A Teoria do Materialismo Histórico
Manual Popular de Sociologia Marxista

N. Bukharin


Capítulo VI - O equilíbrio entre os elementos da sociedade - (continuação)


capa
§ 38. A superestrutura e suas formas
(continuação)

Passemos agora das normas de conduta aos fenômenos sociais, de ordem diferente, à ciência e à filosofia. A filosofia, como veremos, é baseada sobre o conjunto dos conhecimentos científicos. Quanto à ciência, ela é uma grandeza extremamente complexa, se considerarmos uma ciência mais ou menos desenvolvida. Em primeiro lugar ela não se limita a um só sistema de idéias. A ciência tem a sua técnica, o seu aparelhamento material (instrumentos, cartas, livros, laboratórios, museus, etc; tomemos, por exemplo, um grande laboratório qualquer, ou uma expedição científica ao pólo norte ou à África central); temos aqui um aparelho humano, organizado às vezes em grande escala (por exemplo, congressos científicos, conferências, sociedades e outras organizações com suas diversas publicações periódicas ou não). Temos enfim um sistema do idéias dispostas numa certa ordem e que constituem a ciência no sentido próprio da palavra.

É preciso primeiro estabelecer a seguinte proposição: cada ciência nasce da prática, das condições e das necessidades da luta pela vida, do homem social com a natureza e dos diversos agrupamentos sociais com o elemento social ou com outros agrupamentos sociais. O homem selvagem faz múltiplas experiências. Ele reconhece as plantas comestíveis e venenosas; ele encontra animais aos quais dá caça seguindo as suas pegadas e sabe defender-se contra as feras e as serpentes venenosas. Ele sabe servir-se do fogo e da água, procurar as pedras e as madeiras para suas armas; aprende a fundir e a trabalhar os metais. Ele chega a contar por meio de seus dedos, a medir as distancias com suas mãos e pés. Qual uma criança, contempla o céu, observa a sua rotação e o movimento do sol e dos planetas. Mas todas, ou a maior parte de suas observações, são feitas acidentalmente, ou tendo em vista a sua aplicação útil. A própria experiência primitiva constitui um gérmen das diversas ciências. Mas a ciência não pôde nascer senão quando a segurança material facultou aos homens bastante lazer e, por outro lado, quando o espírito humano, pelo exercício refletido, se havia fortificado ao ponto de fazer nascer no homem o interesse pela própria observação. (Mach.: La connaissance et Verreur). Por conseguinte, a ciência não apareceu senão quando o desenvolvimento das forças produtivas criou tempo disponível para as observações cientificas. De outro lado, as matérias de que dispunha primitivamente a ciência, eram as da produção. É natural que os esforços feitos para sustentar a vida pela produção, isto é, o interesse da produção, tenham dado impulso ao desenvolvimento da ciência. A prática fez nascer a teoria e impulsionou-a para a frente.

A astronomia, por exemplo, tem a sua origem na necessidade de orientar-se pelas estrelas, na necessidade de definir a importância das estações para a agricultura, na necessidade de uma divisão exata do tempo (verificam-se os relógios por métodos astronômicos), etc... A física estava em relação direta com a técnica da produção material e com a arte da guerra. A química tem sua origem no desenvolvimento da produção industrial e em particular da indústria mineira. (Encontramos já um princípio de química no Egito e na China, em correlação com a fabricação do vidro, com a tinturaria, com a arte do esmalte, com a preparação das cores, com a metalurgia, etc; a palavra "química" provêm da palavra "chemi", isto é, preto, e indica a sua origem egípcia). A alquimia já era conhecida pelos egípcios e explica-se pelo desejo de encontrar o método para transmutar os metais em ouro; no XV século a química recebeu também o impulso da medicina. A mineralogia tem suas origens no emprego industrial dos minérios e o estudo de suas propriedades, para as necessidades da produção. A botânica baseava-se primitivamente no estudo das plantas medicinais, em seguida das plantas úteis em geral, e enfim de todas as plantas. A zoologia, isto é, a ciência dos animais, desenvolveu-se graças à necessidade de conhecer suas propriedades úteis e nocivas. A anatomia, fisiologia e patologia originam-se da medicina prática (os primeiros "sábios" neste domínio foram médicos egípcios, hindus, gregos e romanos: por exemplo, o grego Hipócrates, o romano Claudio Gatiano e outros). A geografia e a etnografia desenvolveram-se sobre o terreno do comércio e das guerras coloniais. Os povos mais comerciais da antiguidade (por exemplo, os fenícios, cartagineses, etc.) eram ao mesmo tempo os melhores geógrafos. Na idade média, a ciência da geografia parou no seu desenvolvimento. Ela começa a fazer progressos enormes nos tempos modernos, desde o XV século, na época das guerras coloniais, comerciais e capitalistas, e das grandes viagens que a elas se prendem e que têm um caráter meio comercial, meio cientifico, e em parte, também, de rapina. Entre os Estados que forneceram o maior número de viajantes exploradores, o primeiro lugar cabe a Portugal, Espanha, Inglaterra e Holanda. A etnografia desenvolveu-se também com a política colonial (a questão é posta praticamente no seguinte pé: como levar os selvagens a trabalhar para a burguesia "civilizada"). As matemáticas, uma das ciências que parece mais afastada da vida prática, estão, entretanto, ligadas a esta pela sua origem.

Os seus primeiros instrumentos, tanto quanto os da produção material, foram os dedos das mãos o dos pés (contar nos dedos; o sistema de contar por cinco, dez, vinte; o sistema primitivo de medir os ângulos, etc. pela flexão dos joelhos; uma idéia de medida do espaço com os cotovelos, pés), etc... (ver M. Cantor: Vorlesungen uber die Gescfoichte der Mathematik — "Leituras sobre a história das matemáticas", Leipzig, 1907). O seu material era constituído pelas necessidades da produção: a medida dos campos (geometria significa ciência de medir a terra), a medida de capacidade dos vasos, a construção dos navios antes mesmo da contagem dos rebanhos; nas épocas comerciais, os cálculos dos balanços, etc. Os geômetras egípcios e gregos, assim como os romanos, os engenheiros de Alexandria (como por exemplo, Heron, que inventou uma espécie de turbina a vapor) foram também os primeiros matemáticos. (Ver: Rudolph Hisler: Geschichte der Wissenschaften — "História da ciência", Leipzig, 1906).

As coisas se passaram diferentemente nas ciências sociais (a isto nos referimos na introdução). A história tem sua origem na necessidade de ver claro no destino dos povos, tendo em vista uma, política prática. A ciência do direito principiou pela codificação das leis que existiam com uma finalidade prática. A economia política nasceu com o capitalismo, primeiro como ciência dos comerciantes que dela se serviam para os fins de sua política de classe. A filologia não foi a princípio senão a ciência da gramática das diferentes línguas e teria por base as relações comerciais e suas necessidades. A estatística tem sua fonte nos "quadros" que os comerciantes estabeleciam para os diferentes países (esta é também em parte a origem da economia política: o pai dessa ciência, William Petty denomina uma de suas obras "Aritmética política"), etc. Nós mesmos assistimos ao nascimento de novas ciências que se originam na produção: assim, por exemplo, a experiência técnica da aplicação do sistema Taylor dá à luz a uma "psicotécnica", psico-fisiologia do trabalho, isto é, a ciência da organização da produção, etc....

Desenvolvendo-se, as ciências crescem e se dividem em ramos particulares (em especialidades). Entretanto, pode-se sempre demonstrar que, direta ou indiretamente, elas dependem do estado das forças produtivas.

Do mesmo modo pelo qual, na sua atividade imediata, material e produtiva a sociedade «prolonga» seus órgãos humanos naturais e, graças a esses órgãos prolongados, «mau grado à Bíblia», graças à técnica, pode apoderar-se de uma quantidade muito maior de matéria para a fabricação, assim também, na ciência, a sociedade humana encontra uma consciência «prolongada» que aumenta a potência de sua visão intelectual, permite abraçar, «compreender» uma maior quantidade de fenômenos, permite esclarecê-los melhor e, por conseguinte, agir melhor.

É curioso verificar que muitos sábios burgueses que falam da ciência de uma maneira concreta, colocam-se contra a sua vontade no ponto de vista materialista. Mas Deus os preserve de tirar disto todas as consequências lógicas! Vejamos como se exprime a respeito do sentido da ciência um sábio russo eminente, o professor A. Tchuprov (filho):

"Enquanto a vida não é complicada, a humanidade se contenta com a sua vida quotidiana de "experiência",

— esse meio acidental de recolher fragmentos de ciência e de adotar hábitos que passam por tradição de pai para filho. Mas, ao mesmo tempo que se alarga o círculo dos interesses, esses conhecimentos disformes deixam de estar à altura do seu papel e então aparece a necessidade de um trabalho sistemático, dirigido conscientemente para o fim de conhecer o mundo, isto é, para a ciência. Começando a notar que scientia et potentia humana in idem coincidunt(1) e que quod in contemplatione instar causae est, id in operatione instar regulae est(2), os homens se compenetram da idéia que ignoratio causae destituit effectum(3) e aprendem a apreciar... a ciência como base do trabalho prático". (Ver: "Ensaios da teoria de estatística". Petrograd, 1909).

As relações entre o estado da ciência e das forças produtivas sociais são muito complicadas. Elas não são de modo algum tão simples quanto se afirma às vezes e, para isto se poder verificar, é preciso estudar o problema sob seus diferentes aspectos. Sabemos que a ciência tem a sua técnica própria, sua própria organização de trabalho, seu conteúdo, método, etc.... Todas essas partes componentes influem certamente umas sobre as outras e sobre o estado inteiro de uma ciência em determinada época. Compreende-se portanto que seja necessário examinar a questão relativamente a cada um desses elementos e demonstrar as ligações diretas ou indiretas que os unem à economia e em ultimo lugar à técnica social.

Está claro que antes de tudo, para a existência da ciência em geral, é preciso que as forças produtivas tenham atingido um certo nível de desenvolvimento. Onde o trabalho não existe, ou se acha limitado e não aumenta, a ciência não pode desenvolver-se.

Essa necessidade da ciência não pode aparecer senão o homem ultrapassou o momento em que seus outros apetites foram satisfeitos. Certos dados da ciência nos vêm da China, Índia, Egito, mas, coisa curiosa, nesses lugares eles se desenvolveram de maneira muito imperfeita. (A. Bordeaux: "Histoire des sciences phisiques, chimiques et geologiques au XIXéme siécle" — História das ciências físicas, químicas e geológicas no XIX século. Paris e Liége, 1921. pag. 11).

O conteúdo da ciência é determinado no fim de contas pelo lado técnico e econômico da sociedade («as raízes práticas», às quais nos referimos acima). Assim, acontece frequentemente que a mesma descoberta científica, a mesma invenção, a formulação e solução do mesmo problema têm lugar simultaneamente em diversos lugares e de maneira perfeitamente «independente» umas das outras. As «idéias» correspondentes estão nesse momento «no ar». Isto significa que elas nascem no ambiente, que por sua vez depende do estado das forças produtivas.

A. Bordeaux, na sua História, cita as invenções seguintes que, segundo ele, são provocadas "pela existência das idéias no ar e pelas circunstancias da vida": A descoberta da relação do calor e do trabalho mecânico, a indução, a bobina de indução, o anel de Gramm, o cálculo infinitesimal, (além de Leibnitz e Newton, ele cita os seus predecessores — Fermat, Cavalieri, etc. até Arquimedes). A sua conclusão é a seguinte:

"No que concerne à ciência, é muitas vezes difícil saber-se quem, na realidade, é o autor de uma determinada descoberta" (O. C. p. 8).

É preciso observar que o sentido prático a ciência não pressupõe de modo algum que toda proposição científica influi diretamente na prática. Vamos supor que a proposição em importância para a vida prática. Mas para demonstrar essa proposição necessita-se também das proposições B, C e D. Essas três últimas por si mesmas, não têm importância prática imediata (elas apresentam, como se diz, um "interesse puramente teórico"). Mas como elo de uma só corrente científica, elas não deixam de ter uma certa importância prática e direta. Não existe nenhum sistema científico inútil, como não existe instrumento mecânico que não sirva para nada e que não tenha significação.

Se os problemas são propostos principalmente pela técnica e pela economia, a sua solução, pelo contrário, depende das modificações que aparecem na técnica científica. Os instrumentos de pesquisa científica alargam enormemente nossos horizontes. Assim, por exemplo, inventou-se o microscópio na primeira metade do século XVII. Compreende-se sem dificuldade a influência enorme que ele exerceu sobre o desenvolvimento da ciência. Ele fez progredir a botânica (estudo da anatomia das plantas), a anatomia dos animais, a anatomia do homem; criou todo um ramo novo da ciência, a bacteriologia, etc. O papel da técnica astronômica é também compreensível (o aparelhamento dos observatórios, a qualidade dos telescópios, dos aparelhos para fotografar, os astros, etc). Por seu lado, a técnica científica depende da produção material em geral (ela é o produto do trabalho material). Há habitualmente no trabalho cientifico uma organização apropriada, organização que determina também o estado da ciência. A divisão do trabalho cientifico (especialidade na ciência), a organização dos estabelecimentos científicos (laboratórios, por exemplo), das sociedades de altos estudos e das trocas cientificas, desempenham um papel muito importante. Todos estes lados do trabalho cientifico são determinados, no fim de contas, pelas condições econômicas e técnicas (assim, por exemplo, os laboratórios químicos modernos dependem do desenvolvimento da grande indústria): as trocas cientificas são maiores ainda se levarmos em conta que os laços econômicos determinam a ciência ainda por outras relações. A técnica desenvolvendo-se rapidamente, as relações econômicas, e com elas toda a estrutura da vida, transforma-se com rapidez. Em presença disso, não somente a ciência se desenvolve muito rapidamente, mas ela é ainda guiada pela idéia da modificação (ela se serve do método dinâmico, ver capítulo 3.º). Ao contrário, com uma técnica conservadora que evolui lentamente, a vida econômica se desenvolve também lentamente e a psicologia humana é tal que os homens encaram tudo debaixo dum aspecto estável; a ciência caminha devagar; ao mesmo tempo o caráter de classe aparece na ciência sob varias formas; seja como o reflexo da maneira de pensar, que é peculiar a uma certa classe, seja como o reflexo do interesse dessa classe. E o modo de pensar, o «interesse», etc, são determinados por sua vez pela estrutura econômica da sociedade.

Vejamos alguns exemplos dessas correlações. Sabe-se que a técnica desenvolvia-se muito lentamente no mundo antigo; também os conhecimentos técnicos progrediam muito lentamente. (Esse desprezo da técnica tem diversas causas. Em 1.º lugar, o mundo antigo... tem tendência extremamente aristocrática. Os artistas mais eminentes, como Fidias, são apreciados como artesãos e não quebram esse muro de bronze que separa os meios aristocráticos... dos artesãos e dos camponeses... Uma outra causa do fraco desenvolvimento nas invenções técnicas... reside na economia antiga, baseada na escravidão... os impulsos faltavam para introduzir as máquinas que substituem o trabalho manual... A ciência... era morta e o interesse pelos problemas técnicos (com exceção de alguns objetos de divertimento tais como o relógio ou o órgão hidráulico) havia desaparecido (Htermann Diels: Wissenchaft und Technik bei den Hellenen em Antike Technik — "A ciência e a técnica dos helênicos, na técnica antiga", edição Teubner, Leipzig e Berlim, 1920 — pags. 31-33). São essas condições que determinaram o caráter da ciência nessa época:

"As ciências naturais desenvolveram-se a partir dos ofícios, a titulo acessório. Mas o oficio, e em geral o trabalho físico, eram desprezados na antiguidade, e existia uma linha de demarcação muito nítida entre os escravos ocupados no trabalho físico e observando a natureza, e os patrões que filosofavam à vontade, mas que frequentemente só conheciam a natureza por informações. É assim que se explica em parte tudo o que há de ingênuo, nebuloso e fantasista nas ciências naturais da antiguidade". (E. Mach: "O conhecimento e o erro").

Na idade média, temos uma técnica atrasada, que se desenvolve mal e na vida econômica relações de servidão feudal onde se estabelecia toda uma escala de poderes superpostos, terminando no principal senhor que era ao mesmo tempo o monarca. Assim se explica que o pensamento dominante fosse pouco móvel, oposto a qualquer novidade (esquartejavam-se e queimavam-se os heréticos); não se estudava a natureza, mas mergulhava-se nos problemas da teologia procurando por exemplo, resolver o problema de saber "qual era a estatura de Adão, se ele era moreno ou louro", para quantos anjos havia lugar sobre a ponta de uma agulha, etc. Esse caráter imóvel, conservador, teológico, vazio (formal, "escolástico"), da ciência, inimiga das pesquisas experimentais, explica-se pelas condições da vida social, e, no fim de contas, pelas condições técnicas e econômicas que estavam na base da evolução social. As coisas mudaram completamente com o desenvolvimento das relações capitalistas. Aqui, estamos em presença, não mais de uma técnica pouco móvel, mas desenvolvendo-se, ao contrario, muito rapidamente; aparecem constantemente novos ramos de indústria; há necessidade de mecânicos, técnicos, químicos, engenheiros, etc.... e não mais de teólogos e de cavaleiros. A ciência militar exige também o conhecimento das ciências naturais e matemáticas. É compreensível que uma tal reviravolta nas condições técnicas e econômicas provoque necessariamente uma mudança profunda na ciência; da escolástica, da língua latina, da teologia, etc., passa-se ao estudo experimental da natureza, às ciências naturais, à escola "realista". Eis um exemplo de reviravolta geral no conteúdo da ciência. Submetida a um exame detalhado, essa reviravolta apareceria igualmente nos métodos de pesquisas, nos instrumentos do pensamento cientifico e em muitas outras particularidades da ciência.

Como exemplo da influência da psicologia de classe, e por conseguinte, da estrutura de classe da sociedade, pode-se tomar a "teoria orgânica" da sociologia, à qual nos referimos mais acima. Vejamos como se exprimiu a esse respeito o professor R. J. Wipper:

"A comparação entre a sociedade e o organismo, o termo "laço orgânico entre o indivíduo e a sociedade", empregado em oposição à concepção do laço mecânico, — todas essas comparações, fórmulas e oposições, foram postas em circulação pelos publicistas reacionários do princípio do século XIX. Opondo o organismo ao mecanismo essas publicações têm por fim separar radicalmente suas reivindicações dos princípios revolucionários e esclarecidos do século anterior. O "Estado-Mecanismo" significava nessa terminologia os direitos iguais dos indivíduos, cujo conjunto representa o povo soberano; "Estado-Organismo" significava divisão dos homens segundo a antiga hierarquia social, submissão do indivíduo ao seu grupo natural, isto é submissão de cada um à antiga autoridade social. "Laços orgânicos", traduzido em linguagem concreta, significava o direito de servilismo, defesa da honra e dos privilégios nobiliárquicos, etc. etc." (R. J. Wipper: "Algumas observações sobre a teoria do conhecimento-histórico". Coletânea "Duas Inteligências", Moscou. 1912).

Citaremos ainda alguns dados gerais sobre a história das matemáticas, pois considera-se habitualmente que as ciências matemáticas, puramente abstratas, não têm nenhuma relação com a vida prática. Fomos buscá-las na obra principal do sr. Cantor (Vorlesungen uber die Geschischte der Mathematik — "Leituras sobre a história das matemáticas". Leipzig. Ed. Teubner, 1907, vol. 1.º, Ed. III). Na Babilônia, as ciências matemáticas nasceram e desenvolveram-se graças à necessidade de medir os campos e as capacidades dos vasos, de dividir exatamente o tempo (calendário) em anos, dias, horas, etc.... Os primeiros "instrumentos" matemáticos foram os dedos, depois os contadores de esferas, em geometria, uma corda munida de piquetes, que eram designados pela palavra tim na linguagem sumeriana(4), em seguida um instrumento que lembra um pouco o astrolábio. As ciências matemáticas misturavam-se estreitamente com a religião, os algarismos representavam ao mesmo tempo deuses, a sua categoria celeste, etc. No Egito, as matemáticas atingiram um alto grau de desenvolvimento. No antiquíssimo Código Àhmés que tem o nome do copista (o titulo exato do Código é: "Instrução para atingir ao conhecimento de todas as coisas misteriosas e de todos os segredos contidos nas coisas, etc..."), encontram-se os seguintes capítulos: "Regras para medir um armazém de forma redonda para frutas"; "regras para medir os campos"; regras para executar orçamentos, etc. (o. c.). As operações aritméticas e em parte algébricas são expostas sob forma de problemas, cujos assuntos permitem julgar a sua aplicação prática: É a repartição dos pães, a distribuição do centeio, o cálculo das rendas, etc. A conclusão desse manual de matemática indica também suas relações com a agricultura; ele é redigido sob a forma dum apelo ao leitor:

"Apanhe os insetos nocivos, os ratos; procure as más ervas frescas, as aranhas venenosas. Reze a Ra (deus egípcio, N. B.) para que ele dê o calor, o vento, as águas altas".

Os primeiros instrumentos de cálculo foram aparentemente os dedos, em seguida uma coisa no gênero do contador de esferas (fios com calhaus como usavam os habitantes do Peru). Foi a necessidade de medir os campos que deu origem à geometria. Ao mesmo tempo que os problemas referentes à medida das parcelas de terra. Ahmés indica também os problemas referentes à capacidade dos vasos (volume e capacidade de depósitos e armazéns para a conservação de frutas). O historiador grego Deodoro escreve a esse respeito dos egípcios:

"Os sacerdotes ensinam a seus filhos duas espécies de escritas: a escrita chamada sagrada, e a denominada vulgar. Eles se ocupam com zelo da geometria e da aritmética. Pois o rio (isto é, o Nilo) mudando varias vezes por ano a configuração do solo, são inúmeras as discussões entre os vizinhos a respeito das divisas; todos esses conflitos não poderiam ser resolvidos facilmente, se um geômetra não restabelecesse as relações reais por meio de medidas diretas. A aritmética lhes serve (isto é, aos egípcios, N. B.) na economia doméstica".

As regras astronômicas, geométricas, algébricas, eram ligadas igualmente às cerimônias religiosas; eram mistérios sagrados em que só eram admitidos os iniciados. Os "harpedonaptas" (os esticadores de fios) possuíam o segredo profissional, para esticar o fio e dispor os marcos com relação ao meridiano, etc. (em gerai, os ângulos das pirâmides, seus lados, a disposição de suas diferentes partes, tudo isto tinha uma significação sagrada, científica e astronômica e é provavelmente por esta razão que trabalhos eram confiados aos "filhos dos sacerdotes").

Na antiga Roma, a geometria desenvolvia-se com as necessidades da propriedade fundiária que era sagrada ao ponto dos deuses serem considerados proprietários. As matemáticas atingiam o mais alto grau de desenvolvimento ("caso excepcional", segundo Cantor) na época de Julio Cesar. Esse florescimento é condicionado por duas tarefas práticas; estabelecimento do calendário (calendário Juliano); o próprio Cesar escreveu um livro sobre os astros Deastris, e medida das terras pertencentes a Roma. Esse ultimo problema foi resolvido no tempo de Augusto e o célebre engenheiro e temático grego Heron, de Alexandria, foi, conforme consta, dado a participar nestes trabalhos; pela primeira vez, uma carta do império foi levantada. Mais tarde, encontramos em Columelle o estudo das matemáticas aplicadas à agricultura; em Sexte Julius Frontinus — o cálculo, muito importante para as matemáticas, da relação da circunferência com o diâmetro (número aplicado ao cálculo dos condutores de água); no Código Arseriano (guia do direito e de estatística para os funcionários dos séculos VI e VII A. C.) encontramos capítulos referentes à medida da terra, aplicada aos problemas do imposto fiscal.

Quanto à aritmética, seu desenvolvimento foi condicionado sobretudo pelo desenvolvimento do comércio. Os cálculos de juros que, segundo Horácio, eram um negócio de todos os dias, os cálculos das partes dos herdeiros, dada a extrema complicação das leis romanas a este respeito, e as contas dos comerciantes, são as causas principais do desenvolvimento desse ramo das matemáticas.

Os antigos hindus desenvolveram particularmente a astronomia, a álgebra e o princípio da trigonometria. Encontram-se aqui muitos pontos de contato com os outros povos da antiguidade. Nos capítulos matemáticos de uma coletânea científica (Ariabhala), os nomes e o conteúdo dos problemas indicam a base vital das matemáticas hindus. Vejamos, por exemplo, um verso explicando um processo matemático:

"A multiplicação torna-se divisão, a divisão multiplicação; a renda se transforma em prejuízo, o prejuízo em renda";

Em outro lugar, encontra-se um problema assim concebido:

"Um escravo de 16 anos custa 32 peças de dinheiro, quanto custará um escravo de 20 anos?"

Seguem-se problemas de juros (a taxa mensal é de 5 %); em seguida problemas sobre o cálculo de diversas operações comerciais, etc. O que na nossa álgebra é designado pelas letras x, y, etc. (incógnitas), os hindus denominavam "moeda" (rupaka); os números positivos eram designados pela palavra "bem" (dhana ou sva), os números negativos por "dívida" (rina ou kshaya). A arquitetura e suas leis matemáticas eram também mistérios sagrados e tinham um sentido particular astronômico e divino. A medida da terra, a construção dos palácios e dos templos, o cálculo dos volumes, deram impulso à geometria hindu. Para os chineses antigos o desenvolvimento das ciências matemáticas seguiu mais ou menos o mesmo curso. Talvez o caráter de classe da ciência, a monopolização, fosse mais evidente para eles. (É assim, por exemplo, que existem três maneiras para escrever os algarismos: uma, empregada pelos funcionários e pelo Estado; outra científica e uma terceira empregada pelos cidadãos em geral e pelos comerciantes) Em uma coletânea de leis (Tcheu-li), encontramos os cargos seguintes de matemáticos: o cargo hereditário de astrônomo da corte (fond-siang-chi) e de astrólogo da corte (paut-tchang-chi), o chefe principal dos trabalhos de medidas (lian-djin) que estabelecia os planos dos muros, tanto dos palácios quanto das cidades; havia em seguida um funcionário especial (tu-fang-chi) que por meio de um instrumento particular que projetava a sombra (kuen), fazia diversos cálculos, etc....

É fácil de se verificar por esses exemplos:

  1. que a ciência tem sua fonte no domínio técnico e econômico;
  2. que o seu desenvolvimento foi determinado entre outros fatores pelos instrumentos científicos;
  3. que as diferentes condições sociais criavam ou aceleravam o "progresso";
  4. que o método do pensamento científico foi determinado pela estrutura econômica da sociedade (o caráter religioso, misterioso e divino das antigas matemáticas, onde o próprio número era representado às vezes por uma divindade, reflete-se no regime feudal de escravidão com seu soberano inacessível e seus funcionários sacerdotes, etc.);
  5. que a estrutura de classe da sociedade impunha às matemáticas o seu cunho de classe (em parte sob a maneira de pensar, em parte pela forma de um interesse que não admitia "simples mortais" ao mistério sagrado).

Nos tempos modernos, a mesma dependência existe, mas ela é mais complicada e tem evidentemente outra forma: a técnica não é a mesma e as relações econômicas mudaram.

Passemos agora a outras «superestruturas» da economia social, à religião e à filosofia.

É natural que as idéias e os dados da experiência acumulados pela sociedade humana provoquem a necessidade de reunir e de sistematizar todos esses dados. Vimos que dessa necessidade nasceu a ciência. Mas a ciência, quase desde o princípio, começou a dividir-se em diferentes ramos. É no interior dessas ciências especiais que se procurava «adaptar as idéias às idéias», isto é, a sua sistematização. E quais eram as relações entre essas ciências? Onde se acha o elemento que liga todos esses «conhecimentos» e todos esses «erros»? Onde procurar a condição de equilíbrio entre eles? É justamente esse princípio de unificação que devia ser dado pela religião e pela filosofia. Elas é que deviam responder às perguntas mais gerais (mais abstratas): Qual é a causa de tudo o que existe? Que é o mundo? Será ele tal como o vemos, ou completamente diferente? O que são o espírito e o corpo? De que maneira podemos conhecer o mundo? Que é a verdade? De que depende tudo que existe? Haverá limites para o nosso conhecimento e quais são eles? E toda uma série de perguntas da mesma natureza. Está claro que são as respostas a essas questões que determinam a maneira pela qual vamos examinar todos os fenômenos particulares. Se, por exemplo, está certo dizer que tudo depende da vontade divina que governa o mundo segundo o seu plano divino, devemos construir com todos os nossos conhecimentos uma corrente teleológica ou bem teológica (e a ciência, com efeito, tomou às vezes essa forma). Deveremos então procurar em todos os fenômenos um fim divino, por assim dizer o «dedo de Deus». Se é exato, pelo contrario, que os deuses nada têm que ver com isto, mas que somente a ligação causal dos fenômenos tem importância, devemos estudar os fenômenos de maneira completamente diferente. Em outros termos, a filosofia e a religião são óculos através dos quais são examinados os fatos em determinado estágio de evolução. Que é que determina a estrutura desses «óculos»?

Comecemos pela religião. Sabemos já que a «essência» da religião consiste numa «fé» em forças sobrenaturais, em espíritos milagrosos (um ou vários, grosseiros ou inacessíveis e etéreos, não importa). Essa noção de «espírito», de «alma», nasceu como reflexo da estrutura econômica da sociedade, quando apareceu o «decano do clã», ou mais tarde o patriarca (durante o patriarcado, e também no matriarcado), quando, em outros termos, a divisão do trabalho acarreta a necessidade de um trabalho organizado, de direção, etc. O mais velho da família (da tribo), que conserva a experiência acumulada, organiza a produção, dirige, dá ordens, indica o plano de trabalho, aparece como o princípio ativo (criador), enquanto que todos os outros obedecem, executam as ordens, submetem-se aos planos estabelecidos no alto, agem conforme a vontade dum outro. Essas relações de produção tornaram-se precisamente um modelo para o exame de tudo aquilo que existe e do próprio homem antes de tudo. O homem cindiu-se em corpo e alma. A «alma» é que dirige o «corpo». A alma é tão superior ao corpo quanto o organizador e o diretor são superiores a um simples executante. (Encontra-se em escritos de Aristóteles essa comparação entre a alma e o senhor, entre o corpo e o escravo). É segundo o mesmo modelo que se começou a estudar o resto do mundo: começou-se a pensar que há atrás de cada coisa o «espírito» dessa coisa; a natureza inteira espiritualizou-se (este concepção é denominada na ciência por «animismo», da palavra latina anima — alma, ou então animus — espírito). Nascida essa concepção, ela conduziu infalivelmente à religião, que começou pelo culto dos antepassados, dos mais idosos, dos dirigentes, dos organizadores. Suas almas ou «espiritus» eram considerados como os mais sábios, mais experimentados, mais poderosos, capazes de ajudar a todos e dos quais depende tudo que existe no mundo. Isto já é a religião. Assim, a própria origem da religião indica que ela nasceu como reflexo da imagem das relações de produção (e em particular das relações onde existe a dominação-subordinação), e de um regime político determinado por essas relações. A religião explicava o mundo inteiro segundo a fórmula pela qual se explicava a vida interior da sociedade. E toda a história da religião mostra que sua forma se modifica à medida que as relações de produção, políticas e sociais, sofrem transformações: se a sociedade é composta de algumas tribos, ligadas fracamente umas às outras e tendo cada uma os seus superiores e príncipes, a religião tem a forma politeísta; e quando, por exemplo, começa o processo de unificação e cria-se uma monarquia centralizada, o mesmo se passa no céu onde um só Deus sobe para o trono, Deus tão cruel quanto o rei terrestre; se estamos em presença de uma República de comerciantes e de senhores de escravos (tal como a de Atenas no V.º século), os deuses também são organizados à maneira republicana, se bem que entre todos esses deuses a deusa da cidade vitoriosa, Palas Atenéa, seja particularmente reverenciada. E do mesmo modo que em cada Estado «que se respeita» existe toda uma hierarquia de chefes, assim também no céu, os santos, anjos, deuses, etc, são dispostos segundo a sua categoria, obtêm cargos e honrarias diversas. Mas há mais: entre os deuses, como entre os chefes da terra, vê-se o desenvolvimento da divisão do trabalho; um torna-se especialista na questão militar (Marte, para os romanos, S. Jorge, o vencedor, ou bem o Arquiestrategista, isto é, o marechal Miguel, para os «cristãos-ortodoxos»), um outro para o comércio (Mercúrio), um terceiro para a agricultura, etc. Chega-se assim, às vezes, a casos curiosos. Há por exemplo, na Rússia, santos «especialistas» em cavalos (Frol, Labre). E em toda parte onde existem relações de dominação para subordinação, vê-se a religião refletir essas relações. É preciso ainda observar que do mesmo modo que na vida real há guerras, revoluções, violências, assim também encontram-se nas esferas celestes, segundo as doutrinas religiosas, diabos, demônios, «príncipes das trevas», que não são senão um reflexo dos chefes inimigos que se esforçam sobre a terra para destruir o Estado, como os outros, no céu, tentam derrubar o poder supremo do Deus todo poderoso e todo o «regime celeste» existente.

A teoria da origem da religião, que citamos acima, e que consideramos como perfeitamente certa, é da autoria de A. Bogdanov e foi pela primeira vez formulada por ele na coletânea: "A psicologia da Sociedade". Os estudos especiais posteriores confirmaram-na inteiramente. H. Cunow aproxima-se muito desta teoria no seu livro "As origens da religião e da fé em Deus". Criticando a concepção segundo a qual a religião tem sua fonte nas diferentes impressões produzidas pelo mundo exterior, Cunow escreve com acerto:

"Certamente, pois que cada imagem existente no nosso cérebro é determinada pela percepção daquilo que lhe serve de base (substrato), pode-se dizer em certo sentido que tanto o mundo exterior (meio natural) quanto o meio social (a vida social) influem de determinada maneira sobre a ideologia religiosa. Mas, independentemente do fato das nossas concepções da natureza serem determinadas em grande parte pelo grau de exploração das forças da natureza ao qual atingiu o homem pela sua vida material(5), as imagens que nós obtemos contemplando a natureza não fornecem senão material para os detalhes exteriores. — tem-se até a tentação de dizer: elas não fazem senão ajuntar uma cor local à construção ideológica religiosa".

Entretanto, Cunow não prossegue com sua idéia até o fim, e esta é a razão por que ele diz coisas de uma ingenuidade desconcertante. Assim ele diz que:

"os povos selvagens e semi-civilizados são naturalmente (!!!) dualistas".

Isso assemelha-se um pouco àquela "troca" de Adam Smith, que constitui uma qualidade "perfeitamente natural" ao homem ou bem a explicação da origem da ciência pela fraqueza particular que têm os homens pela "explicação causal" (o que os sábios alemães denominam Kausalitatstrieb)-Segundo Cunow, a repartição do homem em corpo e alma é confirmada pelas visões dos sonhos e pelas perdas dos sentidos (como se alguma coisa saísse do corpo e voltasse em seguida). Mas não pode "confirmar" senão aquilo que já existe. Talvez seja a morte que sirva de fenômeno criando uma imagem da "alma" separada do corpo? Mas o próprio Cunow cita exemplos que provam que os selvagens não compreendem a necessidade da morte natural. Mais ainda, a própria morte é atribuída habitualmente por certas populações (John Frazer o diz a propósito dos australianos da Nova Gales do Sul), "ao rancor secreto de um espírito". Assim, isso não exprime mais nada. (Digamos, entre parênteses, que o camarada N. M. Pokrovsky vê a fonte da religião no medo da morte, medo que inspiram os mortos, etc. Mas como fazer quando a própria concepção de que "todos os homens são mortais" não existe? Está claro que essa categoria histórica, que tem a sua origem na história, foi tomada pelo camarada Pokrovsky como uma concepção quase natural). Segundo Cunow a religião desenvolveu-se da seguinte maneira: a princípio o culto dos espíritos, em seguida o dos totens (são denominados assim os animais, os pássaros e as plantas que constituíam os sinais-brazões das tribos) e em seguida dos antepassados. Mas em quase todos os exemplos citados por Cunow, esses espíritos (os mais primitivos) são precisamente os espíritos dos antepassados. No capítulo intitulado: "A origem do culto dos espíritos", Cunow escreve:

"Não são considerados como favoráveis senão os espíritos dos parentes mais próximos, ou ao menos dos parentes da própria horda; aliás nem sempre; pelo contrario, os espíritos dos mortos das hordas e das tribos estrangeiras são considerados como hostis".

Na mesma página fala-se do espírito do pai e da mãe, na página seguinte do avô e do "antepassado", etc. Assim Cunow mistura tudo. Na página 16, ele está de acordo com a fórmula segundo a qual as concepções religiosas são provocadas "pelas impressões da vida social" e, algumas páginas adiante, ele não fala mais da natureza social, mas de sua "natureza própria", do "nascimento espontâneo" e... "antes de tudo da morte". Mas é duvidoso que Cunow ouse considerar a morte e o nascimento como fenômenos especificamente sociais! Com efeito, o que concerne ao mundo exterior, toca igualmente na natureza biológica do homem: as impressões de todos esses fenômenos (a morte, sonho, perda de sentido, tanto quanto a tempestade, os terremotos, os fogos fátuos, o sol, etc.) fornecem o material auxiliar para que esta matéria seja escolhida do ponto de vista do dualismo (a idéia de duas origens: espiritual e corpórea) que não é absolutamente inata, mas que é precisamente o resultado das condições essenciais da vida social.

Detivemo-nos tanto tempo com Cunow, porque seu livro, muito precioso em geral, é quase a única obra marxista sobre a história da religião. E. Meyer (o. c.) considera como causa essencial do nascimento da religião a tendência "imediatamente dada" (inata) à explicação causal e o dualismo também "imediatamente dado"!: o homem observa "dum lado os processos do sentimento, da percepção, da vontade e, do outro, os movimentos do corpo provocados por eles, as ações espontâneas. O dualismo do corpo e da alma representa assim a experiência primitiva e não o produto de uma religião mesmo primitiva". Esta teoria notável "de um lado", contradiz os fatos "do outro", como todo mundo pode verificar e não explica absolutamente nada: ela se limita simplesmente a descrever aquilo que é preciso explicar.

É o professor Achelis (prol Th. Achelis: Sociologie. Ed. Goschen, Leipzig, 1899, pag. 85 e seguintes) que mais se aproxima de uma concepção do problema; para ele as concepções religiosas não são "senão reflexo das concepções e instituições políticas e sociais". A própria morte não pode atrair a atenção dos selvagens senão em sociedade. Aqui, Achelis aproxima-se mais da verdade do que Cunow.

"Toda diferenciação no domínio do poder político e a importância que têm as formas de organização precisas encontram aqui (na religião, N. B.) a sua imagem fiel; o que corresponde aos chefes ou aos reis entre os homens, são os grandes deuses entre os espíritos menos importantes, de modo que, à imagem daquilo que se passa sobre a terra, a figura de um senhor mais ou menos reconhecido por todo mundo destaca-se sobre o fundo policrômico de toda uma variedade de deuses".

O excelente (porque marxista) capítulo sobre a religião não impede a Achelis de desnaturar Marx de uma maneira ímpia, de manter silencio a seu respeito e... de curvar-se respeitosamente diante da religião! A contradição entre o desenvolvimento da ciência e os interesses da burguesia é clara como o dia.

Citemos agora exemplos que confirmam a justeza do ponto de vista marxista. Para os antigos babilônios (3.000 a 2.000 A. C.)

"o céu é a imagem primitiva da terra; todas as coisas terrestres foram criadas à imagem das do céu; um laço indissolúvel existe entre umas e outras" (prof. B. A. Turaieff: História do antigo oriente, l.a parte).

Os deuses são os tutores (espíritos ) dos homens, o que corresponde ao nosso "anjo da guarda", das ruas, das cidades, dos lugares, etc... "a divindade está ligada de maneira indissolúvel ao destino de sua cidade;.. sua majestade crescia com o alargamento dos limites do território da cidade; se o seu povo anexava outras cidades, as divindades das cidades conquistadas a ela se submetiam; ao contrario, se fosse levada a imagem do deus e se o templo fosse destruído, isto equivaleria à destruição política da cidade). Ao lado dos deuses principais (Anu, Enlil, Ea, Sin, Schamasch, etc.) existe ainda uma grande série de espíritos de menor importância (Igui-gui) e subalternos (Anunaqui). Paralelamente à constituição da monarquia babilônica, foi criada uma monarquia celeste: o desenvolvimento da potencia babilônica acarretou certas modificações no Panteon. O deus de Babilônia devia tomar o primeiro lugar. Esse deus denominava-se Marduk, que tinha também um nome sumeriano. Era a divindade do sol primaveril. A dinastia de Hamurabi (Hamurabi, rei babilônico que deu seu nome a uma série de leis encontrada durante as escavações feitas no local em que se achava situada a antiga Babilônia, N. B.) fez dele, na realidade, a "divindade suprema". Ao mesmo tempo, os outros deuses superiores sofreram a "evolução" seguinte: "Enlil, rei do céu e da terra, transmitiu a Marduk... o poder sobre as quatro partes do mundo e o seu nome de senhor do país". No que concerne a Ea, "proclamou-se Marduk seu filho primogênito, ao qual seu pai havia graciosamente cedido os seus direitos, sua força e seu papel na criação do mundo". Quando a monarquia babilônica se firmou, criou-se pouco a pouco a concepção de uma potencia divina única, que se manifestava através de uma multidão de ficções e que, relativamente a estas formas, era portadora de um grande número de nomes. Os sacerdotes puseram-se a dizer que os outros deuses superiores não eram senão a imagem de Marduk: "Ninipe é Marduk da força; Nergal, Marduk da batalha; Enlil, Marduk do poder e do reino". Vejamos a passagem de um hino religioso ao deus Sin, que representa de maneira muito característica o poder monárquico celeste: "Deus senhor dos deuses, o único grande no céu e na terra... Tu que criaste a terra, fundaste os templos e lhes deste os nomes, pai dos deuses e dos homens... chefe poderoso, cuja profundidade misteriosa não foi explorada por nenhum deus... pai criador de tudo o que existe; Senhor! Que decides da sorte do céu e da terra, cujas ordens são irrevogáveis, que deténs O frio e o calor, que governas os seres vivos, que deus pode ser-te comparado? Quem é grande nos céus? Somente tu. E quem é grande sobre a terra? Quando a tua palavra vibra no céu, os Iguigues se prosternam. Quando ela se faz ouvir sobre a terra, os Anunaquis beijam o pó... Senhor! tu não tens rival para a dominação sobre a terra e sobre o céu, entre os deuses teus irmãos". (Citado conforme B. Turayeff). Sin é representado aqui como um imperador celeste, em relação ao qual guarda-se todo cerimonial (beija-se a terra, prosterna-se, etc). É natural que a religião oficial exprimisse e exprima ainda as idéias da classe dominante antes de tudo. Isto se vê nos detalhes: assim por exemplo, na época feudal, quando a virtude guerreira era apreciada acima de tudo, e que a classe dominante era composta principalmente dos soldados, nobres são somente os que caíram na batalha, que estão bem situados na vida para além-túmulo, e muito mal estão aqueles "que não têm ninguém para se ocupar dos dons fúnebres", isto é, os pobres.

A respeito dos antigos hindus, muitas coisas interessantes foram ditas por Max Weber em seus estudos, muito curiosos, sobre a moral econômica das religiões universais (Max Weber, o. c., tom. 2: Hinduismus und Budhismus). Aqui, a divisão da sociedade tendo um caráter econômico de classe e de profissão, tomou a forma de castas consolidadas diretamente pela religião. Nas antigas leis de Manú, as quatro castas principais são:

Assim uma casta "é sempre, e pela própria essência, uma união particular, seja puramente social, seja profissional, no interior da união social". Os Brâmanes e os Çakyas dirigiam tudo. Os Vaicyas eram considerados somente como uma casta "pura", digna de oferecer aos brâmanes a água ou a alimentação. Os sudras dividiam-se em "puros" e "impuros"; desses últimos, um gentil-homem não tomará nunca a água, um pedicuro nunca os tratará etc.... Aos "impuros" Sudras se juntam outros "impuros": uns não podem mostrar-se nos templos, os outros são considerados a tal ponto impuros que só o seu contacto suja; é suficiente, às vezes, que um nobre ou um "puro" se aproxime de um tal homem a uma distancia de 60 pés para ser "sujado". Um olhar lançado por um "impuro" sobre a alimentação, suja-a, etc; pelo contrario, os próprios excrementos de um brahmane são considerados sagrados. Milhares de regras e de cerimônias religiosas protegem a ordem estabelecida. Os reis e os príncipes tiram a sua origem dos Çakyas. A administração política aristocrática encontra igualmente a sua expressão na vida econômica (taxas, impostos em mercadorias, armazéns de Estado), e apóia-se sobre um aparelho burocrático incrível. Entre as idéias religiosas que se desenvolveram sobre semelhante terreno social, M. Weber considera duas delas como principais: a idéia da migração das almas (Samsara) e a doutrina da recompensa (Karma), que se liga à primeira. Cada ação do homem lhe é contada; há uma espécie de conta-corrente com o balanço de suas ações, boas ou más; quando ele morre, é condenado a renascer sob a forma que ele mereceu e que lhe é determinada pelo balanço de suas ações no momento de sua morte. Ele pode renascer rei ou brâmane; "ele pode também tornar-se um verme no intestino de um cachorro". Que é que determina as virtudes principais? A observância da ordem de casta. Se tu és escravo e impuro, guarda o teu lugar. Se tu não o abandonares jamais, se tu sempre te lembrares que és impuro, então talvez, depois de tua morte, na vida futura, serás nobre, mas, sobre a terra, o regime de casta é imutável e seria estúpido sonhar em mudá-lo. O nascimento não é nunca um "acidente": cada um nasce na casta que mereceu na sua vida anterior, antes do nascimento atual. O reflexo do regime social e dos interesses das classes dominantes é aqui patente. Encontramos esse reflexo já anteriormente. Assim, por exemplo, os deuses dos Vedas, conjunto de leis sagradas antigas, "são deuses heróicos e que exercem certas funções semelhantes aos deuses de Homero, assim como os heróis do tempo dos Vedas, habitando castelos, batalhando tal como os reis guerreiros sobre carros de combate rodeados de sua corte e tendo ao seu lado... camponeses que se ocupam mais ou menos de criação". Entre os mais característicos citemos: "Indra, deus da tempestade, e como tal (à imagem de Jahvéh) guerreiro apaixonado e herói,... Varona, deus sábio, vendo tudo, deus de ordem eterna e antes de tudo de ordem legal"... (é interessante notar que desde o princípio o céu era destinado somente aos brâmanes e aos Çakyas). Ao lado da religião das classes dominantes, existia ainda uma religião popular que, entre outras atribuições, aplicava-se frequentemente aos atos sexuais. Os Vedae denominavam um desses cultos "costumes infames dos subordinados". Estamos aqui, portanto, em presença de varias religiões de classe. Vejamos, por exemplo, a descrição de um cisma religioso na Índia meridional (digamos a esse propósito que ela se assemelha um pouco ao cisma religioso russo): "Uma parte das castas inferiores e alguns artesãos reais resistiram aos brâmanes e foi assim que nasceu a seita dos "Valan-Gai" e o "Idan-Gai" que existe ainda hoje em dia, a casta da mão "esquerda" e a da mão "direita".

Na Grécia antiga, o regime feudal e o regime escravagista tiveram o seu reflexo no céu, onde Zeus era o rei dos deuses. Demetér de a deusa da agricultura, Hermes o deus do comércio e das vias de comunicação, Helios, das "profissões liberais" (artes). E é ainda a mesma linha que seguia a luta das classes. Em Atenas do século XV (época do maior florescimento e princípio da decadência), a religião constitui uma das armas principais da classe dominante, da "democracia" comercial; "Segundo Sófocles (o maior poeta "bem pensante" desses tempos, N. B.), o mundo inteiro desfaz-se em pedaços se a fé desaparece, toda ordem moral e política apóia-se, segundo ele, sobre a vontade dos deuses". (E. Meyer: Geschichte des Altertums — "História da antiguidade", tomo IV, pag. 140:

"Atenas desde a paz de 446 até à sua capitulação em 404 A. C.". A oposição nobiliárquica e as camadas desclassificadas servem-se da critica religiosa como critica da ordem estabelecida. A democracia comercial pune com a morte a menor duvida sobre a existência dos deuses.

Com os antigos eslavos, dá-se a mesma coisa. O culto dos antepassados, dos deuses nacionais, domésticos, profissionais, existia igualmente. O deus principal do Estado era Perun, deus dos comerciantes e dos guerreiros nobres, e ao mesmo tempo do trovão. O paraíso era aberto para a alma dos princípes mortos e seus paladinos, mas não havia lugar para um simples mortal (ver N. M. Nikolski: "As crenças religiosas primitivas e os princípios do cristianismo na história russa de Pokrovsky". N. M. Nikolski vê as origens da religião no medo que inspiram os mortos, etc....). Tomemos enfim as formas modernas da religião cristã (ortodoxa). A ortodoxia era e é ainda uma imagem exata da autocracia bizantino-moscovita-petersburguesa. Deus é o imperador, a Santa-Virgem é a imperatriz, Nicolau o Taumaturgo e os outros santos favorecidos são os ministros. Há em seguida todo um estado-maior de funcionários (anjos, arcanjos, serafins, querubins, etc.). Entre todos esses cortesãos, existe uma divisão de trabalho: o arquiestrategista Miguel é o marechal (arquiestrategista significa, em grego, general em chefe), a Santa-Virgem é a "prima-dona" padroeira, a protetora; Nicolau é sobretudo o deus da fertilidade do solo, Pantelemon é uma espécie de médico, Jorge, o Vitorioso, um guerreiro divino, etc. Aos santos mais consideráveis, dedica-se o maior respeito: oferecem-se-lhes as melhores coroas, sacrifícios, etc.... A luta de classes tomou na Rússia, mais de uma vez, as formas religiosas (o raskol, as seitas de chtundistas, de khlystas, de molokans, etc.). Mas não é aqui o lugar para falarmos disto em detalhe; ajuntemos somente, para concluir, que os nomes russos que se dão à divindade mostram claramente a origem dessa amável idéia de Deus: Gospode significa senhor ("e nós somos teus escravos"). A palavra "Bog" (Deus) tem a mesma origem que "bogaty" (rico), e todos eles são os sobrenomes de um monarca feudal e nobiliárquico celeste, que considera o povo como sendo composto de escravos. Não é sem razão que a "ortodoxia" agradava tanto à "autocracia".

A religião é uma superestrutura que não consiste somente num sistema de idéias concordantes; ela tem também uma organização apropriada de homens (organização eclesiástica, segundo a expressão corrente), assim como um sistema de regras e de maneiras de adoração da divindade — (tais como as missas, a liturgia, as vésperas com seus ritos, cerimoniais, fórmulas mágicas e outras feitiçarias, que são denominadas o culto).

Aqui também, percebemos que esse lado da superestrutura religiosa é ligado à vida social, e é inseparável dela... (Em cada época, a igreja reproduz e reflete em seu meio a sociedade contemporânea e seus traços econômicos e culturais. A ordem eclesiástica era aristocrática e feudal na época da dominação dos senhores; no tempo do desenvolvimento das cidades, eram os elementos democráticos e as formas de economia baseada no emprego do dinheiro que nela predominavam, etc.... (Wipper: Algumas observações sobre a teoria do conhecimento histórico). O clérigo primitivo, como profissão, era composto de feiticeiros, médicos, visionários, profetas, mágicos, etc...., que, segundo E. Meyer, constituiu a primeira classe conhecida. Em geral, a classe dirigente dos sacerdotes é uma parte da classe dominante; esses sacerdotes dividem entre si o trabalho; uns tornam-se chefes militares, outros padres, outros ainda legisladores, etc.... Não é de admirar que a Igreja «reproduza assim e reflita a sociedade que lhe é contemporânea».

A igreja dominante representa uma organização econômica, cujas relações constituem uma parte das relações econômicas da sociedade inteira. Assim, por exemplo, sabemos, segundo as leis do rei babilônico Hamurabi, que o templo do deus Schamasch «fazia operações financeiras, tirando para si a maior parte das vezes 20%; sobre os empréstimos de trigo, a porcentagem elevava-se até 33,1/3% e às vezes mesmo até 40% (Turayeff, o. c.). A igreja católica romana era na idade-média um verdadeiro reino feudal com uma economia imensa percebendo seus impostos («o dizimo») e possuindo o seu aparelho administrativo. Sabe-se também qual o papel desempenhado na Rússia pelos monastérios e conventos («lavras») que haviam acumulado riquezas imensas (é característico que o edifício colossal da bolsa de Moscou pertencia à Troitze-Sergueyevskaia Lavra). Desempenhando seu papel, que consistia em acalmar as massas, em impedir que elas atentassem contra a ordem existente, a Igreja era e é ainda uma parte dessa maquina de exploração concebida segundo as mesmas regras que a própria sociedade exploradora tomada no seu conjunto.

Sabemos que a sociedade, exceto na época primitiva do seu desenvolvimento, foi sempre uma sociedade de classes. Suas relações de produção acarretavam de um lado a dominação, e do outro a subordinação. Seu regime político refletia e exprimia essas relações. Sua religião as justificavam e com elas reconciliavam as massas. (Ela o fazia às vezes com muita habilidade: basta lembrar, por exemplo, a doutrina hindu da recompensa, à qual nos referimos mais atrás. Entretanto, essa reconciliação nem sempre dava resultado. É então que as classes oprimidas, que podiam elas mesmo desembaraçar-se dos antigos laços religiosos, fundavam a sua própria religião, em oposição com a religião oficial: face da doutrina religiosa ortodoxa e legitima, apareciam as chamadas «heresias»; em face da Igreja oficial, levantava-se uma comunidade religiosa popular, que tomava às vezes as formas de uma organização ilegal, tendo seus sacerdotes e profetas, que eram ao mesmo tempo os seus chefes políticos.

Recentemente ainda, uma tal concepção da religião e da Igreja parecia absolutamente inadmissível, um verdadeiro sacrilégio. Entretanto, na atualidade, os sábios burgueses, que estudam especialmente esta questão, chegam contra a sua vontade a esta concepção. Vejamos a que resultado chega, no que concerne às religiões asiáticas, um dos melhores conhecedores modernos da religião, Max Weber:

«Nela observamos em geral a existência simultânea de cultos, escolas, seitas, de ordens variadas, próprias do mundo ocidental antigo. Essas correntes rivais não eram de modo algum iguais aos olhos da maioria das classes dominantes de então e às vezes também do poder político. Havia escolas ortodoxas, heterodoxas e seitas. Antes de tudo, e é o que mais importa, elas diferiam umas das outras do ponto de vista social, de uma parte... segundo as camadas de que se originavam, e de outra, segundo a forma de «salvação» que elas prometiam às diversas camadas de seus partidários. A primeira manifestação consistia em parte no fato das soteriologias(6) populares se oporem à classe social dominante que negava categoricamente toda fé na redenção: o tipo característico é apresentado pela China. Acontecia também às vezes que a camadas sociais diferentes correspondiam espécies diferentes de soteriologos» (Max Weber, o. c. tomo 2.º, 3ª parte; Die asiatische Sekte und Heilandsreligiositat «A religião das seitas e da salvação na Ásia», — pag. 364).

Um exemplo da luta de classes empreendida sob o estandarte religioso, apresenta-se na Reforma, essa primeira pressão de varias classes exercida sobre o Estado feudal e sobre o seu representante na Europa ocidental, a Igreja católica romana. Aqui, os príncipes caminharam de acordo com o papa, e os pequenos proprietários fundiários e a burguesia com os moderados, à testa dos quais estava, na Alemanha, Lutero, o fundador da igreja protestante. Os artesãos, os semi-proletários e em parte os camponeses, seguiam as seitas extremistas (tais como os anabatistas, que tinham frequentemente tendências comunistas). A luta religiosa, as palavras de ordem, os blocos de partidários de uma corrente ou de outra, correspondiam exatamente, na luta, às tendências e aos blocos de caráter político e social.

Vemos assim que a superestrutura religiosa também é determinada pelas condições materiais da existência humana. As condições sociais, políticas e econômicas do regime estão na base dessa superestrutura. Sobre ela enxertam-se outras idéias, cujo eixo é constituído pela estrutura social transportada para o mundo invisível e considerada, alem disso, do ponto de vista de classe. «O espírito» aparece aqui também como função da «matéria» social.

Poderíamos opor a essa concepção uma objeção que tocaria precisamente o regime capitalista. Com efeito, na sociedade capitalista, a religião continua a existir e ela tem em toda parte, na Europa, a forma monoteísta. Entretanto, a sociedade capitalista conhece formas diferentes de dominação burguesa no domínio político (monarquia, república) e bem que as relações de produção sejam construídas sobre o tipo «dominação, submissão», elas não têm entretanto o caráter monárquico: certamente, o capitalista é rei de sua usina, mas na sociedade a classe capitalista não governa habitualmente por intermédio de uma só pessoa. Como explicar uma tal «contradição»? Não se quebrará toda a nossa teoria marxista sobre a religião capitalista? Absolutamente não. Ao contrario, é somente do ponto de vista marxista que se podem compreender as formas religiosas da vida contemporânea.

Que é que «governa» as relações econômicas do capitalismo? Na sociedade feudal, como sabemos, eram os reis e os príncipes seus vassalos, assim como os funcionários, que dirigiam a economia semi-natural. Pelo contrario, na época capitalista aparece um novo regulador, poderoso, mas elementar e impessoal. É o mercado, com todos os seus caprichos incompreensíveis, o mercado que eleva uns e destrói a vida de outros, que lida com os homens como uma força cega (irracional), incompreensível, inaccessível. «Que é nossa vida? Um jogo. Hoje sou eu, amanhã és tu. Que o «fracassado» chore maldizendo a sua sorte».

É esse caráter de sorte que tomou a divindade (já para os romanos e os gregos existiam, como sabemos, as «Parcas» e a «Moira», a «Ananké», isto é, a «Necessidade», a «Fatalidade», o «Destino», que estavam acima dos deuses; essa concepção estava ligada ao desenvolvimento das relações de trocas e de guerras comerciais que delas decorriam e que punham em jogo a existência da Grécia). Outrora, os deuses (e o Deus único) não eram absolutamente espíritos desprovidos de corpos. Eles gostavam de comer e beber, de fazer a corte às mulheres, mesmo sob a forma de um pombo, como o havia feito o chamado «Espírito Santo»; (na Grécia, onde florescia a homossexualidade, Zeus, tendo tomado o aspecto de uma águia, tem relações com um jovem chamado Ganymedes). O desenvolvimento econômico que terminou na economia baseada sobre a troca e destruiu o regime político-feudal, arrancou aos deuses não somente as suas plumas de águias e de pombos, mas também a barba e o bigode, assim como outros atributos de sua imagem antiga. Hoje em dia, um burguês piedoso crê em Deus como numa força desconhecida da qual ele depende, mas que nada tem de comum com o homem: é um espírito divino e não um ídolo de selvagens. É assim que há na economia do capitalismo, de um lado a relação de dominação com submissão, e do outro as relações entre os laços organizados, graças às trocas. O mesmo fenômeno nos explica por que motivo a religião se conserva; o segundo, por que motivo os deuses chegam a ter um aspecto tão magro e espiritualizado.

É preciso que nos lembremos sempre que não se trata aqui das idéias essenciais da religião. As idéias menos importantes, de segunda ordem, devem ser explicadas pelas condições particulares da evolução.

Como conclusão de nossa análise da religião, devemos dizer que uma tal concepção da religião conduz diretamente o proletariado à necessidade de uma luta ativa contra ela. Gorter, no seu livro sobre o Materialismo histórico, não somente se afasta do materialismo filosófico, mas também compreende de maneira oportunista e burguesa a proposição: "A religião — questão privada". Segundo ele, isto significa que é inútil para nós ocuparmo-nos da religião, que, por assim dizer, desaparecerá por si mesma. Nada entretanto acontece por si mesmo, em uma sociedade, e Marx, em uma de suas obras tão brilhantes e incisivas ("A critica do programa de Gotha") ridicularizava fortemente a concepção à moda de Gorter da "religião — questão privada". Segundo Marx, essa palavra de ordem não significa senão uma reivindicação dos operários dirigida ao Estado burguês, para que este não meta o seu nariz policial naquilo que não lhe diz respeito, e de modo algum uma reivindicação dirigida a eles mesmos, afim de se tornarem "tolerantes" para com a herança dos regimes ignóbeis e para com toda força reacionária. A concepção de Gorter não pode de modo algum, sob este aspecto, ser qualificada de revolucionária e comunista. É um ponto de vista puramente social-democrata.

Devemos dizer agora algumas palavras sobre a filosofia. A filosofia aparece como o estudo das questões mais gerais, como a generalização de todos os nossos conhecimentos como «a ciência das ciências». A princípio, quando as ciências não estavam ainda desenvolvidas, quando elas não se tinham ainda separado uma das outras, a filosofia, ligada ainda à religião, englobava também problemas puramente científicos, havia nela ainda os rudimentos da ciência da natureza e do homem, segundo o estado da ciência nessa época. Mais tarde, as ciências se especializam, dividem-se em ramos, ocupam lugares independentes. Mas o que há de geral em todas as ciências e, em primeiro lugar, o problema do próprio conhecimento, de suas relações com o mundo exterior, etc. tudo isso é do domínio da filosofia. Ela deve unificar a ciência dividida em uma multidão de especialidades. Ela procura ligar tudo aquilo que conhecemos e ser um fundamento de nossa concepção geral do mundo. Assim por exemplo, no princípio de nosso trabalho, analisamos o problema da causalidade e da finalidade. Esse problema não interessa especialmente à física ou à economia política ou à linguística (filologia) ou à estatística. Mas ele toca todas essas ciências; ele oferece um caráter geral filosófico. Do mesmo modo o problema do «espírito» e da «matéria», ou em outros termos, da relação entre «o pensamento» e «o ser».

Essa questão não é analisada nas ciências especiais, e entretanto ela diz respeito a todas as ciências. Ou, por exemplo, as questões da seguinte ordem: refletem nossos sentimentos exatamente o mundo? Esse mundo existe por si mesmo? Que é a verdade? Nosso conhecimento tem ou não limites? etc., etc... Todas essas perguntas dizem respeito a não importa que ciência, e é a razão por que fazem parte da filosofia. Em outros termos: do mesmo modo que uma ciência esclarece, sistematiza, ordena as idéias que têm relação com um ramo qualquer do conhecimento humano, assim também a filosofia sempre se esforçou e continua a se esforçar para ordenar, sistematizar todo o conjunto dos conhecimentos unificando-os partindo de um só ponto de vista, reunindo-os em um todo ordenado. É assim que a filosofia se coloca pode-se dizer, no «cume» do espírito humano, e esta é a razão por que é mais difícil que nos outros domínios descobrir sua origem material e «terra a terra». Entretanto, nela encontramos também a mesma lei essencial: a filosofia depende «em ultima análise» da evolução técnica da sociedade, do nível das forças produtivas. Encontramos aqui infalivelmente um gênero muito complexo de dependência. Isto significa que a filosofia não depende diretamente da técnica, mas que há, porém, entre elas uma série de elos intermediários. Citemos alguns exemplos para ilustrar essa idéia. A filosofia, como já sabemos, sistematiza os conhecimentos, os resulta, dos gerais das ciências particulares. Como consequência, ela depende diretamente do nível de desenvolvimento das ciências: se, por uma razão qualquer, são as ciências sociais que se desenvolvem, a filosofia terá um aspecto particular. Se, pelo contrario, em dado momento, são as ciências naturais que chamam a atenção geral, o caráter da filosofia será diferente. Que é que determina esse caráter? O estado de espírito, a psicologia social que domina em dado momento em certo país. E isso é determinado por sua vez pela situação das classes, pelas condições gerais de existência; essas «condições gerais de existência» são definidas pela situação das classes na economia da sociedade, o que depende por sua vez do estado das forças produtivas. Assim, entre as forças produtivas (a técnica) e a filosofia intervém uma grande quantidade de elos. Citemos ainda alguns exemplos. Vamos supor que uma doutrina filosófica seja colorida de tintas sombrias (o que se denomina filosofia pessimista): ou bem ela afirma que um conhecimento não é possível, ou então que nada em geral tem significação e que tudo é «vaidade das vaidades». Então, devemos olhar diretamente para a psicologia (isto é, para os sentimentos, estados de alma), que dá lugar a uma tal filosofia. Aprofundando o assunto, descobriremos que esses pensamentos sombrios não apareceram sem razão, mas que uma camada ou uma classe social ou mesmo todas as classes de uma dada sociedade encontraram-se numa situação tão aflitiva que não vêem uma saída, perderam o gosto pela vida e exprimiram seu estado de alma em uma filosofia apropriada, tingiram-na de cores sombrias. Imaginemos ainda que numa sociedade se empreende uma luta apaixonada entre as classes e os partidos que as representam. Encontrará esse fato sua expressão na filosofia? Sim, certamente. Com efeito, o homem não se desdobra na vida: o mesmo homem ou a mesma classe faz a política e pensa ao mesmo tempo na «causa das causas». É fácil compreender que a luta social imprime o seu cunho a todo o modo de pensar e se reflete nos seus estados d'alma mais «sublimes». Suponhamos ainda que toda a marcha da vida social se esteja desenvolvendo muito lentamente: a vida decorre dia a dia de uma maneira uniforme e monótona; o dia de hoje parece-se com o de ontem e o de ontem com o anterior, e assim sucessivamente; tudo se faz à maneira antiga, seguindo uma rotina, uma tradição, nada varia nem na técnica, nem na vida social, nem na ciência. Uns homens morrem, substituem-nos outros que pensam do mesmo modo, etc.... Em presença de uma tal imobilidade da sociedade inteira, sua filosofia em conjunto será baseada sobre a idéia da imobilidade, da estabilidade e da imutabilidade. A sucessão das causas será aqui a seguinte: a filosofia imóvel, a ciência imóvel, a psicologia social imóvel, a economia imóvel, a técnica imóvel.

Poderíamos indicar ainda um grande número de exemplos desse gênero, mas os citados acima são suficientes para mostrar a que ponto a filosofia depende incontestavelmente, «em ultima análise», da economia e da técnica sociais.

Tudo o que precede acha-se confirmado pelo decurso da evolução do pensamento filosófico.

Na antiga Grécia, considerada habitualmente como o país clássico da filosofia, os sistemas filosóficos mais antigos apareceram nas cidades comerciais jônicas. Essas cidades estavam colocadas sobre as grandes vias marítimas entre a Ásia Menor e a Europa; é aqui que terminavam igualmente os fios da vida econômica do Egito; mais que em qualquer outra parte do mundo antigo dessa época (VI.º — V.º séculos A. C.) o comércio, os ofícios, a indústria escravagista, mas sobretudo o comércio, eram ali desenvolvidos. Juntamente com as trocas econômicas, existia também uma troca de idéias (influência da Babilônia, do Egito, etc.); a vida "civilizada" jorrava como uma fonte. É aqui que se desenvolveram as ciências exatas: astronomia, geometria, aritmética, medicina, etc..... É sobre essa base que apareceram os primeiros sistemas filosóficos: é o que se denomina a filosofia naturalista, isto é, uma filosofia ligada às ciências naturais; ela se propunha procurar a base natural de tudo aquilo que existe. A escola jônica (Thales, Anaximandro, Anaxímenes e seus discípulos), procurava a unidade da matéria, seja na água ou no ar, seja no infinito, etc.... Esses filósofos não refletiam somente sobre a "essência das coisas", mas dedicavam-se também às experiências puramente cientificas; assim, Anaximandro desenhou uma carta da terra que foi usada durante muito tempo. Na escola jônica, o pensamento filosófico não se destacou ainda das experiências cientificas ligadas à vida prática. Vemos em seguida o aumento e a acumulação das riquezas, o trabalho dos escravos alargar-se, crescer o parasitismo das classes superiores da sociedade; ao mesmo tempo, o desprezo crescente do trabalho, da vida de trabalho, da produção, das ocupações comerciais diretas (não por intermédio dos empregados) sustou o desenvolvimento do pensamento cientifico e técnico, e transformou a filosofia em uma especulação completamente destacada da vida (a filosofia tomou, como se diz, um caráter puramente "especulativo"). Mas isto não significa de modo algum que ela se desenvolvia "por si mesma". Ela era formada e determinada pela vida social. Examinemos, por exemplo, a filosofia de um dos piores filósofos gregos, Heráclito, de Epheso. Sua pátria, Epheso. era uma rica cidade comercial que tinha sido o teatro de numerosas comoções (guerras, guerras civis, etc.); "nenhuma cidade jônica sofreu tantas perturbações como a vila de Epheso". A democracia comercial era aqui profundamente enraizada e dominava politicamente a aristocracia fundiária. Entretanto, Heráclito descendia de uma velha família nobre onde se haviam conservado as tradições monárquicas e feudais e

"se ele não era partidário dos aristocratas, não deixava de ser um inimigo fanático da democracia, da dominação de uma massa cega" (E. Meyer: o. c, tomo IV, livro 3.º, pag. 217).

Para si mesmo, como contra-revolucionário, era perigoso fazer política e ele expunha, intencionalmente, sua doutrina filosófica numa linguagem obscura de semi-conspirador.

"Um só homem", escrevia ele, "vale por 10.000 se ele for o melhor". "Qual é a sua razão e a sua sabedoria (isto é, a dos senhores do momento, N. B.)? Eles obedecem aos cantores, eles deixam a populaça dar-lhes lição, pois não compreendem que a maioria é uma coisa má e que os bons são raros. Mas estes preferem a tudo a gloria imorredoura entre os mortais, enquanto que a multidão se contenta em repastar como animais de um rebanho" (Ib. 218).

É dessa situação da aristocracia, perseguida no meio de desordens e perturbações, que nasceu a filosofia de Heráclito. A sociedade está cheia de contradições e desordens, de lutas cruéis e entretanto ela se mantém como um todo. É assim que tudo se passa no mundo. Todas as coisas se formam de elementos opostos: "O todo e as partes, a concórdia e a discórdia, a harmonia e as dissonâncias; o único provém do múltiplo e o múltiplo do único". "É precisamente nas oposições que consiste a unidade, a essência das coisas". É absurdo pregar o descanso que não existe em nenhuma parte e não é possível descansar enquanto o inimigo é o dono. Donde se segue que a guerra é a mãe e a rainha (!!) de todas as coisas; ela a uns fez deuses, a outros homens, uns livres e outros escravos.

Homero, que queria suprimir nos homens e nos deuses a inimizade e a discórdia, não observou que, por isso mesmo, maldizia e condenava todo o futuro. Não é com efeito estúpido falar em repouso, quando tudo muda e ferve? Ao contrario, nada há de imutável e de fixo.

"Não é possível descer duas vezes o mesmo rio, pois já e outra água que corre".

Diz-se em geral que a ordem atual é boa, mas que a verdade é relativa;

"A água do mar é a mais pura e a mais repugnante: para os peixes ela é potável e salutar, para os homens impotável e mortal".

Pouco importa que sejam os comerciantes e os favorecidos pela democracia que governem agora a cidade. É preciso não enxergar somente a superfície dos fenômenos; é preciso olhar mais profundamente:

"Os sentidos nos enganam, tanto quanto o olho, que é entretanto melhor testemunha do que a orelha".

As modificações se efetuam na vida e aquilo que existe perecerá infalivelmente:

"O fogo vive, porque a terra morre, o ar vive da morte do fogo, a água vive da morte do ar, a terra... da morte da água".

Não somente as classes se substituem umas às outras, mas os próprios objetos sociais mudam continuamente de lugar:

"Todas as coisas se transformam em fogo e o fogo em coisas, como o ouro se troca por mercadorias e de mercadorias por ouro" (o. c. pag. 221).

Em que consiste a essência da sociedade? Precisamente nessa substancia ouro, graças à qual pode-se adquirir tudo, nessa força do dinheiro, que está em toda parte e penetra em toda parte. Também o fogo, encarnação dessa força, é a essência das coisas, força vivificante, origem de tudo.

"Assim também o espírito da vida, a alma é fogo e calor".

Os mercados, a concorrência, a guerra, são elementares: é a sorte invencível, dominadora. Portanto, Deus não é um homem cabeludo, mas uma lei espiritual e inelutável,

"potencia imperiosa e predestinada da sorte, que impõe as suas regras eternas a tudo e marca sua medida que não pode ser ultrapassada sem que caiamos nas mãos das Erinnyes, serventes da justiça".

Mas a divindade, a razão, logos, a sorte que governa o mundo, restaurará no fim de contas a justiça espezinhada: um dia de julgamento terrível virá,

"a chama passará por tudo, a chama abrasará tudo e pronunciará seu julgamento; a justiça se apoderará dos mentirosos e das falsas testemunhas".

Assim, na filosofia de Heráclito, aparecem os fatores da vida social contemporânea, misturados de maneira bizarra: a essência da economia que se desenvolve sob o signo do dinheiro, a luta de classes, a oposição da aristocracia, a esperança de um futuro melhor, o apelo à coragem, a fé na vitória, o apoio para essa fé na modificação universal das coisas, o reconhecimento de um destino impessoal e da Razão misteriosa que governa o mundo — reflexos das leis do comércio, da concorrência e da guerra, — o abandono do trabalho produtivo, o ódio de um aristocrata de nascimento contra a "populaça", as tradições da nobreza e do feudalismo guerreiro, etc., etc.. — eis as raízes sociais de sua construção filosófica.

É característico que, enquanto Heráclito, representante da aristocracia em oposição, de modo algum interessada na conservação do regime existente, defende o princípio da mudança, das contradições das lutas, da dinâmica, os filósofos de outra escola dominante defendiam com um não menor zelo o princípio da constância e da invariabilidade. O maior dentre eles foi Parmênides. Anaxágoras, amigo íntimo do chefe da democracia comercial ateniense do V.º século, Péricles, filosofo por assim dizer oficial de Atenas, tentou, de maneira muito sutil, deslocar o centro de gravidade da discussão filosófica apaixonada.

"Os gregos", escrevia ele, "falam erradamente no "vir a ser" e na desaparição, pois todo ser deriva de outro ser por via da mistura e da distribuição".

Em outros termos, Anaxágoras se coloca no ponto de vista da evolução gradual, o que derivava da situação social da classe que ele representava (Anaxágoras, entre outros, deu impulso à teoria dos átomos).

Não podemos analisar aqui em detalhe a filosofia grega. Está claro que ela não podia fundar-se senão sobre a base da vida social. Ao mesmo tempo, essa última tornava-se cada vez mais complexa. A luta extremamente complicada e a situação extraordinariamente turva das cidades dirigentes provocavam numerosas correntes, discussões e criticas; os laços sociais, os usos e costumes antigos começavam a se decompor. Os homens "embrulharam-se", e ao mesmo tempo, toda a filosofia virou-se para uma "filosofia prática", isto é, para os discursos sobre a natureza humana, sobre a moral, etc..... Invés de estudar a essência do mundo, começou-se a falar na essência do homem, em regras de conduta, de dever, do "bem" e do "mal" (de um lado, os sofistas que submetiam tudo à critica, do outro, Sócrates). Quanto a Platão, o maior filosofo escravagista da antiguidade, reacionário ao extremo, com o seu típico sistema de idealismo filosófico representando a razão pura e o bem, ao mesmo tempo que o bastão para os escravos, já a ele nos referimos no princípio desta obra. Citemos ainda um exemplo da época da decadência do Império romano, que era ao mesmo tempo a da decadência de toda a cultura antiga do Mediterrâneo. O desenvolvimento colossal das cidades, a acumulação das riquezas provenientes das pilhagens e da exploração dos escravos, o parasitismo total das classes dominantes e da multidão ociosa, da populaça livre desmoralizada pelas esmolas do Estado, a miséria extrema dos escravos, eis uma breve característica da "situação interna". E vejamos como o filosofo ricaço e estóico, Sêneca, ensina a filosofia prática a seu amigo Lucilio:

"Fizeste alguma coisa que possa impedir-te de morrer? Provaste todos os prazeres que ainda te retêm. Nenhum dentre eles será jamais novo para ti. Estás saturado de tudo. Conheces o gosto do vinho e do hidromel. Não importa que sejam 100 ou 1000 garrafas que passem pela tua garganta. Provaste também as ostras e os caranguejos. Graças ao teu luxo, nada no futuro permanece desconhecido para ti. Será disso que não te podes desligar? O que podes ter pena de deixar ainda? Teus amigos e tua pátria? Mas os estimas bastante para retardar por eles a hora de tua refeição? Oh! Se isto estivesse ao teu alcance, terias extinguido o próprio sol, pois tu nada fizeste que fosse digno da luz. Confessa que se tu recuas diante da morte, não é porque não queiras deixar a cúria, o fórum ou mesmo a natureza. Não queres deixar o mercado dos açougueiros, onde entretanto provaste todas as carnes" (Sêneca: "Cartas a Lucilio", citadas segundo N. Vassilieff: O problema da queda do Império romano do Ocidente).

A filosofia do individualismo absoluto, o pessimismo, a pregação da morte, a critica estéril de todas as regras sociais, o culto da razão abstrata que despreza tudo, — eis a filosofia desse tempo. Não vemos nela um reflexo da psicologia de uma classe parasitaria regalada, decadente, tendo perdido completamente o gosto da vida? E essa psicologia decorria das condições econômicas e sociais dessa época.

Na idade-média o regime da Europa Ocidental era feudal, com toda uma hierarquia de poderes. Era segundo o mesmo modelo que estava organizada a Igreja. Normas e direitos, costumes, moral, religião — todas essas superestruturas representavam o reflexo do regime e o reforçavam. Compreende-se o papel importante que nele devia representar a religião. Com efeito, a própria base da religião é derivada de relações de domínio e escravidão. Assim, é sobre as bases sólidas do feudalismo que devia forçosamente florescer a servidão espiritual e religiosa. Por conseguinte, a filosofia tinha uma pronunciada cor religiosa. Ela era considerada como uma "criada da teologia" (ancilla theologiae).

O filosofo mais característico e mais ortodoxo da idade-média, Tomaz de Aquino, (1225-1274), cuja principal obra é a "Summa Theologica" (enciclopédia teológica), exprimiu de maneira bastante clara, na sua filosofia, as relações feudais. O mundo está dividido em duas partes: o mundo visível e as "formas" que nele vivem. A "forma" suprema e a mais pura é Deus. Além desse Deus, existem ainda "formas" separadas particulares, especificas (formae separatae), dispostas segundo as posições definidas de sua dignidade: Tais são os anjos, as almas humanas, etc.. Todo esse sistema filosófico está impregnado de uma idéia de constância, de tradição, de autoridade.

"Mas ao mesmo tempo que a burguesia se desenvolvia, a ciência desenvolvia-se também passo a passo, com uma força extraordinária. Começava-se novamente a estudar a astronomia, a mecânica, a física, a anatomia, a fisiologia. Para aumentar a produção industrial, a burguesia tinha necessidade da ciência, para estudar as propriedades dos corpos e a ação das forças naturais. Até então a ciência não era senão uma humilde servidora da Igreja... Agora, ela se revolta contra a Igreja, e a burguesia, necessitando dela, juntou-se a essa revolta" (Frederico Engels: O materialismo histórico).

Essas necessidades da evolução são reveladas também onde a aristocracia fundiária segurava o leme. Assim, por exemplo, na Inglaterra, o primeiro anunciador da grande reviravolta na nova concepção do mundo, e por conseguinte na filosofia, foi Francisco Bacon (1561-1626). Segundo ele, é preciso estudar a natureza para dominá-la. Para esse fim, tem-se necessidade da "Arte da invenção" (ars inveniendi); é preciso rejeitar as velhas puerilidades escolásticas e o próprio Aristóteles. Agora, "as velharias cederam, a razão venceu" (vetustas cessit, ratio vicit). Marx considerava Bacon como um precursor do materialismo inglês:

"ele (isto é, Bacon, N. B.) considera as ciências naturais como uma ciência real e a física experimental como a parte mais importante das ciências naturais... Segundo sua doutrina, as sensações não enganam e são a fonte de todo conhecimento. A ciência é um conhecimento experimental; ela consiste em aplicar o método racional aos dados das sensações (isto é, a aquilo que percebemos graças aos nossos sentidos exteriores, N. B.)".

A indução, a análise, a comparação, a observação, a experiência, tais são as condições principais de um método racional. Entre as qualidades primitivas da matéria, a primeira e a principal é o movimento! Ao mesmo tempo, Marx descobre em Bacon uma porção de "inconsequencias teológicas" (Karl Marx e Fr. Engels: Die heilige Familie, 1845). Não podia ser de outro modo, dada a época e a situação de classe do próprio Bacon.

No domínio da filosofia, o materialismo francês do século XVIII declarou guerra de morte à ideologia feudal, assim como no domínio da política e da economia a burguesia havia declarado guerra ao feudalismo. Ele sustentou e desenvolveu com extraordinária energia a doutrina do filósofo inglês Locke, que professava que o homem não tem idéias inatas, que todo o psíquico não era senão uma "modificação das sensações" (sensualismo), que a sensação é uma propriedade da matéria. Ao mesmo tempo reinava a absoluta na onipotência da razão humana e da idéia (racionalismo). Toda essa ideologia estava impregnada de um individualismo que se refletia igualmente na filosofia prática ("direitos" do homem, liberdade da "pessoa humana", etc., etc.). Essa filosofia, extremamente revolucionária para a época, decorria da situação revolucionária de então, que havia derrubado o mundo feudal, suas autoridades, sua tradição, sua Igreja, sua religião e sua filosofia teológica e conservadora. O revolucionarismo da burguesia explica-se facilmente pela economia da sociedade do século XVIII e pelo estado das forças produtivas, cujo desenvolvimento, no regime de então, se chocava contra um obstáculo formidável, obstáculo que devia ser derrubado pela burguesia, pequena-burguesia, artesãos e semi-proletários.

Para melhor mostrar ainda quanto a filosofia depende da vida social, vamos dar como ultimo exemplo a filosofia da burguesia na época de sua decadência (depois da guerra imperialista de 1914-1918)j A formidável crise militar, econômica e social que se torna hoje "crac" do capitalismo, cuja civilização ela abala até aos fundamentos, provoca entre as classes dominantes um pessimismo desesperado, um ceticismo acentuado a respeito de suas próprias forças, na força da inteligência; ela suscita a volta à mística, a sede do misterioso, a aspiração aos cultos secretos e às antigas religiões, assim como a inclinação para essa forma moderna da feitiçaria mundana que é o espiritismo. Por muitos traços, essa filosofia lembra a das classes dominantes na época da decadência do Império romano. Vejamos algumas amostras dessa filosofia que marca o "crac" do capitalismo.

Na obra Desmoronamento do Idealismo Alemão, Paul Ernst faz uma critica da organização capitalista que trouxe a guerra. Essa organização era cega, ela comprimia a personalidade.

"De onde pode vir a modificação? Não há senão um caminho: a humanidade deve voltar à razão e reconhecer que o mais alto dever imposto por Deus aos homens é de se propor em sua ação objetivos determinados".

É preciso procurar o ideal da sabedoria... na China.

"Devemos reconhecer que a causa do sofrimento da humanidade não reside nas instituições, mas nas concepções que produzem essas instituições... Por que motivo não se estabeleceu o capitalismo na China? Pela simples razão de que o chinês, ama e venera o trabalho agrícola, em que ele pode encontrar sempre o pedaço de terra de que necessita e de fazê-la produzir suficientemente para satisfazer às suas modestas necessidades... O que nós precisamos, não é de reformas, nem de revoluções, mas da volta à verdadeira moral... A fonte primeira de todos os fins... são os homens de categoria superior... Devemos as mais altas aquisições da metafísica aos homens que vivem nus nas florestas da Índia, que se nutrem de grãos de arroz, que seus discípulos recolhem para eles por meio de esmolas".

Assim, as formas e os métodos superiores do conhecimento são encontrados nos homens que, pela contemplação de seu umbigo, atingem a sabedoria divina; as formas superiores da vida encontram-se no camponês chinês e sua virtuosa esposa. Desviar-se da civilização metida num beco sem saída, eis a divisa da filosofia contemporânea.

Hermann Keyserling: Reisetagebuch eines Philosophen — "Jornal de viagem de um filósofo":

"Toda verdade não é, em resumo, senão um símbolo... O sol reflete melhor o divino do que a mais perfeita construção lógica... Todos os adoradores do sol estão justificados diante de Deus" (e isto dito sem rir, N. B.). "O divino se revela sempre ao homem no quadro de seus preconceitos Íntimos". Os fakirs hindus são o ideal da fé e do conhecimento, pois "não existe superstição mais grosseira do que a crença na impossibilidade de se sobrepor à determinação natural..." O homem é por essência um espírito, e quanto mais ele se certifica disto, mais se livra de suas cadeias. Por conseguinte, é possível que, de conformidade com o mito hindu, o conhecimento perfeito triunfe da própria morte... O erudito perfeito, o espiritualista, serve-se da fé à sua vontade, como de um instrumento. É o que faziam os maiores hindus... E porque sabiam que toda construção religiosa é de origem humana, assim como a crença da alma, eles faziam sacrifícios às vezes a um Deus e às vezes a um outro".

Oswald Spengler: Der Untergang des Abendlands — "A decadência do Ocidente":

"A filosofia sistemática é agora para nós uma coisa muito longínqua; quanto à ética, ela está terminada. Resta ainda uma terceira possibilidade que corresponde ao ceticismo helênico no mundo das idéias do Ocidente".

É a história séptica da filosofia. No exame da história romana, Spengler substitui a idéia de causalidade pela do destino.

"Cada sociedade deve completar seu ciclo, da adolescência à velhice, que termina inevitavelmente pela morte. O ciclo da civilização da Europa esgotou suas forças criadoras e declina. Prever esse declínio e adaptá-lo ao inevitável, eis a nossa tarefa".

Semelhantes aos burocratas saciados do Império romano e aos "sábios" amolecidos da decadência, os filósofos burgueses dirigem-se para longínquos países e procuram os homens que andam nus para comungar no grande mistério. Spengler prediz para a Europa o destino do Império romano. Mas, fixando obstinadamente seu olhar sobre a China e a Índia, ele esquece um fator essencial: o proletariado. Se, na antiguidade, as classes inferiores não puderam senão elaborar a "filosofia" do cristianismo, agora existe um comunismo marxista, que se fortifica dia a dia no caos do "Ocidente" moribundo. Esse comunismo tem sua filosofia, que é a filosofia da ação e da luta, do conhecimento cientifico e da prática revolucionária.

Assim, chegamos à conclusão dc que a filosofia não é uma coisa independente da vida social, que ela é uma grandeza que varia em função dos diferentes aspectos da sociedade, isto é, que ela depende, no fim de contas, da economia e da técnica sociais.

Passemos a uma outra ordem de fenômenos sociais, examinemos a arte. Como a ciência ou qualquer outro produto material, a arte é um produto da vida social. Isto é evidente no que concerne aos objetos de arte, mas a arte é também um produto da vida social, como um gênero particular da atividade «espiritual». Do mesmo modo que a ciência, ela não pode desenvolver-se senão depois de certo nível da produtividade do trabalho. Senão, ela enlanguesce e morre. Mas isso não é tudo. Vamos examinar como é determinada a arte pelo curso da vida social. Mas é preciso primeiro saber o que é a arte e qual é seu principal papel social.

Vimos que a ciência sistematiza os pensamentos dos homens, coordenados, esclarece-os, desembaraça-os das contradições, e, com fragmentos de conhecimentos, tece toda uma rede de teorias coordenadas. Mas o homem social não se limita a pensar, ele sente também: ele sofre, ele sente prazer, alegra-se, desespera-se, deseja, etc.; estes sentimentos podem ser infinitamente complexos e subtis, o «leitmotiv» de seus estados de alma pode variar ao infinito. Ora, a arte sistematiza esses sentimentos exprimindo-os sob a forma de imagens palpáveis, seja pela palavra, seja pelos sons, seja pelos movimentos (por exemplo, a dança), ou ainda por outros meios (às vezes «muito» materiais, como na arquitetura). A arte, pode-se dizer, é um meio de «socialização do sentimento», ou, como disse L. Tolstoi («O que é a arte») um meio de contágio emocional. À audição de uma peça de música exprimindo um certo estado de alma, todos os ouvintes compenetram-se desse estado de alma; o que era o estado de um só, torna-se o estado de alma de um grande número de pessoas, a elas se transmite, sobre elas influi, contagia-as; nesse caso, o estado de alma, os sentimentos, «socializaram-se». O mesmo acontece com qualquer arte: pintura, arquitetura, poesia, escultura, etc....

Compreende-se agora o que é a arte: é a sistematização dos sentimentos em imagens. Compreende-se igualmente o papel direto da arte como meio de socialização desses sentimentos, de sua transmissão, de sua difusão na sociedade.

Que é que determina o desenvolvimento da arte? Quais são as formas de sua dependência em face da evolução social? Para responder a esta pergunta, tomemos uma arte qualquer, a música, por exemplo, e vamos decompô-la em suas partes constitutivas. Teremos os elementos seguintes:

  1. A parte material, em primeiro lugar, a técnica musical: instrumentos musicais, sistemas de instrumentos musicais (por exemplo, numa orquestra, num quarteto, os instrumentos, como as máquinas em uma empresa, estão associados de maneira determinada, símbolos e sinais sensíveis como as notas, etc..);
  2. A organização dos homens: diferentes formas de associação de homens no decorrer da atividade musical (disposição das pessoas na orquestra, no coro, sociedades e círculos musicais, etc..);
  3. Os elementos formais: ritmo, harmonia, etc.
  4. O modo de associação das diferentes formas, o «princípio de construção», o que se denomina o estilo na arte; num sentido mais lato, pode-se falar no tipo da forma artística;
  5. O conteúdo da obra artística, ou se considerarmos toda uma época ou uma escola musical, o conteúdo das obras de arte: trata-se aqui principalmente não do modo pelo qual se representa, mas aquilo que é representado, portanto da escolha do assunto;
  6. Enfim, como «superestrutura da superestrutura», a teoria da técnica musical (por exemplo, a teoria do contra-ponto. etc.....).

Vejamos agora as diferentes formas de interdependência do desenvolvimento da música e do desenvolvimento social, que se baseia no desenvolvimento econômico e técnico da sociedade.

1.º Já dissemos que é preciso, antes de tudo, um certo nível das forças produtivas para que a arte possa mais ou menos desenvolver-se. Isso não necessita explicação.

2.º É preciso uma «atmosfera» especial na sociedade para que suas inúmeras superestruturas dêem origem à arte ou, por exemplo, a uma forma de arte determinada, como a música. No exame da questão da técnica e da ciência, vimos, por exemplo, que na Grécia do VI e V séculos A. C. as ciências técnicas e naturais não se desenvolviam e que a filosofia especulativa, ao contrario, desenvolvia-se no mais alto grau. Em geral, o desenvolvimento das «superestruturas» é função da técnica social. Isto é incontestável. Mas não se segue daí que as superestruturas progridam (ou conforme o caso recuem) a passo regular. Isto também não se dá na produção material. A produção da linguiça não progride necessariamente na mesma velocidade que a construção de máquinas ou a preparação do óleo de rícino. Ao contrario, regra geral é que certas produções se desenvolvem mais rápida e outras mais lentamente; é mesmo possível que, por quaisquer razões, certas formas de produção desapareçam completamente. O mesmo acontece com as «superestruturas». Em Atenas, no V.º século, a técnica ia mal, a filosofia especulativa prosperava. Na America do século XX, a técnica progride, e a filosofia não se desenvolve. Ou ainda um exemplo no domínio da música: Outrora, o cantochão (parte constitutiva da música em geral) estava em grande voga. Ora, hoje em dia. é preciso procurar cuidadosamente para descobrir, mesmo entre as velhas beatas, amadores do cantochão. As superestruturas superiores são «rebentos» espirituais (Engels) da sociedade, e naturalmente, todo rebento que por uma razão qualquer recebe mais seiva, aufere mais vantagem. Em Atenas, o estudo experimental da natureza, em ligação com a prática, era considerado quase como uma obra vil, em todo caso indigna de um homem nobre, como ocupação destinada unicamente a artesãos grosseiros; daí, o seu desdém pelas ciências naturais. É preciso procurar a razão disto na disposição das classes, na economia da sociedade que, por sua vez, era determinada por sua técnica. O mesmo acontece no caso que nos ocupa. O canto gregoriano podia desempenhar um grande papel na música quando toda a música, como a filosofia, era uma espécie de criada da religião. Mas o cantochão não convém a uma sociedade capitalista desenvolvida. Assim, o papel da música depende do estado da sociedade, da sua estrutura geral, de suas necessidades, ocupações, sentimentos, etc.... Ora, essas necessidades, sentimentos, etc.... explicam-se pela disposição das classes, sua psicologia, que por sua vez se explicam pela economia da sociedade e pelas condições gerais de seu desenvolvimento.

3.º A técnica da música depende em primeiro lugar da técnica da produção material. Os selvagens não sabem construir um piano, e sem um piano, não é possível tocar piano, nem compor para piano. Basta comparar os instrumentos de música primitivos (salvo o instrumento natural, isto é, a voz) que nasceram das necessidades da caça, a trompa e o apito (Kothe-Prohazka: Abriss der allgemeinen Musikgeschichte — «Esquema da história geral da música» — Leipzig, 1919, pag. 4), com o piano atual, de construção extremamente complicada, para compreender toda a importância dos instrumentos.

«Vemos que, como arte independente, a música não se tornou possível senão com o aparecimento e desenvolvimento dos meios correspondentes dos instrumentos» (Lu-Marten: Historisch materialistisches Ueberwesen und Veranderung der Kunste — «A essência histórico-materialista e as transformações das artes» — pag. 18). «Ela não pode exprimir a escala das sensações senão pela escala dos instrumentos existentes» (Ibid.).

Sabemos já que a produção de objetos como o telescópio ou o piano entram na produção material da sociedade. Assim, compreende-se que a técnica musical depende da técnica dessa produção material.

4.º A organização dos homens depende também direta ou indiretamente das bases do desenvolvimento social. Com efeito, que é que determina, por exemplo, a disposição dos indivíduos que compõem a orquestra? Tanto quanto na fabrica, essa disposição é determinada pelos instrumentos e associação dos mesmos. Em outros termos, a organização dos indivíduos é determinada pela técnica musical, e por intermédio desta ultima, acaba-se ligada à própria base ao desenvolvimento social, a técnica da produção material. Tomemos a questão da organização dos homens num outro domínio, por exemplo, os círculos musicais. Está claro que o número, o desenvolvimento e o caráter de sua atividade, composição, etc..... serão determinados por uma série de condições da vida social, em primeiro lugar pelo gosto pela música (gosto determinado pela psicologia social), pela possibilidade para as diferentes classes de satisfazer a este gosto, etc.. (Esta possibilidade, por sua vez, é determinada pela quantidade de tempo de lazer das diferentes classes, em outros termos, pela situação das classes e pelo seu grau de produtividade no trabalho social). Tomemos ainda a disposição dos homens no próprio curso da criação musical. Aqui, igualmente, encontramos diferentes formas. A mais antiga, por exemplo, é a forma impessoal, denominada a «criação popular». Neste caso, o produto da arte é criado espontaneamente por milhares de autores anônimos. O caso é muito diferente quando um artista trabalha por encomenda, pelo desejo de um príncipe, rei ou de um rico qualquer. Existe uma outra forma, quando o artista, do mesmo modo que o artesão, trabalha para um mercado que não conhece e depende dos caprichos desse mercado e do publico. O trabalho do artista pode também revestir a forma de um serviço social, etc.. Não é difícil ver que essas formas de relações (entre os homens dependem diretamente do regime social (sob o regime da escravidão havia escravos músicos; recentemente ainda havia músicos servos que tocavam e criavam não para o mercado, mas por ordem do senhor). Todas essas formas, compreende-se que influem também sobre a arte.

5.º Os «elementos formais» (ritmo, harmonia, etc....) estão igualmente ligados à vida social. Alguns desses elementos existiam já no período pré-histórico: podem ser observados também nos animais. Falando do sentimento do ritmo dos cavalos, Karl Bucber diz:

«O ritmo emana manifestamente da natureza orgânica do homem: como elemento regulador da despesa mais econômica das forças, ele dirige todas as manifestações naturais da atividade do corpo animal. O cavalo que corre e o camelo movem-se de maneira tão rítmica quanto o remador ou o ferreiro. O ritmo provoca uma sensação agradável; esta é a razão pela qual ele serve não somente para aliviar o trabalho, mas é também uma fonte de prazer estético e um elemento da arte cujo sentimento à inato em todos os homens, qualquer que seja o seu grau de instrução» (Karl Bucber: «O trabalho e o ritmo»).

Tudo isso está certo. Mas ao mesmo tempo, como o mostra Bucher na obra citada, o ritmo desenvolveu-se sob a influência das condições sociais, e em primeiro lugar sob a influência direta do trabalho material (o que deu origem ao «canto do trabalho», por exemplo a nossa Dubinuchka, (canto dos barqueiros); neste caso, o ritmo era um meio de organização do trabalho). Assim, apesar dos «elementos formais», como o ritmo, poderem aparecer no período pré-histórico, isto é, antes do homem se tornar homem, em seguida eles não se desenvolvem por si mesmos, mas sob a influência do desenvolvimento da sociedade.

Fato interessante, somente um ritmo pouco complicado ("monótono como os estribilhos do antropófago") é acessível às pessoas pouco desenvolvidas, que não entendem o ritmo complicado que sentem as pessoas mais desenvolvidas. Em uma de suas obras sobre a arte, A. Lunacharsky diz:

"De tudo o que precede (isto e, do papel determinante da economia) não se segue que... as formas da criação não possam ter as suas leis psico-fisiológicas imanentes; elas as têm e são determinadas inteiramente por ela em sua forma especifica, se bem que recebam o seu conteúdo do meio social".

Depois ele explica o que entende por isto:

"A lei psicológica imanente do desenvolvimento da arte... é a lei da complicação. Sensações de força e de complexidade iguais repetidas grande número de vezes começam a produzir menos efeito, tem-se a impressão de monotonia e aborrecimento. Daí a tendência natural de toda escola artística para complicar e reforçar o efeito de suas obras" (A. Lunacharsky: Do teatro e do socialismo).

Assim, neste caso, a psico-fisiologia é oposta à economia: a economia determina inteiramente o "conteúdo" e a psico-fisiologia a "forma". Este ponto de vista parece-nos muito insuficiente, para não dizer errado. Com efeito, se considerarmos o desenvolvimento nos elementos formais, verifica-se que este desenvolvimento está longe de se efetuar sempre no mesmo passo. A música do selvagem, o número de sons harmônicos que este conseguia com seus instrumentos era extremamente restrito; mas o próprio desenvolvimento social não era rápido; visivelmente esta quantidade de sons bastava-lhe por muito tempo e não o aborrecia. Os antigos não conheciam a harmonia atual e empregavam o uníssono; não foi senão progressivamente que eles aprenderam a conhecer a oitava... "há lugar para crer que, recentemente ainda, a quarta não estava classificada entre as consonâncias" (L. Obolensky: Os fundamentos científicos da beleza e da arte). Assim, a complicação dos elementos formais segue à complicação da vida, pois a complicação da vida modifica a "natureza" psico-fisiológica do homem. O ouvido grosseiro do selvagem é função do desenvolvimento social, do mesmo modo que o sentido refinado do ouvido no habitante das grandes cidades capitalistas, com a sua organização nervosa de extrema sensibilidade. Assim, as "leis imanentes" são a outra face do desenvolvimento social. Ora, como este ultimo é determinado pelo desenvolvimento das forças produtivas, elas são "em ultima análise" função destas forças, pois o homem modifica a sua natureza reagindo sobre o mundo exterior.

6.º A forma da composição, o estilo, é igualmente determinada pelo curso da vida social. Ele é a encarnação da psicologia e da ideologia dominantes, a expressão do sentimento e do pensamento, do estado de espírito e da religião, das sensações e das idéias grandes e pequenas que «flutuam no ar» de uma determinada sociedade. O estilo não é somente a forma exterior, mas o «conteúdo, com todos os símbolos visíveis que a ele se referem»; «a história dos sistemas de vida encarna-se na história dos estilos» (Fritz Burger: Weltanschaugsprobleme und Lebenssysteme in der Kunst Vergangenheit — «O problema da concepção do mundo e os sistemas da vida da arte do passado» — Delphin-Verlag. nich, p. 23). «O estilo da forma é o reflexo do sistema da vida" da sociedade; Wilhelm Hausenstein: Die Kunst und die sellschaft — «A arte e a sociedade». Munich, Verlag Piper p. 32). A música religiosa dos antigos hindus (Vedas) não tem o mesmo estilo, não é construída da mesma maneira que a canção de café-concerto ou a Marselhesa. Estas obras surgiram em circunstancias e meios sociais diferentes, e por conseguinte, a sua forma devia ser diferente. Um hino religioso, uma marcha militar e uma canção de café-concerto não podem ser compostos segundo os mesmos processos. Pela sua própria forma, exprimem pensamentos, imagens e sentimentos diferentes. E esta diferença decorre da diferença de situação das sociedades e das classes onde apareceram, diferença que se explica pelas condições de desenvolvimento econômico, e por conseguinte, pelo estado das forças produtivas. Observa-se, além disto, que para cada produção artística o estilo é também influenciado em larga escala pelas condições materiais desta produção (por exemplo, na música pelos instrumentos musicais), pelo processo da criação artística (ver acima a organização dos homens na música), etc.. Mas tudo isso depende igualmente da lei fundamental do desenvolvimento social.

7.º O conteúdo, o «assunto» da obra de arte, que é quase inseparável da forma, é manifestamente determinado pelo meio social, o que se verifica facilmente pela história da arte. Está claro que a arte trata de representar aquilo que, num momento dado, apaixona as pessoas. Aquilo a que não se dá importância não desperta o pensamento criador. Ao contrario, aquilo que interessa no mais alto grau a sociedade ou as suas diferentes classes torna-se objeto da representação pela arte, forma especial da atividade intelectual.

«Há, com efeito, uma certa temperatura moral que coagiste no estado geral dos costumes e da vida dos espíritos» (Taine: A filosofia da arte, Paris, 1909, t. 1, pag. 55).

«A família dos artistas (Taine entende por isso uma tendência, uma determinada escola) encontra-se dentro de um todo mais vasto, num mundo que a envolve e cujos gostos estão de acordo com os seus. Pois o estado dos costumes e da vida dos espíritos é o mesmo para o publico e para os artistas; estes últimos não são homens isolados» (ib. p. 4).

Taine expõe aqui idéias muito justas, mas ele não as aprofunda, pois seria obrigado a terminar nas malditas concepções materialistas. Com efeito, que é que determina esta temperatura moral, este meio a que se refere Taine? Já encaramos esta questão muitas vezes, mas apresentada em outros termos. Sabemos que os costumes, a vida dos espíritos e os sentimentos não se desenvolvem por si mesmos, que a «consciência social» é determinada pelo estado geral, isto é, pelas condições de existência da sociedade e de suas diferentes partes (classes e grupos). Destas condições de existência decorrem os «gostos» da época. Assim, o conteúdo da arte é determinado em ultima análise pela lei fundamental do desenvolvimento social: ele é função de economia social, e ao mesmo tempo, das forças de produção.

8.º A teoria da música depende manifestamente de todos os elementos que analisamos, e como eles, está «subordinada» ao movimento das forças produtivas da sociedade.

Expusemos aqui a trama fundamental das bases da música. Mas podemos observar, em primeiro lugar, que existem sem duvida outras coisas de que a música depende, que nós não enumeramos; em segundo lugar, que todos os elementos citados influem uns sobre os outros. As suas reações recíprocas formam um todo mais complexo do que aquele que descrevemos, mas as partes deste todo agrupam-se em torno do núcleo fundamental que esboçamos. Devemo-nos lembrar em seguida que tomamos a música somente como exemplo. Não se segue daí que nas outras artes as coisas se passem da mesma maneira. Cada arte tem as suas particularidades: assim, no canto, o papel dos elementos materiais é reduzido ao mínimo (há notas, mas um só instrumento: a voz); na arquitetura, o papel dos materiais, dos instrumentos, da destinação dos edifícios, (igrejas, casas de habitação, palácios, museus, etc..) é imenso. Tudo isto deve ser tomado em consideração; mas a análise cuidadosa revela que, de uma maneira ou de outra, direta ou indiretamente, ou por uma série de laços intermediários, a arte, em seus múltiplos aspectos, é determinada pelo regime econômico e pelo nível da técnica social.

Quando a sociedade humana, nos primeiros passos de seu desenvolvimento, começava apenas a produzir um excesso, a arte, como se compreende, tinha uma relação direta, imediata, com as necessidades práticas da vida material.

As artes mais antigas foram a dança e a música, e também, até certo ponto, a poesia, estes três gêneros concorrendo conjuntamente. A unidade, harmonização dos estados da alma, preparação para atos em comum (uma espécie de exercício ou de ensaio da ação prática) — tal foi o sentido primitivo. Encontramos por exemplo, em certas populações "selvagens", as danças do conselho, as danças guerreiras, que têm por fim inspirar o pavor, e outros exercícios coreográficos, acompanhados de cantos, de palmas, assim como da música de alguns instrumentos primitivos. O ritmo desenvolve-se ao mesmo tempo que o trabalho, do qual se torna principal organizador, como o demonstrou admiravelmente K. Bucher. Pode-se dar como exemplo da "repetição" a dança do "desafio" dos neozelandeses, que é acompanhada de horríveis ameaças e caretas, destinadas a lançar o terror no espírito do adversário (J. Lippert: notória da cultura, pag. 114); podemos citar também as danças e os cantos que figuram a caça, a pesca e outras ocupações. É preciso atribuir uma importância particular à canção do trabalho, que se conformava ao ritmo do labor e cujas palavras reproduziam, frementemente por onomatopéia, os sons e os barulhos que marcavam os gestos e as manobras. Os cantos dos pastores, os cantos pelos quais os beduínos "regularizam a marcha dos seus camelos" no deserto, etc.... são também manifestações que se ligam diretamente à vida laboriosa.

À medida que a sociedade se desenvolve, com a aparição de novas ideologias e pensamentos, com o desenvolvimento da "cultura" e da civilização, é natural que a arte assimile os elementos novos que podem inspira-la, e cessa, portanto, de seguir de tão perto de maneira tão imediata, as manifestações da vida prática e da produção puramente material. A religião desenvolvendo-se, a música, a dança e as outras artes adaptam-se às necessidades do culto e nele desempenha um papel muito importante. No Egito, as classes dirigentes fizeram mesmo da música uma espécie de mistério reservado aos iniciados. Os sacerdotes eram os guardiães da ciência musical; a música religiosa era o seu principal domínio: enquanto que, de outro lado, os homens em estado de servidão cultivavam a música dos "campos e do lar" (Kaothe, mesma obra, pag. 11). O mesmo se deu na Índia, onde os músicos formavam uma casta privilegiada (existiam famílias de músicos e cantores). Os assiro-babilonios, povo guerreiro por excelência, davam à música um caráter particularmente belicoso ou belicoso-religioso (o que pode ser verificado pelos instrumentos dos quais nos deixaram imagens: timbalos e tambores). Entre as obras musicais que conhecemos da antiga Grécia, as criações mais primitivas foram os cantos dos pastores, e depois os cantos de guerra ("os cantos da vitória", o paean); em seguida os cantos da sociedade e da família (cantos fúnebres, threnas, cantos de noivados e de casamentos, epithalamios, etc.). Na Roma antiga, aparecem em primeiro lugar, principalmente, os cantos da vida pastoral e agrícola (o instrumento usado era a gaita campestre, fistula ou flauta de Pan) e os cantos de guerra (os romanos foram os primeiros a criar instrumentos de metal muito sonoros, servindo para lançar apelos: a trombeta, tuba; a buzina ou clarim, buccina, etc..).

As outras artes tiraram a sua origem das necessidades práticas. A decoração primitiva ou ornamentação, por exemplo, provém em parte da arte mais elementar da cerâmica:

"Os ornamentos continuam a lembrar as relações antigas do vaso com um cesto trançado" (R. Eisler: História geral da cultura, p. 39);

de outro lado, a pintura é também um princípio de escrita:

"O primeiro passo no caminho que devia conduzir à invenção da escrita foram os desenhos que eram traçados como lembrete. Não somente os hindus, mas mesmo os buschmen (ou boschimanos) tentam gravar sobre pedras imagens de objetos" (Lippert).

A escrita hieroglífica dos egípcio os caracteres mexicanos são antes de tudo representações de objetos. A estas artes primitivas liga-se a coloração dos corpos, a tatuagem, etc..

"A escrita provém de formas mais primitivas. A princípio encontramos vestígios de figuras sobre os corpos (tatuagem) que, correspondendo a certas "necessidades" religiosas (a de afastar os maus espíritos, por exemplo) serviam além disto para indicar a tribo. o titulo ou a casta, a idade e outras qualidades do homem tatuado" (R. Eisler, o. c, p. 36).

Pode-se ainda aproximar destes usos a coloração e a decoração dos guerreiros que queriam apresentar um aspecto amedrontador.

"Todos esses ornamentos tendo por fim espantar e produzir uma impressão forte, eram usados sobretudo na guerra" (Lippert, o. c, p. 113).

Lembraremos enfim as "mascaras de guerra" daquela população germânica a que se refere Tácito, e na qual encontramos um primeiro elemento de escultura.

Por motivos fáceis de compreender, é a arquitetura que guardará o caráter mais exclusivamente "técnico". Primitivamente, os homens se contentavam em edificar construções apresentando uma utilidade material.

"Os templos gregos e as abobadas góticas não eram senão a reprodução, num material mais solido e mais durável, de edificações construídas outrora em madeira para fins utilitários" (John Ruskin).

"Todas essas formas magníficas manifestaram-se a princípio nas construções privadas e laicas; foi somente mas tarde que foram utilizadas em proporções grandiosas, para fins religiosos", diz ainda o mesmo Ruskin.

Concebe-se que as condições gerais da produção tenham exercido sobre este gênero de arquitetura uma influência direta, particularmente marcada. No Egito, por exemplo,

"a estabilidade dos edifícios apresentando os muros em declive, tinha por causa original a necessidade de defesa contra as inundações do Nilo. As muralhas assim inclinadas supunham uma resistência maior à pressão das águas" (Roerberg: Pequena história da arte);

as colunas serviam de suporte, pois não se sabia ainda construir abobadas; a naos (nave sob a qual repousava a estatua do deus) nos templos gregos, estava disposta em colunada porque os gregos desconheciam a arte de construir abobadas e

"porque eles não podiam colocar um teto senão colocando horizontalmente pedras ou vigas de um muro ao outro ou de uma coluna a outra" (Ibidem),

Com o fim de mostrar a que ponto a forma, e por conseguinte o estilo, dependem das condições gerais da vida social, vamos citar alguns exemplos, servindo-nos sobretudo das interessantes pesquisas publicadas por Wilhelm Hausenstein.

Na arte plástica primitiva, reconhecemos dois períodos: 1.º O do naturalismo puro (isto é, da representação dos objetos tal como os vemos); 2.º O do ornamento estilizado, do desenho simbólico lembrando somente, de longe a realidade.

No primeiro caso encontramos as imagens de bisões, cavalos, mamutes, renas, vemos cenas de caça, pesca, etc.... sobre as paredes das cavernas, sobre ossos de cavalos, sobre as defesas dos mamutes, sobre os chifres das renas, etc....

O segundo período nos mostra sobretudo ídolos, pequenas figuras de homens, animais e objetos estilizados.

Max Verworn explica do seguinte modo esta diferença:

"O caçador das eras paleolíticas não tinha, pelo que sabemos, nenhuma idéia da "alma"... Ele não procurava nada além das coisas (ainda não era animista, N. B.). Ele não tinha nenhuma metafísica. Ele não considerava senão aquilo que podia adotar como verdadeiro. Em tudo, ele tinha o espírito do Boschimano..."

Pelo contrario,

"todos os povos que tinham uma concepção da alma e cujas idéias religiosas haviam invadido toda a vida, — os negros, os índios e os habitantes do arquipélago australiano, — mostram-nos uma arte extremamente ideo-plástica" (isto é, simbólica, e não "naturalista", ou conforme a expressão de Verworn, não "flsioplástica", N. B.). (Max Verworn: Zur Psychologie der primitiven Kunst — Naturwissenschaftliche Wochenschrift, neue Folge Band VI, Jena, 1907 — "A psicologia da arte primitiva — Revista semanal de ciências naturais, nova série, tomo VI, Iena, 1907" também citado por Hausenstein).

Hausenstein, estimando que Verworn não aprofunde as suas deduções até o fim , descobre a razão primeira das coisas no fato do caçador ser antes individualista, enquanto que o agricultor é coletivista. Na realidade, a "razão primeira" estaria antes no fato da "arte ideoplastica", assim como a religião, aparecer no decurso da formação de relações particulares entre os produtores, isto é, no momento do aparecimento de um regime social em que há senhores e subordinados.

Na época feudal, esse regime, na produção e na política, manifesta-se de maneira patente; estabelece-se uma distancia formidável entre o escravo e o déspota. Daí, o estilo que caracteriza todos os séculos do feudalismo e que Hausenstein analisou admiravelmente. A potencia e a dominação dos déspotas divinos, a soberania sem limites dos faraós ou dos reis feudais; altura inaccessível da posição que eles ocupam, a sua coragem, intrepidez e outras qualidades que os distinguem do comum dos mortais: tais são as idéias essenciais, que o estilo feudal exprime, no Egito, na Assiria-Babilonia, na Grécia da época mais antiga, na China, Japão, México Peru, Índia, tais são as idéias que encontramos na arte românica e no primeiro gótico da Europa Ocidental (Hausenstein, Versuch einer Soziologie der bildenden Kunst. Archiv fur Sozialwissenschaft und Sozialpolitik — Mai. Helft 1913, p. 778-779 — "Ensaio de uma sociologia da arte arquitetural. Arquivo das ciências sociais. Cadernos de Maio de 1913").

Lembremo-nos com efeito dos monumentos literários daquelas épocas antigas. Vejamos, por exemplo, as ultimas linhas da coletânea de leis editada por Hamurabi, rei da Babilônia, ao qual já nos referimos:

"Eu sou Hamurabi, soberano incomparável. Com as armas poderosas que me foram confiadas por Zamama e Innanna, com a sabedoria que me foi confiada por Ea, e a razão que me dispensou Marduk, exterminei os inimigos no Norte (no alto) e no Sul (em baixo), pus fim às brigas, estabeleci a prosperidade do país. Os grandes deuses me chamaram: e eu sou o Pastor benfazejo sou Hamurabi, o rei da verdade, a quem Schamasch deu a justiça. Minhas palavras são notáveis; minhas obras são incomparáveis, sublimes... Elas são exemplares para o sábio que quer atingir o estalão da gloria" (segundo Turaiev, o. c., t. 1, ps. 114-115).

E vejamos o elogio de um rei que se acha gravado sobre um hipogeu egípcio:

"Louvai o rei em vossos corpos, trazei-o nos vossos corações. Ele é um deus de sabedoria, vivendo nos corações. Ele é um radioso, aclarando as duas terras mais do que o disco solar; ele dá mais verdura do que o grande Nilo; enche as duas terras de vigor; é a vida que dá a respiração. O rei é alimento, seus lábios são multiplicação, ele é o gerador de tudo aquilo que existe, ele é Khnum, que gera os homens. Combatei em seu nome...", etc.... Turaiev, p. 253).

De outro lado, na "boa sociedade", os funcionários subalternos eram desprezados. Temos um documento egípcio, que traz os conselhos que um pai dava a seu filho, desejando fazer dele um escriba na corte do soberano; ele falava assim das profissões baixas:

"Nunca vi um ferreiro que fosse embaixador, nem joalheiro que estivesse em missão; mas eu vi o ferreiro diante da forja. Seus dedos pareciam-se com o couro do crocodilo, dele exalava um cheiro mais nauseabundo que o dos ovos de peixe podres... O lavrador veste uma roupa eterna (isto é, que ele nunca troca, N. B.). Sua saúde é a de um homem que está esmagado debaixo de um leão.. O tecelão na sua oficina é mais fraco do que uma mulher. Ele tem as pernas sobre o estômago; não respira o ar. Se ele não terminou a sua tarefa no fim do dia é fustigado como o lótus sobre o brejo", etc... (Ibidem, p. 231).

O faraó Iakmos diz de si mesmo:

"Os asiáticos aproximam-se medrosos e colocam-se diante de seu tribunal; o seu gládio penetra na Nubia, o terror que ele espalha na terra de Fenéka, o medo que se experimenta diante de sua majestade sobre a nossa terra é semelhante aquele que inspira o deus Min" (Ibidem, p. 272).

Vejamos como Fritz Burger caracteriza a arte egípcia da antiga época, isto é, do feudalismo Weltanschauun-gsprobleme und Lebenssysteme in der Kunst der Vergangenheit, pgs. 43-44 — "Os problemas da concepção do mundo e os sistemas de vida na arte do passado").

"A arte egípcia nos dá uma representação visual da idéia da imortalidade, não por meio de símbolos, mas por meio de realidades (as pirâmides "eternas" de extraordinária solidez, as estatuas, etc., N. B.). As produções desta arte hipnotizavam pela sua pretensão ao poderio; elas querem que diante delas nos ajoelhemos; há nelas alguma coisa que impõe a veneração, o respeito da existência superior que nela se acha encarnada; elas nos falam do vigor disciplinado, da vida na terrível tensão de sua força; do orgulho de um poder eterno, superior ao indivíduo, que quer que todos se mantenham a uma distancia respeitosa, da desumana crueldade de um ser indiferente à sorte da pequena criatura; elas refletem o brilho do senhor, distante como o das estrelas"

Esta é a razão por que "toda uma arte feudal propaga o culto da quantidade" (Hausenstein: Kunst und Gesellschaft — "Arte e sociedade'', pag. 46): pirâmides gigantes, estatuas colossais de faraós ou de reis Assiro-Babilonicos, que são formas do poder e da grandeza; arte monumental; a arte burguesa, a arte "de câmara" não pode ter nenhuma relação com as concepções imensas, com os frontões majestosos do feudalismo; as figuras que representam os dominadores, os senhores, são representadas segundo um determinado "cânon"; elas estão sentadas ou de pé, mas direitas, não em pose natural, mas numa atitude semi-divina, afim de distingui-las bem dos escravos e dos simples mortais (os antigos gregos definiam a atitude habitual dos escravos e dos subalternos pela palavra "proskynesis", que significa ao mesmo tempo. prosternação de adorador, reverencia e atitude de cachorro quando se deita); um dos maiores egiptólogos, Ehrmann, afirma que na pintura egípcia o corpo humano é representado diferentemente segundo a categoria social dos personagens figurados: para os simples mortais, a imagem é natural; ela é estilizada para aqueles que exercem um comando; a potencia viril é exprimida pela largura do peito, que nunca é diminuída, mesmo quando a perspectiva o exige; quando os egípcios desenhavam um homem de perfil, mostravam entretanto o seu peito de frente e toda a sua largura.

O mesmo espírito dominava a arte grega no período arcaico, os historiadores falam-nos constantemente do vigor heróico, da "energia da arte atica primitiva", da "rude energia dos dóricos", isto é, do "estilo dórico"; — veja-se: Entwicklungsgeschichte der Stilarten. B. Haendecke. Bielefeld-Leipzig, 1913, p. 10 ("História da evolução dos estilos").

Podemos observar mais ou menos as mesmas particularidades nos hindus, peruanos, mexicanos, chineses e japoneses.

"Quando o Estado mexicano dos astecas foi destruído pelos conquistadores, comandados por Cortez, o estilo em vigor naquele império lembrava, tanto do ponto de vista social quanto do ponto de vista estético, o do feudalismo e dos déspotas da Assíria" (Hausenstein, mesma obra, p. 77).

Na literatura, já mencionamos os elogios que os reis se faziam ou mandavam fazer nas inscrições. Vemos além disto o florescimento da epopéia heróica e guerreira, ou do drama heróico e cavalheiresco: na Grécia, por exemplo, a Ilíada e a Odisséia; no Japão o drama da cavalaria, que canta a fidelidade do Samurai para com seu suserano; os Incas têm também o seu drama heróico, etc....

A majestade divina inacessível aos simples mortais, e o rigor do poder manifestam-se na arte medieval européia, e antes de tudo nas catedrais que são construídas durante anos e séculos por uma multidão de homens ignorados. (Mais tarde, na época burguesa, estes sombrios e solenes edifícios foram considerados como cidadelas do espírito).

A transição do estilo feudal aos estilos burgueses começou em toda parte com a extensão do comércio, desenvolvimento do capital dos comerciantes e das relações comerciais de capitalistas: em Atenas, no V.º século; nas cidades e republicas comerciais italianas na época do renascimento; em seguida, nas outras grandes cidades da Europa comercial.

A transformação é definitivamente completada quando o regime feudal cai para sempre, isto é, depois da vitória da Revolução francesa de 1789-1793. A coletividade social, antigamente mantida pela ordem feudal, pela hierarquia das castas, desaparece para dar lugar ao indivíduo, à personalidade burguesa, ao comerciante que mantém regularmente o seu livro de contas, registra as suas operações e os lucros realizados, — orgulhoso aliás de seus títulos de "homem" e de "cidadão".

E vejamos o que se passou no domínio da arte musical:

"Até o XVI.º século dominava o princípio da coletividade (dito de outro modo, em linguagem marxista: da dependência feudal, da servidão, que entretanto era ainda uma organização, N. B.); o indivíduo permanecia em segundo plano; ele era absorvido pela família, pela comuna, pela Igreja, pelas corporações de comerciantes ou de artesãos, pela confraria ou pelo Estado. A esta constituição social corresponde exatamente o canto coral, que estava em grande voga. Entretanto, o indivíduo procurava enveredar pelo seu próprio caminho. (Por indivíduo, é preciso entender a personalidade "burguesa", "jovem" ainda, mas ardente, enérgica, sagaz nos seus cálculos, sabendo encarar as coisas praticamente e gostando da boa vida, N. B.). Aparece então, no domínio da música, o canto do solista e... o drama musical (Kothe, o. c. p. 159). O novo estilo musical (estilo representativo, isto é, preso a uma representação teatral, estilo da opera dramática) fazia em suma a transição para o recitativo, que está a meio caminho entre o canto e a linguagem falada: a melodia, o ritmo e outros valores musicais subordinaram-se à necessidade de interpretar naturalmente um texto literário. É extremamente interessante, — diz ainda Kothe, mesma obra, pág. 161 — notar as circunstancias secundarias nas quais este novo estilo musical emergiu simultaneamente sob três pontos... de tal modo que seria difícil dizer a que "inventor" compete a coroa".

Comparai esta observação àquela que foi feita sobre a ciência por Bordeaux e que nós citamos ao analisar esta superestrutura. Ao ideal religioso da realeza e da nobreza, o comerciante instruído vai substituir o apetite terrestre, a vontade de exprimir aquilo que há de individual na humanidade.

Leonardo da Vinci, um dos maiores artistas de todos os tempos e de todos os povos, um dos homens mais notáveis que jamais existiram, deu a expressão genial da nova corrente de idéias que se manifestava em diferentes domínios: ele foi filósofo, inventor, naturalista, matemático, artista inigualável e até poeta.

"Leonardo da Vinci afasta-se de todo misticismo. Ele interpreta o fenômeno da vida do homem pela lei da circulação do sangue, que ele conhecem exatamente e da qual fez um desenho. Ele analisa com irreverentes arrojo as leis que presidem à estrutura da forma humana; com uma brutalidade que nenhum sentimentalismo intelectual entrava, ele traça graficamente o mecanismo do ato sexual... Ele aborda o problema da luz (em pintura, N. B.) pelo caminho da ciência; a influência da luz e da atmosfera torna-se para ele um problema de ótica experimental. Para ele, o ritmo da composição artística é um dos segredos da geometria; o maravilhoso quadro que representa Sant'Ana, a Madona, o Menino Jesus e o Cordeiro é, sem dúvida alguma, o resultado de escrupulosos cálculos de matemático, de longas e cuidadosas meditações sobre a teoria das linhas curvas." (Hausenstein, o. c, ps. 100-102).

Naturalismo, realismo, racionalismo, individualismo — tais são os "ismos" que caracterizam a época do renascimento. Na literatura (na poesia), a transição do estilo gótico medieval para o estilo moderno passa por Dante, Petrarca, Boccaccio, e outros. O "sentido" desta arte é, no fundo, a critica do espírito eclesiástico e feudal e o abandono definitivo do estilo feudal, que se substitui pelo estilo elegante, mundano, realista, e ao mesmo tempo pessoal, individual. A relação que existe entre a arte e a vida social, manifesta-se aqui com extrema nitidez.

É-nos impossível demorar no estudo de certas formas posteriores, por exemplo, o estilo barroco (temos sobre isto um bom estudo marxista do mesmo Hausenstein: Vom-Geist des Barrok — "O espírito da arte barroca" — Munich, 1920, Piper-Verlag), e vamos passar "aos tempos modernos".

Na antevéspera da grande Revolução francesa, era o estilo "rococó" que dominava. A base social desta forma de arte achava-se na dominação de uma aristocracia feudal e de uma oligarquia financeira (que era denominada a alta finança), isto é, de um mundo de novos-ricos, que compravam títulos de nobreza e davam-se ares de aristocratas Des fermiers généraux prennent en fermage les impôts: a agiotagem desconcerta as fortunas; a isto ajuntam-se as operações de financeiros carcomidos e as de uma política colonial de comerciantes; a nobreza dirigente necessita de dinheiro e vende os seus títulos; burgueses enriquecidos compram-nos comprando ao mesmo tempo filhos de famílias principescas para maridos de suas filhas"; — esta é a situação nas "esferas superiores". Daí os costumes originais desta "época galante". Em todas as coisas, tudo era questão de amor, não de amor-paixão, mas de um jogo profissional entre os ociosos elegantes. O tipo ideal era o do especialista nestes negócios ("defloradores"); a doutrina galante que lembrava constantemente "a hora do pastor" tornava-se mais ou menos o centro das meditações do século; falava-se mais frequentemente na "hora do pastor" do que durante nossa Revolução falou-se na "hora presente". Ora, o rococó é um estilo rebuscado, artificial, todo penetrado de erotismo, e que traduz admiravelmente todos os caracteres distintivos desta psicologia social (veja-se Hausenstein: "Rokoko, Franzosische und deutsche illustratore des achtzenten Jahrhunderts. "Ilustradores franceses e alemães do século XVIII" Munich, 1918, Piper-Verlag).

A subida da burguesia, as lutas que ela empreendeu e as vitórias que conquistou fizeram aparecer um novo estilo, cuja melhor expressão na pintura francesa foi dada por David. Este estilo era a tradução material das virtudes cívicas da burguesia revolucionária: a "simplicidade" antiga da forma estava em correspondência com o "fundo"; não havia Diderot escrito que a arte tinha por fim imortalizar as grandes e belas ações, de fazer justiça à virtude infeliz e insultada, censurar o vicio feliz e inspirar o pavor aos tiranos? Foi também Diderot que aconselhava aos dramaturgos a observar mais de perto a realidade, e que ele próprio abria caminho ao que foi denominado "o drama burguês" (Fr. Muckle: Das Kulturpro-bleme der franzosischen Revolution. 1. Teil, pag. 177); este estilo teatral foi considerado como "o gênero honesto" e temos dele um modelo no "O casamento de Fígaro", de Beaumarchais. As raízes sociais desse "novo gênero" mostram-se na superfície a tal ponto que se tornam palpáveis.

"Se, depois de ter contemplado um quadro de Watteau (artista do gênero rococó. N. B.). voltamos para casa e nos pomos a ler a Nouvelle Héloise, de J. J. Rousseau, sentir-nos-emos transportados para uma outra esfera" (G. Brandes: Die Hauptstromungen der Literatur des neunzeshníen Jahrhunderts — "As principais correntes da literatura no século XIX", tomo 1, pag. 27 Leipzig).

Esta outra esfera artística corresponde exatamente a uma outra esfera social; o pequeno-burguês e o grande-burguês tornaram-se os heróis do dia à custa dos aristocratas afeminados, das lindas borboletas de salão, das quais eles tomaram o lugar, e são eles que criam o seu "gênero honesto".

Agora, por contraste, vemos a arte da burguesia agonizante. Esta arte encontrou a sua expressão mais notável na Alemanha, depois da catástrofe de 1918 e do tratado de Versailes: sob a ameaça permanente de uma insurreição do proletariado, a existência do mundo burguês, nesse pais, é mais que nos outros lugares morosa; o mecanismo do regime capitalista desconcerta-se mais rapidamente do que nos outros países; e por esta razão, mais rápida é também a desclassificação dos intelectuais burgueses; eles tornam-se uma "poeira de humanidade"; não são mais do que indivíduos isolados e sem força, desorientados por formidáveis acontecimentos. É esta decomposição que se traduz num aumento de individualismo e misticismo. Penosamente procura-se um novo "estilo", novas formas sintéticas, sem as encontrar: cada dia vê-se surgir um novo "ismo" que envelhece logo e perde o seu interesse: em seguida ao impressionismo, nós vimos o neo-impressionismo, o futurismo, o expressionismo, etc.... múltiplas tendências, inúmeras tentativas, profusão de teorias; mas nenhuma síntese mais ou menos segura. E isto na pintura, na música, na poesia, na escultura e em todos os domínios da arte.

Vejamos como essa evolução é descrita pelos velhos crentes da burguesia, que observam inquietos a decomposição de sua classe, de sua cultura: eles nos dizem que neste período de desmoralização os homens tornam-se crédulos, crêem "nos mistérios", e deixam-se iniciar na feitiçaria e na magia, dão fé ao espiritismo e à teosofia:

"O chefe de um grupo de exploradores dos arcanos escreve livros sobre livros e multiplica as conferencias... Nossos ativos espíritas e teósofos contam-nos muitas coisas, mas não nos parecem eles mesmos muito impressionados por suas revelações, como alias eles tão pouco impressionam o publico" (Max Dessoir: Die neue Mistik und die neue Kunst in Einfuhrung indie Kunst der Gegenwart — "A nova mística e a nova arte introduzidas na arte do presente" — Leipzig, 1920, Verlage on Seemann, pag. 130).

"O mesmo acontece com nossos artistas modernos, que pretendem exprimir como visionários intuitivos os fatos visíveis e dar em cada uma de suas obras a tradução de um "êxtase espiritual" (pag. 132); esta é a expressão do "idealismo mágico"; "na poesia, sacrifica-se a frase à palavra isolada, ou então prega-se o dadaísmo; na pintura e na escultura fazem-se absurdas puerilidades... Os mágicos, astrólogos e outros augures desnaturam a verdade, bem que a verdade nos ensine, com efeito, que toda a sabedoria não está inteiramente contida na lógica de nossos conceitos; eles querem tirar disso um hino em honra da metafísica pré-lógica dos negros" Ibidem, pag. 133-134);

e faz-se uma propaganda de pequenas capelas, de círculos fechados, de clãs e grupos, no interior dos quais os artistas deverão entregar-se à misteriosa contemplação do além e às alegrias de suas fantásticas operações. Ao lado disso transparece uma tendência para um onanismo místico que é também um sintoma de profunda decadência da classe burguesa. Assim triunfa o misticismo. Jules Romain, no seu Manual de deificação, citado por Dessoir, declara que a iluminação mística seria a condição absoluta de uma conquista artística do mundo. E depois de ter traçado este quadro, o próprio Dessoir não encontra outro recurso senão dizer que esse misticismo doentio poderá talvez voltar ao bom caminho... se levar os homens para a antiga crença no Deus de seus pais! (pag. 138).

Um dos teóricos do estilo expressionista, Teodoro Daubler (Der neue Stanpunkt, 1919 — "O novo ponto de vista" — Insel Verlag, Leipzig, pag. 180), exprime admiravelmente este ponto de vista, em suma profundamente individualista, de átomos sociais dispersos:

"O ponto central do mundo está dentro de cada eu e mesmo dentro de cada obra de um eu autorizado" (Daubler fala uma linguagem um pouco "misteriosa").

Bem entendido, de um tal ponto de vista chega-se fatalmente ao misticismo.

"De todos os lados, ouve-se agora este grito: esqueçamos a natureza! O que isto significa, do lado da poesia expressionista e das artes plásticas, nós o sabemos: é o desprezo daquilo que os sentidos percebem, sai-se dos limites da experiência dos sentidos e há uma tendência para se elevar para o sobrenatural, para o espiritual".

Na música, isto nos conduz à "super-música" e para a "anti-música", sem harmonia, sem ritmo, sem melodia, etc.... (Arnold Scheng: Die expressionstísche Bewegung — "O movimento expressionista" — no livro já citado: Einfuhrung in die Kunst der Gegenwart).

Max Martersteig nos dá a este respeito um julgamento de conjunto, do ponto de vista social da cultura capitalista (Das jungste Deutschland in Literatur und Kunst — "A mais jovem Alemanha na literatura e na arte", mesma obra, pag. 25):

"O delírio estático que conhecemos depois de ter suportado monstruosos sofrimentos, deve acordar em nós o bom senso, a razão. Nenhuma psicose de guerra, nenhuma psicose de exasperação, poderá jamais servir desculpa para manifestações de desequilíbrio e de anarquia".

E o autor apela para o sentimento da "mais alta responsabilidade". Mas esses clamores ficarão sem efeito: pois na derrocada do imenso templo do capitalismo, não se encontrarão novas sínteses majestosas; forçosamente, não restarão senão escombros, não se verá mais senão o incoerente delírio místico e os "êxtases" dos sectários da teosofia. Tal foi sempre o estado de toda cultura que se achava condenada a desaparecer brevemente.

É necessário dizer aqui algumas palavras sobre a moda, à qual já nos referimos no precedente estudo. Por alguns lados, a moda está relacionada com a arte (pelo seu "estilo": os vestidos e os costumes da época do rococó por exemplo, correspondiam exatamente às tendências da arte); por outro lado, a moda se ajusta a certas normas de conduta moral, a regras de "bom tom", de "urbanismo", a costumes, etc.... A moda, por conseguinte, desenvolve-se também em função da psicologia social. A modificação das formas em uso, a maior ou menor rapidez das variações dependem também do caráter da evolução social. É este o princípio que explica, por exemplo, a prodigiosa rapidez das transformações da moda no final da evolução capitalista.

"Nosso ritmo inferior (que corresponde à furiosa agitação da existência, N. B.), reclama mudanças cada vez mais frequentes nas nossas impressões, fases cada vez mais curtas e rápidas" (G. Simmel: Die mode. Phuosophische Kultur — "A moda. A cultura filosófica", 2.a edição, pag. 35. Alfred Kroner-Verlag, Leipzig, Í919).

Qual é, portanto, a significação social da moda? Que papel ela desempenha na corrente da vida social? G. Simmel responde muito bem a esta pergunta:

"A moda, diz ele, é o produto da divisão da sociedade em classes e ela desempenha o mesmo papel social que o conjunto de outras formações sociais: ela representa antes de tudo um ponto de honra, cuja função é dupla: trata-se de agrupar em torno de si pessoas que ocupem uma certa categoria e trata-se ao mesmo tempo de separar este agrupamento dos outros... De modo que a moda indica, de um lado, que se pertence a um circulo de iguais, e marca a unidade desse circulo; de outro lado. ela distingue o grupo dos outros inferiores" (ibidem, pag. 28 e 29).

Entre as funções do desenvolvimento social, é preciso ainda mencionar duas superestruturas ideológicas de valor geral. São elas a linguagem e o pensamento.

Nos meios marxistas ou semi-marxistas, acreditou-se frequentemente que seria de bom tom afirmar que as questões que concernem à origem dessas funções nenhuma relação tinham com o materialismo histórico. Kautsky, por exemplo, chegou até a formular como princípio que as funções mentais da humanidade não sofriam quase nenhuma modificação. Não é esta entretanto a verdade. E essas formas da ideologia, extremamente importantes, essenciais, que desempenham um papel imenso na vida da sociedade, não devem ser consideradas como exceções, nem na sua elaboração, nem no seu desenvolvimento entre as outras «superestruturas» ideológicas. Devemos portanto responder a uma pergunta preliminar; devemos dissipar uma duvida que se apresenta desde o momento em que nos colocamos em lace do problema da linguagem e do pensamento.

«Muito bem, nos dirão, concordamos que a linguagem, tem uma relação evidente com a vida social: é o instrumento das relações entre os homens, é o seu laço; Marx tinha razão em dizer que seria absurdo falar do desenvolvimento da linguagem se os homens não falassem entre si. Mas o pensamento, a função mental? Não é o indivíduo que pensa? Não é o indivíduo que possui um cérebro? E não iremos nós cair no domínio do misticismo, se quisermos procurar as raízes dessa função mental do indivíduo na sociedade?»

Responderemos imediatamente a esta pergunta. O pensamento se exerce sempre com a ajuda de palavras, mesmo quando estas não são pronunciadas; e isto podemos exprimir pela fórmula: «Um discurso menos o som». Quando o homem pensa, isto significa que se reproduzem nele combinações variadas de conceitos que são sempre marcados, cada um, por um sinal verbal. Acontece frequentemente, por: exemplo, que uma pessoa que conhece bem uma língua estrangeira comece a pensar nessa língua. Qualquer um poderá verificar facilmente consigo mesmo que o processo do pensamento, da reflexão, produz-se com a ajuda de palavras, alias se assim é, e se ao mesmo tempo é claro que a «palavra», o discurso, a linguagem estão ligados à vida da sociedade, não somente no seu desenvolvimento, mas também na sua elaboração, está claro igualmente que o pensamento se acha necessariamente no mesmo caso. E os fatos confirmam que o desenvolvimento da função mental seguiu o da linguagem. Um dos maiores filólogos contemporâneos, Louis Noiré, escreve:

«A linguagem e a vida da razão saíram de uma atividade comum, dirigida para um fim comum; ela saiu do trabalho (somos nós que sublinhamos esta palavra, N. B.) primitivo de nossos antepassados» (Origem da linguagem — Mayence, p. 331).

Do mesmo modo que a música e o canto tiveram sua origem no trabalho humano, a linguagem provém também do desenvolvimento dos gritos dos homens no decurso de seu trabalho. A ciência da linguagem nos ensina que a base primitiva das palavras achava-se naquilo que denominamos «os radicais ativos», que as primeiras palavras foram antes de tudo aquelas; que indicavam uma ação (na nossa terminologia gramatical os verbos); e não foi senão mais tarde que se começou a designar as coisas por substantivos, e isto na medida somente em que as coisas tomavam um valor particular na prática do trabalho humano; foram nomeados primeiro os instrumentos de trabalho, que receberam nomes segundo as palavras que já tinham servido para designar as ações correspondentes. Paralelamente a isto, desta massa que enchia — no sentido figurado, entende-se — o cérebro do homem, que ressoava nos seus ouvidos, e cujas cores impressionavam seus olhos, dissociaram-se conceitos mais firmes. O conceito é a base da função mental.

O que se passa em seguida com o pensamento e a linguagem, é exatamente o que se passará com as outras superestruturas ideológicas. O seu desenvolvimento dá-se sob a influência do desenvolvimento das forças produtivas. No decorrer desse desenvolvimento, o mundo exterior — mundo em si — torna-se um mundo para o homem; a simples matéria torna-se um material para a prática humana; com a ajuda de utensílios «grosseiros» e em seguida de instrumentos cada vez mais aperfeiçoados do trabalho material, com o auxilio do conhecimento cientifico, com as inúmeras antenas das máquinas, dos telescópios, por meio de pensamentos incisivos, a sociedade incorpora ao material de seu trabalho uma porção cada vez mais extensa do mundo exterior que se desvenda para ela no trabalho e no conhecimento. Assim se constitui uma formidável massa de novos conceitos; e por conseguinte de novas palavras: verifica-se «o enriquecimento da linguagem», que engloba todo o conjunto das coisas sobre as quais os homens pensam e sobre que eles se «entretém», isto é, que eles se transmitem uns aos outros.

«A riqueza da vida» arrasta atrás de si «a riqueza da linguagem». Em algumas populações pastoris (ocupando-se exclusivamente da criação do gado), quase todas as conversas são levadas para assuntos relacionados com os animais domésticos. Assim acontece porque o nível muito baixo das forças produtivas leva quase toda a existência para o processo da produção e a linguagem acha-se assim em relação direta com esse processo. Quando, sobre um terreno cada vez mais extenso de forças produtivas, aparece uma superestrutura ideológica, imensamente complexa, a linguagem, compreende-se, começa a envolver todo esse conjunto, e a relação que existe entre ela e o processo de produção torna-se cada vez mais indireto: a linguagem não depende mais da técnica da produção senão através da relação de dependência (mais frequentemente indireta) em que se encontra essa técnica em face de diversas superestruturas. Pode-se dar como exemplo do crescimento da linguagem a imensa quantidade de «palavras estrangeiras» que são introduzidas nas línguas, como resultado do acréscimo das relações econômicas entre as diversas nações do mundo; viu-se aparecer uma quantidade de coisas idênticas, em uso nos diferentes países, viu-se a produção de acontecimentos que tinham importância e significação gerais (telefone, aeroplano, radio, a «Sociedade das Nações», o «Comintern», a «Internacional Comunista», o bolchevismo, os Soviets, etc.). Poder-se-ia demonstrar que em função das condições de existência social, o caráter da língua e seu «estilo» se modificam igualmente. Mas isto nos levaria longe demais. Entretanto, é indispensável assinalar que a divisão da sociedade em classes, grupos, profissões, imprime um certo caráter à linguagem. Todos sabem que a linguagem da cidade difere muito da do campo, que a língua «literária» difere da linguagem «popular». As vezes esta diferença chega a tal ponto que os homens não se compreendem mais entre si. Num grande número de países, existem «dialetos», «gírias», etc., que são muito pouco compreendidos pelas «pessoas instruídas» e pelas «classes possuidoras». Tal é a influência do regime das classes sobre o fracionamento da linguagem, o mesmo pode ser dito das profissões. Sabe-se, por exemplo, que os sábios filósofos, que estão acostumados a viver num mundo de raciocínios sutis, escrevem (e falam frequentemente) numa linguagem que parece um verdadeiro «quebra-cabeças» para os profanos. No desejo de se exprimir dessa maneira, pode-se reconhecer até certo ponto a necessidade que traduz a moda: as pessoas querem diferençar-se dos «simples mortais». Assim era no tempo em que nosso «filhos de família», os «nossos jovens senhores», traziam de Paris costumes e amantes caras e falavam o russo com sotaque, pensando assim distinguir-se. Pode-se citar a pronuncia fanhosa dos puritanos (reformadores religiosos ingleses, representantes de uma burguesia em formação);

«Assim como eles se davam nomes de patriarcas e de profetas, eles imitavam na sua pronuncia o tom fanhoso e cantante com o qual ainda se lê a Bíblia em hebraico nas sinagogas» (W. "Wundt: «Os problemas da psicologia dos povos»).

Em geral o

«filólogo não deve considerar a linguagem como uma manifestação da vida isolada da sociedade humana; ao contrario, as hipóteses sobre o desenvolvimento das formas da linguagem devem concordar com as idéias que temos da origem e do desenvolvimento do próprio homem, da origem das formas da vida social, dos germens de onde saíram os costumes e o direito» (ibidem).

Não se deve crer tampouco que o pensamento seja sempre uma função mental de um só e mesmo tipo. Vimos mais acima que sábios respeitáveis explicam a elaboração da ciência por uma inclinação misteriosa e universal do homem para procurar as causas que explicam os fenômenos, e que eles não procuram saber de onde provém esta inclinação por si mesma tão agradável. Ora, pode-se agora considerar como absolutamente provada a variação dos tipos da função mental. É assim por exemplo que Lévy-Bruhl, no seu livro: As funções mentais nas sociedades inferiores (Paris, 1910) estudando especialmente o modo de pensar dos selvagens, caracteriza-o muito diferentemente do modo «lógico» do pensamento contemporâneo; ele denomina isto a função mental pré-lógica. Este gênero de atividade mental não estabelece frequentemente nenhuma distinção entre o particular e o geral, a parte e o todo, um objeto e outro.

O mundo inteiro aparece como uma rede não de coisas mas de forças em movimento, no meio das quais está o próprio homem; além disto, o homem não se distingue absolutamente como indivíduo: a individualidade está inteiramente socializada; ela se afoga na sociedade e dela não pode ser separada. A «lei fundamental» deste gênero de atividade mental não é mais, como alhures, o conceito de «causalidade», mas aquilo que Lévy-Bruhl denomina a «lei da participação»: é possível, segundo essa lei, reagir sobre as coisas em condições que, do nosso ponto de vista, excluem inteiramente esta possibilidade. A lei da participação permite ao selvagem pensar simultaneamente o individual no coletivo e o coletivo no individual, sem nenhuma dificuldade. Entre um bisão e os bisões, um urso e os ursos, um salmão e os salmões, esta psicologia estabelece uma participação mística (observamos, como o professor Pogodine, que a palavra «mística» absolutamente não convém aqui, N. B.) e a coletividade da espécie como a existência separada dos indivíduos não têm absolutamente, nesta psicologia, a mesma significação que para nós. O próprio Lévy-Bruhl relaciona este tipo de função mental com um tipo determinado de existência social no qual a personalidade não se distingue da sociedade, isto é, ele vê aqui uma relação com o comunismo primitivo.

E em seguida? Em seguida encontramos não aquilo que nós entendemos hoje por causalidade, mas aquilo que se denomina a causalidade do animismo. Isto significa que os homens tinham uma tendência para procurar em tudo o princípio espiritual-divino ou demoníaco. Tudo o que acontece se dá por «ordem» de alguém. A própria causa não é, outra coisa senão a ordem que emana de um espírito superior. A lei de causalidade — são os decretos de um ser superior, dum senhor espiritual (ou senhores espirituais) do universo. Vemos aqui um outro tipo de pensamento: a tendência dos homens para procurar as causas existe realmente; mas procuram-se as causas de qualidade particular, quer-se que a causa seja a manifestação de uma força superior. Compreende-se facilmente que este tipo de pensamento está ligado a um regime social determinado. Este tipo caracteriza a sociedade onde já existe uma hierarquia na produção como na política social.

Transformações semelhantes da função mental intervêm na evolução interior, como já indicamos parcialmente ao examinar a questão da filosofia. São suficientes agora os exemplos que acabamos de dar para afirmar que o pensamento a suas formas são igualmente valores variados, cujas variações se ligam àquelas que se produzem na evolução da sociedade, na sua organização de trabalho e na sua armadura técnica.

Precisamos agora recapitular alguns pontos essenciais. De tudo o que precede, como vemos, resulta a absoluta justeza da genial formula dada há muito tempo por Marx (Contribuição à critica da economia política):

«Na sua vida social, os homens se empenham em relações determinadas, independentes de sua vontade, em relações de produção que correspondem a um grau determinado da evolução das forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas determinadas da consciência social. O modo de produção da vida material determina o processo da vida social, política e espiritual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o modo de ser, mas pelo contrario, a maneira de ser social é que determina a sua consciência.»

Vimos que a imensa «superestrutura» disposta acima da base econômica da sociedade é ela mesma bastante complexa na sua «estrutura» interior. Ela contém objetos materiais (utensílios, instrumentos, etc.); nela encontramos organizações humanas muito diversas; encontramos combinações de idéias e de imagens rigorosamente sistematizadas; encontramos também idéias e sentimentos difusos, confusos, não sistematizados; encontramos enfim ideologias «de ordem secundaria», como ciências das ciências, ciência das artes, etc.. Eis porque, numa análise mais detalhada, somos obrigados a estabelecer uma certa delimitação das noções.

Por «superestrutura» entenderemos uma forma qualquer dos fenômenos sociais que se eleva acima da base econômica: a isto, por exemplo, ligaremos a psicologia social, e o regime ou estrutura da sociedade política com todo o seu material (por exemplo, o seu material de guerra), e a organização humana (a hierarquia dos funcionários), e fenômenos tais como a linguagem e o pensamento. A palavra «superestrutura» nos traz portanto uma noção muito geral.

Por ideologia social, entenderemos um sistema de pensamentos, sentimentos ou de regras de conduta (normas). A isto, por conseguinte, se referem fenômenos tais como o conteúdo da ciência (mas não, por exemplo, um instrumento da ciência como o telescópio), ou a organização interior de um laboratório químico, as artes, o conjunto das normas dos costumes ou da moral, etc..

Por psicologia social, entenderemos aquilo que existe de não sistematizado ou pouco sistematizado na alma social, os sentimentos, os pensamentos e as disposições gerais que fazem o espírito de uma sociedade, duma classe, dum grupo, de uma profissão, etc. Vamos estudar em primeiro lugar esta questão da psicologia social.


Notas de rodapé:

(1) Os conhecimentos e as forças humanas coincidem (retornar ao texto)

(2) O que ao exame aparece como causa, torna-se uma regra na ação. (retornar ao texto)

(3) A ignorância da causa destrói os resultados. (retornar ao texto)

(4) Língua dos primeiros habitantes conhecidos da Caldeia. (retornar ao texto)

(5) Cunow faria bem em se lembrar disso, quando estuda a questão das forças produtivas. (retornar ao texto)

(6) Soter, em grego "salvador". M. Weber fala das causas pelas quais, entre os oprimidos, criava-se todo um sistema religioso-político de idéias sobre a libertação do mundo e a regra de Deus sobre a terra. Esses votos e desejos das classes oprimidas tomavam precisamente o caráter de uma "soteriologia", isto é, de uma doutrina de salvação e de "terra prometida", N. B. (retornar ao texto)

Inclusão 28/06/2011
Última alteração 30/04/2014