Uma Estratégia Revolucionária para a Libertação Gay

Partido Socialista Democrático
(Austrália)

Janeiro de 1979


Fonte: A revolutionary strategy for gay liberation — Democratic Socialist Party of Australia 1982.
Tradução: Leonardo Gomes

HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.


capa

Introdução

O presente documento foi adotado pelo Partido Socialista Democrático, então Partido Socialista dos Trabalhadores, em sua sétima convenção nacional, em janeiro de 1979.

Seu conteúdo reafirmava e aprofundava a análise da opressão sofrida pelos homossexuais e a adesão do partido à luta contra ela, cinco anos antes. Uma resolução adotada pelo partido em outubro de 1973 declarava:

“A opressão sofrida por pessoas homossexuais está firmemente pautada na necessidade de manter a hegemonia da ideologia sexista e reacionária de uma sociedade de classes, sustentando as virtudes da família nuclear. Os homossexuais são vistos como párias, excluídos de uma sociedade que associa normalidade a heterossexualidade (…)

“A luta dos homossexuais por seus direitos é uma luta progressista, favorável ao socialismo e às classes trabalhadoras. A dinâmica anticapitalista se reflete na luta contra a superestrutura moral e ideológica da sociedade de classes (...)”

Quando este documento foi redigido e adotado, o termo “gay” era utilizado para descrever homossexuais tanto do sexo masculino quanto do sexo feminino. Porém, com o surgimento de um movimento independente de luta pelos direitos das lésbicas, o termo se tornou restrito aos homossexuais do sexo masculino.

Doug Lorimer
Maio de 1992

As origens da opressão homossexual

A opressão homossexual é um dos males mais antigos da sociedade humana. Provavelmente, a opressão feminina é a única que tem perdurado por mais tempo.

Ainda que, obviamente, as evidências diretas não existam mais, a origem da opressão homossexual está intimamente ligada à ascensão da família e da sociedade de classes, a qual trouxe consigo a subjugação das mulheres.

Os marxistas associam a posição inferior ocupada pelas mulheres na sociedade ao crescimento da mais-valia social, que ocasionou a divisão da sociedade entre explorados e exploradores – aqueles que produziam e aqueles que se apropriavam da maior parte da produção. O aumento da divisão de classes e da propriedade individual ocasionou a destituição das mulheres de seu antigo status superior. Nesta nova sociedade, na qual o acúmulo de riquezas se tornou possível pela primeira vez, as mulheres foram transformadas em nada além de animais para procriação, cuja função era gerar herdeiros que receberiam a riqueza acumulada.

A importância dessa função exigia que as mulheres fossem sexualmente exclusivas, para que os homens tivessem certeza de que os seus herdeiros eram seus filhos legítimos, e não de outro homem. No seio da família em ascensão, as mulheres se tornaram essencialmente propriedades de seus maridos ou de seus pais, que controlavam todas as suas relações sociais, com o objetivo de controlar o seu comportamento sexual.

Em primeira instância, pode parecer que uma sociedade que controla o comportamento heterossexual com o objetivo de assegurar a paternidade das crianças não coibiria necessariamente o comportamento homossexual. A institucionalização da homossexualidade em algumas sociedades primitivas e sua tolerância ou aprovação – pelo menos em algumas camadas sociais – na Grécia antiga sustentam essa concepção.

Contudo, poucas sociedades, se é que elas existem, justificam suas instituições sociais exclusivamente no tocante à sua verdadeira função. Com exceção de períodos de crise revolucionária, a maioria das instituições sociais não é mantida pela força bruta, mas por meios ideológicos. A instituição é “natural”, “de ordem divina”, necessária para afastar males naturais ou sobrenaturais, etc. Essa mistificação ideológica se torna bem óbvia no caso da família patriarcal(1), desde as suas origens mais remotas até o seu modelo atual.

A regulação do comportamento sexual com o intuito de assegurar a legitimidade dos filhos foi apenas um passo em direção à imposição do sexo como ato meramente reprodutivo. De fato, até os dias de hoje, este é um ponto essencial da justificativa ideológica por trás da opressão feminina.

A homossexualidade era e ainda é uma contradição à defesa ideológica da família e à opressão feminina. Sendo assim, os defensores da incipiente sociedade de classes só poderiam considerá-la “antinatural”, contrária aos mandamentos de seu deus, etc.

A opressão e a perseguição aos homossexuais é, portanto, um subproduto da opressão feminina, como resultado da necessidade de se retratar a família patriarcal como indispensável e inevitável. Obviamente, a ligação precisa entre as opressões feminina e homossexual varia de acordo com a sociedade e o período histórico, bem como de acordo com a importância da família, sua função econômica e a presença ou não de uma resistência político-ideológica a ela. Ademais, a justificativa ideológica, seja ela qual for, para a perseguição homossexual é capaz de sustentar seu próprio crescimento de acordo com sua própria lógica.

A opressão feminina na sociedade capitalista moderna é sustentada pela função econômica indispensável da família nuclear(2). O trabalho não remunerado das mulheres no âmbito familiar aumenta a proporção da mais-valia relativa(3) ao reduzir o custo de reprodução da força de trabalho. A socialização das funções atualmente exercidas no seio da família nuclear inevitavelmente resultaria em uma larga redução dos lucros da burguesia.

A opressão homossexual não é uma fonte de lucros diretos comparável (a exploração econômica de pessoas gays, como pessoas gays, se limita a questões como a cobrança de aluguéis excessivamente altos em guetos homossexuais). A perseguição aos homossexuais não se dá em nome de ganhos econômicos diretos, mas como parte da defesa da ideologia que justifica a exploração das mulheres pela família.

A luta pela libertação homossexual é, portanto, uma luta democrática. Isto não impede, de forma alguma, que a luta se desenvolva de acordo com uma dinâmica revolucionária e anticapitalista. Pelo contrário, em uma era na qual dá seus últimos suspiros, o capitalismo não apenas se mostra desprovido de interesse e de capacidade de cumprir seus objetivos democráticos não alcançados, como tende a recuar no que diz respeito a várias conquistas democráticas das revoluções burguesas. As tentativas de conquistar a igualdade para pessoas gays, portanto, tendem a entrar em conflito quase automático com as instituições do Estado burguês.

Além disso, a inter-relação entre as opressões feminina e homossexual tende a interligar as lutas em direção a esforços socialistas e democráticos.

Tanto no passado quanto no presente, os movimentos contrários às opressões feminina e homossexual tendem a interagir intimamente e a fortalecer um ao outro. A luta de um grupo contra sua opressão questiona a legitimidade da família nuclear, o que, por conseguinte, enfraquece a justificativa ideológica da opressão do outro grupo.

Os homossexuais na sociedade capitalista moderna

A opressão homossexual na sociedade capitalista moderna deve ser compreendida tanto em função de suas origens quanto em função da natureza específica desta sociedade e das necessidades de sua classe dominante.

Na sociedade capitalista, por exemplo, a opressão às lésbicas assume características distintas, relacionadas à posição econômica da mulher. A família é uma unidade econômica. Isto significa que as mulheres que optam por viver juntas são forçadas a uma relação tanto econômica quanto pessoal. Considerando-se os salários proporcionalmente mais baixos das mulheres, optar por um estilo de vida lésbico implica em optar, quase que automaticamente, por um padrão de vida inferior. As práticas de crédito discriminatórias, que dificultam ou impossibilitam que mulheres desprovidas de um fiador do sexo masculino obtenham créditos imobiliários, por exemplo, estão entre os fatores que reforçam seu padrão de vida inferior.

Para uma lésbica que tem filhos, as dificuldades são multiplicadas nos níveis econômico, social e legal. Às dificuldades de criar os filhos em uma situação na qual os dois parceiros precisam trabalhar somam-se a intolerância, o mito de que toda criança “precisa” de uma figura masculina para que seu desenvolvimento psicológico se dê de forma adequada, e até mesmo a ameaça de tomada da custódia das crianças pelo Estado.

Uma vez que sua opressão como homossexuais interage com sua opressão como mulheres, a opressão psicológica sofrida pelas lésbicas tem uma dimensão a mais que não é sentida pelos homossexuais do sexo masculino. Na sociedade capitalista moderna, a ideologia oficial determina que a posição social ocupada pelos homens e, portanto, seu próprio senso de identidade, são determinados primeiramente por seu trabalho. Por outro lado, o status e a satisfação pessoal das mulheres devem estar atrelados, acima de tudo, a um relacionamento com um homem e à criação de seus filhos.

A sociedade capitalista corrompe e distorce todas as relações humanas ao transformar as interações sociais em relações entre proprietários de bens. Isto não se aplica somente à estrutura de produção, mas também a toda a superestrutura social e sexual. O caráter afetivo e sexual do casamento, quando muito, passa a ser secundário – ele se torna, essencialmente, uma relação de propriedade; os filhos se tornam herdeiros e propriedade; o vizinho não é mais alguém próximo, ou seja, um membro da comunidade, mas o proprietário da terra adjacente. Marx e Engels já apontavam tal distorção no Manifesto Comunista (1848):

“A burguesia, onde quer que seja dominante, eliminou todas as relações feudais, patriarcais(4) e idílicas. Destruiu impiedosamente os laços feudais multifacetados que prendiam o homem aos seus 'superiores naturais', deixando como único vínculo entre homem e homem o frio interesse, o insensível 'pagamento à vista'. Mergulhou o êxtase sagrado do fervor religioso, o entusiasmo cavalheiresco, o sentimentalismo pequeno-burguês nas águas gélidas do cálculo egoísta. Transformou o valor pessoal em valor de troca e, em vez de garantir inúmeras liberdades irrevogáveis, estabeleceu apenas uma liberdade inescrupulosa – o Livre Comércio. Em suma, substituiu a exploração encoberta por ilusões religiosas e políticas pela exploração aberta, descarada, direta e brutal.

“A burguesia despiu de seu prestígio toda atividade até então considerada honrada e encarada com reverência e admiração. Transformou o médico, o advogado, o sacerdote, o poeta, o cientista em trabalhadores assalariados.

“A burguesia rasgou o véu sentimental da família, reduzindo as relações familiares a meras relações monetárias.”

Após arrancar o véu sentimental da família, no entanto, a burguesia logo achou prudente restituir pelo menos uma folha de figueira para cobrir a nudez das relações meramente monetárias. Os capitalistas mais perspicazes começaram a perceber que a presença massiva de mulheres e crianças nas fábricas ameaçava a existência da família nuclear, bem como a garantia de uma nova geração de escravos assalariados. Esse panorama serviu para lembrá-los das vantagens econômicas diretas da família para a classe dominante como um todo. Sob a pressão dessa descoberta e do movimento trabalhista emergente, as horas de trabalho assalariado das mulheres foram reduzidas e a exploração do trabalho infantil foi desencorajada e, no fim, relativamente abolida.

A burguesia desempenha uma relação contraditória com a família nuclear moderna. Por um lado, lucra enormemente com a existência de tal instituição, a qual garante, de forma gratuita, notadamente por meio do trabalho não remunerado das mulheres, a próxima geração de trabalhadores, o cuidado dos mais velhos e dos doentes, o cuidado e a alimentação da geração atual de trabalhadores, etc. Além disso, a família nuclear continua uma das principais instituições a inculcar valores conservadores nos jovens.

Por outro lado, a burguesia involuntariamente enfraquece a instituição da qual tanto se beneficia. Os altos e baixos do ciclo econômico, bem como fatos como guerras, forçam-na, de modo alternado, a enfraquecer e a fortalecer a família ao convocar as mulheres a participarem da força de trabalho para, em seguida, expulsá-las novamente.

Cada mudança das demandas capitalistas, obviamente, é acompanhada por uma mudança na postura dominante em relação às mulheres e à família, desde a “mística feminina” até o estímulo à presença da mulher no mercado de trabalho, e assim por diante, de modo cíclico. A longo prazo, essas mudanças contínuas na mitologia predominante produzem um efeito profundamente subversivo sobre a mistificação da família. Torna-se cada vez mais difícil acreditar que a família nuclear e a posição nela ocupada pelas mulheres são verdades fundamentais eternas e naturalmente determinadas, já que a “verdade eterna” muda a cada cinco ou dez anos.

Devido à própria ação da burguesia sobre o enfraquecimento da família e sua ideologia, torna-se mais importante e mais difícil para a classe dominante manter a opressão homossexual. Enquanto destroem a família com uma das mãos, os capitalistas, simultaneamente, tentam fortalecê-la, em parte, por meio da manutenção e da consolidação de preconceitos homofóbicos. Porém, ao mesmo tempo, tais preconceitos são postos em cheque pelo novo lugar ocupado pelas mulheres no mercado de trabalho e pelas consequentes mudanças na estrutura e nos papéis familiares.

Contudo, há uma grande diferença entre as relações das mulheres e dos homossexuais para com a família nuclear em transformação. Ao passo que as necessidades da classe dominante forçam-na a alterar frequentemente a imagem projetada da “mulher ideal”, o mesmo não se aplica aos homossexuais. A burguesia não tem qualquer razão econômica para alterar a “imagem” dos homossexuais – um gay “no armário” pode ser explorado com a mesma facilidade e, talvez, com maior facilidade, que um homossexual assumido –, enquanto, no plano ideológico, a manutenção do preconceito contra os homossexuais proporciona um elemento de estabilidade, uma segunda frente de defesa da família, mesmo em períodos durante os quais os capitalistas deliberadamente convocam as mulheres para a força de trabalho.

As modalidades de opressão homossexual, portanto, permanecem relativamente inalteradas na sociedade capitalista. Mudanças de postura em relação à homossexualidade não são produtos diretos dos interesses econômicos capitalistas, mas de mudanças no plano da militância da classe trabalhadora, de esforços dos próprios homossexuais e de outros fatores políticos similares. Sendo assim, não surpreende que a luta pelos direitos homossexuais tenha progredido mais amplamente nos momentos em que outras camadas oprimidas também se puseram em movimento e se enfraquecido em períodos de reação.

As origens do movimento de libertação gay

Isto não é amplamente conhecido, porém o movimento de libertação gay não se iniciou com a revolta de Stonewall em Nova York, em 1969(5), mas um século antes. O movimento surgiu como resposta à proposta de um novo código penal na Prússia(6), o qual incluía uma cláusula que criminalizava a atividade homossexual masculina, adotado pelo Reichstag(7) em 1871 e válido para o recém-unificado Estado Alemão.

Em 1869, um médico húngaro chamado Benkert escreveu uma carta aberta aos legisladores da Prússia, conclamando-os a rejeitarem o Parágrafo 175, de caráter anti-homossexual. Benkert apontou corretamente a relação entre uma reforma social generalizada e a igualdade legal para os homossexuais. O Código Napoleônico(8), por exemplo, havia posto a homossexualidade e a heterossexualidade no mesmo patamar legal, levando à legalização dos atos homossexuais em três estados alemães.

A figura mais influente do movimento ao longo desse período foi Karl Ulrichs. Em seu livro intitulado The Early Homosexual Rights Movement, John Lauritsen e David Thorstad fazem um resumo de suas contribuições:

“Karl Heinrich Ulrichs, um homossexual alemão que conhecia Benkert, produziu grande parte da literatura sobre a homossexualidade disponível nos anos 1860. Em 1864, escreveu seus primeiros 'estudos sociais e jurídicos sobre o enigma do amor entre homens': Vindex e Inclusa. Já em 1862, cunhou o termo 'uraniano' ('Urning', em alemão), baseado no famoso mito desenvolvido n'O simpósio de Platão, para se referir aos homossexuais. Esse termo, amplamente utilizado ao longo de décadas tanto no continente quanto na Inglaterra, construía a noção de que os homossexuais seriam um 'terceiro sexo' – a mente de uma mulher no corpo de um homem, e vice-versa para as mulheres. Por mais equivocada que fosse, tanto os militantes homossexuais quanto os heterossexuais viam nisso uma justificativa para seu argumento contrário à perseguição de pessoas cuja orientação sexual poderia ser considerada inata, 'natural' e tão imutável quanto aquela dos homens e mulheres heterossexuais (…) Ainda assim, por mais antiquadas que possam parecer atualmente as ideias de Ulrichs, elas exerceram uma influência enorme ao longo de décadas e tiveram um caráter pioneiro incontestável cem anos atrás. Ulrichs pode muito bem ser considerado o avô da libertação gay.”

A primeira e mais influente organização de defesa dos direitos gays foi o Comitê Científico-Humanitário, fundado na Alemanha em 1897. Os objetivos do comitê eram revogar o Parágrafo 175, educar o público sobre a natureza da homossexualidade e estimular a participação dos homossexuais na luta pelos seus direitos. Em conformidade a tais objetivos, um anuário científico sobre a homossexualidade, bem como diversos materiais de propaganda, foram publicados. Um dos pontos centrais da atividade política do comitê foi uma petição que defendia a revogação do Parágrafo 175, assinada por personalidades ilustres não apenas na Alemanha, mas por toda a Europa. O comitê existiu por 35 anos, até ser extinto pelos nazistas, em 1933.

Ainda que o Parágrafo 175 criminalizasse apenas a homossexualidade masculina, o Comitê Científico-Humanitário fazia um esforço consciente para envolver as lésbicas em suas atividades. Magnus Hirschfeld, fundador do comitê, escreveu, em 1902:

“No início do ano de 1901, algumas mulheres uranianas intelectualmente excepcionais começaram a se interessar pelo nosso trabalho. Posteriormente, tornaram-se um componente quase indispensável e destacado em todos os nossos eventos. Embora a mulher homossexual não esteja sujeita a qualquer restrição legal na Alemanha, ainda assim, ela sofre das formas mais variadas por conta da ignorância sobre sua natureza. O homem homossexual e a mulher homossexual estão ligados um ao outro por um parentesco natural e, de fato, pertencem ao terceiro sexo, o qual ambos têm o direito de reclamar para si, ainda que não sejam afetados da mesma maneira.”

As mulheres homossexuais costumavam concentrar seus esforços no movimento de libertação feminina. Durante seu discurso em uma assembleia do Comitê Científico-Humanitário, em 1904, a feminista lésbica Anna Ruhling observou:

“Quando consideramos as vitórias que a mulher homossexual conquistou para o movimento feminino ao longo de décadas, é realmente assombroso que suas maiores e mais influentes organizações, até o momento, não tenham feito qualquer esforço para assegurar os devidos direitos de seu grande número de militantes uranianas, sob o ponto de vista político e social; que não tenham feito nada – e, eu insisto, absolutamente nada – para proteger do escárnio tantas de suas mais devotas e destacadas pioneiras, conforme estas tentavam educar o público geral sobre a verdadeira natureza do uranianismo.”

Em 1910, foi proposta uma nova versão do código penal que estendia a criminalização da homossexualidade masculina, agora incluindo as lésbicas, uma ameaça que estimulou a cooperação entre os movimentos homossexual e feminino. O novo código não foi adotado, e a nova versão apresentada em 1919 não fazia mais menção às lésbicas, embora ainda previsse cinco anos de encarceramento para os atos homossexuais entre homens.

Na atmosfera reacionária da Primeira Guerra Mundial, o movimento pelos direitos homossexuais teve poucos avanços. “O próprio comitê”, de acordo com Lauritsen e Thorstad, “ainda que politicamente independente, parece ter assumido uma visão social-patriota em relação à guerra. Passou a unir tais referências à causa alemã a demonstrações sinceras de seu desejo por paz e 'amor pelos nossos irmãos que estão no fronte'. Muitos dos primeiros militantes do movimento de libertação gay morreram nos campos de batalha imperialistas.

“Apesar da predominância do social-patriotismo, o comitê não cortou de sua lista os membros residentes em países 'inimigos', como a Inglaterra. Na verdade, os artigos escritos por eles continuaram a ser publicados ao longo da guerra, reforçando nos leitores a necessidade de colaboração entre os homossexuais.

“Seu principal objetivo ao longo da guerra era manter viva a luta pelos direitos gays, para que ela pudesse florescer novamente uma vez cessadas as hostilidades. Sua edição de abril de 1915 declarava: 'Devemos estar, e estamos, claro, prontos para qualquer eventualidade. Porém, é necessário que o comitê resista e se faça presente quando – após, espera-se, um fim rápido e vitorioso da guerra – os esforços reformistas nacionais voltarem à atividade e, assim, quando a luta pela libertação dos homossexuais, ela também, for retomada.'”

O movimento gay via a revolução alemã de novembro de 1918(9) com bons olhos por considerar que proporcionava as condições para que fosse conquistada a plena igualdade homossexual. Magnus Hirschfeld concluiu, em um comício no qual falou para cerca de 4000 pessoas, em 10 de novembro:

“Além de um Estado popular de fato, com uma estrutura genuinamente democrática, nós queremos uma república social. Socialismo significa: solidariedade, comunidade, mutualidade, desenvolvimento da sociedade em um só corpo popular. Um por todos e todos por um! E ainda temos uma terceira demanda. A formação de uma comunidade dos povos, a luta contra o racismo e o chauvinismo nacionalista, a eliminação das barreiras impostas às relações econômicas e pessoais entre os povos, o direito dos povos à autodeterminação no que diz respeito a sua relação com outros Estados e a sua forma de governo. Queremos tribunais populares e um parlamento mundial. No futuro, não será mais 'trabalhadores', mas sim 'povos de todo o mundo, uni-vos!'.

“Levamos conosco os pioneiros da social-democracia(10) que não puderam ver este dia chegar: Ferdinand Lassalle, Karl Marx e Friedrich Engels, August Bebel, Wilhelm Liebknecht e Paul Singer, além dos socialistas de outros países, com destaque para nosso amigo francês, Jaures. Sua morte logo no início da guerra mundial comprova que o nacionalismo tentou destruir o internacionalismo não só na Alemanha, mas em toda parte, e que o militarismo tentou destruir o socialismo.

“Cidadãos! Que o novo governo republicano seja ocupado por nós; que cada indivíduo colabore para a manutenção da paz e da ordem. Assim, logo poderemos, mais uma vez, levar uma vida digna.”

Contudo, a traição social-democrata e os erros cometidos pelo jovem Partido Comunista resultaram na perda das oportunidades revolucionárias de 1918-1923, e a reconstrução do capitalismo alemão logo revelou que a sociedade burguesa era incapaz de proporcionar uma “vida digna” para qualquer um, principalmente para os homossexuais. Ainda que o Comitê Científico-Humanitário tenha expandido seu trabalho e sua influência (em 1922, havia 25 divisões por toda a Alemanha) e restabelecido os contatos internacionais interrompidos durante a guerra, o movimento gay foi um dos primeiros alvos da reação fascista. Já em outubro de 1920, houve ataques físicos durante uma assembleia em Munique e, em 1921, Hirschfeld foi atacado por antissemitas e teve seu crânio fraturado. Em fevereiro de 1923, a juventude nazista abriu fogo contra os presentes em uma palestra ministrada por Hirschfeld em Viena, deixando um grande número de feridos.

Um dos fatores que contribuíram para o declínio do movimento foi a tentativa de desmoralizar membros do Partido Nazista com base em sua sexualidade, prática adotada pelos sociais-democratas e pelo Partido Comunista, de orientação stalinista. O autor Kurt Tucholsky atacou a esquerda por essa autossabotagem:

“Já há algum tempo, a imprensa da esquerda radical vem publicando acusações, piadas e zombarias sobre o Capitão Rohm, membro do movimento hitlerista. Rohm, como todos sabem, é homossexual. Os ataques a ele são baseados em material publicado pelo Münchener Post, no qual o fato foi revelado. O Münchener Post também publicou uma carta na qual Rohm escrevia a um amigo sobre sua tendência. A carta de Rohm poderia muito bem ter figurado em Psychopathia sexualis; não era sequer ofensiva.

“Considero os ataques a este homem um tanto indecentes. Ao que parece, qualquer método, seja ele honesto ou desonesto, pode ser utilizado contra Hitler e seus seguidores. Porém, ninguém que lide com os outros de forma tão impiedosa merece o mínimo de consideração – ataquemo-lo! Tendo isso em vista, jamais permiti que a vida pessoal dos envolvidos me impedisse de fazer o que fosse preciso – sempre os persegui com todo o meu furor! Porém, esta situação está indo longe demais. Acima de tudo, não se deve procurar pelos inimigos em suas camas.

A única coisa que deve ser permitida é a seguinte: apontar as declarações feitas pelos nazistas sobre os 'vícios orientais' do período pós-guerra, como se a homossexualidade, o amor lésbico e coisas do tipo tivessem sido inventadas pelos russos e contaminado o nobre, intocado e puro povo alemão. Se – e somente se – um nazista fizer uma declaração desse tipo, será permitido, então, dizer: 'Vocês têm homossexuais dentro do seu próprio movimento que admitem suas inclinações e que têm orgulho delas – então calem a boca!'”

Os homossexuais e o socialismo

Na tentativa de desmoralizar os nazistas com base em sua sexualidade, os sociais-democratas e os stalinistas abandonaram a antiga tradição socialista de apoio aos direitos dos homossexuais.

Após a morte de Ferdinand Lassalle, em 1864, J.B. von Schweitzer, advogado que havia sido julgado e cassado por atividades homossexuais no início da década de 1860, tornou-se o novo presidente da Associação Geral dos Trabalhadores Alemães. Amigo de Lassalle, tornou-se membro da associação em 1863. Diante da objeção de alguns membros, Lassalle retrucou:

“O que Schweitzer fez não é bonito, mas eu mal posso encará-lo como crime. De todo modo, não podemos nos permitir perder alguém com tamanhas habilidades, de fato, uma pessoa fenomenal. No fim das contas, a atividade sexual é uma questão de gosto e diz respeito apenas ao indivíduo em questão, contanto que não invada o espaço alheio – mas eu não concederia a mão de minha filha em casamento a um homem desse tipo.”

Quando Oscar Wilde foi julgado sob uma atmosfera de caça às bruxas, em 1895, praticamente ninguém na Inglaterra saiu em sua defesa (o próprio Wilde era uma espécie de socialista, embora não fosse marxista. George Bernard Shaw escreveria que Wilde fora a única figura literária de Londres disposta a assinar uma petição em defesa dos mártires de Haymarket(11), o qual o próprio Shaw tentara organizar).

Porém, o jornal Die Neue Zeit, publicado pelo Partido Social-Democrata, defendeu Wilde na Alemanha. Em um artigo dividido em duas partes, Eduard Bernstein atacou a hipocrisia da “moral” sexual burguesa e argumentou que era responsabilidade do movimento socialista desempenhar um papel de liderança racional e científica sobre as questões sexuais.

Bernstein enfatizava a concepção materialista de que

“atitudes morais são fenômenos históricos”, e apontava que “(...) no passado, os romanos, os gregos, os egípcios e vários povos asiáticos cultivavam os prazeres homossexuais (…) devemos nos contentar com o fato de que as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo são tão antigas e tão disseminadas que não se pode afirmar com convicção a existência de sequer um estágio da cultura humana que tenha sido livre de tal fenômeno”.

Partindo desse ponto de vista materialista, Bernstein também atacou as teorias psiquiátricas que tratavam a homossexualidade como doença:

“(...) é certo que [a homossexualidade] não é, de forma alguma, necessariamente indicativa de depravação, decadência, propensão a prazeres bestiais e coisas do tipo. Qualquer um que se valha desses termos assume o conceito das leis penais mais reacionárias.”

O Comitê Científico-Humanitário também logo obteve apoio de sociais-democratas influentes, dentre os quais August Bebel, que assinou a petição do comitê e conclamou outros deputados do Reichstag a fazerem o mesmo. Em 13 de janeiro de 1898, durante um discurso ao Reichstag, Bebel ridicularizou a postura legalista do governo no que dizia respeito aos homossexuais:

“São tão grandes em número e estão tão presentes em todos os círculos sociais, desde o mais baixo até o mais alto, de forma tão profunda que, se a polícia fizesse o que dela se espera com o máximo de dedicação, o Estado da Prússia seria imediatamente obrigado a erguer duas novas penitenciárias para comportar de forma exclusiva todas as violações ao Parágrafo 175 cometidas apenas nos limites de Berlim.”

Em maio de 1905, o Reichstag ficou dividido durante um debate sobre os direitos gays: os sociais-democratas apoiavam a petição e os partidos capitalistas se opunham a ela.

Durante um discurso, em 1907, Bebel relembrou o quão chocados alguns membros do Reichstag haviam ficado com sua estimativa de 1898 a respeito do grande número de homossexuais. Se aquela estimativa havia sido equivocada, Bebel agora afirmava, seria porque subestimava, em vez de exagerar, o número de homossexuais. Concluiu:

“(...) cavalheiros, os senhores não fazem ideia de quantos homens dignos, honráveis e corajosos, mesmo ocupando os mais altos cargos, são levados ao suicídio, ano após ano, por vergonha ou por medo de chantagistas.”

Um anúncio publicado em diversos jornais pouco antes das eleições alemãs de 1912 talvez tenha captado da melhor foma as posturas divergentes dos partidos operários e burgueses:

“ELEIÇÕES PARA O REICHSTAG! Terceiro sexo! Atenção! No dia 31 de maio de 1905, no Reichstag, membros do Centro, os Conservadores e a Aliança Econômica se posicionaram contra você; porém, a seu favor, posicionaram-se os oradores da Esquerda! Mobilizem-se e votem de forma consciente!”

A Revolução Bolchevique

Dois meses após a tomada do poder, o governo soviético já havia abolido todas as leis contrárias à homossexualidade. Essa reforma foi parte importante da legislação social dos bolcheviques, desenvolvida com o objetivo de eliminar as opressões medievais, e até mais antigas, perpetuadas pelo capitalismo em defesa de seus próprios interesses.

“Dizia-se ser necessário”, escreveu Wilhelm Reich, “derrubar os muros que separavam os homossexuais do resto da sociedade”.

Em um panfleto de 1923, A revolução sexual na Rússia, o Dr. Grigorii Batkis, diretor do Instituto de Higiene Social de Moscou, esboçava a lógica por trás da legislação social do governo soviético:

“A legislação social da revolução comunista russa não pretende ser um produto do mero conhecimento teórico, mas, sim, representar o resultado da experiência. Após o sucesso da revolução, após o triunfo da prática sobre a teoria, o povo ansiava por regulações novas e firmes, aliadas à economia. Ao mesmo tempo, foram criados novos modelos no que diz respeito à vida familiar e às relações sexuais, em resposta às necessidades e demandas naturais do povo (…)

“A guerra mobilizou as massas, os 100 milhões de camponeses. Novas circunstâncias trouxeram consigo uma nova vida e uma nova perspectiva. No primeiro período da guerra, as mulheres conquistaram a independência econômica, tanto na fábrica quanto no país – mas a Revolução de Outubro, primeiramente, cortou o nó górdio e, em vez de promover meras reformas, revolucionou as leis completamente. A revolução não admitiu a permanência de nenhuma das antigas leis despóticas e demasiadamente não-científicas; não seguiu o mesmo caminho da legislação reformista burguesa, a qual, com sutileza jurídica, ainda se baseia no conceito de propriedade na esfera sexual e, no fim, se apoia na manutenção de dois pesos e duas medidas no que diz respeito à vida sexual. A criação de tais leis sempre ignora a ciência. (…)

“A relação entre a legislação soviética e a esfera sexual se baseia no princípio de que as demandas da larga maioria do povo correspondem e estão em harmonia com as descobertas da ciência contemporânea (…)

“Considerando-se todos esses aspectos do período de transição [para o socialismo], a legislação soviética se baseia no seguinte princípio:

Declara-se que o Estado e a sociedade não interferirão em absolutamente nenhuma questão sexual, contanto que ninguém seja ferido e que os interesses de ninguém sejam prejudicados.”

Sobre a homossexualidade, especificamente, Batkis escreveu:

“Com relação à homossexualidade, sodomia e diversas outras formas de prazer sexual, as quais estão previstas na legislação europeia como crimes contra a moral pública – a legislação soviética as trata exatamente como as ditas relações sexuais “naturais”. Todas as formas de relação sexual são privadas. A lei deverá ser aplicada apenas aos casos em que houver uso da força ou coação, o que ocorre, em geral, quando há agressão ou invasão dos direitos de terceiros.”

A postura dos bolcheviques não era de cunho exclusivamente formal, não era apenas uma orientação incorporada à legislação, porém violada na prática. Por exemplo, Mikhail Kuzmin, primeiro poeta russo renomado a ter como tema central de sua obra o amor homossexual, publicou, em 1920, Zanaveshanye Kartinki, uma compilação de poemas eróticos acompanhados de ilustrações homoeróticas. Kuzmin escreveu até 1929, bem depois de a burocracia stalinista ter consolidado seu monopólio sobre o poder político.

No final da década de 1930, a obra de Magnus Hirschfeld é utilizada como principal base para o verbete sobre a homossexualidade na primeira edição da Grande Enciclopédia Soviética. Informava que

“nos países capitalistas desenvolvidos, a luta pela abolição de tais leis hipócritas [anti-homossexualidade] encontra-se longe do fim. Na Alemanha, por exemplo, Magnus Hirschfeld lidera uma luta notadamente combativa e relativamente bem-sucedida pela abolição da lei contra a homossexualidade. A legislação soviética não reconhece 'crimes' contra a moral (…)”.

Contudo, a burocracia já havia começado a preparar o terreno para a reação nos campos sexual e familiar. Conforme escrito por Trotsky, a família não pode ser abolida, mas deve ser substituída, ou seja, apenas uma sociedade socialista cujas forças produtivas tenham sido desenvolvidas a ponto de desempenharem socialmente as funções ora realizadas pela família será capaz de eliminá-la. Antes da guerra, a Rússia era a potência europeia mais atrasada economicamente. A guerra mundial e a guerra civil que se seguiu à revolução prejudicaram ainda mais a economia soviética. A União Soviética era materialmente incapaz de substituir a família.

No entanto, isso não justifica de forma alguma a contrarrevolução executada pelos stalinistas no que tange às questões sexual e familiar. Uma liderança revolucionária teria explicado com franqueza que a sociedade soviética não detinha os recursos materiais necessários para substituir de imediato a família, mas que este seria o principal objetivo. Ainda que a execução de algumas funções tais como cuidar das crianças, lavar, cozinhar, etc., tornasse necessária a manutenção do regime de lares privados, isto deveria ser encarado como um mal necessário, não uma virtude, e, até onde fosse possível, tais funções deveriam ser desempenhadas socialmente, por exemplo, por intermédio de creches nas fábricas. Até que se tornasse possível desempenhar todas as funções socialmente, uma liderança revolucionária teria procurado, de forma consciente, desconstruir a mitologia da família e os preconceitos sexistas associados a ela, teria estimulado a divisão igualitária do trabalho familiar, etc.

A burocracia stalinista, todavia, não foi uma liderança revolucionária. Pelo contrário, foi tanto resultado quanto causa de uma guinada conservadora na sociedade soviética após o fracasso da revolução na Europa, principalmente na Alemanha. Neste ambiente de isolamento e desmoralização, o oficialismo soviético se transformou em uma camada burocrática dedicada primeiramente a manter e expandir seus próprios privilégios materiais.

A burocracia se opunha à socialização das funções familiares não só em termos de seus interesses materiais (o fornecimento de tais serviços pelo Estado teria reduzido a mais-valia social, da qual a burocracia se alimenta como um parasita). Para preservar seu poder, a burocracia precisa manter a classe trabalhadora dividida e desmoralizada. A mistificação da família é um excelente modo de fazê-lo.

Os stalinistas, portanto, tinham motivos tanto econômicos quanto políticos para restaurar a família nuclear – e, com ela, a opressão aos homossexuais – e o status que detinha na sociedade burguesa.

Já em 1928, as mudanças se tornaram visíveis durante um Congresso Internacional da Liga Mundial pela Reforma Sexual, quando o representante soviético se referiu à homossexualidade como uma “ameaça social” em potencial e ao aborto como um “mal”, embora ambos ainda fossem legais na União Soviética.

No ano seguinte, o representante soviético no congresso não mencionou a homossexualidade e concluiu sua palestra, “A necessidade do aborto na Rússia soviética”, com a seguinte declaração:

“Estamos firmemente convencidos de que uma sociedade necessita da consciência da maternidade para se sustentar.”

Partidos stalinistas estrangeiros levaram mais tempo para seguir as orientações de Moscou. Em 1931, o Partido Comunista Alemão permitiu a organização da Associação Alemã para uma Política Sexual Proletária, baseada no trabalho de Wilhelm Reich, então membro do partido. Porém, no ano seguinte, o partido rejeitou Reich e ordenou que seus livros fossem removidos de suas livrarias.

Em janeiro de 1934, foram realizadas prisões em massa de homossexuais em diversas cidade Soviéticas. Os presos foram condenados à prisão ou ao exílio na Sibéria. Em março, foi exigido que todas as repúblicas soviéticas adotassem um estatuto que punia com encarceramento os atos homossexuais. A imprensa soviética passou a denunciar a homossexualidade como a “degeneração da burguesia fascista”.

Conforme indicado anteriormente, tal campanha contra a homossexualidade foi parte de uma ofensiva reacionária generalizada, promovida pela burocracia com o intuito de reforçar sua própria posição. Em 1936, o aborto legal foi abolido. Um editorial do jornal Pravda comentou a medida, valendo-se dos seguintes termos reacionários:

“A elite do nosso país, os melhores exemplares da juventude soviética, são também, via de regra, excelentes homens de família que amam seus filhos profundamente. E vice-versa: o homem que não leva seu casamento a sério e abandona seus filhos aos caprichos da sorte costuma ser também um mau trabalhador e um membro medíocre da sociedade.

“A paternidade e a maternidade são antigas virtudes neste país (…)”

No final de 1935 e início de 1936, o escritor homossexual francês André Gide visitou a União Soviética e se decepcionou profundamente com o que viu. Pierre Habart, que acompanhou Gide, escreveu em seu diário que:

“(...) fiquei tão enojado que tive vontade de vomitar. Fui informado de que os meninos não beijam mais as meninas sem antes se apresentarem a seus superiores; que os homossexuais estão sendo reformados por meio da leitura de Marx em campos de concentração; que os táxis devem ser iluminados à noite para não estimularem o pecado; que os lençóis dos soldados do Exército Vermelho são verificados com o objetivo de humilhar aqueles que se masturbam; que as crianças não precisam de educação sexual porque nunca pensam em tais coisas impuras; que a taxa cobrada pelo processo de divórcio irá aumentar, tornando-o inacessível aos pobres; que não é saudável obter prazer sexual sem intuito reprodutivo. Tudo foi provado pela ciência e todos se curvam em reverência aos seus decretos.”

A ascensão do movimento moderno

Tanto o stalinismo quanto o fascismo destruíram o movimento de libertação gay por uma geração. Apenas grupos pequenos e cautelosos sobreviveram em poucos países.

Foi somente a partir da radicalização da juventude nos anos 1960 que ressurgiu a possibilidade de construção de um movimento pelos direitos homossexuais militante e de massa. Inicialmente dedicada a questões anti-imperialistas, a radicalização se expandiu gradualmente, englobando as nacionalidades oprimidas, as mulheres, os homossexuais e, hoje em dia, de forma crescente, a classe trabalhadora organizada. A revolta de Stonewall, ocorrida em junho de 1969, anunciando o nascimento do movimento de libertação gay, provou que, durante o período de radicalização, não há sequer um grupo oprimido demais para lutar.

O nosso partido há muito reconhece a importância do movimento de libertação homossexual e sua relação com a radicalização. Em outubro de 1973, nosso Comitê Político(12) adotou uma resolução que determinava:

“O desgaste dos valores morais e sexuais tradicionais promovido pela radicalização foi fundamental para a construção do movimento de libertação gay. Os costumes e papéis sexuais associados à manutenção da família nuclear se tornaram objetos de questionamentos cada vez mais intensos por parte da juventude radical, construindo um cenário favorável à construção de um movimento homossexual radical. Mesmo que os preconceitos contra os homossexuais ainda sejam profundamente arraigados, inicia-se um momento de maior aceitação na nossa sociedade.

“O processo de ampliação do movimento gay está atrelado à construção do movimento feminista, o primeiro a confrontar a opressão sexual, relatar seus efeitos e produzir teorias para explicá-la. Assim como outros movimentos de oprimidos, serviu de inspiração para que as pessoas se unissem e se organizassem em torno de uma luta comum, o que fica claro no conceito de orgulho gay (…) Defendemos a independência do movimento gay, bem como a do movimento de libertação feminina.”

No mesmo documento, foi definida a dinâmica revolucionária da luta pela libertação gay:

“A opressão homossexual está fortemente associada à necessidade de manutenção da hegemonia ideológica sexista e reacionária da sociedade de classes, por meio da promoção das virtudes da família nuclear. Os homossexuais são considerados párias, excluídos de uma sociedade que iguala normalidade a heterossexualidade. Tal opressão se manifesta psicologicamente, nos valores e práticas sociais de modo geral, e é institucionalizada pelas legislações da esmagadora maioria dos países ao redor do mundo.

“A luta dos homossexuais pelos seus direitos é progressista e está ligada aos interesses do socialismo e da classe trabalhadora. A dinâmica anticapitalista se reflete na luta contra a superestrutura moral e ideológica da sociedade de classes, a qual, invariavelmente, leva a um confronto direto com as instituições capitalistas – a polícia, os tribunais e a Igreja.

“A eliminação completa da opressão sofrida pelos homossexuais apenas será alcançada depois que a derrubada do capitalismo criar as condições materiais necessárias para a existência de uma sociedade na qual todos os vestígios de discriminação e suas raízes tenham sido removidos. A existência do movimento de libertação gay desempenhará um papel fundamental na eliminação desse tipo de opressão.”

Em suma, enquanto socialistas revolucionários, acolhemos e estimulamos o engajamento de mais uma camada que se revolta contra a opressão perpetrada pela sociedade capitalista. Assumimos tal posicionamento por dois motivos:

  1. Reconhecemos que os homossexuais, assim como as mulheres, os negros, os imigrantes, etc., contribuirão por meio de suas próprias lutas para o enfraquecimento e posterior derrubada do capitalismo.
  2. Entendemos que a classe dominante se vale de preconceitos homofóbicos, assim como do chauvinismo, do racismo e do machismo para desmobilizar, desorientar e desmoralizar a classe trabalhadora como um todo. Ao ingressar na luta, o movimento gay confronta diretamente e enfraquece tais preconceitos.

Tanto os reformistas quanto os sectários pedem que os homossexuais – e outras camadas oprimidas – deixem sua própria luta em segundo plano para não “dividir a classe trabalhadora”. Contudo, há uma forma progressista de superar as divisões internas: que outras camadas da classe apoiem a causa daqueles que são particularmente oprimidos. Não cabe aos homossexuais (às mulheres, aos aborígenes, etc.) abafar sua luta e acomodá-la a preconceitos retrógrados em nome de uma unidade fictícia dentro da classe trabalhadora como um todo. Na verdade, as organizações da classe trabalhadora têm obrigação de unirem-se aos oprimidos contra seus opressores. A “unidade” baseada na conformação a preconceitos reacionários é, na realidade, uma forma de subordinação da classe trabalhadora aos patrões.

O movimento gay deve ser apoiado pelo movimento operário. As alianças com os sindicatos são desejáveis, desde que sejam baseadas no apoio ao movimento e a suas reivindicações. Esta não é uma regalia que os líderes sindicais podem conceder ou não, mas virá dos próprios operários quando a atividade independente do movimento gay convencê-los de que sua causa é justa.

Ao longo do processo de conquista de aliados, o movimento de libertação homossexual deve manter sua independência organizacional e política. Apenas um movimento independente é capaz de garantir que os interesses dos homossexuais não serão subordinados a outras questões. Apoiamos a construção de um movimento homossexual autônomo, cujos integrantes tomem suas próprias decisões, organizem suas próprias ações e sejam independentes para formar alianças com outras forças, quando possível, sem necessidade de permissão para fazê-lo.

Ofensiva reacionária

No ano passado, houve uma verdadeira eclosão do movimento gay em escala mundial. Foi uma resposta à ofensiva reacionária internacional que pretendia empurrar os homossexuais de volta ao armário, destituir o movimento das vitórias conquistadas ao longo de seus primeiros nove anos.

A campanha de Anita Bryant pela revogação de leis que garantiam os direitos gays nos Estados Unidos, as batidas policiais no jornal Body Politic e em bares gays no Canadá, a campanha bem-sucedida de Mary Whitehouse contra o Gay News na Inglaterra e seu posterior giro pela Austrália, os ataques arbitrários perpetrados pela polícia contra manifestações pelos direitos gays em Sydney – eventos como esses deixam claro que os homossexuais, assim como os trabalhadores, as mulheres e as nacionalidades oprimidas, são alvo de uma ofensiva por parte da classe dominante, que pretende cassar o máximo possível de direitos conquistados desde o início da radicalização.

Os dirigentes capitalistas incluíram deliberadamente os homossexuais à lista de principais alvos de sua ofensiva. A vice-presidente da Organização Nacional das Mulheres dos Estados Unidos fez uma observação pertinente sobre o sucesso da cruzada lançada por Anita Bryant e seu exército de fanáticos contra uma portaria que garantia direitos aos homossexuais, emitida pela cidade de Miami:

“Ao atacarem gays e lésbicas no Condado de Dade, estas pessoas atacam um setor bastante vulnerável da sociedade. Eles os atacam primeiro, vencem primeiro (…) Não demorará muito para atacarem o aborto (…) Estas são as mesmas pessoas que se opõem ao busing(13), que são contra ações afirmativas.”

A situação econômica atual força os capitalistas a considerarem a necessidade, sob sua própria perspectiva, de reduzir o padrão de vida dos trabalhadores, prática comum a todos os países capitalistas. De fato, a natureza internacional da crise econômica, ao intensificar a competição, faz com que as classes capitalistas de cada nação reduzam os salários de seus trabalhadores. Por isso, livraram-se do governo Whitlam(14) e puseram os liberais em seu lugar, por exemplo – não lhes parecia que um governo do Partido Trabalhista poderia desempenhar tal função de forma tão confiável quanto Fraser(15).

Contudo, os capitalistas não lançam um ataque direto aos salários logo de início. Sob seu ponto de vista, seria autossabotagem, senão suicídio. Primeiramente, tentam comprometer a capacidade de reação dos trabalhadores.

Há diversas formas de fazê-lo – legislações antissindicais, restrições aos direitos democráticos dos trabalhadores e demais oprimidos, incentivo a subdivisões no interior da classe, estímulo a ideologias reacionárias.

Os primeiros ataques não são direcionados às grandes organizações sindicais, mas às camadas da classe trabalhadora e de seus aliados consideradas mais vulneráveis, menos capazes de se defenderem – os desmobilizados, as mulheres, os negros, os imigrantes, os homossexuais.

Cada vitória da classe dominante é uma derrota para toda a classe trabalhadora, da mesma forma que um corte de salários ou o aumento do desemprego – além de criar o cenário ideal para que estes ocorram. Os patrões sabem disso e, por esse motivo, apoiam grupos reacionários e homofóbicos como o Festival of Light(16). Se os sindicatos não se derem conta a tempo, o resultado será amargo.

Estratégia para a libertação gay

Uma estratégia capaz de derrotar a ofensiva anti-homossexual e conquistar vitórias reais para a população gay deve basear-se na compreensão do papel desempenhado pela opressão homossexual, a quem beneficia e quem são os aliados verdadeiros e em potencial do movimento de libertação gay.

Ainda que os homossexuais constituam uma minoria, estudos oficiais indicam se tratar de uma minoria bem grande. Há centenas de milhares, talvez milhões, de pessoas na Austrália cujo comportamento sexual inclui alguma atividade homossexual, ou seja, há uma vasta base em potencial para a construção de um movimento de libertação gay capaz de mostrar que tem objetivos bem delineados e que sabe como alcançá-los.

Como já foi mencionado, os aliados naturais do movimento gay são a classe trabalhadora organizada e as camadas populares particularmente oprimidas na sociedade australiana, tal qual os homossexuais. A luta pelos direitos democráticos dos homossexuais influencia diretamente a capacidade de luta de outros grupos contra suas opressões. A construção colaborativa da oposição ao giro australiano de Mary Whitehouse por parte de grupos de libertação gay e feminina é um bom exemplo de luta unificada que certamente será repetida e expandida no futuro.

É necessário, portanto, que um programa realmente capaz de construir o movimento de libertação gay cumpra duas condições: atender as necessidades reais dos homossexuais na sociedade Australiana e ser de fácil compreensão e aceitação tanto pelos homossexuais ainda não engajados no movimento quanto pelos aliados em potencial. Em suma, tal programa deverá exigir igualdade irrestrita para os homossexuais nos campos legal, econômico e social.

Revogação de leis contrárias aos direitos homossexuais

O movimento homossexual deve exigir a revogação de todas as leis que limitam o comportamento homossexual. As únicas atividades sexuais proibidas, sejam heterossexuais ou homossexuais, devem ser aquelas que envolvam coação.

Em algumas regiões do país, como, por exemplo, no estado da Austrália Meridional e no ACT(17), a prática da sodomia entre pessoal adultas (ou seja, acima de 18 anos) deixou de ser uma infração penal. Houve também várias tentativas de reformar a mesma lei em outros estados do país, mas as reformas foram, no máximo, parciais e, no geral, bastante insatisfatórias.

A maioria dos processos contra homens e mulheres homossexuais é sustentada por outras bases legais, tais como prostituição, assédio, abuso sexual e ato obsceno.

Além disso, alguns policiais se valem da legislação para explorar os homossexuais. A maioria das “prisões” não é registrada.

Fica claro que o único caminho possível para o movimento homossexual é a luta pela revogação de tais leis, que devem ser substituídas por uma legislação que preveja o ato de coação.

As leis que regulam a homossexualidade nas forças armadas, nas prisões, nas escolas, nos hospitais psiquiátricos e nos lares de “acolhimento” também devem ser revogadas. Todas as pessoas presas ou internadas em hospitais psiquiátricos em razão de sua sexualidade devem ser libertas e indenizadas.

A terapia de aversão, a castração química e as cirurgias neurológicas destinadas a erradicar o comportamento homossexual devem ser legalmente banidas.

Leis antidiscriminação

Atualmente, não há leis na Austrália que prevejam a discriminação contra homossexuais. Em Nova Gales do Sul, o Festival of Light e outros grupos religiosos reacionários forçaram o governo estadual a retirar da Lei Antidiscriminação a cláusula que se referia à homossexualidade.

Lésbicas e homossexuais do sexo masculino são frequentemente discriminados no mercado de trabalho. Os professores, principalmente, são sujeitos a demissões e ao desemprego devido a sua sexualidade. Alguns exemplos notórios podem ser destacados:

Certamente, há vários outros exemplos não publicados de professores demitidos em razão de sua homossexualidade.

Após o caso Weir, o ministro da Educação de Queensland orientou as autoridades educacionais a reprovarem os alunos que não fossem empregáveis. Foi o exemplo mais descarado de vitimização de alunos gays.

A discriminação também ocorre ao longo do processo educacional. A homossexualidade não é discutida nas escolas, mas deveria ser abordada nas aulas de educação sexual da mesma forma que a heterossexualidade.

É necessário que lésbicas e homens homossexuais voltem a ter seu lugar na história e na literatura.

No funcionalismo público, muitos gays são forçados a esconder sua sexualidade por medo de perder uma promoção. Há inúmeros outros exemplos de trabalhadores demitidos em função de sua homossexualidade ou forçados a viver uma vida dupla sob o temor da discriminação e da vitimização.

Em 1977, centenas de homens homossexuais de Newcastle passaram por interrogatórios policiais – muitos, em seus locais de trabalho. Vários foram demitidos na hora.

Os relacionamentos homossexuais não são reconhecidos legal, social ou economicamente da mesma forma que os relacionamentos heterossexuais. Ambos devem ocupar o mesmo patamar.

Lésbicas e homens homossexuais raramente detêm a guarda dos filhos em caso de divórcio – e nunca conseguem adotar crianças. É preciso lutar pela igualdade nesse campo.

Os homossexuais também são discriminados no mercado imobiliário, na imigração e em outras áreas. A única forma de pôr fim à perseguição é realizar uma ampla campanha pública em prol de leis antidiscriminação em todas as áreas mencionadas acima.

Eliminar o abuso policial

A opressão mais escancarada sofrida por lésbicas e homens homossexuais vem da polícia – a arma usada pelo Estado contra a classe trabalhadora e todos os oprimidos. O movimento deve elaborar uma campanha contra a brutalidade e o abuso policial, que ocorrem diariamente na vida de muitos homossexuais por todo o país.

Os exemplos recentes mais óbvios foram os ataques policiais a protestos pacíficos em Sydney, nos dias 24 de junho e 26 de agosto. Os policiais viram uma boa oportunidade para ensinar uma lição e empurrar os homossexuais de volta aos armários. Tais ataques são apenas a ponta do iceberg se comparados aos ataques individuais a mulheres e homens homossexuais que ocorrem diariamente.

A repressão deve ser exposta e combatida. Todos os policiais envolvidos em agressões a “viados” ou “sapatões” devem ser processados judicialmente.

Bares gays

Ao longo dos últimos anos, homens homossexuais e lésbicas alcançaram uma série de vitórias, principalmente na esfera das atividades sociais. Agora, há bares gays na maioria das cidades, os quais lésbicas e homens homossexuais podem frequentar sem medo de agressões.

Contudo, configuram conquistas muito limitadas, ainda que significativas. Tais estabelecimentos possibilitaram um grau muito maior de atividade social para os homossexuais e auxiliaram no desenvolvimento de uma maior consciência da opressão. Porém, sua existência está dentro dos limites do capitalismo. Por isso, muitos dos bares não têm estrutura de emergência em caso de incêndio, cobram preços exorbitantes, discriminam mulheres e negros, e proíbem a distribuição de material político.

O movimento gay deve procurar organizar os clientes e os funcionários dos bares para forçar os proprietários a revogar as proibições, a instalar uma estrutura de segurança contra incêndios e a reduzir os preços. Trata-se de um espaço concreto de cooperação com o movimento sindical, mas será necessário realizar uma longa campanha sobre o assunto.

Metodologia da luta

Diversas táticas vêm sendo adotadas na defesa dos direitos homossexuais. O método mais comumente utilizado no passado foi depositar todas as esperanças em liberais reformistas, como o premiê trabalhista de Nova Gales do Sul, Neville Wran. Diversos grupos, como o CAMP, de Nova Gales do Sul, e o Society Five, de Melbourne, se basearam na prática do lobby para tentar convencer os liberais a promoverem reformas na legislação.

Os políticos respondem: “Mantenham a calma, e eu verei o que posso fazer no ano que vem. No momento, a Câmara Alta (ou a base parlamentar) é conservadora, mas, no ano que vem, tudo será diferente.”

Obviamente, o ano que vem nunca chega, porque tais políticos estão sempre sob pressão de grupos de direita como o Festival of Light e a polícia. O que ocorreu em Nova Gales do Sul em 1977 é um bom exemplo. Pouco tempo depois de comunicar ao CAMP que estava analisando o que poderia fazer pelos homossexuais, Neville Wran enviou seus cumprimentos a um comício do Festival of Light em Sydney.

O fracasso mais retumbante da estratégia lobista ocorreu em Miami, no ano passado. A Câmara Municipal havia aprovado uma portaria favorável aos direitos dos homossexuais após o lobby de organizações gays. A direita, comandada por Anita Bryant, conseguiu fazer com que a revogação da portaria fosse votada no meio do ano. Os líderes do movimento gay da Flórida seguiram os conselhos dos políticos liberais capitalistas e mantiveram a calma. Em vez de mobilizarem os homossexuais por toda a cidade, pagaram por uma campanha respeitosa na televisão. Sequer procuraram o apoio do movimento feminista, dos negros, dos latinos ou dos sindicatos. Inclusive, impediram que homossexuais distribuíssem panfletos. Como resultado, o comparecimento às urnas nas áreas favoráveis aos direitos homossexuais foi mínimo e, nas áreas conservadoras, houve comparecimento em massa. Boa parte dos movimentos dos Estados Unidos aprendeu uma lição a partir dessa e de outras derrotas similares em Wichita, Saint Paul e Eugene, no estado de Oregon.

O movimento homossexual australiano deve rejeitar tal abordagem.

Outra estratégia defendida por alguns grupos, como os anarquistas e os socialistas internacionalistas, envolve a aplicação do que chamam de “estratégias de militância”. Tais ações vão desde demonstrações de masculinidade, como desafiar a polícia e partir para o confronto físico, até o ataque pueril e “espontâneo” a bomba de farinha à delegacia de Darlinghurst, após a marcha pelos direitos gays em Sydney, no dia 15 de julho de 1978.

Mesmo se tratando de uma repartição particularmente opressiva como Darlinghurst, acreditar que a tomada de uma delegacia interromperia, por uma hora que fosse, o abuso de homossexuais por parte da polícia demonstra uma incrível falta de entendimento do caráter de classe da opressão nesta sociedade.

Na realidade, a motivação da extrema-esquerda é similar àquela dos que defendem a prática do lobby junto a políticos liberais. Em vez de contarem com os liberais para pôr fim à opressão, acreditam que podem intimidá-los fisicamente a fazê-lo.

O efeito desse tipo de tática pode ser tão desastroso para a causa quanto contar com os liberais. Em um contexto no qual o movimento pelos direitos homossexuais recebe cada vez mais apoio conforme a opressão se torna conhecida pela sociedade e no qual cada vez mais homossexuais decidem se manifestar pelos direitos gays, a extrema-esquerda ameaça o apoio já conquistado. O movimento passa a não ser levado a sério.

Tanto a abordagem liberal quanto a abordagem da extrema-esquerda ignoram alguns aspectos fundamentais da opressão homossexual. Em essência, a abordagem liberal não reconhece a função primordial que a opressão aos homossexuais desempenha para os capitalistas. A discriminação é vista como algo secundário na sociedade capitalista, um resquício fortuito de preconceitos medievais. Para os liberais, depender de políticos “esclarecidos” a serviço do sistema capitalista torna-se, portanto, uma questão de lógica, uma vez que o capitalismo e a libertação homossexual são considerados perfeitamente compatíveis.

A extrema-esquerda, por sua vez, entende que a libertação gay só poderá ser plenamente alcançada após a derrubada do capitalismo, mas subestima tanto o potencial de mobilização em massa dos homossexuais quanto o ímpeto revolucionário da luta em torno de seus direitos democráticos. Consequentemente, tentam impor suas reivindicações mais “militantes” sobre aquelas que de fato dizem respeito à maioria dos homossexuais e impor a si mesmos sobre as massas, as quais não conseguem mobilizar com sua retórica infantil.

A força do movimento homossexual não está nos “amigos” influentes nem no ataque a policiais com bombas de farinha, mas no poder das massas unidas na luta pelos seus direitos. O movimento gay só será vitorioso apoiando-se na sua própria força – as centenas de milhares de homossexuais que querem pôr fim à sua opressão e as centenas de milhares de “héteros” que podem ser convencidos a apoiar os direitos gays.

O Partido Socialista dos Trabalhadores, portanto, é favorável à estratégia de ação de massas, de mobilizar o maior número possível de pessoas em protestos centrados em reivindicações firmes e específicas.

Tais ações são a melhor forma de demonstrar e de aumentar a força do movimento de libertação gay. A visibilidade das ações de massas pode tirar do isolamento os homossexuais ainda não engajados no movimento e atraí-los para suas atividades. Ao mesmo tempo, um movimento de massas crescente e fora do controle dos políticos reformistas pode forçá-los a ceder a acordos, aumentando ainda mais o poder de atração do movimento.

A ação de massas é também o método mais eficaz para trazer as questões da libertação gay para o seio da classe trabalhadora. Ao contrário dos reformistas e dos sectários, os marxistas entendem que as lutas contra as mais diversas formas de opressão criadas ou perpetuadas pelo capitalismo são parte indissociável da luta de classes.

O esforço de construir uma esquerda dedicada à luta de classes no movimento operário, de transformar os sindicatos, não é de forma alguma apenas uma questão de exigir mais militância na luta econômica. É um esforço de transformar o trabalho organizado em um movimento social, de fazer com que os sindicatos se tornem organizações de luta para todos os oprimidos. O apoio à libertação gay, à libertação feminina, aos direitos dos aborígenes, etc., são partes tão importantes de um programa sindical dedicado à luta de classes quanto a luta por emprego e melhores salários.

Um dos obstáculos à ação de massas unificada é a cisão que costuma ocorrer entre lésbicas e homens homossexuais, causada pela postura frequentemente sexista destes. Como resultado, as lésbicas acabam por organizar-se separadamente – tanto em grupos completamente separados quanto em tendências internas em organizações que incluem homens e mulheres homossexuais.

É importante lembrar que tal separação não é uma causa, mas sim um resultado da cisão do movimento. Assim como todas as pessoas gays têm o direito de se unir em organizações voltadas exclusivamente para homossexuais, as lésbicas têm o direito de organizar-se separadamente para combater sua opressão dupla – por seu sexo e por sua sexualidade –, principalmente quando a conduta dos homens gays, tanto no passado quanto no presente, as oprime.

O movimento deve ter como meta a unidade política, ou seja, uma ação conjunta em busca de um objetivo comum. Para que tal unidade seja construída, é necessário reconhecer os direitos de todos os participantes, incluindo o direito à independência organizacional.

Missões do partido

Nosso apoio aos direitos homossexuais é incondicional, o que significa que apoiamos a igualdade para todos os homossexuais, não importa se o movimento de libertação gay segue o que consideramos o melhor caminho ou não.

Embora a libertação total dos homossexuais apenas seja possível após a revolução socialista, é possível arrancar dos capitalistas algumas conquistas pelo caminho. Nosso partido deve ocupar a linha de frente na luta pelos direitos homossexuais e pela construção de um movimento e de um programa que sejam capazes de obter vitórias significativas, o que não será possível caso ocupemos uma posição coadjuvante. Alguns membros do partido permaneceram dedicados à luta pelos direitos gays até mesmo nos momentos de relativa calmaria do passado. Agora, com a insurgência do movimento, é possível e necessário que participemos de forma mais ativa.

Assim como todas as outras frentes de atividade partidária, nosso trabalho no movimento de libertação gay é decidido pelo partido, dirigido pelo partido e apoiado por todo o partido.

Nossa meta é construir o maior movimento de libertação gay possível, com base em um programa claro. Queremos ajudar a construir um movimento que seja capaz de alcançar novas camadas sociais e de convencê-las a apoiar as reivindicações que realmente atendam às necessidades dos homossexuais.

Obviamente, há homossexuais em todas as classes. Além disso, os ativistas gays de origem operária também estão sujeitos às pressões da sociedade burguesa, vide a influência de grupos gays em igrejas.

Porém, o movimento de libertação gay não pode se isolar das pressões burguesas ou pequeno-burguesas ao adotar um programa plenamente socialista ou excluir membros em potencial com base em sua classe social. Isto seria uma forma de destruir o movimento, não de protegê-lo. O corte de classe será delineado no movimento gay exatamente como ocorre no movimento feminino e como ocorreu no movimento antiguerra: baseando-se em um programa, ou seja, em estratégias, táticas e reivindicações, separando aqueles que são favoráveis daqueles que se opõem a um programa elaborado em torno de reivindicações firmes e específicas, apoiado em métodos de ação de massas e de luta de classes. Nosso partido será o maior defensor de tal programa.


Notas de rodapé:

(1) O termo família patriarcal foi utilizado nos primeiros anos da segunda onda feminista para se referir à família de modo geral, a qual, desde sua origem, consistia em um pai a cuja autoridade estavam sujeitos sua(s) esposa(s) e seus filhos. (retornar ao texto)

(2) A família nuclear é a família urbana moderna, característica do capitalismo industrial, a qual consiste em um lar composto pelo marido, sua esposa e seus filhos. (retornar ao texto)

(3) A mais-valia é a forma monetária da parte do trabalho cedida pelo trabalhador ao seu empregador capitalista sem receber nada em troca, ou seja, é a diferença entre o valor dos bens produzidos pelos trabalhadores e o valor da força de trabalho vendida ao empregador capitalista. Ao aumentar a jornada de trabalho sem aumentar os salários, os capitalistas conseguem ampliar a quantia absoluta de mais-valia. Porém, há um limite físico para o aumento da mais-valia absoluta – sem um determinado período de descanso, a capacidade produtiva dos trabalhadores cai rapidamente, tendendo a zero. Todavia, ao reduzir o valor da força de trabalho por meio do barateamento do custo de produção dos bens necessários para manter e reconstituí-la, os capitalistas conseguem aumentar a mais-valia relativa sem destruir a capacidade produtiva dos trabalhadores. (retornar ao texto)

(4) As relações patriarcais foram um modelo de comunidade transitório entre o sistema de clãs matrilineares das sociedades coletivistas primitivas e o sistema familiar da sociedade de classes. A comunidade familiar patriarcal consistia em diversas gerações de homens descendentes de um pai, suas esposas e seus filhos, que viviam juntos na mesma propriedade, cultivando os campos coletivamente, alimentando-se e extraindo couro e peles de um rebanho coletivo e detendo de forma coletiva o excedente de seu trabalho. A comunidade era comandada de modo supremo pelo chefe da comunidade familiar (o patriarca), que era nomeado e responsável pela assembleia familiar, que consistia em todos os seus membros adultos, tanto as mulheres quanto os homens. Tais comunidades familiares continuaram a existir entre o campesinato até um momento bem posterior à ascensão da sociedade de classes – em partes da França, até a grande revolução burguesa de 1789-1793, por exemplo. (retornar ao texto)

(5) O termo revolta de Stonewall se refere à resistência física a uma batida policial de rotina em um bar gay de Nova York, o Stonewall Inn, localizado na Christopher Street, em 27 de junho 1969. (retornar ao texto)

(6) Prússia foi o nome adotado pelo reino alemão estabelecido em 1701, com Berlim como capital, que se expandiu em direção ao nordeste da Alemanha e ao oeste da Polônia nos séculos XVIII e XIX e que unificou a Alemanha sob sua liderança em 1871. (retornar ao texto)

(7) Reichstag era o nome do parlamento nacional alemão durante os períodos do Império Alemão (1871-1918) e da República de Weimar (1918-1933). (retornar ao texto)

(8) O Código Napoleônico foi o código civil outorgado por Napoleão Bonaparte, primeiro cônsul da República Francesa e, posteriormente, imperador da França, em 1804. (retornar ao texto)

(9) A revolução alemã de novembro de 1918 se iniciou no dia 3 de novembro de 1918, quando operários e soldados se uniram a uma revolta de marinheiros. A revolução derrubou a monarquia e levou à formação de conselhos populares formados por representantes dos operários e dos soldados. Em vez de criarem um governo baseado nesses conselhos, os sociais-democratas formaram um governo provisório dedicado a preservar o Estado capitalista já existente. Em janeiro de 1919, o governo social-democrata lançou unidades militares de direita sobre os operários revolucionários de Berlim. A resistência a esse ataque contrarrevolucionário foi liderada pelo Partido Comunista da Alemanha (KPD), fundado apenas um mês antes. No entanto, a resistência foi esmagada pelos sociais-democratas, e, no processo, foram assassinados os dois principais líderes do KPD – Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. (retornar ao texto)

(10) Social-democracia era o nome utilizado pela maioria dos partidos socialistas no período anterior à Primeira Guerra Mundial. Até 1914, quando a maioria dos partidos social-democratas passou a apoiar a guerra, o termo era sinônimo de socialismo revolucionário e marxismo. Após a Revolução Russa de 1917 e a formação da Internacional Comunista, em 1919, o termo “social-democrata” passou a ser utilizado pelos marxistas revolucionários para designar os “socialistas” reformistas pró-capitalismo. (retornar ao texto)

(11) Os mártires de Haymarket eram os membros de uma organização anarquista que foram condenados por meio de uma armação policial após um ataque por parte da polícia a uma assembleia sindical em Haymarket Square, na cidade de Chicago, em maio de 1886, durante o qual foram mortos sete policiais e quatro operários. (retornar ao texto)

(12) Comitê Político era o nome original da Executiva Nacional do Partido Socialista dos Trabalhadores, órgão eleito pelo Comitê Nacional para liderar politicamente o partido no período entre as assembleias do Comitê Nacional. (retornar ao texto)

(13) Busing é um termo utilizado nos Estados Unidos para se referir à prática de utilizar ônibus escolares para transportar os alunos. O objetivo desta medida é eliminar a segregação racial nas escolas, ou seja, levar os alunos negros que residem em bairros predominantemente negros a escolas localizadas em bairros predominantemente brancos e vice-versa. (retornar ao texto)

(14) Gough Whitlam, primeiro-ministro da Austrália de 1972 a 1975, membro do Partido Trabalhista da Austrália. (N.T.) (retornar ao texto)

(15) Malcolm Fraser, primeiro-ministro da Austrália de 1975 a 1983, membro do Partido Liberal da Austrália. (N.T.) (retornar ao texto)

(16) Festival of Light Australia é o antigo nome de uma organização conservadora australiana, fundada em 1973, com o objetivo de promover os “valores familiares cristãos”. Em 2008, passou a se chamar FamilyVoice Australia. (N.T.) (retornar ao texto)

(17) O ACT, Australian Capital Territory (Território da Capital Australiana),consiste em um território criado para abrigar a capital do país, Camberra. (N.T.) (retornar ao texto)

Inclusão 14/08/2015