorância e sua pedante barbárie, como queiram. E numa guerra popular os meios empregados pela nação insurgente não podem ser medidos segundo as regras reconhecidas de conduta de uma guerra regular, nem segundo qualquer padrão abstrato, mas segundo o grau de civilização da nação insurgente.

Os ingleses estão colocados desta vez numa posição difícil. Até o presente o fanatismo nacional chinês parecia não se estender para além destas províncias do sul, que não haviam aderido à grande rebelião. A guerra permaneceria confinada ali? Nesse caso ela não poderia chegar a qualquer resultado, nenhum ponto vital do Império estaria ameaçado. Ao mesmo tempo esta poderia tornar-se uma guerra muito perigosa para os ingleses se esse fanatismo ganhasse as populações do interior. Cantão pode ser totalmente destruida e as costas ocupadas em todos os pontos possíveis, mas todas as forças que os britânicos poderiam reunir não bastariam para conquistar e manter as duas províncias de Kouangtoung e de Kouang-si. O que, então, poderiam fazer a mais? O pais, ao norte de Cantão até Changai e Nankin, está nas mãos dos insurgentes chineses, aos quais seria má política ofender, e, ao norte de Nankin, o único ponto em que um ataque poderia conduzir a um resultado decisivo seria Pequim. Mas onde está o exército para formar uma base de operações fortificada e guarnecida de tropas na costa, para superar todo obstáculo no caminho, para deixar destacamentos encarregados de assegurar as comunicações com a costa e surgir com uma força de aparência tal que não seja vista como pouco considerável diante das defesas de uma cidade do tamanho de Londres e situada a uma centena de milhas do ponto de desembarque deste exército? De outra parte, uma demonstração coroada de sucesso contra a capital abalaria o Império chinês até os seus fundamentos, aceleraria a queda da dinastia Ts'ing e aplainaria a via aos progressos não dos ingleses, mas dos russos.

A nova guerra anglo-chinesa apresenta tantas complicações que é absolutamente impossível adivinhar a direção que ela pode tomar. Por alguns meses a falta de tropas e, por mais tempo ainda, a falta de decisão manterão os britânicos totalmente inativos, salvo, possivelmente, em alguns pontos sem importância, dos quais, nas circunstâncias presentes, também Cantão faz parte.

Uma coisa é certa: a última hora da velha China se aproxima rapidamente. A guerra civil já separou o sul do norte do Império e o rei rebelado em Nankin parece tão seguro em relação às tropas imperiais (a não ser face às intrigas de seus próprios correligionários) quanto o Imperador celeste o está em relação aos rebelados em Pequim. Cantão sustenta então, até o presente, um tipo de guerra independente contra os ingleses e todos os estrangeiros em geral; e enquanto as frotas e as tropas britânicas e francesas afluem a Hong-Kong, os cossacos da fronteira da Sibéria avançam lentamente e de modo seguro seus stanitsas dos montes Daours até os rios do Amour e a infantaria de marinha russa cerca com fortificações os explêndidos portos da Mandchúria. O próprio fanatismo dos chineses do sul na sua luta contra os estrangeiros parece marcar a consciência do perigo supremo que ameaça a velha China; em poucos anos nós seremos testemunhas da agonia do mais velho Império do mundo e do dia em que uma nova era se abrirá para toda a Ásia.


Inclusão 21/07/2003