A Crise
[3º de 4 artigos]

Karl Marx

14 de Setembro de 1848


Primeira Edição: Neue Rheinische Zeitung. Organ der Demokratie (Nova Gazeta Renana. Órgão da Democracia), nº 102
Fonte: PUC SP Revista Margem
Tradução: Artigos recolhidos e traduzidos por Lívia Contrim (e-mail: lcotrim @ aol . com). Leia o artigo da tradutora: A contra-revolução na Alemanha. Marx e a Nova Gazeta Renana
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Fernando A. S. Araújo.
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A crise em Berlim avançou mais um passo: o conflito com a Coroa, que ontem ainda só podia ser designado como inevitável, aconteceu de fato.

Nossos leitores encontram logo adiante a resposta do rei ao pedido de renúncia dos ministros.(1) Por meio desta carta, a própria Coroa passa para o primeiro plano, toma partido a favor dos ministros, contrapõe-se à Assembléia.

Vai mais longe ainda: constitui um ministério estranho à Assembléia, convoca Beckerath, que em Frankfurt senta-se à extrema-direita e que em Berlim, como o mundo inteiro sabe por antecedência, jamais poderá contar com uma maioria.

O ofício do rei é rubricado pelo sr. Auerswald. O sr. Auerswald devia se responsabilizar por ter, assim, empurrado a Coroa à sua frente para cobrir sua ignominiosa retirada, por ter procurado se esconder, ante a Câmara, atrás do princípio constitucional ao mesmo tempo que esmagava sob os pés o princípio constitucional, comprometendo a Coroa e incitando à república!

O princípio constitucional!, gritam os ministros. O princípio constitucional!, grita a direita. O princípio constitucional!, geme o eco surdo da Gazeta de Colônia.

"O princípio constitucional!" Esses senhores são mesmo, então, suficientemente tolos para acreditar que se possa afastar o povo alemão da tempestade do ano de 1848, do colapso cada dia mais iminente de todas as instituições históricas tradicionais, com a carcomida divisão dos poderes de Montesquieu—Delolme,(2) com frases desgastadas e ficções há muito desmascaradas?

"O princípio constitucional!" Mas os mesmos senhores que querem salvar o princípio constitucional a qualquer custo deveriam antes de mais nada reconhecer que em uma situação provisória ele só pode ser salvo com energia!

"O princípio constitucional!" Mas o voto da Assembléia de Berlim, as colisões entre Potsdam e Frankfurt, os distúrbios, as tentativas da reação, as provocações da soldadesca não mostraram há muito que, apesar de todas as frases, nós ainda estamos no terreno revolucionário, que a ficção de que já estávamos no terreno da constituinte, da monarquia constitucional acabada, não leva a nada além de colisões, as quais já agora o "princípio constitucional" conduziu à beira do abismo?

Toda situação política provisória posterior a uma revolução exige uma ditadura, e mesmo uma ditadura enérgica. Criticamos Camphausen desde o início por não ter agido ditatorialmente, por não ter destruído e removido imediatamente os restos das velhas instituições. Assim, enquanto o sr. Camphausen se embalava no sonho constitucional, o partido vencido fortalecia as posições na burocracia e no exército, e ousava mesmo, aqui e acolá, a luta aberta. A Assembléia fora convocada para se entender sobre a constituição. Ela estava em posição de igualdade com a Coroa. Dois poderes em posição de igualdade em um governo provisório! Precisamente a divisão dos poderes com que o sr. Camphausen procurava "salvar a liberdade", precisamente essa divisão dos poderes devia, em um governo provisório, levar a colisões. Atrás da Coroa se ocultava a camarilha contra-revolucionária da nobreza, dos militares, da burocracia. Atrás da maioria da Assembléia estava a burguesia. O ministério procurava conciliar. Débil demais para defender decididamente os interesses da burguesia e dos camponeses e destruir, de um só golpe, o poder da nobreza, da burocracia e dos líderes militares, desajeitado demais para não ferir sempre a burguesia com suas medidas financeiras, não chegou a nada além de se tornar impossível para todos os partidos e provocar justamente a colisão que queria evitar.

Em toda situação não-constituída o decisivo não é este ou aquele princípio, mas sim somente a salut public, o bem público. O ministério só poderia evitar a colisão da Assembléia com a Coroa se reconhecesse o princípio do bem público, mesmo correndo o risco de colidir ele próprio com a Coroa. Mas preferiu manter-se "possível" em Potsdam. Contra a democracia, nunca vacilou em tomar medidas em prol do bem público (mesures de salut public), medidas ditatoriais. Ou foi outra coisa a utilização das velhas leis sobre crimes políticos, mesmo quando o sr. Märker(3) já havia reconhecido que esses parágrafos do Direito Nacional (Landsrecht)(4) deveriam ser suprimidos? Foram outra coisa as prisões em massa em todas as partes do império?

Mas em oposição à contra-revolução o ministério guardou-se bem de tomar providências em prol do bem público!

E justamente dessa tibieza do ministério ante a contra-revolução, que se tornava dia a dia mais ameaçadora, nasceu a necessidade, para a Assembléia, de ditar ela mesma medidas em prol do bem público. Uma vez que a Coroa, representada pelo ministro, era débil demais, a Assembléia mesma devia tomar providências. Ela o fez com a resolução de 9 de agosto.(5) Mas o fez de uma forma ainda muito suave, dando aos ministros apenas uma advertência. Os ministros não fizeram caso disso.

Mas também como eles poderiam tê-la acolhido? A resolução de 9 de agosto esmaga sob os pés o princípio constitucional, é uma usurpação do poder legislativo contra o executivo, destrói a divisão e o controle mútuo dos poderes, tão necessários no interesse da liberdade, transforma a Assembléia Ententista na Convenção Nacional!

E eis agora um fogo cerrado de ameaças, um apelo atroador ao medo dos pequeno-burgueses, a perspectiva aberta de governo de terror com guilhotina, impostos progressivos, confisco e bandeira vermelha.

A Assembléia de Berlim — uma Convenção! Que ironia!

Mas esses senhores não estão totalmente equivocados. Se o governo continuar como até agora, não demorará muito para termos uma Convenção — não apenas para a Prússia, mas para toda a Alemanha —, uma Convenção que será obrigada a reprimir com todos os meios a guerra civil de nossos 20 vendeanos(6) e a inevitável guerra russa. Agora certamente estamos mesmo na paródia da Constituinte!

Mas como os senhores ministros que apelam ao princípio constitucional mantiveram este princípio?

Em 9 de agosto, eles deixaram a Assembléia se dispersar calmamente, na boa-fé de que cumpririam a resolução. Nem pensaram em comunicar à Assembléia sua negativa, e muito menos em renunciar a seus cargos.

Refletiram durante um mês inteiro e finalmente, sob ameaça de várias interpelações, notificaram laconicamente à Assembléia: evidentemente não cumpririam a resolução.

Depois, quando a Assembléia, não obstante, ordenou aos ministros que cumprissem a resolução, eles se entrincheiraram atrás da Coroa, provocaram um rompimento entre a Coroa e a Assembléia e incitaram assim à república.

E esses senhores ainda falam do princípio constitucional!

Em resumo:

A inevitável colisão entre dois poderes em posição de igualdade em um governo provisório ocorreu. O ministério não soube conduzir de modo suficientemente enérgico o governo, deixou de tomar as necessárias medidas em prol do bem público. A Assembléia não fez mais do que sua obrigação ao intimar o ministério a cumprir seu dever. O ministério tomou isto por uma violação à Coroa, e ainda a comprometeu no momento de sua demissão. A Coroa e a Assembléia se contrapõem uma à outra. A "conciliação" levou à divisão, ao conflito. Caberá talvez às armas decidir.

Quem tiver mais coragem e conseqüência vencerá.

Leia o quarto e último artigo da série


Notas de rodapé:

(1) Em sua mensagem de 10 de setembro de 1848, Frederico Guilherme IV, concordando com a opinião dos ministros, declarou que a resolução da Assembléia Nacional prussiana de 7 de setembro de 1848 representava uma violação do "princípio da monarquia constitucional", e ratificou a resolução do ministério Auerswald-Hansemann de renunciar em sinal de protesto contra esse procedimento da Assembléia. (retornar ao texto)

(2) Delolme, Jean-Louis (1740-1806): especialista em direito público e jurista suíço, defendia a doutrina da divisão dos poderes. (retornar ao texto)

(3) Märker, Friedrich August (1804-1889): juiz do Tribunal Criminal em Berlim, liberal; em 1848, foi deputado à Assembléia Nacional prussiana (centro) e ministro da Justiça (junho a setembro). (retornar ao texto)

(4) O "Direito Nacional (Landsrecht) Geral para os Estados Prussianos de 1794 era uma súmula do direito burguês, do direito de comércio, de troca, marítimo e de segurança, além do direito penal, religioso, público e administrativo; consolidava o caráter reacionário da Prússia feudal no âmbito jurídico e partes essenciais dele vigoraram até a introdução do Código Civil, em 1900. (retornar ao texto)

(5) Em 3 de agosto de 1848 ocorreu, na fortaleza Schweidnitz, um ataque de surpresa das tropas da fortaleza contra a Guarda Civil, no qual quatorze cidadãos foram mortos. Provocada por esse sempre reacionário comportamento das tropas prussianas, a Assembléia Nacional aprovou, em 9 de agosto, sob inclusão de algumas propostas de alteração, uma moção do deputado Stein com as seguintes palavras: "O sr. ministro da Guerra deve declarar, em um decreto ao exército, que os oficiais permaneçam longe de todas as tentativas reacionárias, não apenas evitando conflitos de todo tipo com os civis, mas sim mostrando, pela aproximação aos cidadãos e união com eles, que querem colaborar com franqueza e abnegação para a efetivação de um estado de direito constitucional, e que aqueles oficiais cujas convicções políticas não estejam de acordo com isto considerem um dever de honra desligar-se do exército". O ministro da Guerra Schreckenstein não promulgou, apesar da resolução da Assembléia, nenhuma ordem semelhante. Por isso Stein repetiu sua moção na sessão da Assembléia Nacional de 7 de setembro; a maioria dos deputados aderiu à intimação ao ministério para cumprir rapidamente essa resolução. Diante deste resultado da votação, o ministério Auerswald-Hansemann renunciou. No período do ministério Pfuel, que o sucedeu, a ordem foi finalmente dada, em uma forma atenuada, mas ficou só no papel. (retornar ao texto)

(6) Vendéia - província francesa em que, durante a Revolução Francesa, na primavera de 1793, irrompeu uma insurreição contra-revolucionária sob a liderança da nobreza, que se apoiou no campesinato dessa região economicamente atrasada. Vendéia é, por isso, utilizada generalizadamente para tendências contra-revolucionárias. (retornar ao texto)

Inclusão 12/09/2014