MIA > Biblioteca > Broué > Novidades
<<< anterior
Com o ano de 1917 se inicia uma nova era. A guerra agudizou em todos os países as contradições, afetando profundamente a estrutura política e a econômica. A prolongação da matança suscita sentimentos de rebeldia. Os jovens se sublevam contra a guerra, o açoite de sua geração, que todos os dias engole centenas deles, e este é, também, os sentimentos das famílias que mutila. Na Alemanha, na França, na Russa, em todos os países beligerantes, aparecem os primeiros sintomas de uma agitação revolucionária: como o próprio Lênin havia previsto, o séqüito de sofrimentos que acompanha a guerra imperialista parece por na ordem do dia sua transformação em guerra civil, inclusive quando a luta se inicia sob a bandeira do pacifismo.
O império czarista, como se repetiu em inúmeras ocasiões, constitui “o elo mais débil da cadeia imperialista”. Desde 1916 começa a dar sinais de debilidade. O czar, desacreditado pelos favores com que a czarina distingue o crápula Rasputín, mas convencido, não obstante, de sua autoridade, se converte num personagem discutido até nas mais altas esferas da burocracia e do exército. Durante os dois primeiros anos da guerra, esta não reportou mais que desastres militares: a partir de 1916, suas exigências contribuem para desorganizar toda a atividade econômica. Os transportes, que operam com um material utilizado muito acima de sua resistência, são cada vez mais inseguros. Escasseiam os víveres, tanto para a população urbana como para os exércitos. Os preços fazem uma subida vertiginosa. O inverno de 1916‑17 assesta de fato um golpe mortal no regime. A disciplina se afrouxa entre a tropa desmoralizada cujas baixas se distribuem por igual entre as causadas pelo frio e fome e as provocadas pelo fogo inimigo. O descontentamento paira nas fábricas e bairros operários das grandes cidades. Por último, no mês de fevereiro, estala a crise: no dia 13, 20 mil operários param o trabalho em celebração ao segundo aniversário do processo dos deputados bolcheviques; no dia 16 se raciona o pão; se esgotam os estoques de carvão e no dia 18 os operários da fábrica Putilov são despedidos; no dia 19 várias padarias são assaltadas. No dia 23 as operárias têxteis de Petrogrado iniciam as primeiras manifestações de ruas para comemorar o dia internacional da mulher. No dia 24, a greve se estende espontaneamente, as palavras de ordem anti-governamentais e pacifistas tomam lugar nos gritos dos manifestantes, ao lado das reivindicações ligadas ao abastecimento de víveres. Soam os primeiros disparos. No dia 25 aparecem, entre os soldados, que neste dia disparam no ar, os primeiros indícios de simpatia pelos manifestantes. Durante toda a jornada de 26 se produzem motins nos diferentes regimentos de guarnição na capital. Por último, no dia 27 a insurreição operária e a sublevação dos soldados se unem: a bandeira vermelha ondeia sobre o Palácio de Inverno.
Enquanto se organizam as eleições no soviete de Petrogrado, deputados pertencentes à oposição liberal constituem, urgentemente um “governo provisório”. O czar abdica. Nos dias seguintes, o movimento revolucionário se expande. Para tanto, os decretos do governo provisório conferem uma base legal ao desmantelamento do antigo regime, libertando os presos políticos, outorgando a anistia, concedendo a igualdade de direitos, incluídos os das nacionalidades, e a liberdade sindical, anunciando igualmente a convocação próxima de uma Assembléia Constituinte. De seu lado, o soviete de Petrogrado, que organizou suas próprias comissões de bairro, uma comissão militar e outra de abastecimentos, lança, pressionado pelos operários e pelos soldados, o famoso Prikaz n.º 1, que há de se constituir o instrumento da desintegração do exército e a debacle final de toda disciplina; desta forma, durante as semanas seguintes, o governo provisório perde a única força que poderia dispor. Os problemas decisivos, inclusive o da atribuição do poder, se impõem antes daquele que originou a insurreição, a guerra.
A revolução de fevereiro de 1917, a chamada “insurreição anônima”, foi um levantamento espontâneo das massas, surpreendendo a todos os socialistas, inclusive os bolcheviques, cujo papel, como organização, foi nulo durante os acontecimentos, apesar de que seus militantes desempenham um importante trabalho individualmente nas fábricas e nas ruas como agitadores e organizadores. Em 26 de fevereiro, o burô russo, encabeçado por Shliapníkov, recomendava ainda aos operários atuar com prudência: sem dúvida, alguns dias depois se cria de fato uma situação de duplo poder. De um lado, encontra-se o governo provisório, integrado por parlamentares representantes da burguesia, cujo empenho é reparar os danos sofridos pelo aparato de estado czarista, enquanto se esforçam em construir um novo e enquadrar a revolução; frente a eles se acham os sovietes, autênticos parlamentos de deputados operários que foram eleitos nas fábricas e nos bairros das cidades, depositários da vontade dos trabalhadores que os nomeiam e renovam seus cargos. Entre estes dois órgãos de poder se enfrentam duas concepções de democracia, a representativa e a direta, e por trás delas duas classes, a burguesia e o proletariado, que a queda do czarismo deixavam frente à frente.
Sem dúvida, o choque ainda vai tardar em se produzir. Os mencheviques e os SR ostentam a maioria nos primeiros sovietes e no primeiro congresso pan‑russo. De acordo com sua análise, não tentam lutar pelo poder. Em sua opinião, só um poder burguês pode ocupar o lugar do czarismo, convocar eleições para uma Assembléia Constituinte e negociar uma paz democrática sem anexações. A seu ver, os sovietes foram o instrumento operário da revolução democrático‑burguesa e, na república burguesa devem seguir constituindo posições da classe operária. Sem dúvida, não pensam em absoluto na possibilidade de exigir um poder que a classe operária ainda não está capacitada para exercer e que, segundo eles, deverá exigir posteriormente para si, conforme a exigência de uma revolução espontânea que os socialistas devem se abster de ”forçar”. Lênin resumirá agudamente tal atitude ao afirmar que equivale de fato a uma “entrega voluntária do poder de estado à burguesia e a seu governo provisório”.
As primeiras tomadas de posição dos bolcheviques são muito indecisas. Seu primeiro manifesto público de 26 de fevereiro, redigido por Shliapníkov, Zalutsky e Molotov, igual aos primeiros números da Pravda, denunciam o governo provisório, constituído por “capitalistas e grandes latifundiários”, reclamam um “governo provisório revolucionário”, a convocação pelo soviete de uma Constituinte, eleita por sufrágio universal e cuja missão seria assentar as bases de uma “república democrática”. Não obstante, Molotov se encontra em minoria no comitê de Petrogrado quando apresenta uma moção em que se pede que se qualifique de “contra-revolucionário” o governo provisório: pelo contrário, o comitê propõe apoiar o governo “enquanto seus atos correspondam aos interesses do proletariado e das amplas massas democráticas do povo”. O Pravda voltou a aparecer no dia 5 de março, exigindo que se entabulem “negociações com os proletários dos países estrangeiros para por fim à matança”; se trata obviamente de um ponto de vista inequivocadamente “internacionalista” e sensivelmente diferente da tese derrotista desenvolvida por Lênin desde 1914, e adotada pelo comitê central emigrado.
No dia 13 de março, os dirigentes deportados, libertados pelo governo provisório, chegam à Petrogrado: Muranov, Kamenev e Stalin voltam a tomar a direção da organização bolchevique. Na linha da Pravda se produz um giro radical a partir do momento em que Stalin toma posse de sua direção. Os bolcheviques adotam a seguir a tese dos mencheviques segundo a qual é preciso que os revolucionários russos prossigam a guerra para defender suas recentes conquistas democráticas da agressão do imperialismo alemão. Kamenev redige vários artigos abertamente defensistas, em que se pode ler que “um povo livre responde com balas às balas”. Até o final do mês, uma conferência bolchevique adota esta linha apesar de algumas resistências, e aceita a proposta de Stalin que afirma que a função dos sovietes é “sustentar o governo provisório em sua política durante todo o tempo em que siga seu caminho de satisfação das reivindicações operárias”[19]. De fato, tais posturas só diferem dos mencheviques em questões de matiz, pois estes são igualmente partidários de um “apoio condicional”. Em tais condições, não pode nos estranhar que a própria conferência de 1 de abril, a proposta de Kamenev e Stalin aceite considerar a reunificação de todos os social‑democratas que lhes propõe, em nome do comitê de organização, o menchevique Tsereteli. A velha tese conciliadora parece se impor.
De fato, esta atitude dos bolcheviques está ditada obviamente por sua antiga análise das tarefas que uma revolução deve realizar: Fevereiro marcou o começo da revolução burguesa e, como explica Stalin, é o momento de “consolidar as conquistas democrático‑burguesas”, objetivo que só pode alcançar um governo burguês ao qual se preste ajuda condicional, controlado portanto pelo mesmo proletariado que se agrupou nos sovietes. Com esta atitude dão razão à Trotsky que, depois de 1905, havia prognosticado que sua concepção de uma revolução por etapas diferenciadas acarretaria “no proletariado uma auto-limitação burguesa‑democrática”[20]. Sem dúvida, há uma minoria de metalúrgicos, encabeçada por Shliapníkov, que logo será secundado por Kolontai, que resiste a adotar esta postura. Sua tese de que os sovietes constituem já um embrião de poder revolucionário, converge neste ponto com as posturas que mantêm a organização inter‑bairros.
O retorno de Lênin, no dia 3 de abril, vai alterar profundamente a situação nas fileiras bolcheviques e, mais adiante, no próprio processo revolucionário. Desde que recebeu as primeiras noticias da Rússia, Lênin ficou muito alarmado pelos indícios de conciliação que observava na política bolchevique. De Zurique dirige quatro cartas à Pravda – as chamadas “Cartas de longe” – em que afirma que é preciso constituir uma milícia operária cuja missão é a de converter-se no órgão executivo do soviete, além de preparar de imediato a revolução proletária, denunciar os tratados de aliança com os imperialistas, se negar a cair na armadilha do “patriotismo” e tratar de conseguir a metamorfose da guerra imperialista em guerra civil. Só a primeira das quatro cartas será publicada, pois os dirigentes bolcheviques, assustados pelo caráter radical deste ponto de vista preferem supor que Lênin está mal informado. A única solução que lhe resta é tratar de voltar à Rússia por qualquer meio para convencer seus companheiros. Os Aliados lhe negam todo tipo de visto de trânsito, recorre então à negociação com a embaixada alemã, por meio do socialista suíço Platten: Lênin e seus companheiros atravessarão a Alemanha num vagão “extraterritorializado”, comprometendo-se a tentar obter, em contrapartida, a entrega de um número igual de prisioneiros alemães. Com esta concessão, o Estado Maior alemão crê introduzir na Rússia um novo elemento de desorganização da defesa que terminará facilitar sua vitória militar, quando na realidade o que faz é permitir involuntariamente o retorno e o triunfo de um homem que dirigiu todos os seus esforços para a destruição dos imperialistas.
O marinheiro bolchevique Raskólnikov relatou em suas memórias como Lênin, quando acabava de entrar no vagão ferroviário que lhe esperava na fronteira russa, empreendeu uma acalorada diatribe contra Kamenev e as teses defensistas de seus artigos no Pravda. No dia 3, na estação de Petrogrado, volta a pregar sua postura, desta vez em público. É recebido por uma delegação do soviete de Petrogrado presidida por Cheidze, que pronuncia um discurso de boas vindas em que afirma que se há de “defender a revolução de todo ataque que puder se produzir tanto no interior como no exterior”. Voltando as costas aos dignitários oficiais, Lênin se dirige então à multidão, composta de operários e soldados, que acudiram a esperá-lo e saúda nela os representantes da “revolução russa vitoriosa, vanguarda da revolução proletária mundial”[21]. Logo se une a seus amigos bolcheviques e começa a desenvolver sua feroz critica da política menchevique que pretende defender as conquistas de fevereiro ao mesmo tempo que mantêm uma luta supostamente patriótica em aliança com os rapaces imperialistas. Tais teses oprimem a equipe dirigente, cuja análise e orientação contradizem ponto por ponto. Esta análise aparecerá no dia 7 de abril no Pravda, assinado por Lênin e com o titulo: “As tarefas do proletariado na presente revolução”.
Adotando tacitamente a tese da revolução permanente afirma:
“O traço mais característico da situação atual na Rússia consiste na transição da primeira etapa da revolução, que entregou o poder à burguesia, dada a insuficiência tanto da organização como da consciência proletárias, até sua segunda etapa, que há de por o poder nas mãos do proletariado e dos setores mais pobres do campesinato”[22].
Qualifica de “inepta” e de “evidente irrisão” as exigências da Pravda que pede a um governo capitalista que renuncie às anexações, quando é “impossível terminar a guerra com uma paz democrática verdadeiramente se antes não se vence o capitalismo”. O objetivo do partido bolchevique, minoritário no seio da classe operária e dos sovietes, debe ser explicar às massas que “o soviete de deputados operários é a única forma possível de governo revolucionário” e que o objetivo de sua luta é construir “não uma república parlamentar mas uma república de sovietes de operários e de camponeses pobres, de todo o país, da base até a cúpula”[23]. Os bolcheviques não ganharão as massas, afirma, senão “pacientemente explicando, com perseverança, sistematicamente” sua política: “Não queremos que as massas não acreditem em nós sem outra garantia que nossa palavra. Não somos charlatões, queremos que seja a experiência que consiga que as massas saiam de seu erro”[24]. A missão dos bolcheviques é “estimular de forma real tanto a consciência das massas como sua iniciativa local, audaz e decidida, – estimular a realização espontânea, o desenvolvimento e consolidação das liberdades democráticas, do principio de posse de todas as terras por todo o povo”[25]. Desta iniciativa revolucionária irá surgir a experiência que dará aos bolcheviques a maioria nos sovietes: então terá chegado o momento em que os sovietes poderão tomar o poder e aplicar as primeiras medidas recomendadas pelo programa bolchevique, nacionalização da terra e dos bancos, controle soviético da produção e da distribuição. A última das teses de Lênin se refere ao partido cujo nome e programa propõe mudar, “já é tempo de se livrar da camisa suja”, afirma ao sugerir mudar a etiqueta de “social‑democrata” pela de “comunista”, já que, segundo ele, no momento presente se trata de “criar um partido comunista proletário” “cujas bases já foram assentadas pelos melhores elementos do bolchevismo”[26].
Desta forma, sobre todos os pontos decisivos, a saber, a linha a seguir sobre a guerra, o governo provisório e a própria concepção do partido, Lênin se opõe à política aplicada pelos bolcheviques até sua chegada. Isto é o que obriga a Kamenev a escrever no Pravda que “tais teses não representam senão a opinião pessoal de Lênin”. Ao recordar as decisões adotadas anteriormente, afirma:
“Aquelas resoluções continuam sendo a plataforma em que nos baseamos e as defenderemos tanto contra a influência desagregadora do “até o final” como contra a crítica do camarada Lênin. O esquema geral de Lênin nos parece inadmissível porque considera que a revolução democrático‑burguesa terminou e já se coloca a necessidade de transforma-la imediatamente em revolução socialista”.
A discussão que se inicia desta forma brutal vai prosseguir durante alguns dias. De um lado se encontram Kamenev, Ríkov e Noguin, os que Lênin chama “velhos bolcheviques” não sem cáustica ironia, que o acusam de ter adotado as teses da revolução permanente. De outro lado se agrupam Lênin, Zinoviev e Bukharin. Stalin, ao que parece, adotou imediatamente as teses de Lênin. A conferência nacional que se reúne em 24 de abril agrupa 149 delegados eleitos por 79.000 membros dos quais 15.000 são de Petrogrado. Contra Lênin, Kamenev afirma: “É prematuro afirmar que a democracia burguesa esgotou todas as suas possibilidades” quando “as tarefas democrático‑burguesas continuam inconclusas”. Ao mesmo tempo sustenta que os sovietes de operários e soldados constituem “um bloco de forças pequeno‑burguesas e proletárias”, também opina que “se a revolução democrático‑burguesa tivesse terminado, tal bloco (...) não teria já um objetivo certo e então o proletariado teria que lutar contra o bloco pequeno‑burguês”. Sua conclusão é: “Se adotarmos o ponto de vista de Lênin, nos veríamos desprovidos de tarefas políticas, nos converteríamos em teóricos, em propagandistas, publicaríamos, sem duvida, excelentes estudos sobre a futura revolução socialista, mas permaneceríamos à margem da realidade viva como militantes políticos e como partido político definido”[27]. Em conseqüência, Kamenev propõe conservar a linha adotada no mês de março e “vigiar atentamente, dos sovietes, o governo provisórios”. Rikov consagra sua intervenção ao problema da revolução socialista: “De onde, se pergunta, surgirá o sol da revolução socialista?” e responde: “A julgar pela situação em conjunto e pelo nível pequeno‑burguês da Rússia, a iniciativa da revolução socialista não nos pertence. Não contamos com força suficiente nem com as necessárias condições objetivas. Se nos coloca o problema da revolução proletária mas não devemos subestimar nossas forças. Ante nós se erguem gigantescas tarefas revolucionárias, mas sua realização não nos levará mais além do âmbito do sistema burguês”[28].
No ínterim, a situação política experimentou uma rápida evolução. Dias antes da conferência do partido, uma declaração do “cadete” Miliukov, Ministro de Assuntos Exteriores, afirma que o governo provisório está decidido a respeitar todos os compromissos contraídos com os aliados, assegurando que “todo o povo aspira a prosseguir a guerra mundial até a vitória final”, tal declaração provoca manifestações populares nos dias 20 e 21 de abril e origina uma crise ministerial que não será resolvida até o dia 5 de maio. A radicalização das massas e a resoluta atitude dos soldados que, em parte, se negam a atirar contra os manifestantes corroboram os argumentos de Lênin em tão grande medida como a declaração defensista do ministro cadete. Desenvolve então seus argumentos contra os “velhos bolcheviques”, afirmando que a “revolução burguesa se concluiu na Rússia e a burguesia conserva o poder em suas mãos”, mas a luta pela terra, o pão e a paz não poderá ser levada a cabo mais que com o acesso dos sovietes ao poder, estes saberão “muito melhor, de forma mais prática e mais segura como se encaminhar até o socialismo”. A ditadura democrática do proletariado e do campesinato é uma antiga fórmula que os “velhos bolcheviques” “aprenderam ineptamente no lugar de analisar a originalidade da nova e apaixonante realidade”. Assim mesmo, recorda à Kamenev a frase de Goethe: Cinzenta é a teoria, amigo meu, e verde a árvore da vida”[29]. Lênin zomba ferozmente das propostas de controle dos sovietes sobre o governo, exclamando: “Para controlar há que ter o poder. Nada supõe o controle quando são os controlados os que possuem os canhões. Controlem-nos, dizem os capitalistas, que sabem que, na atualidade, nada pode se negar ao povo. Mas sem o poder, o controle não é mais que um conceito pequeno‑burguês que dificulta a marcha e o desenvolvimento da revolução russa”[30].
Por último, Lênin parece triunfar no que se refere aos pontos fundamentais, opondo-se alternadamente a maiorias de diferente importância: sobre a questão da guerra consegue, salvo 7 abstenções, a unanimidade da conferência, na resolução de “iniciar um trabalho prolongado” com o fim de “transferir aos sovietes o poder do estado” consegue 122 votos a favor, 3 contra e 8 abstenções; sem dúvida, na resolução em que se afirma a necessidade de empreender a via da revolução socialista, só reúne 71 de um quorum de 118. Nas resoluções que se refere ao partido é vencido, sendo o único a votar a favor de sua moção de abandono do nome de “social-democratas”; apesar de sua advertência de que a “unidade com os defensistas suporia uma traição”, a conferência aceita a constituição de uma comissão mista de bolcheviques e mencheviques para o estudo das condições de unificação nos termos em que, até um mês, havia sido defendida por Stalin. Apesar dos velhos bolcheviques, aferrados a antigas análises, Lênin conseguiu “endireitar” o partido; sua vitória, porem, dista muito de ser total, já que, dos oito camaradas que, como ele, foram eleitos para formar parte do comitê central, um deles, Stalin, adotou suas teses na última hora, outros quatro, Kamenev, Noguin, Miliutin e Fedorov são membros da oposição de velhos bolcheviques e só Zinoviev, Sverdlov e o muito jovem Smilga apoiaram Lênin desde a abertura da discussão.
Sem dúvida, bastarão algumas semanas para que o desenvolvimento do movimento revolucionário e a luta pela maioria que os bolcheviques levam a cabo dentro dos sovietes, arrastem a totalidade do partido a aceitar sem reservas as teses que Lênin desenvolverá, semanas mais tarde no O Estado e a Revolução, obra em que considera os sovietes como um “poder do mesmo tipo que a Comuna de Paris”, originada não por “uma lei discutida e votada previamente num Parlamento, mas por uma iniciativa das massas que surge de baixo, por uma “usurpação direta”[31], constituindo-se assim uma teoria que será a base mesma da ação dos bolcheviques durante os meses seguintes assim como do triunfo da revolução.
A conferência de abril provoca a saída da extrema direita constituída pelos defensistas Voitinsky e Goldenberg, acelerando o processo de unificação com os mencheviques internacionalistas. Numerosas organizações social‑democratas autônomas já tinham se integrado antes desta data no partido bolchevique. Sem dúvida, em Petrogrado a organização inter-bairros havia permanecido separada. Este grupo, vinculado a Trotsky, havia tomado postura a favor do poder soviético, mas o giro do Pravda, após a volta de Kamenev e Stalin, o tinha dissuadido de empreender a fusão de maneira imediata apesar de estar resolvido a ela desde princípios do mês de março[32]. Não obstante, o problema volta a se colocar após a vitória das teses de Lênin no partido bolchevique. Depois de um longo périplo desde o Canadá à Escandinávia, Trotsky regressou à Rússia em 5 de maio. De imediato se integra na organização inter‑bairros, onde militam vários mencheviques internacionalistas, Yureniev e Karajan, antigos bolcheviques e, no geral, os militantes que se viram vinculados a ele há vários anos: Ioffe, Manuilsky, Uritsky, da Pravda e Pokrovsky, Riazánov e Lunacharsky de Nashe Slovo.
No dia seguinte à sua chegada, toma postura ante o soviete de Petrogrado tão inequivocamente como havia feito Lênin e no mesmo sentido que ele, anunciando que a revolução “abriu uma nova era, uma era de sangue e fogo, uma luta que não é mais de nação contra nação, mas de classes sofredoras e oprimidas contra seus governantes”. Afirmando que os socialistas devem lutar para dar “todo o poder aos sovietes”, conclui “Viva a revolução russa, prólogo da revolução mundial!”[33]. No dia 7 de maio, numa recepção organizada pela organização inter-bairros e bolcheviques em sua honra, afirma ter abandonado definitivamente seu velho sonho de unificação de todos os socialistas, declarando que a nova Internacional não pode ser construída senão a partir de uma ruptura total com o social‑chauvinismo. A partir do dia 10 volta a se encontrar com Lênin.
Os dois homens se vêem separados por muitas poucas diferenças e o sabem. Lênin tem pressa em integrar Trotsky e seus companheiros no partido. De fato já propunha Trotsky como redator chefe do Pravda , mas sua iniciativa não foi secundada. Não obstante, lhe pede que se integre no partido e oferece, sem condições, cargos de responsabilidade na direção da organização e na redação do Pravda a Trotsky e a seus amigos. O amor próprio e algumas reticências, que talvez pesem mais em seus companheiros que nele mesmo, retêm Trotsky. Sem dúvida a recordação das velhas querelas está mais gravado em sua memória que na de Lênin, apesar de que estas estejam amplamente superadas. Sublinha que o partido bolchevique se “desbolchevizou”, que adquiriu um ponto de vista internacional e que já nada os separa, mas esta é precisamente a razão que o leva a desejar a mudança de etiqueta. “Não posso considerar-me um bolchevique” afirma. Desejaria que se celebrasse um congresso de fundação e que se desse um novo nome a um novo partido, que se enterrasse o passado de forma definitiva. Lênin não pode aceitar fazer tamanha concessão ao amor próprio de Trotsky: ele é orgulhoso do partido e de sua tradição, tende a salvaguardar também o amor próprio dos bolcheviques veteranos que já foi consideravelmente vexado durante as discussões de abril e que reprovam sua aliança com Trotsky, que seguem considerando um inimigo pessoal. Após ter imposto suas teses, seria excessivo querer impor um homem: os bolcheviques continuarão sendo bolcheviques e Trotsky acudirá por si mesmo já que suas reservas são um tanto irrisórias.
Nas semanas seguintes, efetivamente, Trotsky se converte sem propor-lo, frente às massas de que é o orador preferido, num autêntico bolchevique. Após as manifestações armadas de julho é detido e encarcerado junto com boa parte dos bolcheviques, antigos e modernos, os que o segundo governo provisório, em que participam os mencheviques, acusaram desta vez de serem agentes alemães e de ter preparado uma insurreição armada. Nem ele, nem Lênin, que passou à clandestinidade, participam no VI Congresso que começa em 26 de julho e se autodenomina “Congresso de Unificação”. Os delegados presentes foram eleitos por 170.000 militantes dos quais 40.000 pertencem à cidade de Petrogrado. O partido bolchevique de 1917, o partido revolucionário cuja constituição pedia Lênin em abril, em torno dos “melhores elementos do bolchevismo”, nasceu da confluência, no seio da corrente bolchevique, das pequenas correntes revolucionarias independentes que integram tanto a organização inter‑bairros como as numerosas organizações social‑democratas internacionalistas que, até então, haviam ficado à margem do partido de Lênin.
Desta forma cristaliza a concepção de partido que Lênin defende há anos: a fração bolchevique, como ele esperava, conseguiu impor sua concepção de partido operário e atrair a ele os demais revolucionários. Esta é a história tal como a viram e viveram os contemporâneos. Mais de dez anos teriam que transcorrer para que comece a ser deformada sistematicamente. Em 1931, ao explicar o que para os bolcheviques tinha sido a constituição do partido em 1917, Karl Radek recordava que havia “acolhido o melhor do movimento operário” e que, como se houvesse surgido diretamente da fração de 1903, não deviam se esquecer as correntes e córregos” que, em 1917 se haviam vertido nele. Sem dúvida, como esta realidade histórica era inadmissível para o pequeno grupo de homens que, com Stalin, se tinham apoderado do poder, não se poupou, desde então, nenhum meio para apaga-la. Ao voltar a escrever a história em nome das exigências da política stalinista, Kaganóvich exclamou: “É preciso que Radek compreenda que a teoria dos córregos assenta as bases da liberdade de grupos e facções. Se tolerar um “córrego” terá que oferecer a possibilidade de contar com uma “corrente” (...) Nosso partido não é um depósito de águas turvas, mas um rio tão poderoso que não pode admitir córrego algum, pois conta com todas as possibilidades para arrastar quantos obstáculos se encontrem em seu caminho” [34].
Na realidade, os acontecimentos posteriores ao VI Congresso provam com clareza: a força do partido unificado vêm da fusão total das diferentes correntes, ao menos em tão grande medida como a diversidade de itinerários que os levaram, através de vários anos de luta ideológica, à luta comum em prol da revolução proletária. A direção eleita em agosto é fiel reflexo da relação de forças. Lênin é eleito membro do comitê central com 133 votos sobre 134 votantes, o segue Zinoviev com 132 e Trotsky e Kamenev com 131. Dos 21 membros 16 pertencem à fração bolchevique, que inclui o letão Reizin e o polaco Dzerzhínsky. Miliutin, Ríkov, Stalin, Svérdlov, Bubnov, Muránov y Shaumián são os típicos komitetchíki que passaram tantos anos encarcerados ou deportados como na clandestinidade e que só passaram breves temporadas no estrangeiro. Kamenev, Zinoviev, Noguín, Bukharin, Sokólnikov e Artem‑Sergueiev passaram períodos no estrangeiro, compartindo às vezes com Lênin as responsabilidades da emigração. A maioria deles se chocaram em algum momento com ele: Ríkov quando em 1905 se erigiu no porta-voz dos komitetchiki, Noguín e Sokólnikov, junto com Ríkov uma vez mais, em 1910 como conciliadores, Bukharin e Dzerzhínsky, durante a guerra no referente à questão nacional, Muránov, Kamenev, Ríkov, Stalin e Miliutin no período de março‑abril. Outros tiveram itinerários pessoais na fração ou à margem dela mais complexos: Krestinsky, velho bolchevique, trabalhou durante a guerra com os mencheviques de esquerda de Máximo Gorki, Sokólnikov, também veterano, foi conciliador e, posteriormente durante a guerra, colaborador de Nashe Slovo, antes de voltar à Suíça com Lênin. Kolontai, velha militante, foi menchevique a partir de 1903, começou a se aproximar dos bolcheviques em 1914 e se uniu a eles em 1915. Por último Trotsky, como Uritsky e o membro suplente Yoffe, os veteranos do Pravda vienense, nunca foram bolcheviques. O partido bolchevique protagonista de outubro, que para o mundo inteiro haverá de ser “o partido de Lênin e Trotsky”, acaba de nascer: como o afirma Robert V. Daniels, “a nova direção era tudo salvo um grupo de imbecis disciplinados”[35]. Tal e como aparece então, representa já perfeitamente a imagem do jovem mais já experimentado partido: Lênin, com 47 anos, é o decano do Comitê Central do qual onze membros contam entre 30 e 40 anos e três menos de 30 anos. Seu benjamim Iván Smilga têm 25 anos, é militante bolchevique desde 1907.
Notas:
[19]Citado por E. H. Carr, t. 1, pág. 92. (retornar ao texto)
[20]Trotsky, 1905. (retornar ao texto)
[21]Citado por Carr. op. cit. 1, págs. 94-95. (retornar ao texto)
[22]Lenin, Oeuvres Complétes, t. XXIV, pág. 12. (retornar ao texto)
[23] Ibídem. pág. 13. (retornar ao texto)
[24] Ibídem, pág. 15. (retornar ao texto)
[25]Lenin.Oeuvres choisies, t. II, pág. 23 (retornar ao texto)
[26] Ibídem, pág. 15. (retornar ao texto)
[27]Yaroslavsky,, op. cit., pág. 262. (retornar ao texto)
[28] Ibídem, pág. 263. (retornar ao texto)
[29]Lenin, Oeuvres Complétes, t. XXIV, pág. 35. (retornar ao texto)
[30] Yaroslavsky, op. cit,., pág. 263. (retornar ao texto)
[31] Lenin. 0euvres Complétes, t. XXIV. págs.28-29. (retornar ao texto)
[32]Según Shlniapníkov. (N. do T.) (retornar ao texto)
[33] Deutscher. op. cit., pág. 238. (retornar ao texto)
[34]Kaganóvitch, «Discurso pronunciado en el Instituto de profesores rojos», Corr. Int. n.º 114, 23 de diciembre de 1931, pág. 1260. (retornar ao texto)
[35] R.V. Daniels, The conscience of revolution, pág. 49. (retornar ao texto)
Inclusão | 19/08/2006 |