MIA > Biblioteca > Lénine > Novidades
Transcrição autorizada |
Escrito: entre 13 e 26 de Abril de 1918.
Primeira Edição: a 28 de Abril de 1918
no n° 83 do Pravda e no suplemento ao n° 85 do Izvéstia VTsIK.
Fonte: Obras Escolhidas em Três Tomos, 1978, t2, pp 557-587, Edições Avante! — Lisboa, Edições Progresso — Moscovo.
Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine, 5.ª ed. em russo, t.36 pp 165-208.
Transcrição: Partido Comunista Português
Enviado: Diego Grossi Pacheco
HTML: Fernando A. S. Araújo, março 2009.
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Edições
"Avante!" — Edições Progresso Lisboa — Moscovo, 1977.
Graças à paz conseguida — apesar de toda a sua dureza e de toda a sua precaridade —, a República Soviética da Rússia obtém durante certo tempo a possibilidade de concentrar as suas forças no aspecto mais importante e difícil da revolução socialista, a saber: na tarefa de organização.
Esta tarefa foi colocada com clareza e precisão perante todas as massas trabalhadoras e oprimidas no 4.° parágrafo (parte 4) da resolução aprovada a 15 de Março de 1918 no Congresso Extraordinário dos Sovietes em Moscovo, no mesmo parágrafo (ou na mesma parte) da resolução em que se fala de autodisciplina dos trabalhadores e da luta implacável contra o caos e a desorganização(1*).
A precaridade da paz conseguida pela República Soviética da Rússia não é determinada, naturalmente, pelo facto de esta pensar agora reiniciar as acções militares; excepto os contra-revolucionários burgueses e os seus seguidores (os mencheviques e outros), nenhum político que esteja no seu perfeito juízo pensa nisso. A precaridade da paz é determinada pelo facto de que nos Estados imperialistas que têm fronteiras com a Rússia a Oeste e a Leste e que possuem uma enorme força militar, pode triunfar de um momento para o outro o partido militar, tentado pela momentânea fraqueza da Rússia e impelido pelos capitalistas, que odeiam o socialismo e estão ávidos de rapinas.
Em tal situação, a garantia, real e não no papel, da paz, é para nós exclusivamente a dissensão entre as potências imperialistas, que alcançaram o ponto culminante e que se manifestam, por um lado, no reinicio da matança imperialista dos povos do Ocidente e, por outro lado, na competição imperialista extremamente aguda entre o Japão e a América pelo domínio do Grande Oceano e das suas costas.
É claro que, defendida por uma protecção tão insegura, a nossa República Socialista Soviética se encontra numa situação internacional absolutamente crítica e extraordinariamente precária. É necessária uma extrema tensão de todas as nossas forças para aproveitar a trégua que nos foi concedida por uma confluência de circunstâncias, para curar as graves feridas que a guerra trouxe a todo o organismo social da Rússia e para elevar o nível económico do país, sem o que nem sequer se pode falar de uma elevação minimamente séria da capacidade defensiva.
Também é claro que só prestaremos um sério auxílio à revolução socialista no Ocidente, que se atrasou em virtude de uma série de causas, na medida em que soubermos resolver a tarefa de organização que se nos coloca.
A condição fundamental para resolver com êxito a tarefa de organização, que temos perante nós em primeiro lugar, consiste na plena assimilação pelos dirigentes políticos do povo, isto é, pelos membros do Partido Comunista da Rússia (bolchevique), e, depois, por todos os representantes conscientes das massas trabalhadoras, da diferença radical entre as revoluções burguesas anteriores e a actual revolução socialista, no aspecto que estamos a analisar.
Nas revoluções burguesas, a tarefa principal das massas trabalhadoras consistia na realização de um trabalho negativo ou destruidor de aniquilamento do feudalismo, da monarquia e do medievalismo. O trabalho positivo ou construtivo de organização da nova sociedade era realizado pela minoria possuidora, burguesa, da população. E, apesar da resistência dos operários e camponeses pobres, realizava esta tarefa com relativa facilidade, não só porque a resistência das massas exploradas pelo capital era então, devido à sua dispersão e falta de desenvolvimento, extremamente fraca, mas também porque a principal força organizadora da sociedade capitalista, construída de uma maneira anárquica, é o mercado nacional e internacional, que cresce espontaneamente em amplitude e profundidade.
Pelo contrário, a tarefa principal do proletariado e do campesinato pobre por ele guiado é, em toda a revolução socialista — e consequentemente também na revolução socialista começada por nós na Rússia a 25 de Outubro de 1917 — o trabalho positivo ou construtivo de organização de uma rede extraordinariamente complexa e delicada de novas relações de organização que abarquem a produção e a distribuição planificada dos produtos necessários à existência de dezenas de milhões de pessoas. Tal revolução só pode ser realizada com êxito com a actividade criadora histórica independente da maioria da população e, em primeiro lugar, da maioria dos trabalhadores. Só no caso de o proletariado e o campesinato pobre encontrarem em si consciência, firmeza ideológica, abnegação e perseverança suficientes, a vitória da revolução socialista estará assegurada. Ao criar um novo tipo de Estado, o Estado Soviético, que abre às massas trabalhadoras e oprimidas a possibilidade de tomar uma parte muito activa na construção independente da nova sociedade, resolvemos apenas uma pequena parte de uma tarefa difícil. A dificuldade principal reside no campo económico: realizar um registo e um controlo rigorosíssimo e geral da produção e distribuição dos produtos, elevar a produtividade do trabalho, socializar de facto a produção.
O desenvolvimento do partido bolchevique, que é hoje o partido governamental na Rússia, mostra de uma maneira particularmente evidente em que consiste a viragem histórica que atravessamos e que constitui a peculiaridade do momento político actual e exige uma nova orientação do Poder Soviético, isto é, uma nova colocação das novas tarefas.
A primeira tarefa de todo o partido do futuro é convencer a maioria do povo da justeza do seu programa e da sua táctica. Esta tarefa estava em primeiro plano tanto sob o tsarismo como no período de conciliação dos Tchernov e dos Tseretéli com os Kérenski e os Kichkine. Agora, esta tarefa, que, naturalmente, está ainda longe de estar terminada (e que nunca pode ser completamente esgotada), está resolvida no fundamental, pois, como o demonstrou irrefutavelmente o último congresso dos Sovietes em Moscovo, a maioria dos operários e camponeses da Rússia está de modo evidente ao lado dos bolcheviques.
A segunda tarefa do nosso partido era a conquista do poder político e o esmagamento da resistência dos exploradores. Também esta tarefa de modo nenhum está completamente esgotada, e não pode ser ignorada, pois os monárquicos e os democratas-constitucionalistas por um lado, e os seus seguidores e lacaios, os mencheviques e socialistas-revolucionários de direita, por outro, continuam as suas tentativas para se unirem para derrubar o Poder Soviético. Mas, no fundamental, a tarefa de esmagar a resistência dos exploradores já foi resolvida no período de 25 de Outubro de 1917 até (aproximadamente) Fevereiro de 1918 ou até à rendição de Bogaévski.
Apresenta-se agora, como tarefa imediata e que constitui a peculiaridade do momento que atravessamos, a terceira tarefa — organizar a administração da Rússia. Naturalmente que esta tarefa foi colocada e resolvida por nós já no dia seguinte ao 25 de Outubro de 1917, mas até agora, enquanto a resistência dos exploradores tomava ainda a forma de guerra civil aberta, até agora a tarefa da administração não pôde tornar-se a tarefa principal, central.
Tornou-se agora. Nós, o partido bolchevique, convencemos a Rússia. Conquistámos a Rússia — dos ricos para os pobres, dos exploradores para os trabalhadores. Agora devemos administrar a Rússia. E toda a peculiaridade do momento que vivemos, toda a dificuldade consiste em compreender as particularidades da transição da tarefa principal de convencer o povo e esmagar militarmente os exploradores para a tarefa principal de administrar.
Pela primeira vez na história mundial, um partido socialista conseguiu concluir, nos seus traços principais, a obra da conquista do poder e de esmagamento dos exploradores, conseguiu abordar a tarefa da administração. É necessário que nos mostremos dignos cumpridores desta dificílima (e muito grata) tarefa da revolução socialista. E necessário reflectir que para administrar com êxito é preciso, além de saber convencer, além de saber vencer na guerra civil, saber organizar praticamente. Esta tarefa é a mais difícil, pois trata-se de organizar de um modo novo as bases mais profundas, as económicas, da vida de dezenas e dezenas de milhões de pessoas. E esta é a tarefa mais grata, pois unicamente depois de a resolver (nos seus traços principais e fundamentais) se poderá dizer que a Rússia se tornou não só uma república soviética, mas também socialista.
A situação objectiva acima descrita, criada por uma paz extremamente dura e precária, por uma dolorosa ruína, pelo desemprego e pela fome que nos deixou em herança a guerra e o domínio da burguesia (na pessoa de Kérenski e dos mencheviques e socialistas-revolucionários de direita que o apoiavam) — tudo isto originou inevitavelmente um extremo cansaço e mesmo o esgotamento das forças da vasta massa dos trabalhadores. Ela exige insistentemente — e não pode deixar de exigir — um certo repouso. Na ordem do dia coloca-se o restabelecimento das forças produtivas, arruinadas pela guerra e pela gestão da burguesia; a cura das feridas provocadas pela guerra, pela derrota na guerra, pela especulação e pelas tentativas da burguesia para restabelecer o derrubado poder dos exploradores; o ascenso económico do país; a protecção firme de uma ordem elementar. Pode parecer um paradoxo, mas, na realidade, em virtude das condições objectivas indicadas, é absolutamente indubitável que neste momento o Poder Soviético só pode consolidar a passagem da Rússia ao socialismo no caso de resolver praticamente, apesar da reacção da burguesia, dos mencheviques e socialistas-revolucionários de direita, precisamente estas tarefas muito elementares e elementaríssimas para a manutenção da vida social. O cumprimento prático destas tarefas elementaríssimas e a superação das dificuldades de organização dos primeiros passos para o socialismo são agora, em virtude das particularidades concretas da situação actual e existindo o Poder Soviético com as suas leis sobre a socialização da terra, o controlo operário, etc, duas faces de uma mesma medalha.
Faz cuidadosa e honestamente as contas do dinheiro, gere de modo económico, não sejas preguiçoso, não roubes, observa a mais rigorosa disciplina no trabalho — estas são precisamente as palavras de ordem que, justamente ridicularizadas pelos proletários revolucionários quando a burguesia encobria com discursos semelhantes o seu domínio como classe dos exploradores, se tornam agora, depois do derrubamento da burguesia, as palavras de ordem principais e imediatas do momento. E a realização prática destas palavras de ordem pela massa dos trabalhadores constitui, por um lado, a única condição para salvar o país, martirizado quase até à morte pela guerra imperialista e pelos abutres imperialistas (com Kérenski à cabeça) e, por outro lado, a realização prática destas palavras de ordem pelo Poder Soviético, com os seus métodos, na base das suas leis, é necessária e suficiente para a vitória definitiva do socialismo. Isto é o que não sabem compreender os que afastam com desdém a colocação em primeiro plano de palavras de ordem tão «gastas» e «triviais». Num país de pequenos camponeses, que apenas há um ano derrubou o tsarismo e há menos de meio ano se libertou dos Kérenski, ficou, naturalmente, bastante anarquismo espontâneo, aumentado pelo asselvajamento e pela barbárie, que acompanham toda a guerra longa e reaccionária, surgiu muito desespero e exasperação sem objecto; se acrescentarmos a isto a política provocatória dos lacaios da burguesia (mencheviques, socialistas-revolucionários de direita e outros), tornar-se-á plenamente compreensível que esforços prolongados e tenazes dos melhores e mais conscientes operários e camponeses são necessários para uma viragem completa do estado de espírito das massas e a sua passagem a um trabalho ordenado, consequente e disciplinado. Só esta passagem realizada pela massa pobre (os proletários e os semiproletários) é capaz de concluir a vitória sobre a burguesia e, particularmente, sobre a burguesia camponesa, a mais obstinada e numerosa.
A burguesia foi vencida no nosso país, mas ainda não foi arrancada pela raiz, não foi aniquilada nem sequer totalmente quebrada. Por isso, na ordem do dia coloca-se uma forma nova e superior de luta contra a burguesia, a passagem da tarefa muito simples de prosseguir a expropriação dos capitalistas para a tarefa muito mais complexa e difícil de criar condições nas quais não possa nem existir nem surgir de novo a burguesia. É claro que esta é uma tarefa incomparavelmente mais elevada e enquanto não estiver resolvida não haverá ainda socialismo.
Se tomarmos a escala das revoluções oeste-europeias, estamos agora aproximadamente no nível alcançado em 1793 e 1871. Temos o direito legítimo de nos orgulharmos por nos termos elevado a este nível e, num aspecto, chegámos indubitavelmente um pouco mais longe, a saber: decretámos e implantámos em toda a Rússia um tipo superior de Estado, o Poder Soviético. Mas não podemos em caso algum contentarmo-nos com o que foi conseguido, pois apenas começámos a transição para o socialismo, mas ainda não realizámos o que é decisivo neste aspecto.
O decisivo é a organização do registo e do controlo rigorosíssimos e a nível nacional da produção e distribuição dos produtos. Entretanto, ainda não alcançámos o registo e o controlo nas empresas, nos diversos ramos e sectores da economia que arrancámos à burguesia, e sem isto nem sequer se pode falar da segunda condição material da implantação do socialismo, igualmente essencial, a saber: a elevação da produtividade do trabalho à escala nacional.
Por isso, não seria possível definir a tarefa do momento presente com uma simples fórmula: continuar a ofensiva contra o capital. Apesar de ser indubitável que não desferimos o golpe de misericórdia no capital e apesar de ser indiscutivelmente necessário continuar a ofensiva contra este inimigo dos trabalhadores, tal definição seria imprecisa, não seria concreta, nela não se teria em conta a peculiaridade do momento presente, quando no interesse de êxito da ofensiva ulterior se tem de «interromper» agora a ofensiva.
Isto pode explicar-se comparando a nossa situação na guerra contra o capital com a situação de um exército vitorioso que tomou, digamos, metade ou dois terços do território inimigo e é obrigado a interromper a ofensiva para reagrupar as forças, aumentar as reservas de meios de combate, reparar e reforçar as linhas de comunicação, construir novos depósitos, trazer novas reservas, etc. A interrupção da ofensiva do exército vitorioso em semelhantes condições é necessária precisamente no interesse da conquista do território restante ao inimigo, isto é, no interesse da vitória completa. Quem não tenha compreendido que tal é, precisamente, o carácter da «interrupção» da ofensiva contra o capital, imposta pela situação objectiva do momento actual, nada compreendeu do momento político que vivemos.
Claro está que só se pode falar de uma «interrupção» entre aspas da ofensiva contra o capital, isto é, só metaforicamente. Numa guerra vulgar pode dar-se uma ordem geral sobre a interrupção da ofensiva, pode-se, de facto, deter o avanço. Na guerra contra o capital não é possível deter o avanço e nem se deve falar de que renunciemos a continuar a expropriação do capital. Trata-se de modificar o centro de gravidade do nosso trabalho económico e político. Até agora estavam em primeiro plano as medidas de imediata expropriação dos expropriadores. Agora coloca-se em primeiro plano a organização do registo e do controlo nas empresas em que os capitalistas já foram expropriados e em todas as restantes empresas.
Se agora quiséssemos continuar a expropriar o capital com o ritmo anterior, sofreríamos provavelmente uma derrota, pois o nosso trabalho de organização do registo e do controlo proletários atrasou-se claramente, de modo evidente para toda a pessoa que pense, em relação ao trabalho de directa «expropriação dos expropriadores». Se agora dedicarmos todas as nossas forças ao trabalho de organização do registo e do controlo, poderemos resolver esta tarefa, recuperaremos o tempo perdido, ganharemos toda a nossa «campanha» contra o capital.
Mas o reconhecimento de que se tem de recuperar o tempo perdido acaso não equivale a reconhecer algum erro cometido? De modo nenhum. Tomemos novamente uma comparação de carácter militar. Se podemos derrotar e fazer recuar o inimigo apenas com destacamentos de cavalaria ligeira, devemos fazê-lo. Mas se isto pode fazer-se com êxito apenas até um determinado limite, é plenamente concebível que para além desse limite surgirá a necessidade de utilizar a artilharia pesada. Reconhecendo que agora se tem de recuperar o tempo perdido no transporte da artilharia pesada, não consideramos de modo nenhum um erro o ataque vitorioso da cavalaria.
Os lacaios da burguesia censuraram-nos com frequência o facto de termos conduzido um ataque contra o capital «no estilo da guarda vermelha». Censura absurda, digna justamente dos lacaios do saco de dinheiro. Pois o ataque «no estilo da guarda vermelha» contra o capital foi no seu tempo ditado incondicionalmente pelas circunstâncias: em primeiro lugar, o capital resistia então militarmente, na pessoa de Kérenski e Krasnov, Sávinkov e Gots (ainda hoje Gueguetchkóri resiste desta maneira), Dútov e Bogaévski. Não é possível quebrar uma resistência militar senão por meios militares, e os guardas vermelhos realizaram a obra histórica nobilíssima e grandiosa de libertar os trabalhadores e explorados do jugo dos exploradores.
Em segundo lugar, então não teríamos podido pôr em primeiro plano os métodos de administração em vez dos métodos de repressão, porque a arte da administração não é inata nos homens, mas é dada pela experiência. Então não tínhamos esta experiência, agora temos. Em terceiro lugar, não podíamos ter então à nossa disposição especialistas dos diferentes ramos do conhecimento e da técnica, pois eles combatiam nas fileiras dos Bogaévski ou tinham ainda a possibilidade de opor, por meio da sabotagem, uma resistência passiva sistemática e tenaz. Mas agora quebrámos a sabotagem. O ataque «no estilo da guarda vermelha» contra o capital teve êxito, foi vitorioso, pois vencemos tanto a resistência militar do capital como a resistência do capital por meio da sabotagem.
Quer isto acaso dizer que o ataque «no estilo da guarda vermelha» contra o capital é sempre apropriado, apropriado em todas as circunstâncias, que não temos outros métodos de lutar contra o capital? Seria infantil pensar deste modo. Vencemos por meio da cavalaria ligeira, mas também temos artilharia pesada. Vencemos por meio dos métodos de repressão, mas também saberemos vencer pelos métodos de administração. Temos de saber modificar os métodos de luta contra o inimigo quando se modificam as circunstâncias. Não renunciaremos nem por um instante à repressão «no estilo da guarda vermelha» contra os senhores Sávinkov e Gueguetchkóri, assim como contra quaisquer outros contra-revolucionários latifundiários e burgueses. Mas não somos tão tolos que ponhamos em primeiro lugar os métodos «no estilo da guarda vermelha» num momento em que, no fundamental, a época da necessidade do ataque no estilo da guarda vermelha terminou (e terminou vitoriosamente) e quando bate à porta a época da utilização dos especialistas burgueses pelo poder de Estado proletário para tornar a lavrar o solo de tal modo que nele não possa de modo nenhum crescer qualquer burguesia.
É uma época peculiar, ou melhor, uma fase peculiar do desenvolvimento e, para vencer o capital até ao fim, temos de saber adaptar as formas da nossa luta às condições peculiares desta fase.
Sem a direcção dos especialistas dos diferentes ramos do conhecimento, da técnica, da experiência, é impossível a transição para o socialismo, porque o socialismo exige um movimento de avanço consciente e massivo para uma produtividade do trabalho superior em comparação com o capitalismo e na base do que foi alcançado pelo capitalismo. O socialismo deve realizar este movimento de avanço à sua maneira, com os seus próprios métodos, mais concretamente, por métodos soviéticos. Mas os especialistas, em virtude de todas as condições da vida social que fez deles especialistas, são inevitavelmente burgueses na sua massa. Se, tendo conquistado o poder, o nosso proletariado resolvesse rapidamente a tarefa do registo, do controlo e da organização à escala nacional (isto era irrealizável por causa da guerra e do artaso da Rússia), então, tendo esmagado a sabotagem, por meio do registo e do controlo gerais também submeteríamos por completo os especialistas burgueses. Devido a um considerável «atraso» na introdução do registo e do controlo em geral, apesar de termos conseguido vencer a sabotagem, ainda não criámos as condições que ponham à nossa disposição os especialistas burgueses. A massa dos sabotadores «aceita o emprego», mas os melhores organizadores e os maiores especialistas podem ser utilizados pelo Estado, seja à maneira antiga, à maneira burguesa (isto é, por um salário elevado), seja à maneira nova, à maneira proletária (isto é, por meio da criação das condições do registo e do controlo nacionais a partir de baixo, condições que, por si mesmas, submeteriam e atrairiam inevitavelmente os especialistas).
Tivemos agora de recorrer ao velho método burguês e aceitar um pagamento muito elevado dos «serviços» dos maiores especialistas burgueses. Todos os que conhecem a situação vêem isto, mas nem todos meditam no significado de semelhante medida por parte do Estado proletário. É claro que tal medida é um compromisso, um desvio dos princípios da Comuna de Paris e de qualquer poder proletário, que exigem a redução dos ordenados ao nível do salário do operário médio, que exigem que se lute contra o carreirismo com factos e não com palavras.
Mas isto não é tudo. É claro que tal medida é não apenas uma interrupção — em certo campo e em certo grau — da ofensiva contra o capital (pois o capital não é uma simples soma de dinheiro, mas uma determinada relação social), mas também um passo atrás do nosso poder de Estado socialista, soviético, que desde o primeiro momento proclamou e conduziu uma política de redução dos altos ordenados até ao nível do salário do operário médio[N294].
Naturalmente, os lacaios da burguesia, em especial os de pouca monta como os mencheviques, os novojiznistas e os socialistas-revolucionários de direita, rir-se-ão pelo facto de termos reconhecido que damos um passo atrás. Mas não devemos prestar atenção aos seus risinhos. Devemos estudar as peculiaridades do caminho, novo e difícil ao mais alto grau, para o socialismo, sem encobrir os nossos erros e fraquezas, mas tentando fazer a tempo o que não foi feito. Ocultar às massas que a atracção dos especialistas burgueses, por meio de salários extraordinariamente elevados, é um desvio dos princípios da Comuna, significaria descer ao nível dos politiqueiros burgueses e enganar as massas. Explicar abertamente como e porque demos um passo atrás, discutir publicamente quais os meios que temos para recuperar o tempo perdido, significa educar as massas e aprender com a experiência, aprender juntamente com elas a construir o socialismo. Talvez não haja na história uma única campanha militar vitoriosa na qual o vencedor não tenha cometido alguns erros, não tenha sofrido derrotas parciais, não tenha recuado temporariamente nalguma coisa e nalgum lado. E a «campanha» contra o capitalismo empreendida por nós é um milhão de vezes mais difícil do que a mais difícil campanha militar, e seria tolo e vergonhoso cair no desânimo por causa de uma retirada isolada e parcial.
Abordemos a questão do ponto de vista prático. Admitamos que, para dirigir o trabalho do povo com o objectivo do ascenso económico mais rápido possível do país, a República Soviética da Rússia necessita de 1000 sábios e especialistas de primeira classe dos diversos domínios do conhecimento, da técnica e da experiência prática. Admitamos que temos de pagar a cada uma destas «estrelas de primeira grandeza» — a maioria deles, naturalmente, está tanto mais corrompida pelos costumes burgueses quanto mais gostosamente grita acerca da corrupção dos operários — 25000 rublos por ano. Admitamos que esta soma (25 milhões de rublos) tem de ser duplicada (supondo o pagamento de prémios pelo cumprimento particularmente rápido e eficiente das tarefas técnicas e de organização mais importantes) ou mesmo quadruplicada (supondo o recrutamento de algumas centenas de especialistas estrangeiros mais exigentes). Pergunta-se: poder-se-á considerar excessivo ou acima das forças da República Soviética o gasto de cinquenta ou cem milhões de rublos por ano para a reorganização do trabalho do povo segundo a última palavra da ciência e da técnica? Naturalmente que não. A esmagadora maioria dos operários e camponeses conscientes aprovará este gasto, sabendo pela vida prática que o nosso atraso nos obriga a perder milhares de milhões, que ainda não alcançámos o grau suficiente de organização, registo e controlo para provocar a participação geral e voluntária das «estrelas» da intelectualidade burguesa no nosso trabalho.
Naturalmente, a questão tem também outro aspecto. A influência corruptora das altas remunerações é indiscutível — tanto sobre o Poder Soviético (tanto mais que na rapidez da revolução não pode deixar de aderir a este poder uma certa quantidade de aventureiros e ladrões, que, juntamente com alguns comissários ineptos ou sem escrúpulos, não desgostariam de chegar a «estrelas» da... dilapidação do erário público) como sobre a massa operária. Mas tudo o que há de pensante e honesto entre os operários e os camponeses pobres concordará connosco, reconhecerá que não estamos em condições de nos livrarmos de repente da herança má do capitalismo, que não podemos libertar a República Soviética do «tributo» de 50 ou 100 milhões de rublos (tributo pelo nosso próprio atraso na organização do registo e do controlo nacionais a partir de baixo) senão organizando-nos, reforçando a disciplina entre nós próprios, limpando as nossas fileiras de todos os «conservadores da herança do capitalismo», «os que observam as tradições do capitalismo», isto é, dos mandriões, parasitas e dilapidadores do erário público (agora toda a terra, todas as fábricas, todos os caminhos-de-ferro são o «erário público» da República Soviética). Se os operários e os camponeses pobres conscientes e avançados, ajudados pelas instituições soviéticas, conseguem num ano organizar-se, disciplinar-se, corrigir-se, criar uma poderosa disciplina do trabalho, então num ano poderemos libertar-nos deste «tributo», que poderá mesmo ser reduzido antes ... exactamente na medida dos êxitos da nossa disciplina e organização de trabalho operárias e camponesas. Quanto mais depressa nós, operários e camponeses, aprendermos uma melhor disciplina do trabalho e uma técnica de trabalho mais elevada, aproveitando para isto a ciência dos especialistas burgueses, tanto mais depressa nos livraremos de todo o «tributo» a estes especialistas.
O nosso trabalho de organização, sob a direcção do proletariado, de registo e do controlo nacionais da produção e da distribuição dos produtos está fortemente atrasado em relação ao nosso trabalho de expropriação directa dos expropriadores. Esta tese é fundamental para compreender as peculiaridades do momento presente e as tarefas do Poder Soviético que dai decorrem. O centro de gravidade da luta contra a burguesia desloca-se para a organização deste registo e controlo. Só partindo disto poderemos definir correctamente as tarefas imediatas da política económica e financeira no domínio da nacionalização dos bancos, da monopolização do comércio externo, do controlo do Estado sobre a circulação fiduciária, da introdução de um imposto sobre os bens e os rendimentos aceitável do ponto de vista proletário, da introdução do trabalho obrigatório.
Nestes domínios (e são domínios muito e muito essenciais), estamos extremamente atrasados nas transformações socialistas, e estamos atrasados precisamente porque o registo e o controlo em geral estão insuficientemente organizados. Compreende-se, esta é uma das tarefas mais difíceis e, com a ruína criada pela guerra, só admite uma solução prolongada, mas não se pode esquecer que é aqui exactamente que a burguesia — especialmente as numerosas pequena burguesia e burguesia camponesa — nos dá o combate mais sério, minando o controlo que estamos a estabelecer, minando, por exemplo, o monopólio dos cereais, conquistando posições para a especulação e o comércio especulativo. Estamos ainda longe de ter levado suficientemente à prática aquilo que já decretámos, e a tarefa principal do momento consiste precisamente em concentrar todos os esforços na realização prática, efectiva, das bases das transformações que se converteram já em leis (mas não se converteram ainda em realidade).
Para prosseguir a nacionalização dos bancos e marchar firmemente para a transformação dos bancos em pontos centrais da contabilidade social no socialismo é necessário, em primeiro lugar e acima de tudo, conseguir êxitos reais no aumento do número de sucursais do Banco Nacional, na atracção dos depósitos, na simplificação ao público das operações de depositar e levantar dinheiro, na liquidação das «bichas», na captura e fuzilamento dos concussionários e vigaristas, etc. Em primeiro lugar levar à prática realmente o mais simples, organizar satisfatoriamente o existente — e depois preparar o mais complexo.
Consolidar e pôr em ordem os monopólios de Estado (sobre o trigo, o couro, etc.) já implantados e, com isso, preparar a monopolização do comércio externo pelo Estado; sem tal monopolização, não poderemos «livrar-nos» do capital estrangeiro mediante o pagamento de «tributos»[N295]. E toda a possibilidade da construção socialista depende de se saberemos, no decurso de um determinado período de transição, defender a nossa independência económica interna, pagando certo tributo ao capital estrangeiro.
No que respeita à cobrança dos impostos em geral, e do imposto sobre bens e rendimentos em particular, também estamos extraordinariamente atrasados. A imposição de contribuições à burguesia — medida que, em princípio, é absolutamente aceitável e merece a aprovação do proletariado — mostra que neste aspecto estamos ainda mais perto dos métodos de conquista (da Rússia dos ricos para os pobres) que dos métodos de administração. Mas, para nos tornarmos mais fortes, para nos mantermos mais solidamente nas nossas pernas, devemos passar a estes últimos métodos, devemos substituir a constribuição imposta à burguesia por um imposto sobre os bens e rendimentos, permanente e regularmente cobrado, o qual dará mais ao Estado proletário e que exige de nós precisamente uma maior organização e um melhor funcionamento do registo e do controlo.
O nosso atraso na introdução do trabalho obrigatório mostra mais uma vez que na ordem do dia se coloca precisamente o trabalho preparatório e de organização que, por um lado, deve consolidar definitivamente o conquistado e, por outro lado, é necessário para preparar a operação que «cercará» o capital e o obrigará a «render-se». Deveríamos começar imediatamente a introdução do trabalho obrigatório, mas introduzi-lo de uma maneira muito gradual e circunspecta, verificando cada passo por meio da experiência prática e, naturalmente, introduzindo como primeiro passo o trabalho obrigatório para os ricos. A introdução da caderneta de trabalho e de consumo e orçamento para todos os burgueses, incluídos os do campo, seria um sério passo em frente na direcção do «cerco» total do inimigo e da criação de um registo e de um controlo verdadeiramente nacionais da produção e da distribuição dos produtos.
O Estado que, durante séculos, foi um órgão de opressão e espoliação do povo, deixou-nos em herança um enorme ódio e desconfiança das massas por tudo o que é estatal. Superar isto é uma tarefa muito difícil, unicamente ao alcance do Poder Soviético, mas que também requer dele longo tempo e uma enorme perseverança. Sobre a questão do registo e do controlo — questão fundamental para a revolução socialista no dia a seguir ao derrubamento da burguesia — tal «herança» reflecte-se de uma maneira particularmente aguda. Passará inevitavelmente certo tempo até que as massas, que pela primeira vez se sentiram livres depois do derrubamento dos latifundiários e da burguesia, compreendam — não pelos livros, mas pela sua própria experiência soviética —, compreendam e sintam que sem um registo e um controlo multilaterais e estatais sobre a produção e a distribuição de produtos, o poder dos trabalhadores, a liberdade dos trabalhadores não pode manter-se e que o regresso ao jugo do capitalismo é inevitável.
Todos os hábitos e tradições da burguesia em geral, e da pequena burguesia em particular, são contra o controlo estatal e são pela intangibilidade da «sacrossanta propriedade privada», da «sacrossanta» empresa privada. Hoje vemos com particular clareza até que grau é exacta a tese marxista de que o anarquismo e o anarco-sindicalismo são correntes burguesas, em que contradição irreconciliável se encontram em relação ao socialismo, à ditadura do proletariado, ao comunismo. A luta para incutir nas massas a ideia do registo e do controlo estatais soviéticos, para levar à prática esta ideia, para romper com o maldito passado que ensinou a considerar a obtenção do pão e do vestuário como um assunto «privado», a compra e venda como um negócio que «só a mim diz respeito» — esta é uma luta grandiosa, de importância histórico-mundial, a luta da consciência socialista contra a espontaneidade anárquico-burguesa.
O controlo operário foi introduzido entre nós como lei, mas na prática e mesmo na consciência das amplas massas do proletariado apenas começa a penetrar. Falamos insuficientemente na nossa agitação, os operários e camponeses avançados pensam e falam insuficientemente de que a falta de registo e a falta de controlo no domínio da produção e distribuição dos produtos é a morte para os embriões do socialismo, é uma dilapidação do erário público (pois todos os bens pertencem ao erário público e o erário público é o Poder Soviético, o poder da maioria dos trabalhadores), que a negligência no registo e no controlo é uma cumplicidade directa com os Kornílov alemães e russos, que só podem derrubar o poder dos trabalhadores na condição de não conseguirmos resolver a tarefa do registo e de controlo, e que com a ajuda de toda a burguesia camponesa, com a ajuda dos democratas-constitucionalistas, dos mencheviques, dos socialistas-revolucionários de direita nos «espreitam», esperando o momento. Mas enquanto o controlo operário não for um facto, enquanto os operários avançados não tiverem organizado e levado a cabo a sua campanha vitoriosa e implacável contra os infractores deste controlo ou os que mostrarem despreocupação a respeito do controlo, até então não poderemos, depois de ter dado o primeiro passo (o do controlo operário), dar o segundo passo no caminho do socialismo, isto é, passar à regulação operária da produção.
O Estado socialista pode surgir unicamente como uma rede de comunas de produção e consumo, que registem conscienciosamente a sua produção e consumo, economizem o trabalho, elevem constantemente a sua produtividade e com isso alcancem a possibilidade de reduzir a jornada de trabalho até sete, seis horas e mesmo menos. Sem organizar um registo e um controlo nacionais, rigorosíssimos e universais sobre os cereais e a obtenção dos cereais (e depois também de todos os outros produtos necessários), não é possível sair daqui. O capitalismo deixou-nos em herança organizações de massas capazes de facilitar a transição para o registo e o controlo de massas da distribuição de produtos: as sociedades de consumo. Na Rússia estão menos desenvolvidas do que nos países avançados, mas, não obstante, abarcaram mais de dez milhões de membros. O decreto publicado há dias sobre as sociedades de consumo representa um fenómeno extraordinariamente importante e demonstra de modo evidente a peculiaridade da situação e das tarefas da República Socialista Soviética no momento presente.
O decreto constitui um acordo com as cooperativas burguesas e com as cooperativas operárias que continuam a manter um ponto de vista burguês. O acordo ou compromisso consiste, primeiro, em que os representantes das citadas instituições não só participaram na discussão do decreto como obtiveram de facto o direito de voto deliberativo, pois as partes do decreto que encontraram a decidida oposição destas instituições foram rejeitadas. Segundo, o compromisso consiste, no fundo, em que o Poder Soviético renuncia ao princípio da admissão gratuita nas cooperativas (único princípio consequentemente proletário), bem como à associação de toda a população de um dado local numa só cooperativa. Renunciando a este princípio, único princípio socialista que corresponde à tarefa da supressão das classes, foi dado o direito de continuarem a existir às «cooperativas operárias de classe» (que neste caso se chamam «de classe» unicamente porque se subordinam aos interesses de classe da burguesia). Finalmente, a proposta do Poder Soviético de excluir totalmente a burguesia da direcção das cooperativas foi também muito atenuada e a proibição de entrar na direcção tornou-se extensiva apenas aos proprietários das empresas comerciais e industriais de carácter capitalista privado.
Se o proletariado, agindo através do Poder Soviético, tivesse conseguido organizar o registo e o controlo à escala de todo o Estado ou pelo menos as bases desse controlo, não haveria necessidade de semelhantes compromissos. Através das secções de víveres dos Sovietes, através dos órgãos de abastecimento junto dos Sovietes, uniríamos a população numa cooperativa única dirigida pelo proletariado, sem a colaboração das cooperativas burguesas, sem concessões ao princípio puramente burguês que aconselha que a cooperativa operária permaneça operária ao lado da burguesa, em vez de subordinar a si toda a cooperativa burguesa, fundindo ambas, chamando a si toda a direcção, tomando nas suas mãos a vigilância do consumo dos ricos.
Ao concluir tal acordo com as cooperativas burguesas, o Poder Soviético definiu de um modo concreto as suas tarefas tácticas e os seus peculiares métodos de acção para a presente fase de desenvolvimento, a saber: ao dirigir os elementos burgueses, ao aproveitá-los, ao fazer-lhes determinadas concessões parciais, nós criamos as condições para um avanço que será mais lento do que no começo supúnhamos, mas que ao mesmo tempo será mais firme, com uma base e linhas de comunicação mais solidamente garantidas, com uma melhor consolidação das posições conquistadas. Os Sovietes podem (e devem) medir agora os seus êxitos na obra da edificação socialista, entre outras coisas, com medidas extraordinariamente claras, simples, práticas: precisamente em que número de comunidades (comunas ou aldeias, bairros, etc.) e em que medida o desenvolvimento das cooperativas se aproxima do objectivo de abarcar toda a população.
Em toda a revolução socialista, depois de se ter resolvido a tarefa da conquista do poder pelo proletariado e à medida que, no principal e fundamental, se cumpra a tarefa de expropriar os expropriadores e esmagar a sua resistência, avança inevitavelmente para primeiro plano a tarefa essencial da criação de um sistema social superior ao do capitalismo, a saber: a elevação da produtividade do trabalho e, em relação com isto (e para isto), a sua organização superior. O nosso Poder Soviético encontra-se precisamente numa situação em que, graças às vitórias sobre os exploradores, desde Kérenski até Kornílov, obteve a possibilidade de abordar directamente esta tarefa, de a ela se entregar plenamente. E aqui torna-se imediatamente evidente que, se é possível apoderar-se em poucos dias do poder de Estado central, se é possível esmagar em poucas semanas a resistência militar (e a sabotagem) dos exploradores, mesmo nos diferentes cantos de um grande país, a solução duradoura da tarefa da elevação da produtividade do trabalho exige, em todo o caso (especialmente depois de uma guerra das mais penosas e devastadoras), vários anos. São as circunstâncias objectivas que ditam aqui incondicionalmente o carácter prolongado do trabalho.
O ascenso da produtividade do trabalho exige, acima de tudo, que se assegure a base material da grande indústria: o desenvolvimento da produção de combustível, de ferro, de máquinas, da indústria química. A República Soviética da Rússia encontra-se em condições vantajosas porquanto dispõe — mesmo depois da paz de Brest — de gigantescas reservas de mineral (nos Urais), de combustível na Sibéria Ocidental (hulha), no Cáucaso e no Sudeste (petróleo), no Centro (turfa), de gigantescas riquezas florestais, força hidráulica, matérias-primas para a indústria química (Karabugaz), etc. A exploração destas riquezas naturais com os métodos da técnica moderna dará a base de um progresso nunca visto das forças produtivas.
Outra condição da elevação da produtividade do trabalho é, em primeiro lugar, o ascenso cultural e educativo da massa da população. Este ascenso realiza-se agora com uma rapidez enorme, coisa que não vêem as pessoas cegas pela rotina burguesa, incapazes de compreender quão grande é o impulso para a luz e o espírito de iniciativa que se desenvolve agora entre as «camadas inferiores» do povo, graças à organização soviética. Em segundo lugar, também é uma condição do ascenso económico a elevação da disciplina dos trabalhadores, a habilidade no trabalho, a eficácia, a intensidade do trabalho, a sua melhor organização.
Neste aspecto, a acreditar naqueles que se deixaram atemorizar pela burguesia ou a servem egoistamente, as coisas estão entre nós particularmente mal e mesmo sem esperança. Esta gente não compreende que não houve nem pode haver uma revolução em que os partidários do que é velho não gritem acerca da ruína, da anarquia, etc. É natural que nas massas, que acabaram de se libertar de um jugo incrivelmente selvagem, tenha lugar uma profunda e ampla efervescência e fermentação; que a elaboração pelas massas das novas bases da disciplina do trabalho é um processo muito demorado; que esta elaboração nem sequer podia começar antes da vitória completa sobre os latifundiários e a burguesia.
Mas, sem nos deixarmos dominar minimamente pelo desespero, frequentemente fingido, que propagam os burgueses e os intelectuais burgueses (que perderam a esperança de manter os seus velhos privilégios), nós não devemos de modo algum encobrir um mal evidente. Pelo contrário, revela-lo-emos e reforçaremos os métodos soviéticos de luta contra ele, pois o êxito do socialismo é inconcebível sem a vitória da disciplina proletária consciente sobre a anarquia espontânea pequeno-burguesa, essa verdadeira garantia da possibilidade da restauração do regime de Kérenski e Kornílov.
A vanguarda mais consciente do proletariado da Rússia já colocou a si mesma a tarefa de elevar a disciplina do trabalho. Por exemplo, tanto no Comité Central do Sindicato dos Metalúrgicos como no Conselho Central dos Sindicatos começou a elaboração das medidas e projectos de decreto correspondentes[N296]. É preciso apoiar e impulsionar com todas as forças este trabalho. É preciso colocar na ordem do dia, aplicar na prática e experimentar o salário à peça, aplicar muito do que há de científico e progressivo no sistema de Taylor, regular o salário com os balanços gerais da produção ou com os resultados da exploração do transporte ferroviário, por barco, etc, etc.
Em comparação com as nações avançadas, o russo é um mau trabalhador. E não podia ser de outro modo sob o regime tsarista e com a vitalidade dos restos do regime de servidão. Aprender a trabalhar — esta é a tarefa que o Poder Soviético deve colocar em toda a sua envergadura perante o povo. A última palavra do capitalismo neste aspecto, o sistema de Taylor — tal como todos os progressos do capitalismo —, reúne em si toda a refinada crueldade da exploração burguesa e uma série de riquíssimas conquistas científicas no campo da análise dos movimentos mecânicos no trabalho, a supressão dos movimentos supérfluos e inábeis, a elaboração dos métodos de trabalho mais correctos, a introdução dos melhores sistemas de registo e controlo, etc. A República Soviética deve adoptar a todo o custo as conquistas mais valiosas da ciência e da técnica neste domínio. A possibilidade de realizar o socialismo é determinada precisamente pelos nossos êxitos na combinação do Poder Soviético e da organização soviética da administração com os últimos progressos do capitalismo. Tem de se criar na Rússia o estudo e o ensino do sistema de Taylor, a sua experimentação e adaptação sistemáticas. Ao mesmo tempo, caminhando para a elevação da produtividade do trabalho, é preciso ter em conta as particularidades do período de transição do capitalismo para o socialismo, que exigem, por um lado, que sejam lançadas as bases da organização socialista da emulação e, por outro lado, exigem a aplicação da coacção para que a palavra de ordem de ditadura do proletariado não seja maculada por uma prática de brandura excessiva do Poder Soviético.
Ao número de absurdos que a burguesia difunde gostosamente sobre o socialismo pertence o de que os socialistas negam a importância da emulação. De facto, só o socialismo, ao suprimir as classes e, consequentemente, a escravização das massas, abre pela primeira vez o caminho para a emulação numa escala verdadeiramente de massas. E é precisamente a organização soviética que, passando da democracia formal da república burguesa à verdadeira participação das massas trabalhadoras na administração, coloca pela primeira vez a emulação numa ampla escala. E muito mais fácil colocar isto no domínio político do que no económico, mas para o êxito do socialismo o último é precisamente o importante.
Tomemos um meio de organizar a emulação como a publicidade. A república burguesa assegura-a apenas formalmente, subordinando de facto a imprensa ao capital, distraindo a «populaça» com vacuidades políticas picantes, ocultando o que sucede nas oficinas, nas transacções comerciais, nos abastecimentos, etc, sob o véu do «segredo comercial», que protege a «sacrossanta propriedade». O Poder Soviético aboliu o segredo comercial, entrou num novo caminho, mas ainda quase nada fizemos para aproveitar a publicidade no interesse da emulação económica. Temos de começar um trabalho sistemático para que, ao mesmo tempo que se reprime implacavelmente a imprensa burguesa, impregnada até à medula de falsidades e descaradas calúnias, se trabalhe na criação de uma imprensa que não distraia e não mistifique as massas com vacuidades políticas picantes, mas que submeta ao juízo das massas as questões económicas quotidianas e as ajude a estudá-las seriamente. Cada fábrica, cada aldeia é uma comuna de produção e consumo que tem o direito e a obrigação de aplicar à sua maneira as leis soviéticas gerais («à sua maneira» não no sentido de as violar, mas no sentido da diversidade de formas da sua aplicação), resolver à sua maneira o problema do registo da produção e da distribuição dos produtos. Sob o capitalismo, isto era um «assunto privado» de cada capitalista, latifundiário, kulaque. Sob o Poder Soviético, isto não é um assunto privado, mas um assunto de Estado da maior importância.
E quase ainda não começámos o trabalho enorme, difícil, mas em compensação também grato, de organizar a emulação entre as comunas, introduzir a contabilidade e a publicidade no processo de produção dos cereais, do vestuário, etc, converter os relatórios burocráticos, mortos e secos em exemplos vivos, umas vezes repelentes e outras atractivos. No modo de produção capitalista, a importância de um exemplo isolado, digamos, de um qualquer artel de produção, era inevitavelmente limitada em grau extremo, e só a ilusão pequeno-burguesa podia sonhar em «corrigir» o capitalismo com a influência dos modelos de virtuosas instituições. Depois de o poder político passar para as mãos do proletariado, depois da expropriação dos expropriadores, as coisas mudam radicalmente e — de acordo com as repetidas indicações de destacados socialistas — a força do exemplo adquire pela primeira vez a possibilidade de manifestar a sua influência de massas. As comunas modelo devem servir e servirão de educadores, professores e estímulos para as comunas atrasadas. A imprensa deve servir de instrumento da construção socialista, dando a conhecer com todos os pormenores os êxitos das comunas modelo, analisando as causas do seu êxito, os seus métodos de gestão, colocando, por outro lado, na «lista negra» as comunas que conservam obstinadamente as «tradições do capitalismo», isto é, a anarquia, a preguiça, a desordem, a especulação. Na sociedade capitalista, a estatística era da exclusiva incumbência dos «funcionários públicos» ou de estreitos especialistas; nós devemos levá-la às massas, popularizá-la, para que os trabalhadores aprendam gradualmente a compreender e a ver eles próprios como e quanto é preciso trabalhar, como e quanto se pode descansar, para que a comparação dos resultados práticos da economia das diferentes comunas se transforme em objecto de interesse e estudo gerais, para que as comunas que se destaquem sejam recompensadas imediatamente (com a redução da jornada de trabalho por um certo período, com o aumento dos salários, com a concessão de uma maior quantidade de bens e valores culturais ou estéticos, etc).
Quando uma nova classe aparece na cena histórica na qualidade de chefe e dirigente da sociedade, isto nunca se passa sem um período de violentos «balanços», abalos, lutas e tempestades, por um lado, e, por outro lado, sem um período de passos inseguros, experiências, vacilações e dúvidas em relação à escolha de novos métodos que correspondam à nova situação objectiva. A nobreza feudal agonizante vingava-se da burguesia que a vencia e a desalojava, não só por meio de conspirações e tentativas de insurreição e restauração, mas também por meio de torrentes de troças sobre a inabilidade, a falta de jeito e os erros desses «arrivistas» e «insolentes» que se atreviam a tomar nas suas mãos o «sagrado leme» do Estado, sem a preparação secular para isto dos príncipes, barões, nobres e fidalgos — exactamente como os Kornílov e os Kérenski, os Gots e os Mártov, toda essa confraria de heróis da traficância burguesa e do cepticismo burguês, se vingam agora da classe operária da Rússia pela sua tentativa «atrevida» de tomar o poder.
Evidentemente que são necessárias não semanas, mas longos meses e anos para que a nova classe social, e uma classe até agora oprimida e esmagada pela miséria e pela ignorância, possa assimilar a nova situação, orientar-se, organizar o seu trabalho, promover os seus organizadores. Compreende-se que o partido que dirige o proletariado revolucionário não podia adquirir a experiência e os hábitos dos grandes empreendimentos organizativos calculados para milhões e dezenas de milhões de cidadãos, que a modificação dos velhos hábitos quase exclusivamente de agitação é uma coisa muito prolongada. Mas aqui nada há de impossível, e desde que tenhamos a clara consciência da necessidade da mudança, a firme decisão de a realizar, a perseverança necessária na prossecução de um grande e difícil objectivo, consegui-lo-emos. Existe um grande número de talentos organizativos no «povo», isto é, entre os operários e os camponeses que não exploram o trabalho alheio; o capital esmagava-os, arruinava-os, atirava-os fora aos milhares, nós ainda não sabemos descobri-los, animá-los, pô-los de pé, promovê-los. Mas aprenderemos isto se nos dedicarmos a aprender isto com todo o entusiasmo revolucionário, sem o qual não existem revoluções vitoriosas.
Nenhum movimento popular profundo e potente na história decorreu sem uma imunda espuma — sem aventureiros e vigaristas, fanfarrões e palradores que se agarram aos inovadores inexperientes, sem barafunda absurda, sem confusão, sem vã agitação, sem tentativas de alguns «chefes» de começarem vinte coisas e não levar nenhuma até ao fim. Que ganam e ladrem os cães fraldiqueiros da sociedade burguesa, desde Belorrússov até Mártov, a propósito de cada estilha a mais ao abater o grande velho bosque. Por alguma razão são cães fraldiqueiros, para ladrar ao elefante proletário. Que ladrem. Nós continuaremos no nosso caminho, tentando pôr à prova e identificar, com o maior cuidado e circunspecção possíveis, os verdadeiros organizadores, os homens de bom senso e com sagacidade prática, os homens que reunam a fidelidade ao socialismo com a capacidade de organizar sem barulho (e apesar da barafunda e do barulho) o trabalho comum, firme e concertado de grande quantidade de pessoas no âmbito da organização soviética. Só estas pessoas, depois de provadas dez vezes e elevando-as das tarefas mais simples às mais difíceis, devemos promover aos postos responsáveis de dirigentes do trabalho do povo, de dirigentes da administração. Ainda não aprendemos a fazê-lo. Mas aprenderemos.
A resolução do último congresso dos Sovietes (realizado em Moscovo) apresenta como tarefa primordial do momento a criação de uma «organização harmoniosa» e a elevação da disciplina(2*). Hoje todos «votam» e «subscrevem» com agrado tal tipo de resoluções, mas, habitualmente, não reflectem em que a sua aplicação exige a coacção — e a coacção precisamente sob a forma de ditadura. E entretanto seria a maior estupidez e a mais absurda utopia supor que a passagem do capitalismo ao socialismo é possível sem coacção e sem ditadura. A teoria de Marx pronunciou-se há muito, e com a maior precisão, contra este absurdo democrático-pequeno-burguês e anarquista. E a Rússia de 1917-1918 confirma com tal evidência, de um modo tão palpável e convincente a teoria de Marx a este respeito, que só pessoas irremediavelmente estúpidas ou tenazmente decididas a voltar as costas à verdade podem ainda enganar-se a este respeito. Ou ditadura de Kornílov (se o tomarmos como o tipo russo do Cavaignac burguês) ou ditadura do proletariado — nem se pode falar de outra saída para um país onde se realiza um desenvolvimento extraordinariamente rápido, com viragens extraordinariamente bruscas e com uma terrível ruína, criada pela mais penosa das guerras. Todas as soluções intermédias são ou um engano do povo pela burguesia, que não pode dizer a verdade, que não pode dizer que necessita de Kornílov, ou uma estupidez dos democratas pequeno-burgueses, dos Tchernov, Tseretéli e Mártov, com o seu palavreado sobre a unidade da democracia, a ditadura da democracia, a frente democrática geral e outros disparates do mesmo estilo. Temos de considerar perdidos os que mesmo no decurso da revolução russa de 1917-1918 não aprenderam que as soluções intermédias são impossíveis.
Por outro lado, não é difícil convencermo-nos de que, em qualquer transição do capitalismo para o socialismo, a ditadura é necessária por duas razões principais ou em duas direcções principais. Em primeiro lugar, é impossível vencer e desarraigar o capitalismo sem esmagar de maneira implacável a resistência dos exploradores, que não podem ser privados de repente da sua riqueza, das vantagens que lhes proporcionam a organização e o conhecimento e que, consequentemente, tentarão inevitavelmente, durante um período bastante prolongado, derrubar o odiado poder dos pobres. Em segundo lugar, qualquer grande revolução, especialmente uma revolução socialista, mesmo se não existe uma guerra externa, é inconcebível sem guerra interna, isto é, sem guerra civil, que significa uma ruína ainda maior do que a provocada pela guerra externa; que significa milhares e milhões de casos de vacilação e de deserções de um campo para o outro; que significa um estado da maior indeterminação, de desequilíbrio e de caos. E, evidentemente, todos os elementos de decomposição da sociedade velha, inevitavelmente numerosíssimos, ligados principalmente à pequena burguesia (pois é ela que qualquer guerra e qualquer crise arruina e deita a perder em primeiro lugar), não podem deixar de «se revelar» numa revolução tão profunda. E os elementos da decomposição não podem «revelar-se» senão num aumento dos crimes, da vagabundagem, do suborno, da especulação e de escândalos de toda a espécie. Para acabar com isto é preciso tempo e é precisa uma mão de ferro.
Na história não houve nenhuma grande revolução em que o povo não tenha sentido isto instintivamente e não tenha revelado uma firmeza salvadora, fuzilando os ladrões no local do crime. A infelicidade das revoluções precedentes consistiu em ter durado pouco o entusiasmo revolucionário das massas, que as mantinha em estado de tensão e lhes dava forças para exercer uma repressão implacável sobre os elementos de decomposição. A causa social, isto é, de classe, desta pouca duração do entusiasmo revolucionário das massas residia na debilidade do proletariado, o único em condições (se é suficientemente numeroso, consciente e disciplinado) de atrair a si a maioria dos trabalhadores e explorados (a maioria dos pobres, para falar de forma mais simples e popular) e de conservar o poder por um tempo suficientemente longo para esmagar por completo não só todos os exploradores como todos os elementos de decomposição.
Esta experiência histórica de todas as revoluções, esta lição — económica e política — de alcance histórico universal, foi resumida por Marx ao dar uma fórmula breve, incisiva, precisa e brilhante: ditadura do proletariado. E a marcha vitoriosa da organização soviética através de todos os povos e línguas da Rússia demonstrou que a revolução russa abordou correctamente esta tarefa de alcance histórico universal. Pois o Poder Soviético não é outra coisa senão a forma organizativa da ditadura do proletariado, da ditadura da classe avançada, que eleva a um novo democratismo e a uma participação independente na administração do Estado dezenas e dezenas de milhões de trabalhadores e explorados, os quais aprendem com a sua própria experiência a ver na vanguarda disciplinada e consciente do proletariado o seu chefe mais seguro.
Mas ditadura é uma grande palavra. E as grandes palavras não devem ser lançadas ao vento. A ditadura é um poder férreo, de audácia e rapidez revolucionárias, implacável na repressão tanto dos exploradores como dos arruaceiros. Mas o nosso poder é excessivamente brando e muitas vezes parece-se mais com gelatina do que com ferro. É impossível esquecer por um momento sequer que o elemento burguês e pequeno-burguês luta contra o Poder Soviético de duas maneiras: por um lado, actuando de fora com os métodos dos Sávinkov, Gots, Gueguetchkóri e Kornílov, com conspirações e insurreições, com o seu imundo reflexo «ideológico», com torrentes de mentiras e calúnias na imprensa dos democratas-constitucionalistas, dos socialistas-revolucionários de direita e dos mencheviques; por outro lado, este elemento actua de dentro, aproveitando qualquer elemento de decomposição, qualquer fraqueza, para o suborno, para o aumento da indisciplina, do desleixo e do caos. Quanto mais nos aproximamos do total esmagamento militar da burguesia mais perigoso se torna para nós o elemento da anarquia pequeno-burguesa. E contra este elemento não se pode lutar apenas por meio da propaganda e da agitação, apenas por meio da organização da emulação, apenas por meio da selecção de organizadores; tem de se lutar também por meio da coacção.
A medida que se torne a tarefa fundamental do poder não a repressão militar mas a administração, a manifestação típica da repressão e da coacção não será o fuzilamento no local, mas o tribunal. Depois de 25 de Outubro de 1917, também neste aspecto as massas revolucionárias entraram no caminho certo e demonstraram a vitalidade da revolução, começando a organizar os seus próprios tribunais operários e camponeses, mesmo antes de quaisquer decretos sobre a dissolução do aparelho judicial burocrático-burguês. Mas os nossos tribunais revolucionários e populares são excessiva e incrivelmente fracos. Sente-se que ainda não foi definitivamente abolida a opinião que o povo tem dos tribunais como algo de burocrático e alheio, opinião herdada do jugo dos latifundiários e da burguesia. Não há ainda a consciência suficiente de que o tribunal é um órgão para atrair precisamente os pobres sem excepção à administração do Estado (pois a actividade judicial é uma das funções da administração do Estado), que o tribunal é um órgão de poder do proletariado e do campesinato pobre, que o tribunal é um instrumento de educação na disciplina. Não há ainda a consciência suficiente do facto simples e evidente de que se a fome e o desemprego são os principais males da Rússia, estas calamidades não poderão ser vencidas por nenhum movimento impulsivo, mas só por uma organização e uma disciplina em todos os aspectos, universal e de todo o povo, para aumentar a produção de pão para os homens e de pão para a indústria (combustível), transportá-lo a tempo e distribuí-lo correctamente; que por isso quem viola a disciplina do trabalho em qualquer fábrica, em qualquer empresa, em qualquer assunto, é culpado dos tormentos da fome e do desemprego; que é necessário saber encontrar os culpados disto, entregá-los ao tribunal e puni-los implacavelmente. O elemento pequeno-burguês, contra o qual devemos agora travar uma luta tenaz, manifesta-se precisamente na fraca consciência da relação económica e política da fome e do desemprego com o desleixo de todos e cada um no terreno da organização e da disciplina; manifesta-se em que se mantém solidamente a concepção do pequeno proprietário: arrecadar o mais possível, o resto pouco me importa.
No transporte ferroviário, que é, talvez, onde se encarnam com maior evidência as ligações económicas de um organismo criado pelo grande capitalismo, manifesta-se com especial relevo esta luta entre o desleixo pequeno-burguês e o espírito de organização proletário. O elemento «administrativo» proporciona sabotadores e concussionários em grande abundância; a melhor parte do elemento proletário luta pela disciplina; mas quer num quer noutro existem, como é natural, muitos vacilantes, «fracos», incapazes de resistir à «tentação» da especulação, da concussão, da vantagem pessoal, comprada ao preço da deterioração de todo o aparelho, de cujo correcto trabalho depende a vitória sobre a fome e o desemprego.
É característica a luta que se desenvolveu neste terreno em torno do último decreto sobre a administração dos caminhos-de-ferro, do decreto de concessão de poderes ditatoriais (ou poderes «ilimitados») a determinados dirigentes[N297]. Os representantes conscientes (e na sua maioria, provavelmente, inconscientes) do desleixo pequeno-burguês quiseram ver na concessão de poderes «ilimitados» (isto é, ditatoriais) a determinadas pessoas um desvio do princípio da colegialidade, do democratismo e dos princípios do Poder Soviético. Nalguns lugares, entre os socialistas-revolucionários de esquerda desenvolveu-se uma agitação francamente própria de arruaceiros contra o decreto sobre os poderes ditatoriais, isto é, uma agitação que apelava para os maus instintos e para a ânsia do pequeno proprietário de «arrecadar». Colocou-se uma questão de uma importância verdadeiramente enorme: em primeiro lugar, a questão de princípio de se a nomeação de indivíduos, de ditadores investidos de poderes ilimitados é, em geral, compatível com os princípios fundamentais do Poder Soviético; em segundo lugar, em que relação está este caso — este precedente, se quiserdes — com as tarefas especiais do poder no actual momento concreto. Devemos deter-nos muito atentamente tanto numa como noutra questão.
Que a ditadura de indivíduos foi com muita frequência, na história dos movimentos revolucionários, a expressão, o portador, o veículo da ditadura das classes revolucionárias, disto fala a experiência irrefutável da história. É indubitável que a ditadura de indivíduos foi compatível com o democratismo burguês. Mas neste ponto os difamadores burgueses do Poder Soviético, bem como os seus seguidores pequeno-burgueses, dão sempre provas de destreza de mãos: por um lado, declaram que o Poder Soviético é simplesmente algo de absurdo, anárquico, selvagem, eludindo zelosamente todos os nossos paralelos históricos e provas teóricas de que os Sovietes são a forma superior de democratismo, mais ainda: o começo da forma socialista de democratismo; por outro lado, apresentam-nos a exigência de um democratismo superior ao burguês e dizem: a ditadura pessoal é absolutamente incompatível com o vosso democratismo soviético, bolchevique (isto é, não burguês, mas socialista).
Os raciocínios não podem ser piores. Se não somos anarquistas, devemos aceitar a necessidade do Estado, isto é, a coacção, para passar do capitalismo ao socialismo. A forma de coacção é determinada pelo grau de desenvolvimento da classe revolucionária dada, a seguir por circunstâncias especiais como, por exemplo, a herança de uma guerra longa e reaccionária, a seguir pelas formas de resistência da burguesia e da pequena burguesia. Por isso, não existe absolutamente nenhuma contradição de princípio entre o democratismo soviético (isto é, socialista) e a aplicação do poder ditatorial de indivíduos. A diferença entre a ditadura proletária e a burguesa consiste em que a primeira dirige os seus golpes contra a minoria exploradora no interesse da maioria explorada, e depois em que a primeira é exercida — também através de indivíduos — não só pelas massas trabalhadoras e exploradas, mas também por organizações estruturadas de modo a despertar, erguer estas massas para uma actividade criadora histórica (as organizações soviéticas pertencem a este género de organizações).
Quanto à segunda questão, do significado precisamente do poder ditatorial unipessoal do ponto de vista das tarefas específicas do momento presente, devemos dizer que toda a grande indústria mecanizada — isto é, precisamente a fonte e a base material, produtiva, do socialismo — exige uma unidade de vontade absoluta e rigorosíssima que dirija o trabalho comum de centenas, milhares e dezenas de milhares de pessoas. Tanto tecnicamente como economicamente e historicamente esta necessidade é evidente e quantos pensaram no socialismo sempre a reconheceram como sua condição. Mas como pode ser assegurada a mais rigorosa unidade de vontade? Por meio da subordinação da vontade de milhares à vontade de um só.
Esta subordinação pode, com uma consciência e uma disciplina ideais dos participantes no trabalho comum, recordar mais a suave direcção de maestro. Se não existir uma disciplina e uma consciência ideais, ela pode tomar as formas ásperas da ditadura. Mas de um ou de outro modo, a subordinação sem reservas a uma única vontade é absolutamente necessária para o êxito dos processos de trabalho, organizado segundo o tipo da grande indústria mecanizada. Para os caminhos-de-ferro ela é dupla e triplamente necessária. E esta transição de uma tarefa política para outra, que na aparência em nada se lhe assemelha, constitui toda a originalidade do momento que vivemos. A revolução acaba de quebrar as cadeias mais antigas, mais fortes e mais pesadas, com as quais se submetiam as massas pela força. Isso acontecia ontem. Mas hoje, essa mesma revolução, precisamente no interesse do seu desenvolvimento e consolidação, precisamente no interesse do socialismo, exige a obediência sem reservas das massas à vontade única dos dirigentes do processo de trabalho. Está claro que semelhante transição é inconcebível de um só golpe. Está claro que só pode realizar-se ao preço dos maiores solavancos, abalos, de regressos ao que é velho, mediante uma enorme tensão das energias da vanguarda proletária, que conduz o povo para o que é novo. Nisto não reflectem os que caem no histerismo filistino do Nóvaia Jizn ou do Vperiod[N298], do Delo Naroda ou do Nach Vek[N299].
Tomai a psicologia do representante médio, de base, da massa trabalhadora e explorada e comparai esta psicologia com as condições objectivas, materiais, da sua vida social. Até à Revolução de Outubro ele não tinha visto ainda na realidade que as classes possuidoras, exploradoras, lhe tivessem doado, renunciado em seu proveito a algo de realmente sério para elas. Não tinha visto ainda que lhe tivessem dado a terra e a liberdade, muitas vezes prometidas, que lhe tivessem dado a paz, que tivessem renunciado aos interesses «de grande potência» e aos tratados secretos de grande potência, que tivessem renunciado ao capital e aos lucros. Viu-o unicamente depois de 25 de Outubro de 1917, quando ele próprio tomou isto pela força e teve de o defender também pela força contra os Kérenski, os Gots, os Gueguetchkóri, os Dútov e os Kornílov. É compreensível que, durante certo tempo, toda a sua atenção, todos os seus pensamentos, todas as suas forças espirituais se tenham orientado apenas para respirar, endireitar-se, desenvolver-se, tomar os bens imediatos da vida que podia tomar e que não lhe tinham dado os exploradores derrubados. É compreensível que seja preciso certo tempo para que o representante de base da massa não só veja, não só se convença, mas também sinta que não se pode simplesmente «tomar», agarrar e arrecadar, que isto conduz a um aumento da ruína, ao desastre, ao regresso dos Kornílov. A viragem correspondente nas condições de vida (e, consequentemente, também na psicologia) da massa dos trabalhadores de base não faz mais do que começar. E toda a nossa tarefa, a tarefa do partido dos comunistas (bolcheviques), que é o intérprete consciente da aspiração dos explorados à libertação, é dar-se conta desta viragem, compreender a sua necessidade, pôr-se à cabeça das massas esgotadas e cansadas que procuram uma saída, conduzi-las pelo caminho certo, pelo caminho da disciplina do trabalho, pelo caminho da conciliação das tarefas de fazer comícios acerca das condições de trabalho com as tarefas da subordinação sem reservas à vontade do dirigente soviético, do ditador, durante o trabalho.
Os burgueses, os mencheviques, os novojiznistas, que só vêem caos, confusão e explosões de egoísmo de pequenos proprietários, ridicularizam os «comícios», e, ainda com mais frequência, resmungam furiosos acerca deles. Mas sem os comícios a massa de oprimidos nunca poderia passar da disciplina imposta pelos exploradores à disciplina consciente e voluntária. Os comícios são, precisamente, o verdadeiro democratismo dos trabalhadores, o seu método de se endireitarem, o seu despertar para nova vida, os seus primeiros passos num campo que eles próprios limparam da canalha (exploradores, imperialistas, latifundiários, capitalistas) e que eles próprios querem aprender a organizar à sua maneira, para si, na base dos princípios do seu próprio poder, soviético, e não de um poder alheio, senhorial ou burguês. Foi necessária precisamente a vitória de Outubro dos trabalhadores sobre os exploradores, foi necessária toda uma etapa histórica de discussão inicial pelos próprios trabalhadores das novas condições de vida e das novas tarefas, para que se tornasse possível a passagem duradoura a formas superiores da disciplina do trabalho, a uma assimilação consciente da ideia da necessidade da ditadura do proletariado, à subordinação sem reservas às disposições unipessoais dos representantes do Poder Soviético durante o trabalho.
Esta passagem começou agora.
Resolvemos com êxito a primeira tarefa da revolução, vimos como as massas trabalhadoras elaboraram em si mesmas a condição fundamental do seu êxito: a união dos esforços contra os exploradores para o seu derrubamento. Etapas como as de Outubro de 1905 e Fevereiro e Outubro de 1917 têm uma importância histórica universal.
Resolvemos com êxito a segunda tarefa da revolução: despertar e erguer precisamente aquelas «camadas inferiores» da sociedade que os exploradores espezinhavam e que só depois de 25 de Outubro de 1917 obtiveram toda a liberdade de os derrubar e de começar a orientar-se e a instalar-se à sua maneira. Os comícios precisamente das massas trabalhadoras mais oprimidas, mais embrutecidas e menos preparadas, a sua passagem para o lado dos bolcheviques, a instauração por elas da sua organização soviética por toda a parte — eis a segunda grande etapa da revolução.
Começa a terceira. É preciso consolidar o que nós próprios conquistámos, o que nós próprios decretámos, legalizámos, discutimos e projectámos, consolidar em formas estáveis de uma disciplina do trabalho diária. Esta é a tarefa mais difícil, mas também a mais grata, pois só a sua resolução nos dará a ordem socialista. É preciso aprender a conjugar o democratismo dos comícios das massas trabalhadoras, tempestuoso, que corre como a cheia primaveril, que transpõe todas as margens, com a disciplina férrea durante o trabalho, com a obediência sem reservas à vontade de uma só pessoa, do dirigente soviético, durante o trabalho.
Ainda não aprendemos isto. Mas aprenderemos.
A restauração da exploração burguesa ameaçava-nos ontem na pessoa dos Kornílov, dos Gots, dos Dútov, dos Gueguetchkóri, dos Bogaévski. Vencêmo-los. Esta restauração, esta mesma restauração ameaça-nos hoje sob outra forma, sob a forma do elemento de desleixo e anarquismo pequeno-burguês, do espírito de pequeno proprietário: «não tenho nada a ver com isso», sob a forma de ataques e incursões quotidianas, pequenas mas numerosas, deste elemento contra a disciplina proletária. Temos de vencer este elemento de anarquia pequeno-burguesa, e vencê-lo-emos.
O carácter socialista do democratismo soviético — isto é, proletário, na sua aplicação concreta, presente — consiste, primeiro, em que os eleitores são as massas trabalhadoras e exploradas, ficando excluída a burguesia; segundo, em que desaparecem todas as formalidades e restrições burocráticas das eleições, as próprias massas determinam a ordem e o prazo das eleições, com plena liberdade de revogar os eleitos; terceiro, em que se cria a melhor organização de massas da vanguarda dos trabalhadores, do proletariado da grande indústria, que lhe permite dirigir as mais amplas massas de explorados, atraí-las a uma vida política independente e educá-las politicamente na base da sua própria experiência, em que, deste modo, se aborda pela primeira vez a tarefa de que verdadeiramente toda a população aprenda a administrar e comece a administrar.
Tais são os principais sinais distintivos do democratismo aplicado na Rússia, que constitui um tipo mais elevado de democratismo, a ruptura com a sua deformação burguesa, a passagem ao democratismo socialista e as condições que permitam o começo da extinção do Estado.
Naturalmente, o elemento de desorganização pequeno-burguesa (que se manifestará inevitavelmente numa ou noutra medida em qualquer revolução proletária, e que na nossa revolução se manifesta com particular força em virtude do carácter pequeno-burguês do país, do seu atraso e das consequências da guerra reaccionária) não pode deixar de imprimir a sua marca também nos Sovietes.
É preciso trabalhar sem desfalecimento para desenvolver a organização dos Sovietes e o Poder Soviético. Existe a tendência pequeno-burguesa para converter os membros dos Sovietes em «parlamentares» ou, por outro lado, em burocratas. É preciso lutar contra isto, chamando todos os membros dos Sovietes à participação prática na administração. Em muitos lugares, as secções dos Sovietes estão a transformar-se em órgãos que gradualmente se fundem com os comissariados. O nosso objectivo é chamar todos os pobres à participação prática na administração, e todos os passos para a realização disto — quanto mais variados melhor — devem ser registados, estudados e sistematizados minuciosamente, devem ser comprovados por uma experiência mais ampla, legalizados. O nosso objectivo é conseguir que cada trabalhador, depois de cumprir a «aula» de 8 horas de trabalho produtivo, cumpra de modo gratuito os deveres estatais: a passagem para isto é particularmente difícil, mas esta passagem é a única garantia da definitiva consolidação do socialismo. Naturalmente, a novidade e a dificuldade da mudança provoca uma grande abundância de passos dados, por assim dizer, às apalpadelas, uma grande abundância de erros e vacilações — sem isto não pode haver qualquer movimento brusco de avanço. Toda a originalidade da situação que vivemos consiste, do ponto de vista de muitos que desejam considerar-se socialistas, em que as pessoas se habituaram a opor de forma abstracta o capitalismo ao socialismo, e colocaram entre um e outro, com ar profundo, a palavra «salto» (alguns, recordando fragmentos lidos nas obras de Engels, acrescentavam com ar ainda mais profundo: «salto do reino da necessidade para o reino da liberdade»[N300]. A maioria dos chamados socialistas, que «leram nos livros» acerca do socialismo, mas que nunca aprofundaram a sério este problema, não sabem pensar que os mestres do socialismo chamaram «salto» à viragem considerada do ponto de vista das revoluções da história universal, e que os saltos desta natureza abrangem períodos de 10 anos e mesmo mais. Naturalmente que a famosa «intelectualidade» fornece em tais alturas uma quantidade infinita de carpideiras: uma chora pela Assembleia Constituinte, outra pela disciplina burguesa, a terceira pela ordem capitalista, a quarta pelo latifundiário culto, a quinta pelo espírito imperialista de grande potência, etc, etc.
O verdadeiro interesse da época dos grandes saltos consiste em que a abundância dos escombros do que é velho, acumulados por vezes com maior rapidez que os germes do que é novo (nem sempre visíveis, imediatamente), exige que se saiba destacar o mais essencial na linha ou na cadeia do desenvolvimento. Existem momentos históricos em que o mais importante para o êxito da revolução consiste em acumular a maior quantidade possível de escombros, isto é, fazer saltar o máximo de instituições velhas; existem momentos em que, depois de ter feito saltar o suficiente, se coloca na ordem do dia o trabalho «prosaico» («aborrecido» para o revolucionário pequeno-burguês) de limpar o terreno de escombros; existem momentos em que o mais importante é tratar com solicitude os germes do que é novo, que crescem por entre os escombros num terreno ainda mal limpo de entulho.
Não basta ser revolucionário e partidário do socialismo ou comunista em geral. É necessário saber encontrar em cada momento particular o elo particular da cadeia a que temos de nos agarrar com todas as forças para reter toda a cadeia e preparar solidamente a passagem para o elo seguinte; a ordem dos elos, a sua forma, o seu encadeamento, a diferença entre uns e outros na cadeia histórica dos acontecimentos não são tão simples nem tão rudimentares como uma cadeia vulgar feita pelo ferreiro.
A luta contra a deturpação burocrática da organização soviética é assegurada pela solidez dos laços dos Sovietes com o «povo», no sentido de trabalhadores e explorados, pela flexibilidade e elasticidade desses laços. Os pobres nunca consideram como instituições «suas» os parlamentos burgueses, mesmo na melhor república capitalista do mundo quanto a democratismo. Mas os Sovietes são «seus», e não alheios, para a massa de operários e camponeses. Aos actuais «sociais-democratas» do matiz de Scheidemann ou, o que é quase igual, de Mártov, os Sovietes desagradam-lhes e atrai-os o respeitável parlamento burguês ou a Assembleia Constituinte, do mesmo modo que a Turguénev, há sessenta anos, o atraía a moderada constituição monárquica e aristocrática e desagradava o democratismo mujique de Dobroliúbov e Tchernichévski.
É precisamente esta proximidade dos Sovietes do «povo» dos trabalhadores que cria formas especiais de revogação e de outro controlo a partir de baixo que devem agora ser desenvolvidas com particular zelo. Por exemplo os Sovietes de Instrução Pública, como conferências periódicas dos eleitores soviéticos e dos seus delegados para discutir e controlar a actividade das autoridades soviéticas neste domínio, merecem a maior simpatia e apoio. Nada existe de mais tolo que transformar os Sovietes em algo de fossilizado e auto-suficiente. Quanto maior for a decisão com que hoje devamos defender um poder firme e implacável, a ditadura de indivíduos para determinados processos de trabalho, em determinados momentos de funções puramente executivas, tanto mais variadas terão de ser as formas e os métodos de controlo a partir de baixo, para paralisar qualquer sombra de possibilidade de deturpação do Poder Soviético, para arrancar repetida e infatigavelmente a erva daninha do burocratismo.
Uma situação extraordinariamente dura, difícil e perigosa no aspecto internacional; necessidade de manobrar e de recuar; um período de espera de novas explosões da revolução, que amadurece com penosa lentidão no Ocidente; dentro do país um período de construção lenta e de «apertar» implacavelmente, de luta prolongada e tenaz da severa disciplina proletária contra os elementos ameaçadores do desleixo e da anarquia pequeno-burguesa — tais são, em poucas palavras, os traços distintivos da fase particular da revolução socialista que atravessamos. Tal é o elo da cadeia histórica dos acontecimentos a que temos de nos agarrar agora com todas as forças para nos mostrarmos à altura da tarefa até ao momento de passarmos ao elo seguinte, que nos atrai pelo seu particular brilho, pelo brilho das vitórias da revolução proletária internacional.
Tentai comparar com o conceito corrente, habitual, do «revolucionário» as palavras de ordem decorrentes das particularidades da fase que atravessamos: manobrar, recuar, esperar, construir lentamente, apertar implacavelmente, disciplinar com severidade, fulminar o desleixo... Será surpreendente que quando ouvem isto alguns «revolucionários» sejam tomados por uma nobre indignação e comecem a «fulminar-nos» por esquecimento das tradições da Revolução de Outubro, por conciliação com os especialistas burgueses, por compromissos com a burguesia, por espírito pequeno-burguês, por reformismo, etc, etc?
A infelicidade destes tristes revolucionários consiste em que, mesmo aqueles que trabalham guiados pelas melhores intenções do mundo e os que se distinguem pela absoluta fidelidade à causa do socialismo, não chegam a compreender o estado particular e particularmente «desagradável» pelo qual deve passar fatalmente um país atrasado, despedaçado por uma guerra reaccionária e infeliz, que iniciou a revolução socialista muito antes dos países mais adiantados, falta-lhes a firmeza necessária nos momentos difíceis de uma difícil transição. Naturalmente, a oposição «oficial» deste género ao nosso partido procede do partido dos socialistas-revolucionários de esquerda. Claro que existem e existirão sempre excepções individuais aos tipos de grupo ou de classe. Mas os tipos sociais ficam. Num país com um enorme predomínio da população dos pequenos proprietários sobre a puramente proletária, reflectir-se-á inevitavelmente — e de tempos a tempos reflectir-se-á com extrema agudeza — a diferença entre o revolucionário proletário e o pequeno-burguês. Este último vacila e oscila a cada viragem dos acontecimentos, passa de um revolucionarismo ardente em Março de 1917 à glorificação da «coligação» em Maio, ao ódio contra os bolcheviques (ou à lamentação do seu «aventureirismo») em Julho, a afastar-se deles, temeroso, em finais de Outubro, a apoiá-los em Dezembro; por último, em Março e Abril de 1918, os homens deste tipo franzem desdenhosamente o nariz e dizem: «Não sou dos que cantam hinos ao trabalho 'orgânico', ao praticismo e ao gradualismo.»
A fonte social de tais tipos é o pequeno patrão enraivecido pelos horrores da guerra, pela súbita devastação, pelos inauditos sofrimentos da fome e da ruína, que se debate histericamente, procurando a saída e a salvação, vacilando entre a confiança no proletariado e o apoio a ele, por um lado, e os acessos de desespero, por outro. Tem de se compreender claramente e assimilar firmemente que sobre semelhante base social não é possível construir qualquer socialismo. Só a classe que prossegue o seu caminho sem vacilações, que não desanima nem cai no desespero nos trajectos mais duros, difíceis e perigosos, pode dirigir as massas trabalhadoras e exploradas. Não precisamos de impulsos histéricos. Precisamos da marcha cadenciada dos batalhões de ferro do proletariado.
Notas de rodapé:
(1*) Ver Tomo II, Obras Escolhidas de V. I. Lénine em 3 Tomos, p.554 (N. Ed.) (retornar ao texto)
(2*) Ver Tomo II, Obras Escolhidas de V I Lénine em três Tomos, p. 554 (retornar ao texto)
Notas de fim de tomo:
[N293] A obra de V. I. Lênine As Tarefas Imediatas do Poder Soviético chamava-se no manuscrito Teses sobre as Tarefas do Poder Soviético no Momento Actual. As Teses de Lénine foram discutidas na reunião do CC do Partido realizado em 26 de Abril de 1918. O CC aprovou-as por unanimidade e resolveu publicá-las nos jornais Pravda e Izvéstia VtsIK e também em brochura separada. A brochura foi editada em inglês nesse mesmo ano em Nova Iorque e em francês em genebra; sob a redacção de F.Platten, foi editado em alemão, em Zurique, um resumo desta obra com o título de Am Tage nach der Revolution (No Dia Seguinte à Revolução). (retornar ao texto)
[N294] No dia 18 de Novembro (1 de Dezembro) de 1917 o Conselho de Comissários do Povo resolveu, por proposta de Lénine, aprovar a resolução "Acerca da remuneração dos Comissários do Povo e dos funcionários e empregados superiores". De acordo com essa resolução, o salário mensal máximo do Comissário do Povo era de 500 rublos, com um aumento de 100 rublos por cada membro de família incapacitado para o trabalho, o que equivalia ao salário médio de um operário. No dia 2 (15) de Janeiro de 1918 o Comissariado do Povo esclareceu que o decreto não proibia oferecer aos peritos um salário maior ao máximo anteriormente estabelecido e autorixou, de facto, uma remuneração mais elevada do trabalho dos cientistas e técnicos. (retornar ao texto)
[N295] O controlo sobre o comércio externo foi estabelecido logo nos primeiros dias do poder soviético. Em Dezembro de 1917 Lénine levantou a questão do estabelecimento do monopólio estatal do comércio externo. O decreto sobre o monopólio do comércio externo foi aprovado pelo Conselho de Comissários do Povo em 22 de Abril de 1918. (retornar ao texto)
[N296] Trata-se do "Regulamento sobre a Disciplina do Trabalho", adoptado pelo Conselho Central dos Sindicatos de Toda a Rússia em 3 de Abril e publicado na revista Naródnoe Khoziáistvo, n°2, de Abril de 1918. O Conselho dos Sindicatos propôs a introdução em todas as empresas estatais do país de regras rigorosas de ordem interna, o estabelecimento de normas de produção e de cálculo da produtividade do trabalho, a aplicação do pagamento do trabalho à peça e o estabelecimento de prémios pela superação das normas de produção, a aplicação de medidas severas contra os infractores da disciplina do trabalho. Na base das decisões adoptadas pelo Conselho Central dos Sindicatos de Toda a Rússia, o Comité Central do sindicato dos metalúrgicos deu indicações a todas as organizações de base sobre a aplicação na indústria metalúrgica do pagamento à peça e do sistema de prémios. O princípio do pagamento à peça foi definitivamente estabelecido pela publicação, em Dezembro de 1918, do Código de Leis do Trabalho soviético. (retornar ao texto)
[N297] Trata-se do decreto "Sobre a centralização da administração, a protecção dos caminhos-de-ferro e a elevação da sua produtividade". Tendo analisado em 18 de Março de 1918 um projecto de decreto proposto pelo Comissariado do Povo para as Vias de Comunicação sobre a não interferência das diferentes instituições nos assuntos do departamento dos caminhos-de-ferro, o Conselho dos Comissários do Povo encarregou uma comissão especial de elaborar um decreto na base das seguintes teses de Lénine: "1. Grande Centralização. 2. Nomeação de responsáveis em cada centro local, por escolha das organizações ferroviárias.3. Cumprimento obrigatório das ordens. 4. Direitos ditatoriais dos destacamentos de protecção militar encarregados de assegurar a ordem. 5. Medidas para o registo imediato do material circulante e sua localização. 6. Medidas para a criação da secção técnica. 7. Combustível." No projecto que foi apresentado pela comissão e analisado na reunião do Conselho de Comissários do Povo de 21 de Março, foram introduzidas por Lénine uma série de emendas substanciais, depois do que foi aprovado pelo governo. Em virtude de o decreto ter encontrado uma atitude hostil da parte da Comité Executivo dos Ferroviários de Toda a Rússia, que se encontrava sob forte influência dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários de esquerda, em 23 de Março o Comissariado do Povo para as Vias de Comunicação colocou na reunião do Conselho de Comissários do Povo a questão da sua alteração. Refutando as acusações dos adversários do decreto, Lénine esclareceu a necessidade de adopção das medidas mais firmes para a eliminação da sabotagem nos caminhos-de-ferro e introduziu emendas que reforçavam o decreto. O decreto foi definitivamente aprovado pelo governo com estas emendas em 23 de Março e publicado em 26 de Março no n° 57 do Izvéstia VtsIK, com a assinatura de Lénine. (retornar ao texto)
[N298] Vperiod (Avante): diário menchevique; editou-se em Moscovo, com interrupções, de Março de 1917 a Fevereiro de 1919. Foi fechado por exercer uma actividade contra-revolucionária. (retornar ao texto)
[N299] Nach Vek (O Nosso Século): um dos títulos do jornal dos democratas-constitucionalistas Retch (A Palavra). (retornar ao texto)
[N300] Lénine refere-se e cita a obra de F. Engels Anti-Dührinng. (In Karl Marx / Friederich Engels, Werke, Bd. 20, S. 264). (retornar ao texto)
Fonte |
Inclusão | 10/05/2009 |
Última alteração | 03/11/2011 |