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A questão do governo provisório revolucionário é o ponto central dos problemas tácticos da social-democracia no momento actual. Não há possibilidade nem necessidade de nos determos do mesmo modo pormenorizado no resto das resoluções da conferência. Limítar-nos-emos a indicar brevemente alguns pontos que confirmam a diferença de princípio por nós analisada mais atrás quanto à orientação táctica das resoluções do III congresso do POSDR e das resoluções da conferência.
Tomemos a questão da atitude em relação à táctica do governo em vésperas da revolução. Encontrareis, de novo, uma resposta integral a ela na resolução do III congresso do POSDR. Esta resolução tem em conta todas as diversas condições e tarefas de um momento particular: o desmascaramento da hipocrisia das concessões do governo e a utilização das «formas caricaturais de representação popular», a satisfação revolucionária das reivindicações urgentes da classe operária (em primeiro lugar a jornada de oito horas), e, por fim, a resistência aos cem-negros. Nas resoluções da conferência, a questão está dispersa em diversas secções: a «resistência às forças tenebrosas da reacção» só é mencionada nos considerandos da resolução sobre a atitude para com outros partidos. A participação nas eleições para as instituições representativas é examinada separadamente dos «compromissos» do tsarismo com a burguesia. Em vez de apelar para a implantação, por via revolucionária, da jornada de oito horas, uma resolução especial, intitulada pomposamente «sobre a luta económica», não faz mais do que repetir (depois de palavras sonoras e muito pouco inteligentes acerca do «lugar central ocupado pela questão operária na vida social russa») a velha palavra de ordem de fazer agitação pela «instituição legislativa da jornada de oito horas». A insuficiência e o atraso desta palavra de ordem no momento presente são demasiadamente claros para que seja necessário determo-nos a demonstrá-lo.
A questão da acção política aberta. O III congresso tem em conta uma próxima mudança radical da nossa actividade. Não se deve abandonar, de forma alguma, a actividade conspirativa e o desenvolvimento do aparelho conspirativo — isto seria fazer o jogo da polícia, e seria extraordinariamente vantajoso para o governo. Mas agora já não se pode deixar de pensar também na acção aberta. É preciso preparar imediatamente as formas convenientes desta acção e por conseguinte aparelhos especiais, menos conspirativos, para este fim. É necessário aproveitar as sociedades legais e semilegais para as converter tanto quanto possível em pontos de apoio do futuro partido operário social-democrata legal na Rússia.
Também aqui a conferência fragmenta a questão, sem dar nenhuma palavra de ordem completa. Ressalta especialmente a ridícula incumbência atribuída à Comissão de Organização de se ocupar da «colocação» dos literatos legais. É completamente absurda a decisão de «submeter à sua influência os jornais democráticos que se propõem como fim prestar ajuda ao movimento operário». Este fim é colocado por todos os nossos jornais liberais legais, que seguem quase totalmente a orientação da Osvobojdénie. Porque é que a redacção do Iskra não começa por seguir ela própria o seu conselho e não nos dá o exemplo de como submeter a Osvobojdénie à influência social-democrata? Em vez da palavra de ordem de aproveitar as associações legais para a criação de pontos de apoio do partido, dá-nos, em primeiro lugar, um conselho particular sobre as organizações unicamente «profissionais» (participação obrigatória dos membros do partido nelas) e, em segundo lugar, o conselho de dirigir «as organizações revolucionárias dos operários» = «organizações não legalizadas» = «clubes revolucionários de operários». Como é que estes clubes foram parar entre as organizações não legalizadas, que espécie de clubes são eles, só Alá o sabe. Em vez de directivas precisas e claras do organismo supremo do partido, vemos uns esboços de pensamentos e rascunhos de notas de literatos. Não aparece em nenhuma parte um quadro completo de como o partido deve começar a passar para uma base completamente diferente em todo o seu trabalho.
A «questão camponesa» é apresentada de maneira totalmente diferente pelo congresso do partido e pela conferência. O congresso elaborou uma resolução sobre «a atitude em relação ao movimento camponês». A conferência, uma sobre «o trabalho entre os camponeses». Num caso, são colocadas em primeiro plano as tarefas da direcção, no interesse da luta geral nacional contra o tsarismo, de todo o amplo movimento democrático revolucionário. No outro caso, a coisa reduz-se ao «trabalho» entre uma camada social determinada. Num caso apresenta-se, como palavra de ordem central prática da agitação, a criação imediata de comités camponeses revolucionários para a realização de todas as transformações democráticas. No outro, a «reivindicação da organização dos comités» deve ser apresentada à assembleia constituinte. Porque temos de esperar necessariamente por esta assembleia constituinte? Será ela, efectivamente, constituinte? será sólida, sem a constituição prévia e simultânea dos comités camponeses revolucionários? Todas estas questões não foram tomadas em conta pela conferência. Em todas as suas resoluções reflecte-se com efeito a idéia geral por nós assinalada de que na revolução burguesa devemos limitar-nos unicamente ao nosso trabalho particular, sem nos colocarmos o objectivo de dirigir todo o movimento democrático e de o guiar de modo independente. Tal como os «economistas» caíam permanentemente em que a luta económica era para os sociais-democratas e a luta política para os liberais, assim os neo-iskristas caem em todos os seus raciocínios em que nós deveríamos ocupar um modesto cantinho à margem da revolução burguesa, e que é a burguesia que deve realizá-la activamente.
Finalmente, não se pode deixar de assinalar a resolução sobre a atitude em relação aos outros partidos. A resolução do III congresso do POSDR fala em desmascarar toda a estreiteza e insuficiência do movimento de libertação burguês, sem alimentar a ideia ingénua de enumerar, de congresso em congresso, todos os possíveis casos desta estreiteza e de traçar uma linha de demarcação entre os burgueses bons e os burgueses maus. A conferência, repetindo o erro de Starover, procura tenazmente esta linha e desenvolve a famosa teoria do «papel de tornesol». Starover partia de uma idéia muito boa: apresentar à burguesia condições mais severas. Esquecia-se apenas de que qualquer tentativa para separar de antemão os democratas burgueses que merecem aprovação, um acordo, etc, e os que não merecem, conduz a uma «fórmula» que o desenvolvimento dos acontecimentos atira imediatamente pela borda fora e leva a confusão à consciência de classe proletária. O centro de gravidade transfere-se da unidade real na luta para declarações, promessas, palavras de ordem. Starover considerava que esta palavra de ordem radical era «o sufrágio universal, igual, directo e secreto». Não tinham passado nem dois anos e já o «papel de tornesol» tinha demonstrado a sua ineficácia, os osvobojdenistas apropriaram-se da palavra de ordem de sufrágio universal, mas nem por isso se aproximaram da social-democracia, antes pelo contrário tentaram, precisamente por meio desta palavra de ordem, enganar os operários e afastá-los do socialismo.
Agora os neo-iskristas impõem «condições» ainda mais «severas»: «exigem» dos inimigos do tsarismo «que apoiem de maneira enérgica e inequívoca (!?) todas as acções decididas do proletariado organizado», etc, e mesmo até «uma participação activa no auto-armamento do povo». A linha de demarcação foi levada muito mais além e, apesar disso, já está outra vez antiquada, demonstrou imediatamente ser inadequada. Porque é que, por exemplo, falta a palavra de ordem de república? Como é que, no interesse da «guerra revolucionária implacável contra todos os fundamentos do regime monárquico de estados sociais», os sociais-democratas «exigem» dos democratas burgueses tudo o que se queira menos a luta pela república?
Que esta questão não representa um mero desejo de criticar, que o erro dos neo-iskristas é da mais vital importância política, é demonstrado pela «União de Emancipação da Rússia» (ver Proletári, n.° 4)(29*). Estes «inimigos do tsarismo» responderão plenamente a todas as «exigências» dos neo-iskristas. E, entretanto, nós demonstrámos que o espírito osvobojdenista reina no programa (ou na falta de programa) desta «União de Emancipação da Rússia» e que os osvobojednistas podem levá-la a reboque com facilidade. Contudo a conferência declara, no final da resolução, que «a social-democracia continuará a opor-se, como sendo hipócritas amigos do povo, a todos os partidos políticos que, desfraldando a bandeira liberal e democrática, se negam a apoiar efectivamente a luta revolucionária do proletariado». A «União de Emancipação da Rússia» não só não nega como oferece empenhadamente este apoio. Será isto uma garantia de que os seus chefes não são «hipócritas amigos do povo» apesar de serem osvobojdenistas?
Como vedes, apresentando de antemão «condições» e colocando «exigências» cómicas pela sua temível impotência, os neo-iskristas colocam-se de imediato em situação ridícula. As suas condições e exigências revelam-se imediatamente insuficientes para apreciar a realidade viva. A sua corrida às fórmulas é sem esperança, uma vez que nenhuma fórmula é capaz de captar todas e cada uma das manifestações da hipocrisia, da inconsequência e da estreiteza da democracia burguesa. A questão não consiste no «papel de tornesol», nem em fórmulas, nem em exigências escritas e impressas, nem em traçar de antemão uma linha de demarcação entre os «amigos do povo» hipócritas e não hipócritas, mas na unidade real da luta, na crítica persistente, por parte dos sociais-democratas, de todo o passo «vacilante» da democracia burguesa. Para a «coesão autêntica de todas as forças sociais interessadas na reorganização democrática» não são necessários os «pontos» sobre os quais a conferência trabalhou com tanto empenho e tão inutilmente, mas capacidade de lançar palavras de ordem verdadeiramente revolucionárias. Para isto são necessárias palavras de ordem que elevem a burguesia revolucionária e republicana até ao nível do proletariado e que não rebaixem as tarefas do proletariado até ao nível da burguesia monárquica. Para isto é necessária a participação mais enérgica na insurreição, e não opor reservas verbalistas à tarefa inadiável da insurreição armada.
Estavam já escritas as linhas precedentes quando recebemos as resoluções da conferência caucasiana dos neo-iskristas publicadas pelo Iskra. Pour la bonne bouche (como sobremesa), não poderíamos imaginar melhor material.
A redacção do Iskra observa com razão: «Na questão fundamental da táctica, a conferência caucasiana adoptou também uma decisão análoga (é verdade!) à tomada pela conferência de toda a Rússia» (isto é, neo-iskrista...). «A questão da atitude da social-democracia em relação ao governo provisório revolucionário foi resolvida pelos camaradas caucasianos no sentido da atitude mais negativa perante o novo método preconizado pelo grupo do Vperiod e pelos delegados ao chamado congresso que aderiram a este grupo.» «É preciso reconhecer como muito feliz a formulação que a conferência deu da táctica do partido proletário na revolução burguesa.»
O que é verdade, é verdade. Ninguém teria podido dar uma formulação mais «feliz» do erro capital dos neo-iskristas. Vamos citar esta formulação completa, destacando primeiramente entre parêntesis as flores e depois os frutos apresentados no final.
Resolução da conferência caucasiana dos neo-iskristas sobre o governo provisório:
«Considerando que a nossa tarefa consiste em utilizar o momento revolucionário para aprofundar» (sim, naturalmente! Só que deviam ter acrescentado: aprofundar à maneira martinovista!) «a consciência social-democrata do proletariado» (unicamente para aprofundar a consciência e não para conquistar a república? Que «profunda» compreensão da revolução!), «a conferência, com o fim de garantir para o partido a mais completa liberdade de crítica em relação ao regime estatal-burguês nascente» (garantir a república não é a nossa missão! A nossa missão é unicamente garantir a liberdade de crítica. As idéias anarquistas engendram a linguagem anarquista: o regime «estatal-burguês»!), «declara-se contra a formação de um governo provisório social-democrata e contra a entrada nele» (lembrai-vos da resolução dos bakuninistas citada por Engels e adoptada dez meses antes da revolução espanhola: ver Proletári n.° 3 [N255] «e considera que o mais racional é exercer uma pressão de fora» (de baixo e não de cima) «sobre o governo provisório burguês para a democratização possível (?!) do regime estatal. A conferência crê que a formação de um governo provisório pelos sociais-democratas, ou a sua entrada neste, teria por efeito, por um lado afastar do partido social-democrata as grandes massas do proletariado, desapontadas com ele, pois a social-democracia, apesar da tomada do poder, não poderia satisfazer as necessidades vitais da classe operária até que se realize o socialismo» (a república não é uma necessidade vital! Os autores não notam, na sua inocência, que falam uma linguagem puramente anarquista, como se rejeitassem a participação nas revoluções burguesas!) «e, por outro lado, obrigaria as classes burguesas a afastar-se da revolução, diminuindo desse modo a sua amplitude.»
Aqui é que está o busílis. É aqui que as idéias anarquistas se entrelaçam (como acontece também constantemente com os bernsteinianos da Europa ocidental) com o mais puro oportunismo. Imaginem só: não entrar no governo provisório porque isso obrigaria a burguesia a afastar-se da revolução, diminuindo desse modo a amplitude da revolução! Temos aqui diante de nós, por inteiro, na sua forma pura e consequente, essa filosofia neo-iskrista segundo a qual, uma vez que a revolução é burguesa, devemos inclinar-nos ante a vulgaridade burguesa e ceder-lhe o passo. Se nos deixássemos guiar, ainda que parcialmente, ainda que por um minuto, pela consideração de que a nossa participação pode obrigar a burguesia a afastar-se, cederíamos totalmente, em consequência disso, a hegemonia na revolução às classes burguesas. Entregaríamos assim inteiramente o proletariado à tutela da burguesia (reservando-nos a completa «liberdade de crítica»!!), obrigando o proletariado a ser moderado e dócil para que a burguesia não se afaste. Castramos as necessidades mais vitais do proletariado, precisamente as suas necessidades políticas, que nunca foram bem compreendidas pelos «economistas» e seus epígonos, castramo-las para que a burguesia não se afaste. Passamos totalmente do terreno da luta revolucionária pela realização da democracia nos limites necessários ao proletariado para o terreno da traficância com a burguesia, comprando, pela nossa traição aos princípios, pela nossa traição à revolução, o consentimento voluntário da burguesia («para que não se afaste»).
Em duas breves linhas, os neo-iskristas caucasianos souberam exprimir toda a essência da táctica de traição à revolução, de conversão do proletariado num miserável apêndice das classes burguesas. O que deduzimos mais atrás dos erros do neo-iskrismo como tendência ergue-se agora perante nós num princípio claro e definido: ficar na cauda da burguesia monárquica. Como a realização da república obrigaria (e obriga já — serve de exemplo o Sr. Struve) a burguesia a afastar-se, então abaixo a luta pela república. Como toda a reivindicação democrática enérgica do proletariado levada até ao fim obriga sempre e em todo o mundo a burguesia a afastar-se, então — escondei-vos nos buracos, camaradas operários, actuai apenas de fora, não penseis em utilizar para a revolução os instrumentos e meios do regime «estatal-burguês» e reservai-vos a «liberdade de crítica».
Aqui se manifesta a falsidade fundamental, na própria compreensão do termo «revolução burguesa». A sua «compreensão» martinoviana ou neo-iskrista conduz directamente à traição à causa do proletariado no interesse da burguesia.
Quem tenha esquecido o antigo «economismo», quem não o estude, não se recorde dele, dificilmente poderá compreender a reminiscência actual do «economismo». Recordai o Credo bernsteiniano. Das opiniões e dos programas «puramente proletários», essas pessoas deduziram: para nós, sociais-democratas, o económico, a verdadeira causa operária, a liberdade de criticar qualquer politiquice, o verdadeiro aprofundamento do trabalho social-democrata. Para eles, para os liberais, a política. Deus nos livre de cair no «revolucionarismo»: isto obrigaria a burguesia a afastar-se. Quem reler inteiramente o Credo ou o Suplemento separado ao n.° 9 do Rabótchaia Misl (Setembro de 1899), verá todo o curso deste raciocínio.
Agora ocorre o mesmo, mas em grande escala, aplicado à apreciação de toda a «grande» revolução russa, infelizmente envilecida e rebaixada de antemão até à caricatura pelos teóricos do filisteísmo ortodoxo!. Para nós, sociais-democratas, a liberdade de crítica, o aprofundamento da consciência, a acção de fora. Para eles, para as classes burguesas, a liberdade de acção, o campo livre para a sua direcção revolucionária (lede: liberal), a livre realização de «reformas» de cima.
Estes vulgarizadores do marxismo nunca meditaram nas palavras de Marx a respeito da substituição necessária da arma da crítica pela crítica das armas [N256]. Invocando em vão o nome de Marx, de facto elaboram resoluções tácticas absolutamente no espírito dos palradores burgueses de Frankfurt, que criticavam livremente o absolutismo, aprofundavam a consciência democrática e não compreendiam que o tempo da revolução é o tempo da acção, da acção tanto de cima como de baixo. Ao converter o marxismo em verbalismo, fizeram da ideologia da classe revolucionária mais avançada, decidida e enérgica uma ideologia dos sectores menos desenvolvidos desta, os quais se esquivam às difíceis tarefas democráticas revolucionárias e confiam estas tarefas democráticas aos senhores Struve.
Se, devido à entrada da social-democracia no governo revolucionário, as classes burguesas se afastarem da causa da revolução, desse modo «diminuirá a sua amplitude».
Ouvi, operários russos: a amplitude da revolução será maior se a fizerem, não assustados pelos sociais-democratas, os senhores Struve , que não querem a vitória sobre o tsarismo, mas um arranjo com ele. A amplitude da revolução será mais forte se, dos dois desenlaces possíveis apontados mais atrás por nós, se realizar o primeiro, isto é, se a burguesia monárquica chegar a um entendimento com a autocracia na base de uma constituição de tipo chipovista!
Os sociais-democratas que, em resoluções para a direcção de todo o partido, escrevem coisas tão vergonhosas ou aprovam estas «felizes» resoluções, estão a tal ponto obcecados por este verbalismo que retirou ao marxismo todo o espírito vivo, que não vêem como estas resoluções convertem em frases ocas todas as suas outras palavras excelentes. Tomai qualquer um dos seus artigos no Iskra, tomai mesmo a famosa brochura do nosso ilustre Martínov e neles encontrareis divagações sobre a insurreição popular, sobre levar a revolução até ao fim, sobre apoiar-se nas camadas populares mais baixas na luta contra a burguesia inconsequente. Mas todas estas excelentes coisas se convertem em frases miseráveis a partir do momento em que aceitais ou aprovais a ideia de que a amplitude da revolução «diminuirá» se a burguesia se separar dela. Das duas uma, senhores: ou devemos esforçar-nos por fazer a revolução com o povo e alcançar uma vitória completa sobre o tsarismo, apesar da burguesia inconsequente, egoísta e cobarde; ou não admitimos este «apesar», tememos que a burguesia «se afaste», e então traímos o proletariado e o povo a favor da burguesia, da inconsequente, egoísta e cobarde burguesia.
Que não vos venha à ideia interpretar mal as minhas palavras. Não griteis que vos acusamos de traição consciente. Não, vós sempre tivestes a tendência para deslizar para o pântano em que agora estais afundados com a mesma inconsciência com que os antigos «economistas» resvalavam irresistível e irremediavelmente pelo plano inclinado do «aprofundamento» do marxismo até às «subtilezas» anti-revolucionárias, sem alma e sem vida.
De que forças sociais reais depende a «amplitude da revolução»? Tereis pensado nisso, senhores? Deixemos de lado as forças da política externa, das combinações internacionais, que ganham agora uma forma muito vantajosa para nós, mas que omitimos no nosso exame, e omitimos com toda a razão, pois do que se trata é das forças internas da Rússia. Examinai estas forças sociais internas. Contra a revolução levanta-se a autocracia, a corte, a polícia, o funcionalismo, o exército e um punhado de grandes aristocratas. Quanto mais profunda é a indignação do povo, menos seguro se torna o exército, maior é a vacilação no funcionalismo. Por outro lado, a burguesia no seu conjunto está agora pela revolução e mostra o seu zelo com discursos sobre a liberdade, falando cada vez com maior frequência em nome do povo e mesmo em nome da revolução(30*). Mas todos nós, marxistas, sabemos pela teoria e observamos dia a dia e hora a hora no exemplo dos nossos liberais, dos nossos zemtsi e dos nossos osvobojdenistas que a burguesia está pela revolução de uma forma inconsequente, egoísta e cobarde. A burguesia na sua massa voltar-se-á inevitavelmente para o lado da contra-revolução, para o lado da autocracia contra a revolução, contra o povo, logo que sejam satisfeitos os seus interesses estreitos e egoístas, logo que «se afaste» do espírito democrático consequente (e já se está a afastar dele!). Fica o «povo», isto é, o proletariado e o campesinato: somente o proletariado é capaz de ir firmemente até ao fim, pois vai muito além da revolução democrática. Por isso o proletariado luta nas primeiras filas pela república e repele com desprezo os conselhos estúpidos e indignos dele dos que lhe dizem para ter em conta a possibilidade de afastar a burguesia. O campesinato inclui, ao lado dos elementos pequeno-burgueses, uma massa de elementos semiproletários. Isto fá-lo ser também instável, obrigando o proletariado a unir-se num partido rigorosamente de classe. Mas a instabilidade do campesinato é radicalmente diferente da instabilidade da burguesia, pois neste momento o campesinato está interessado não tanto na defesa incondicional da propriedade privada como na expropriação da terra dos latifundiários, que é uma das principais formas desta propriedade. Sem se converter por isso em socialista, nem deixar de ser pequeno-burguês, o campesinato é capaz de se tornar o mais perfeito e radical partidário da revolução democrática. O campesinato tornar-se-á inevitavelmente assim desde que o curso dos acontecimentos revolucionários, para ele esclarecedor, não se interrompa demasiado cedo pela traição da burguesia e pela derrota do proletariado. O campesinato tornar-se-á inevitavelmente, nestas condições, um baluarte da revolução e da república, já que só uma revolução plenamente vitoriosa pode dar ao campesinato tudo em matéria de reforma agrária, tudo o que o campesinato quer, o que sonha e de que necessita na realidade (não para a abolição do capitalismo, como imaginam os socialistas-revolucionários, mas) para sair da lama da semi-servidão, das trevas do embrutecimento e do servilismo, para melhorar as suas condições de vida na medida em que tal seja possível nos limites da economia mercantil.
Mais ainda. Não é só a transformação agrária radical que liga o campesinato à revolução, mas também todos os interesses gerais e permanentes do campesinato. Mesmo na luta contra o proletariado, o campesinato tem necessidade da democracia, pois apenas o regime democrático é capaz de expressar com exactidão os seus interesses e de lhe dar a preponderância, como massa, como maioria. Quanto mais instruído for o campesinato (e, desde a guerra com o Japão, ele instrui-se com uma rapidez que muitos não suspeitam sequer, habituados como estão a avaliar a instrução pela medida da escola), mais consequente e decididamente será pela revolução democrática completa, porque não tem medo, como a burguesia, do domínio do povo, antes o considera vantajoso. A república democrática converter-se-á no seu ideal logo que comece a libertar-se do seu monarquismo ingénuo, pois o monarquismo consciente da burguesia traficante (com uma Câmara Alta, etc.) significa para o campesinato a mesma ausência de direitos, o mesmo embrutecimento e ignorância, ligeiramente retocados com um verniz europeu-constitucional.
Eis porque a burguesia, como classe, tende a colocar-se natural e inevitavelmente sob a asa do partido liberal-monárquico, enquanto o campesinato, como massa, tende a colocar-se sob a direcção do partido revolucionário e republicano. Eis porque a burguesia não é capaz de levar a revolução democrática até ao fim, enquanto o campesinato é capaz de levar a revolução até ao fim, e nós devemos ajudá-lo nisto com todas as forças.
Objectar-me-ão: não é preciso demonstrar isso, isso é o á-bê-cê, isso todos os sociais-democratas compreendem perfeitamente. Não, não compreendem isto aqueles que são capazes de falar de «diminuição da amplitude» da revolução no caso de a burguesia se afastar dela. Essa gente repete palavras do nosso programa agrário aprendidas de cor, mas cujo sentido não compreende, pois de outro modo não teria medo da ideia de ditadura revolucionária democrática do proletariado e do campesinato, que decorre inevitavelmente de toda a concepção do mundo marxista e do nosso programa, de outro modo não limitaria a amplitude da grande revolução russa à amplitude da burguesia. Essa gente refuta concludentemente as suas frases revolucionárias marxistas abstractas com as suas resoluções anti-revolucionárias e antimarxistas concretas.
Quem compreender verdadeiramente o papel do campesinato na revolução russa vitoriosa será incapaz de dizer que a amplitude da revolução diminuirá se a burguesia se afastar. Porque na realidade a revolução russa não começará a adquirir a sua verdadeira amplitude, não começará a adquirir a maior amplitude revolucionária possível na época da revolução democránco-burguesa, enquanto a burguesia não se afastar e a massa do campesinato não intervier como força revolucionária activa ao lado do proletariado. Para ser levada consequentemente até ao fim, a nossa revolução democrática deve apoiar-se em forças capazes de paralisar a inevitável inconsequência da burguesia (isto é, capazes precisamente de «obrigá-la a afastar-se», que é o que temem, irreflectidamente, os partidários caucasianos do Iskra).
O proletariado deve levar até ao fim a revolução democrática, atraindo a si a massa do campesinato, a fim de esmagar pela força a resistência da autocracia e paralisar a instabilidade da burguesia. O proletariado deve levar a cabo a revolução socialista, atraindo a si a massa dos elementos semiproletários da população, a fim de quebrar pela força a resistência da burguesia e paralisar a instabilidade do campesinato e da pequena burguesia. Tais são as tarefas do proletariado, que os neo-iskristas concebem de modo tão estreito em todos os seus raciocínios e resoluções sobre a amplitude da revolução.
Não se deve esquecer só uma circunstância que frequentemente se perde de vista quando se discorre sobre esta «amplitude». Não se deve esquecer que não se trata aqui das dificuldades da tarefa, mas sim da via na qual é preciso procurar e encontrar a sua solução. Não se trata de que seja fácil ou difícil fazer com que a amplitude da revolução seja poderosa e invencível, mas do que se deve fazer para fortalecer esta amplitude. O desacordo refere-se precisamente ao carácter fundamental da actividade, da sua própria orientação. Sublinhamos isto porque pessoas desatentas e pouco escrupulosas confundem com demasiada frequência duas questões diferentes: a questão da via a seguir, isto é, da escolha de uma entre duas vias diferentes, e a questão da facilidade da realização do fim ou da proximidade da sua realização na via escolhida.
Não nos referimos em absoluto na exposição precedente a esta última questão, porque esta questão não suscitou desacordos e divergências no seio do partido. Mas, evidentemente, a questão é em si mesma extremamente importante e digna da maior atenção por parte de todos os sociais-democratas. Seria de um optimismo imperdoável esquecer as dificuldades ligadas à integração no movimento das massas não só da classe operária como também do campesinato. Precisamente nestas dificuldades fracassaram mais de uma vez os esforços para levar até ao fim a revolução democrática, triunfando sobretudo a burguesia inconsequente e egoísta, que tanto «retirou capital» da defesa monárquica contra o povo, como «conservou» a «virgindade» do liberalismo... ou do «osvobojdenismo». Mas dificuldade não é impossibilidade. O importante é a certeza de ter escolhido a via justa. E esta certeza centuplica a energia revolucionária e o entusiasmo revolucionário, capazes de realizar milagres.
O grau de profundidade da divergência entre os sociais-democratas actuais sobre a questão da escolha da via surge imediatamente com evidência quando se compara a resolução caucasiana dos neo-iskristas com a resolução do III congresso do Partido Operário Social-Democrata da Rússia. A resolução do congresso diz: a burguesia é inconsequente, procurará inevitavelmente arrancar-nos as conquistas da revolução. Preparai-vos, portanto, mais energicamente para a luta, camaradas operários, armai-vos, atraí para o vosso lado o campesinato. Não cederemos sem luta as nossas conquistas revolucionárias à burguesia egoísta. A resolução dos neo-iskristas caucasianos diz: a burguesia é inconsequente, pode afastar-se da revolução. Portanto, camaradas operários, não penseis por favor em participar no governo provisório, pois então a burguesia afastar-se-á sem falta, e a amplitude da revolução será por isso diminuída!
Uns dizem: impulsionai a revolução para diante, até ao fim, apesar da resistência ou da passividade da burguesia inconsequente.
Os outros dizem: não penseis em levar a revolução até ao fim de maneira independente, porque então a burguesia inconsequente se afastará dela.
Não nos encontramos nós em presença de duas vias diametralmente opostas? Não é evidente que uma táctica exclui absolutamente a outra? Que a primeira táctica é a única táctica justa da social-democracia revolucionária, enquanto a segunda é no fundo uma táctica puramente osvobojdenista?
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Notas de Rodapé:
(29*) No n.° 4 do Proletâri, saído em 4 de junho de 1905, foi publicado um extenso artigo intitulado Nova União Operária Revolucionária. (Ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5.a ed. em russo, t. 10, pp. 278-290. - N. Ed.) No artigo dá-se a conhecer o conteúdo dos apelos uesta União, que tomou o nome de «União de Emancipação da Rússia» e que se colocava como objectivo convocar, por meio da insurreição armada, a assembleia constituinte. Mais adiante, o artigo define a atitude da social-democracia cm relação a estas uniões sem partido. Ignoramos em absoluto em que medida tal união teve existência real e qual foi a sua sorte na revolução. (Nota de Lénine para a edição de 1907. - N. Ed.) (retornar ao texto)
(30*) Neste sentido, é interessante a carta aberta do Sr. Struve a Jaurès, publicada por este há pouco no jornal l'Humanité [N 257] e pelo Sr. Struve na Osvobojdénie n.° 72. (retornar ao texto)
Notas de Fim de Tomo:
[N255] No n.° 3 do jornal Proletári foi publicado o artigo de V. I. Lénine Sobre o GovernoProvisório Revolucionário (artigo dois). Nele Lénine cita o artigo de F. Engels Os Bakuninistas em Acção. Notas sobre a Insurreição em Espanha no Verão de 1873, no qual se critica a resolução dos bakuninistas, mencionada por Lénine. (retornar ao texto)
[N256] Alude-se à afirmação de Marx na sua obra Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (retornar ao texto)
[N257] L’Humanité (A Humanidade), jornal diário fundado em 1904 por J. Jaurès, como órgão
do Partido Socialista Francês. Em 1905 o jornal saudou a revolução que se iniciara na
Rússia. Nos anos da primeira guerra mundial (1914-1918) o jornal estava nas mãos da
ala de extrema-díreita do Partido Socialista Francês e ocupava uma posição chauvinista.
Em 1919 o jornal passou a ser dirigido pela eminente personalidade do movimento operário francês e internacional Marcel Cachin. Em 1918-1920 o jornal pronunciou-se contra a política imperialista do governo francês, que enviou tropas para lutarem contra o País dos Sovietes.
A partir de Dezembro de 1920, depois da cisão do Partido Socialista Francês em Tours e da formação do Partido Comunista Francês, o jornal passou a ser o órgão central deste. (retornar ao texto)
Inclusão | 17/04/2007 |