No Trabalho Sanitário Materializemos o Princípio de que a Revolução Liberta o Povo

Samora Machel

1971


Fonte: http://www.macua.org.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.


Camaradas

Iniciamos hoje um novo curso para formação de enfermeiros. Em 1968 tínhamos sido obrigados a suspender estes cursos. Durante três anos eles estiveram interrompidos. Durante três anos a nossa luta, o nosso Povo, viram-se impedidos de receberem novos quadros de saúde. Durante estes últimos três anos morreram combatentes por falta de assistência sanitária, morreram elementos do Povo, morreram crianças, porque não estávamos em condições de lhes dar um mínimo de assistência médica. Para muitas regiões libertadas, para muitas populações, estes últimos três anos não foram anos de combate contra a doença. O nosso povo viu-se esquecido como na época colonial, durante este três anos.

Há três anos atrás tínhamo-nos engajado na batalha de formação de quadros para a saúde. Perdemos a batalha nesse momento. Não há guerra em que só existem vitórias para nós e derrotas para o inimigo.

Perdemos a batalha, porque a consciência política dos alunos de enfermagem não estava em condições de assumir o sentido e a importância da batalha que se travava e, assim, permitiram que o inimigo se instalasse no seu seio.

Em 1968, a nossa luta armada desenvolvia-se muito. Bombardeávamos e tomávamos de assalto as bases inimigas. Fazíamos soldados portugueses prisioneiros de guerra, capturávamos toneladas de material. Em Tete, reabríamos a frente da luta armada.

A batalha fundamental pela clareza da nossa linha política, pelo desenvolvimento da nossa ideologia, demonstrava os objectivos populares das forças revolucionárias no nosso seio.

Este combate engajava o pessoal da saúde. Este combate era também um combate entre duas linhas no domínio da saúde. Um combate para defender os interesses do Povo no campo da saúde.

1. O Que é o Hospital da FRELIMO e suas Tarefas

À primeira vista pode parecer absurdo falarmos em linha política no campo da saúde, em combate entre duas linhas no domínio da saúde. À primeira vista pode-se pensar que existe na FRELIMO uma vontade de politizar uma coisa, aparentemente tão neutra, como a saúde. No fim de contas, dirão esses que imaginam uma saúde apolítica, a penicilina ou cloroquina têm o mesmo efeito, quer sejam administradas ou não por um revolucionário, quer sejam dadas num hospital da FRELIMO ou num hospital colonialista.

Mas todos os nossos actos, toda a nossa vida, são radicalmente diferentes dos actos e da vida da zona do inimigo.

Na zona do inimigo, na zona colonialista, na zona capitalista, tudo se destina a manter o Povo dominado, manter o Povo explorado, dar lucro aos capitalistas.

Na zona capitalista, na zona colonialista, a estrada serve para fazer passar rapidamente a tropa e polícia que te prendem e levam para o trabalho forçado. A estrada é o caminho rápido para te virem buscar o imposto. A estrada serve para levar o algodão, que tu produziste mas pertence à companhia. Serve para o comerciante te vir vender, a preços fabulosos, os artigos que tu e teus irmãos de classe produziram e de que os colonialistas se apropriaram a preços de miséria.

Na zona do inimigo a escola é para, os filhos dos ricos, mesmo se ela é financiada pelos teus impostos. Se alguma vez, como por milagre, o filho do pobre entra na escola, não é para aprender a servir o seu País. A escola vai-lhe lavar o cérebro, fazer-lhe ter vergonha da sua origem, transformá-lo em instrumento dos ricos para explorar os trabalhadores.

Tudo tem um conteúdo em função da zona em que se encontra, em função da natureza do poder que existe nessa zona. Na zona capitalista e colonialista a escola, a machamba, a estrada, o tribunal, a loja, o técnico, as leis, o estudo, tudo serve para sermos explorados, oprimidos.

Na nossa zona, porque o poder nos pertence, porque são os camponeses, operários, as massas laboriosas quem concebe e dirige, tudo se destina a libertar o homem, a servir o Povo.

Assim se passa com os hospitais, com o serviço de saúde.

Na zona do capitalismo e do colonialismo o hospital é um dos centros de maior exploração. Aí, porque está em jogo a vida dum homem, a vida dos seus entes mais queridos, é onde se manifesta da maneira mais desmascarada e sem vergonha a ganância do mundo capitalista.

Não se entra e não se é tratado no hospital capitalista em função das necessidades. Quando se é pobre, quando não se tem influências poderosas, é difícil arranjar-se uma cama no hospital, e no entanto o cancro devora-te a carne, a tuberculose rói-te os pulmões, a febre queima-te o corpo. O rico, o senhor, o patrão, esse não tem a mínima dificuldade em obter quartos, em obter lugar para si e para quem o acompanha.

Mobilizam-se médicos e professores da faculdade para tratar a constipação do grande capitalista, para curar a prisão de ventre do senhor juiz, mas ao lado morrem crianças, morrem homens, porque não tiveram dinheiro para chamar o médico.

No hospital não se analisam os doentes, analisam-se as riquezas. O medicamento é vendido a peso de ouro. Só se trata quem pode pagar. A operação é para quem a pode custear. A comida, a dieta, as frutas ou o leite, a salada, as carnes e peixes delicados para revigorarem o doente, isso não é para quem precisa, mas para quem pode pagar. Até a ambulância, que vai buscar de urgência quem está a morrer, muitas vezes regressa vazia porque a família do moribundo não pode garantir o pagamento das facturas.

Na zona do inimigo os cães dos ricos têm mais vacinas, mais medicamentos, mais cuidados médicos do que os trabalhadores que constituíram a riqueza do rico.

Não é pois de estranhar que na zona do inimigo ser-se médico significa também ser-se rico, ser-se enfermeiro significa também um alto vencimento de muitos contos. Ser-se médico é gozar-se duma elevada situação social como explorador, ser-se enfermeiro é gozar de muitos privilégios.

No Moçambique dos colonialistas e capitalistas só há hospitais onde há colonos, só há médicos e enfermeiros onde vivem os que podem pagar. Na cidade de Lourenço Marques há mais camas nos hospitais, mais médicos, mais enfermeiros, mais laboratórios do que em todo o resto de Moçambique. Será que isto quer dizer que só em Lourenço Marques é que há doentes?

Nas minas onde trabalhamos, nas plantações das companhias que cultivamos, nas estradas que estamos a abrir, nas fábricas, nas machambas, nas povoações, há milhões e milhões de Moçambicanos que nunca viram um médico, nunca viram um enfermeiro, que estando doentes nunca puderam beneficiar de qualquer assistência sanitária.

O nosso hospital é diferente. O que faz um hospital não são os instrumentos cirúrgicos ou medicamentos que lá se encontram. Os instrumentos os medicamentos, são importantes, mas o que é essencial, o que é o factor decisivo, é o homem. Por isso, hoje, pela primeira vez, em Cabo Delgado, em Niassa, em Tete, o Povo é objecto de assistência, sanitária, as pessoas são vacinadas, nas povoações aprendem-se hábitos de higiene. No entanto são raros os nossos medicamentos, são muito poucos os nossos instrumentos cirúrgicos, e as nossas instalações são tão pobres que do exterior mal se distinguem de modestas palhotas.

O nosso hospital é constituído de sangue, de sacrifícios. Não são paus e maticado, cimento ou tijolos, que constróem as paredes do nosso hospital.

O nosso hospital pertence ao Povo, é um fruto da Revolução. O nosso hospital é muito mais que um centro de distribuição de medicamentos, ou do curativos.

Um hospital da FRELIMO é um centro em que se concretiza a nossa linha política de servir as massas, é um centro em que se materializa o nosso princípio de que a Revolução liberta o Povo.

O nosso hospital destina-se a libertar o Povo da doença, a dar boas condições físicas aos combatentes, militantes e trabalhadores, para que estes cumpram as tarefas revolucionárias em que estão empenhados, por amor do Povo.

Curamos as pessoas pela confiança que inspiramos, pelo moral que lhes Inculcamos. O pessoal da saúde, o doente e o medicamento combinam-se para libertar o homem da doença.

O nosso hospital é um centro da Revolução, ele existe por causa da Revolução e está intimamente associado à Revolução.

Enquanto os hospitais capitalistas e colonialistas estão ligados aos exploradores, aos colonos, porque é a eles que servem, o nosso hospital está ligado às massas porque é a elas que se destina.

Assim o nosso hospital é um centro de unidade nacional, um centro de unidade de classe, um centro de purificação de ideias, um centro de propaganda revolucionária e organizacional, um destacamento de combate.

Pessoal médico, alunos, serventes, doentes, e o resto da sociedade estão intimamente unidos.

No hospital da FRELIMO não há tribos, não há regiões, não há raças, não há crenças religiosas, não há nada que nos divide. O hospital cumpre uma tarefa revolucionária. Pessoal médico, alunos, serventes, estão a cumprir tarefas essenciais que lhes foram confiadas pelo Povo.

O Povo inteiro, do Rovuma ao Maputo, pelos sacrifícios que fez, pelo sangue que verteu, ergueu esse hospital para o servir, para o libertar da doença. Ninguém foi enviado por uma tribo ou região para trabalhar num hospital.

Na medida em que os doentes sentirem unidade no pessoal do hospital desde o médico aos serventes, eles unir-se-ão ao pessoal médico e serventes e juntos concentrarão forças para liquidar a doença. Mas se houver desunião reinará a desconfiança, o doente recusará o medicamento porque temerá que o tratamento a que o submetem sirva para agravar a sua situação.

Estamos todos unidos no cumprimento da nossa tarefa. Não temos pequenas ou grandes tarefas, porque eu sou servente e aquele é enfermeiro ou médico. A nossa tarefa é essencial, embora as nossas responsabilidades sejam diferentes.

O sentirmos qualquer complexo de inferioridade no cumprimento da nossa tarefa, o preocuparmo-nos em procurar grandes e pequenas tarefas, significa falta de consciência de classe.

Somos de origem trabalhadora, seguimos as massas laboriosas, o Povo trabalhador. A nossa tarefa é grandiosa. Qualquer outra atitude só reflecte elitismo, busca de privilégios, perca do sentido de classe, aquisição de ideias burguesas.

Exige-se pois que, assim como nos desinfectamos ao entrar na sala de operações, nos purifiquemos das ideias erradas e complexas que vêm contaminar o nosso hospital. Assim como nos revestimos de máscaras e batas, devemos estar constantemente armados da nossa unidade e consciência de classe, para revolucionariamente servirmos as massas.

Neste contexto, o nosso hospital será realmente um centro de propaganda revolucionária e organizacional, ele será um exemplo concreto da justeza da nossa linha, uma verdadeira zona da FRELIMO.

Assim o hospital cumpre as nossas tarefas, ele combate a doença, ele forma o homem, ele produz.

A produção não pode estar separada da nossa actividade sanitária.

O hospital necessita de comida. Muitas vezes as populações, a FRELIMO, não estão em condições de abastecer o hospital, porque estamos em guerra, porque o inimigo nos ataca, porque a produção é um dos alvos do inimigo.

Exige-se pois que o hospital se esforce em apoiar-se nas suas próprias forças, que seja tanto quanto possível auto-suficiente na alimentação.

Por outro lado não podemos esquecer a Importância duma alimentação adequada para o tratamento correcto das doenças. Os pacientes necessitam de se alimentar convenientemente, para combaterem o mal.

É na fruta, nas saladas, nas verduras, na carne, nos ovos, no peixe, no leite, que se encontram as vitaminas, os sais, os minerais, as proteínas que revigoram o organismo, que reforçam para o combate contra a doença.

O hospital, sendo um centro de produção, também é centro de formação para os doentes.

Não podemos desprezar nenhuma oportunidade para elevar a consciência política e o nível de conhecimentos do nosso Povo. No nosso hospital não existe inactividade, não existe ociosidade. Finalmente, a experiência tem demonstrado que o engajar os doentes e em particular os convalescentes em actividades levanta-lhes o moral e é um poderoso auxiliar da cura.

Com isso queremos propor que os nossos hospitais procurem continuamente alargar as suas actividades, aliar-se ao Comissariado Político e ao Departamento de Educação e Cultura.

Devemos procurar alfabetizar os doentes e convalescentes, ensinar-lhes português, fazer-lhes conhecer, compreender e assumir a riqueza cultural do nosso País inteiro.

Devemos organizar para os doentes pequenos cursos de higiene, a fim de lhes fazer adquirir bons hábitos higiénicos, que impedirão muitas doenças.

Procuremos tornar agentes activos de propaganda higiénica todos aqueles que se vêm tratar nos nossos hospitais. É de considerar também que em muitas regiões do nosso País existem péssimos hábitos alimentares. Ë importante que as populações adquiram novos hábitos alimentares; para isso, nos hospitais devemos organizar pequenos cursos para doentes, em particular para as mães, explicando-lhes o valor nutritivo dos diferentes alimentos e mesmo como prepará-los.

Não podemos nunca abandonar o trabalho político, isso é sempre a nossa tarefa prioritária,

A estadia do doente no hospital deve servir para elevar a sua consciência de unidade nacional, a sua determinação de combater, o seu ódio ao inimigo explorador.

Compreende-se então porque definimos um hospital da FRELIMO como um destacamento operacional nosso, uma linha da frente.

Assim, o nosso enfermeiro, o nosso pessoal médico, além das suas tarefas específicas, são instrutores da nossa vida, professores, comissários políticos. A acção do nosso pessoal médico revolucionário não só cura do corpo, como também liberta e forma o espírito.

O inimigo compreende isso muito bem, tão bem o compreende que define o nosso hospital como um alvo dos seus bombardeamentos, um alvo para as suas tropas criminosas.

2. O Hospital, Linha da Frente

Ao iniciarmos este curso abrimos uma nova frente de luta. Ao iniciarmos este curso criamos condições para abrirmos novos hospitais, novos centros em que se concretiza a linha política da FRELIMO. Novos hospitais são novas linhas da Frente.

Ao abrirmos uma frente, podemos também dizer que a nossa luta cresceu; por isso ampliámos o alvo para o inimigo, damos-lhe mais um alvo para as suas armas.

Em 1968, como dissemos já, fomos obrigados a recuar, fomos forçados a interromper o curso. Perdemos uma batalha.

Hoje desencadeamos de novo a batalha, fortes das experiências que adquirimos através dos sucessos e fracassos.

Ao desencadearmos uma batalha é fundamental, para obtermos sucessos, conhecermos o inimigo, definirmos os nossos métodos e saber quais são as nossas forças.

No combate em que nos encontramos, fazemos face a três inimigos:

Os colonialistas portugueses são nossos inimigos directos. Atacam-nos abertamente, fisicamente. Eles vêm com os seus aviões bombardear os nossos hospitais, eles assaltam-nos com os seus helicópteros, eles lançam as suas tropas para assassinar os doentes, destruir o material, impedir que os medicamentos cheguem aos seus destinos. O colonialismo é o inimigo mais fácil de identificar porque é aberto, ataca-nos com uma arma.

Mais perigosos, porque são mais facilmente acreditados que os colonialistas, são os inimigos indirectos, os aliados de Portugal. Aqueles que nos combatem camuflados, atrás das tropas portuguesas.

Estes combater-nos-ão com artigos nos jornais, com boatos, com calúnias. Hoje dirão que vendemos medicamentos, amanhã irão contar que nos nossos hospitais gente de tal e tal região é desprezada. Uma vez escreverão que não somos competentes, outra, que o Povo despreza o hospital.

E a campanha continuará, para nos dividir, para nos encher de complexos, para subtilmente nos forçar a rendermo-nos.

Cada erro nosso, cada falta que cometermos, será utilizada por eles como prova irrefutável da veracidade de tudo o que dizem.

Mas sobretudo, para nos vencer, para mais uma vez privar o nosso Povo da assistência sanitária, o inimigo, directo ou indirecto, conta com o trabalho dos seus destacamentos operacionais no nosso seio.

A força decisiva que nos pode derrotar é o inimigo camuflado no nosso seio, aquele que connosco levanta a bandeira da FRELIMO para mais facilmente destruir a FRELIMO.

Esta é a nossa experiência, esta foi a razão fundamental da nossa derrota em 1968, a causa da interrupção dos cursos.

Tendo infiltrado os seus espiões, os colonialistas mobilizaram o tribalismo, o racismo, o egoísmo, a ambição, o elitismo, a ignorância, a superstição, o fanatismo religioso, a corrupção.

Cada uma destas coisas é um destacamento inimigo no nosso seio.

O tribalismo levou os alunos à desunião, a transformarem-se em contra-revolucionários e combaterem contra a Direcção da FRELIMO, contra a FRELIMO e contra o Povo. Cada um tomava-se como representante dos interesses desta ou daquela região, procurando meticulosamente verificar se um outro grupo linguístico tinha no curso mais alunos do que o seu, semeando a desconfiança e desunião entre nós,

O racismo levou à desunião entre alunos e professores. Dizendo-se muito revolucionários, alunos que ainda não tinham dado nenhumas provas de verdadeiro engajamento revolucionário combatiam professores que tinham já dado muitas provas de dedicação ã causa popular, só porque os professores eram brancos.

Combinando o egoísmo e a ambição, os alunos recusavam um programa de estudo concebido em função de necessidades imediatas e urgentes da luta, para exigirem programas que lhes dariam muitos diplomas e privilégios para explorar o Povo no futuro. Queriam constituir-se em elite de parasitas, ganhando fortunas e posições sociais, graças à doença e sofrimento do Povo.

A ignorância, a superstição, o fanatismo religioso, levou os alunos a confiarem em forças sobrenaturais inexistentes, em amuletos e pedras, desprezando a ciência, recusando os ensinamentos dos professores que eram fundados nas leis da natureza, na realidade objectiva.

Dentro deste clima fomentou-se a Indisciplina, a anarquia, a corrupção, o caos.

A batalha estava perdida. O inimigo indirecto, nos seus jornais, publicava artigos e comentários sobre «a revolta dos estudantes revolucionários contra a Direcção da FRELIMO».

Os colonialistas felicitavam-se e intensificavam as campanhas para reforçar o inimigo no nosso seio: as ideias velhas, os hábitos da sociedade antiga.

Durante muito tempo o peso de tradições ultrapassadas e reaccionárias, as ideias colonialistas e capitalistas, esmagaram o nosso Povo. Muitos alunos, quadros, pessoal médico, responsáveis, ainda carregam a carga impura.

Há os que imaginam Moçambique reduzido à escala minúscula de um grupo linguístico ou região. Um órgão, por importante que seja, não vive fora do corpo. Uma perna, um braço, apodrecem se deixam de ser irrigados pelo sangue do organismo, se são separados da unidade com o corpo.

Pela unidade que criamos entre nós, pela maneira revolucionária como o hospital serve o Povo, demonstramos concretamente às massas a necessidade de fazer viver a Nação e de fazer morrer o tribalismo. Assim como liquidamos os germes e bactérias nocivas para proteger os doentes, o hospital deve ser um exemplo vivo de liquidação do micróbio contagioso do tribalismo, para fazer viver a Pátria.

Outros procuram num sobrenatural, nascido da ignorância, a resposta para os problemas concretos. Ainda não sabem ver que a resolução de todos os problemas depende unicamente da combinação da nossa inteligência e energia com as leis objectivas que regem os fenómenos naturais e sociais.

Procuram respostas no céu, quando o segredo se encontra na terra.

É porque o Povo vê operar a ciência, porque o Povo constata os resultados da ciência, porque continuamente explicamos aos doentes e ao Povo as origens e os meios de combaterem a doença, que o hospital pode tornar-se numa base sólida de luta contra o obscurantismo.

E na medida em que acreditamos no Homem, que destruiremos a superstição no seio do Povo. Na medida em que o nosso trabalho demonstrar o valor da ciência, faremos recuar o obscurantismo sobrenatural.

Há quem se considere insubstituível, uma sumidade. Cheio de arrogância recusa aprender dos outros, monopoliza conhecimentos, alegra-se com o insucesso dos camaradas. Agindo assim, esses procuram criar condições para se instalarem como privilegiados, explorando as massas, fazendo reinar as suas pequenas e miseráveis tiranias. Para consolidarem a sua posição aceitam e fomentam boatos e intrigas, egoistamente fechados nos seus interesses mesquinhos.

O individualismo, o egoísmo, a ambição, a arrogância são micróbios transmissores da divisão, são Incubadoras das ideias velhas da sociedade exploradora.

Porque viemos de longe, porque à luta chegam todos os homens, por vezes entre nós encontram-se aqueles que viviam habituados ao banditismo. Estes elementos frequentemente introduzem os seus vícios na nova sociedade.

Uns roubarão medicamentos, lençóis, comida. Outros, abusando da confiança dos doentes, utilizarão os segredos delicados que conhecem para satisfazer os seus gostos de intriga e ambição.

Haverá também os que, utilizando-se da missão, vão procurar corromper a juventude, contaminando com os seus instintos baixos as novas gerações.

Existe, pois, uma frente de combate contra estes comportamentos.

Um enfermeiro que num hospital andasse a destruir os frascos de plasma, seria considerado um criminoso. Um enfermeiro que envenenasse doentes seria considerado um criminoso. A nossa moral revolucionária, os nossos princípios, são o nosso plasma, a sociedade nova que construímos é a nossa vida. A nossa acção é contra aquele que quer destruir o nosso plasma, o nosso sangue, aquele que quer roubar a nossa vida.

3. Os Nossos Métodos de Combate

É o nosso pessoal médico quem constitui a nossa força operacional na linha da frente sanitária. Eles constituem forças de vanguarda da nossa Organização, da nossa Revolução.

O pessoal médico representa no hospital a nossa linha política de servir as massas.

Entre o doente e o enfermeiro ou médico que o trata estabelece-se um laço forte de confiança e de esperança. Aliviar a dor, curar a enfermidade, está associado para o doente à acção do enfermeiro, do médico.

Esta confiança do doente, da sua família, dos seus amigos, constitui um capital político extraordinário, que devemos utilizar para fazer progredir a Revolução.

Na base da confiança que se estabelece devemos orientar os pacientes na via da unidade nacional, no reforço da consciência de classe, na aquisição de conhecimentos higiénicos, científicos e culturais. Em resumo, que ao tratamento do corpo corresponda um tratamento idêntico do espírito, para, fazer triunfar a mentalidade nova.

É necessário uma vocação, um entusiasmo natural por essa actividade. A vocação esta intimamente ligada e é orientada pela consciência e as necessidades da luta.

Enquanto na zona capitalista, rapidamente, a vocação combinada com o desejo de lucro e de privilégios é corrompida e asfixiada, na nossa zona a vocação, porque é combinada com uma alta consciência política, torna-se um estimulante poderoso do nosso trabalho.

Na formação do pessoal médico, porque precisamente consideramos o homem como factor decisivo, a prioridade deve ser dada à formação política, à consciência política.

Em sete anos de luta a experiência provou amplamente que o nosso pessoal médico, apesar do seu baixo nível técnico e falta de medicamentos, foi capaz de fazer muito mais pelo Povo do que os serviços de saúde colonialistas que dispõem de todas as técnicas, de todos os meios. Com dois médicos fizemos mais trabalho do que os serviços de saúde colonialistas, que dispõem de muitas dezenas, senão mesmo centenas de médicos. Este resultado testemunha a importância vital da linha política.

A formação política é sobretudo cultivar continuamente a consciência política nos alunos, no pessoal médico, no pessoal hospitalar. Desenvolver o espírito anti-colonialista e anti-imperialista, conhecer a opressão, enraizar a consciência e o sentido de classe.

O pessoal hospitalar está em contacto permanente com os sofrimentos do homem, causados pela exploração, causados pela ignorância. Esta ligação com o sofrimento humano deve servir para aguçar a consciência política, para aumentar os conhecimentos do pessoal médico, para reforçar a sua determinação em combater o inimigo, em combater a doença, em combater a ignorância.

A consciência política superior deve ser a base da consciência profissional do pessoal médico.

Um enfermeiro não tem horas de trabalho e horas de repouso. Se o seu trabalho normalmente começa a uma hora fixa — é fundamental ser pontual — não tem hora fixa para terminar.

A doença, o sofrimento, a guerra, não se subordinam às decisões burocráticas.

Um hospital funciona 24 horas por dia, sete dias por semana. Onde está o doente, onde está o sofrimento está o pessoal médico, sem se importar da hora. Só assim se serve o Povo.

Não se faz guerra com horas de repouso fixas, não se combate a doença com horas de repouso fixas para o pessoal médico.

Para que os alunos de enfermagem se habituem a este ritmo exigente, é necessário que o seu programa diário comporte um mínimo de dez horas de actividade.

No exercício da sua missão, o pessoal médico é forçado a conviver com todas as fraquezas e misérias humanas. Os doentes não podem, mesmo que queiram, guardar segredo sobre os seus males e origens. A análise científica é reveladora.

E pois fundamental que o pessoal médico tenha a noção do segredo profissional. O seu conhecimento das fraquezas e misérias não pode ser motivo de conversas, ou ainda pior, instrumento de ambição ou vingança.

O doente é sagrado para o hospital. Um enfermeiro, um servente, um médico, não conhecem vingança no exercício da sua missão. Para o pessoal médico não existem raças, cores, crenças ou mesmo nacionalidades. Para eles só existem doentes. Um soldado português ferido ou doente, no nosso hospital, é tratado como qualquer de nós. Fazemos isso porque possuímos uma moral revolucionária, uma moral superior, uma moral radicalmente oposta à baixeza do fascismo e do colonialismo.

Já dissemos que o hospital materializa a nossa linha política, que os enfermeiros devem representar duma maneira viva a nossa ideologia. Por isso as nossas palavras, o nosso comportamento, devem rigorosamente concordar com a nossa linha, É isto o fundamental. Se apesar das nossas deficiências técnicas e de material obtivemos no campo da saúde resultados superiores aos dos colonialistas, isso deve-se unicamente à justeza e superioridade da linha.

Fazermos o combate interno para integrar as nossas palavras e comportamento na nossa linha, é criar condições de sucesso para o nosso trabalho.

Que os nossos hospitais sejam para as massas uma fonte diária de mil exemplos bons da eficácia dos nossos princípios.

A técnica encontra-se em segundo lugar. Ela é importante. Só o conhecimento exacto das leis da natureza, a sua mobilização para os nossos fins, é que permite a destruição da doença.

Não pode haver limite para o estudo. Ninguém sabe tudo, ou mesmo o suficiente. Enquanto houver doenças, enquanto houver gente que morre, temos que estudar, temos que aprender.

Para servirmos melhor devemos estudar muito.

Devemos estudar tudo. Evidentemente que devemos primeiramente estudar as ciências médicas, devemos adquirir os conhecimentos teóricos que sintetizam e racionalizam os ensinamentos da prática. Mas devemos também estudar e aprender da prática, devemos estudar e aprender do Povo.

É necessário um estudo da sociedade. Conhecer os usos e costumes, a cultura e as particularidades de cada região, integrando-os continuamente no contexto nacional.

É necessário estudar os homens, conhecê-los. A doença não existe em abstracto, existe num homem concreto, com a sua psicologia própria, a sua energia específica. Conhecer o homem é o caminho para mobilizar as suas energias contra a doença que o ataca, é também o caminho que nos leva a agir e transformar revolucionariamente o seu espírito.

É conhecendo que compreendemos e só depois de compreender é que podemos agir.

Mas sobretudo importa estudar constantemente a política da nossa Organização, porque só ela nos dá a visão de conjunto e nos define as perspectivas que garantem a orientação segura do nosso trabalho.

O objectivo do nosso estudo não é o de nos fornecer os meios para melhor explorar o Povo e adquirirmos situações privilegiadas, como na zona capitalista.

Não nos preocupamos em obter uma nota alta para um, inculcar muita sabedoria num outro.

Esse um, por muito sábio que seja, será incapaz de fazer funcionar todos os hospitais que necessitamos, de assistir todos os que se encontram doentes.

O nosso estudo é colectivo, o nosso progresso é em vagas, em que todos avançamos juntos. Por isso é necessário entre os alunos, entre o pessoal médico, um espírito de ajuda mútua, sentir o atraso de um como um recuo para a Organização, um atraso no serviço do Povo.

Este espírito colectivo deve dominar toda a nossa vida. Sem a unidade nacional somos vencidos pelos colonialistas. A nossa classe camponesa e operária sem unidade é dominada pelos exploradores. O nosso trabalho sanitário sem unidade resulta em fracasso.

O espírito colectivo obriga-nos a enfrentar cada problema, cada situação, cada deficiência, como nossa. Não estamos indiferentes a nenhum problema. O poder pertence-nos, por isso não podemos ficar de braços cruzados diante duma situação, por pequena que seja, que trave o nosso progresso. Uma pequena ferida desprezível pode abrir a porta ao tétano que destrói o organismo inteiro. No corpo, a ferida no dedo mais pequeno do pé, se não é tratada, pode destruir a vida. Porque o problema não nos afecta pessoalmente não é menos importante, porque esse problema faz parte do organismo em que estamos integrados.

Os nossos hospitais existem porque houve sacrifício. Os nossos hospitais representam um lago de sangue.

Os instrumentos cirúrgicos, os medicamentos, o material, resultam dos sacrifícios do Povo, dos sacrifícios dos nossos amigos.

Em muitos países, porque o sangue corre em Moçambique, criou-se uma corrente poderosa de solidariedade, para nos ajudar. As pessoas voluntariamente aceitam privações para nos apoiar.

Ter um alto sentido de economia, lutar contra o desperdício, é respeitar o nosso sangue, é respeitar os sacrifícios dos nossos amigos, é demonstrar espírito colectivo.

Frequentemente nos nossos hospitais morrem camaradas por falta de medicamentos. Muitas vezes, para tratar um ferido, nem sequer temos água oxigenada.

Poupar medicamentos, poupar material, é salvarmos vidas que esse medicamento, que esse material irão curar.

Este curso inicia-se no Hospital Américo Boavida, é uma coincidência simbólica.

O camarada Boavida, médico angolano, sacrificou-se pelo Povo. Podia ter sido um médico explorador, mas foi um médico que morreu servindo o Povo, combatendo a doença e a exploração.

Que também sirva de exemplo e encorajamento para nós o espírito internacionalista destes camaradas estrangeiros, que por solidariedade revolucionária abandonaram as suas pátrias, abandonaram o conforto construído pelo seu trabalho, para trabalharem connosco.

Eles vieram porque há luta em Moçambique. Eles vieram (porque os trabalhadores da Bulgária e da Itália combatem como nós a exploração, consideram-nos como uma das frentes da sua luta.

A nossa responsabilidade é grande, o nosso combate não é só para libertar o nosso Povo, ele é também para apoiar os povos irmãos, a classe trabalhadora no mundo inteiro.

Na nossa missão, unidos sob a direcção da FRELJMO e guiados pela nossa ideologia, apliquemos a palavra de ordem de servir o Povo na nossa tarefa sanitária.

Agindo assim, cumpriremos o nosso dever nacional e internacional.

A Luta Continua
Independência ou Morte
Venceremos!

Novembro de 1971
Samora Machel
Presidente.


Inclusão 05/10/2011