Stálin

Emil Ludwig


Capítulo VII — Sobre o Terror


CAPA

Uma noite, em 1930, ouvi a Pique-Dame, de Tschaikowsky, na Ópera de Moscou. Stalin estava num camarote e disse-se que estava assistindo ao maravilhoso espetáculo pela terceira vez. No quarto ato, o cenário representava a praça diante do Palácio de Inverno, a residência do Tzar no velho S. Petersburgo, iluminada à noite, com a neve caindo e seis soldados marchando diante do portão até que chegaram os substitutos, soaram as vozes de comando na noite e novos soldados ficaram de sentinela. Por um século isso se sucedera diante daquele portão.

Quando eu voltava para casa no meu trenó, uma hora depois, atravessamos a Praça Vermelha que, sob intensa iluminação, era limitada pelos muros do Kremlin, dentro dos quais se erguiam as torres no céu baço do inverno. Era Dezembro e a neve caia em abundância. Diante do mausoléu de Lenine, junto do muro do Kremlin, as sentinelas passeavam. Seis homens indo e vindo até chegarem os substitutos, quando ecoaram as vozes de comando na noite e os novos soldados ficaram de sentinela. Uma vez que só o que víamos eram os capotes, as botas e os chapéus, aqueles homens pareciam exatamente os mesmos da Ópera. Cem anos depois do período em que se passava a ópera, as mesmas sombras sairam da neve diante das portas do poder. Por trás dessas portas, no seu ataúde de vidro, jazia o predecessor do novo Tzar, a quem eu vira poucos momentos antes deliciando-se diante do quadro da antiga forma de poder que ele auxiliara a destruir.

Impressionado com a repetição, voltei para o trenó e perguntei a mim mesmo se o sangrento sacrifício que a Revolução custara valera a pena, e não pude responder à pergunta.

Colocados praticamente em cima desses acontecimentos, precisamos projetá-los à distância. Quando estudamos história antiga, o melhor que temos a fazer é usar um binóculo para aproximá-la de nós; quando estudamos a história moderna, precisamos voltar o binóculo do outro lado de maneira que o que está perto pareça distante. As Revoluções Francesa e Americana, das quais a Russa é uma grande continuação, custaram muito mais vidas humanas do que as que se contaram.

E que resta? Diante da ingênua força da lenda os sacrifícios desaparecem no decurso de um século; mas as realizações revelam crescente grandeza. As maiores inteligências européias que saudaram a Grande Revolução de 1789 com ardente entusiasmo desviaram os olhos horrorizados quando começou o Terror. E, contudo, foi sobre a Revolução Francesa que se ergueu a estrutura dos Estados modernos. Todas as liberdades cívicas que a Europa desfrutou no século, entre o fim de Napoleão e o começo de Mussolini, nasceram da Revolução Francesa. É simbólico que o fascismo as renegue especificamente.

Quem quer que considere a felicidade humana e não o poder, como o desígnio de toda ordem política, sentirá que seu entusiasmo pela Revolução Russa é de quando em vez anunciado por sombrias emoções. Quis ouvir o chamado "Tzar Sanguinário" falar, ele próprio, sobre o terror e incluir uma parte de nossa conversa, como foi então publicada na Rússia, com a permissão de Stalin.

— O senhor, que levou vida de conspirador por tanto tempo, — perguntei-lhe — acha que, sob seu atual governo, as agitações ilegais não são mais possíveis?

— São possíveis, pelo menos até um certo ponto.

— É o receio dessa possibilidade o motivo pelo qual o senhor ainda está governando com tanta severidade, tantos anos depois da Revolução?

— Não. Ilustrarei a razão principal disso citando alguns exemplos históricos. Quando os bolchevista subiram ao poder foram brandos e amáveis com seus inimigos. Por esse tempo, por exemplo, os menchevistas (socialistas moderados) tinham seus jornais legais e os sociais revolucionários também. Até mesmo os cadetes militares tinham seus jornais. Quando o general Krasnov, de cabeça branca, marchou contra Leningrado e foi capturado por nós, pelas leis militares devia ter sido fuzilado ou pelo menos preso, mas demos-lhe a liberdade mediante sua palavra de honra. Evidenciou-se depois que, com essa política, estávamos solapando o próprio sistema que nos esforçáramos por construir. Começáramos cometendo um erro. Clemência para com uma tal força era um crime contra as classes trabalhadoras. Compreendemos, então, que o único meio de irmos para a frente era uma política de severidade e intransigência. As campanhas ilegais que nós próprios tínhamos dirigido outrora eram, naturalmente, valiosas para nós como experiência, mas isso não era o fator decisivo.

— Essa política de crueldade — respondi — parece ter despertado medo muito espalhado. Tenho a impressão de que neste país todos têm medo e de que sua grande experiência só podia ter obtido êxito nesta nação sofredora, treinada na obediência.

— Engana-se — respondeu Stalin —; mas o seu erro é geral. Acha que seria possível conservar o poder por tanto tempo simplesmente intimidando o povo? Impossível. Os Tzares sabiam melhor do que todos reinar pelo temor. É uma velha experiência na Europa e a burguesia francesa apoiou os Tzares na sua política de intimidar o povo. Qual foi o resultado? Nenhum.

— Mas manteve os Romanovs no poder por trezentos anos— observei.

— Sim. Mas, quantas vezes o poder não foi abalado por insurreições? Para esquecer tempos mais antigos, lembremos só a revolta de 1905. O medo é, em primeiro lugar, uma questão de mecanismo de administração. Pode-se despertar o medo por um ou dois anos e, por meio dele, ou pelo menos em parte por esse meio, governar-se por esse tempo. Mas não se pode governar os camponeses pelo medo. Depois, as classes dos camponeses e operários, na União Soviética, não são assim tão timoratas e pacientes como parece pensar. O senhor pensa que o nosso povo é tímido e preguiçoso. Isso é uma idéia antiquada em que se cria antigamente, porque a nobreza proprietária da terra costumava ir para Paris gastar o dinheiro na ociosidade. Disso nasceu essa impressão da chamada preguiça russa. Todos pensavam que os camponeses podiam ser facilmente amedrontados e reduzidos à obediência. Era um erro e um erro três vezes maior em relação aos operários. Nunca mais estes sofrerão o domínio de um só homem. Homens que alcançaram o pináculo da fama perderam-se no momento em que se desligaram das massas. Plekhanov teve uma grande autoridade nas mãos, mas, quando se deixou absorver pela política, depressa esqueceu as massas. Trotsky era um homem de grande autoridade, embora não em posição tão elevada quanto Plekhanov, e agora está esquecido. Se é relembrado, ocasionalmente, é com um sentimento de irritação.

Não era minha intenção falar em Trotsky a Stalin, mas, uma vez que ele abordou o assunto, perguntei-lhe:

— E esse sentimento contra Trotsky é geral?

— Se consultar os operários em atividade, nove décimos falam com acrimônia em Trotsky. (Conversávamos antes dos julgamentos de Moscou, em Dezembro de 1931)(1).

Houve uma curta pausa, durante a qual Stalin riu de manso retomando depois o fio da conversa:

— Não se pode sustentar que o povo pode ser governado por muito tempo meramente por intimidação. Compreendo seu cepticismo. Há uma pequena parte do povo que está realmente atemorizada. É uma parte sem importância da classe dos camponeses. Isto é representada pelos kulaks. Não se arreceiam de qualquer coisa como o início de um reinado de terror, mas temem a outra parte da população de camponeses. Isto são restos do primitivo sistema de classes. Entre as classes médias, por exemplo, e especialmente as classes profissionais, há qualquer coisa da mesma espécie do medo, porque estas últimas tinham privilégios especiais sob o antigo regime. Além disso, há os comerciantes e uma certa parte de camponeses que ainda mantêm a antiga simpatia pela nobreza.

"Mas, em se tratando dos camponeses e operários progressistas, não mais de quinze por cento são cépticos sobre o governo soviético, ou guardam silêncio com medo ou esperam o momento em que possam solapar o Estado bolchevista. Por outro lado, cerca de oitenta e cinco por cento das pessoas mais ou menos ativas insistem para que vamos mais longe do que queremos ir. Muitas vezes temos que recorrer aos breques. Gostariam que eliminássemos os restos da intelligentsia. Mas nós não permitiríamos isso. Em toda a história do mundo, nunca houve um governo apoiado por nove décimos da população como é o governo dos Soviets.

"Esta é a razão do nosso sucesso pondo nossas idéias em prática. Se governássemos pelo medo não teríamos um só homem ao nosso lado. E as classes trabalhadoras destruiriam qualquer poder que tentasse continuar a governar pelo medo. Operários que fizeram três revoluções já têm pratica de derribar governos. Não suportariam um ridículo simuiacro de governo, como seria o que só se baseasse no medo.

Depois desta conversa, os Planos Quinquenais produziram tais e tão grandes resultados que a crítica amorteceu. Todos nos sentimos inclinados a esquecer as vítimas diante da vitória, não obstante isto não dever ser permitido nem a moralistas nem a filósofos. Mesmo os julgamentos de Moscou aparecem sob uma luz diferente, desde que Stalin tem estado rechaçando esses mesmos exércitos alemães que alguns dos bolchevistas sentenciados a esse tempo queriam fazer entrar no país.

Além disso, a ditadura deve tomar um aspecto diferente em tempo de guerra, porque está destinada a estender-se a toda parte, seja velada, seja abertamente. Os romanos, que inventaram um nome e medidas de prevenção para as emregências de guerra e calamidades, deram poderes semelhantes aos seus funcionários, mas só por um período limitado. Stalin convocara o Congresso Soviético, que até 1925 se reunira anualmente, só duas vezes nos cinco anos seguintes. Por consequência, o mais alto órgão do Estado só raramente se reúne; e vinte dos seus membros têm o cuidado de ver que o Congresso torne a nomear o Secretário Geral do Partido Comunista sempre e sempre.

Estas questões de ditadura e terrorismo continuam vivas em todos os corações. Por isso, os sentimentos de homens que antes combateram com ele ou que o abandonaram são importantes para o nosso julgamento. Somente não devem ser estalinistas frustrados parecidos com esses hitleristas frustrados que se pavoneiam pelos países estrangeiros só porque seu modelo os escorraçou ou os baniu.

Incluo aqui a mais significativa declaração — feita por um escritor que tentou ser justo — que descobri dentro do círculo dos desapontados: Dimitrievsky.

S. Dimitrievsky, com a sua clareza — sem simpatia nem ódio — que ocupou um cargo soviético elevado, membro da embaixada em Estocolmo por muitos anos e depois exilado voluntário, é importante como testemunha e antagonista. Este livro mostra porque, em alguns pontos, não podemos concordar com a seguinte descrição de Stalin:

"Stalin é um homem muito decente. Trabalha como um gigante. Governar a Rússia, sentado sobre baionetas e nos ombros de uma burocracia que não merece confiança, não é fácil. É necessário uma vontade de ferro para suportar a incessante luta interna com os que estão perto dele, como com a vasta população de um vasto país, e traçar esse rumo que assegure um novo prazo de vida a Stalin e sua ordem e que barre o caminho ao pretendente seguinte. Há muitas mãos estendidas para o cetro do autocrata da Rússia — porque Stalin, embora não literalmente, empunha esse cetro. Essas mãos são todas nervudas, seus músculos são fortes, têm abundância de sangue e não é fácil conservá-las afastadas...

"Uma enorme força de vontade, grande experiência e mente clara, são necessárias para esta tarefa, sem se preocupar com a correção ou incorreção histórica do rumo tomado. Inquestionavelmente, Stalin é o mais notável entre todos os seus competidores na luta pelo poder.

"Que ele tenha ficado por tanto tempo na sombra fez uma profunda impressão no país com concepções orientais, onde os déspotas sempre se conservaram por trás de espessos muros. Isso criou-lhe um ambiente de mistério. Despertou uma crença entre as pessoas sinceras de que ele não procura nada para si. Mas não tem nada que procurar porque tem tudo. Ele compreendeu o segredo do poder: nem os elogios dos admiradores nem o entusiasmo da multidão. Sabe que amanhã essa mesma multidão poderá gritar "Crucificai-o!", que amanhã seus amigos podem abandoná-lo.

"O poder apóia-se nas baionetas, n'uma máquina obediente, em manejar o povo, em jogar com os seus desejos, num sistema político, num vasto sistema de espionagem e estrangulação. Que é possível governar por persuasão moral e intelectual, Stalin não crê.

"Stalin sabe que a maioria dos seus colaboradores odeia-o. Mas suporta-os, trabalha com eles, confia neles, porque os mantém seguros e sabe que, a despeito do seu ódio, se curvarão diante dele e executarão sua vontade. Que o denunciem pelas costas não lhe importa.

"Sempre que fala em público, Stalin mostra claramente o que quer. Não gosta de fazer ninguém pensar e poupa-lhes esse trabalho. Penso que chegará o tempo em que se reconhecerá que Stalin, como escritor e pensador, era um homem fora do comum.

"Diz-se que Stalin não tem idéias originais, que rouba as dos outros. Mesmo se assim fosse, é preciso habilidade para joeirar todas as espécies de opiniões e organizar uma seleção no decurso de uma grande partida política — debruçado todo o tempo sobre um abismo, manobrando entre escolhos e recifes. Stalin não é um teórico. É um organizador dotado de grande intuição.

"É um estadista oriental do tipo de governo em que uma ou algumas poucas mentalidades primitivas pensam pelas massas ainda mais primitivas. Sem nervos, sem calor, é uma terrível força dominadora, parecendo muitas vezes não um ser humano e sim uma máquina.

"Stalin é um grande nacionalista, não da Rússia futura, mas da Eurásia Comunista, a Rússia de hoje. Quem estivesse presente a uma sessão do Comitê Central, quando se procedia à leitura de um editorial num jornal inglês falando no perigo da União dos Soviets para a Europa, poderia ouvir Stalin exclamar: "Ah! Ah! Por fim compreendem-nos!"

"Acreditará Stalin na revolução mundial? Mede tudo com dinheiro e baionetas. Quando houver bastante dinheiro e uma força suficiente de baionetas, haverá uma revolução mundial como um resultado das vitórias dos nossos exércitos e do nosso ouro. As pequenas escaramuças que a Internacional Comunista agora encena são ensaios insignificantes para a tragédia pendente. A grande tragédia virá quando nossas tropas, as hordas da Eurásia, entrarem em Berlim e Paris. Então, a Europa deixará de ser a Europa e passará a ser parte da Eurásia. Esta é a fé de Stalin na revolução mundial. Ele a apresentará à Europa na ponta de uma baioneta russo-asiática. E não entregará a nenhum proletariado ocidental a hegemonia da Revolução, porque, no fundo de sua alma, odeia e despreza o proletariado do ocidente, tanto quanto a sua burguesia.

"Será Stalin honesto? Pensará ele nas necessidades e no bem-estar do povo? Estou absolutamente convencido de que ele visa a felicidade do povo e considera-se sinceramente como a encarnação dos trabalhadores do país. Mas que tem isso? Não pensava o Duque d'Alba que trabalhava pelo povo da Holanda e não se surpreendeu quando este se rebelou? E Nicolau I, o Tzar de Ferro, não se julgava senhor do povo e não ficou atônito quando os camponeses se revoltaram?

"Não é, afinal, uma pergunta acadêmica se Stalin é honesto ou não? O que adianta que ele não roube, não tenha amantes, não se entregue a orgias, trabalhe muito? Isso não torna o fardo do povo mais leve. No fim é como o povo vive e não como vive Stalin o que importa.

"Stalin é uma vítima da estranguladora burocracia centralizada que ele mesmo criou. Faz lembrar o horror com que Nicolau I exclamou: "Quem disse que eu governava o país? Ele é governado pelos meus burocratas!" Até aqui Stalin é quem governa; é ele quem dá o rumo geral. Mas a força básica rodeando-o consiste de aventureiros piratas, oportunistas, que estão à espera que ele saia para que possam ficar sendo os donos indivisos da terra. Stalin contem-nos...

"Stalin é uma força cega com convicções. Há muito nele que se parece com Robespierre, com a diferença que este era um europeu e Stalin é um asiático. Apertou as rédeas da ditadura ao extremo e está embaraçado nelas.

"Se o regime de economia e de terror político de Stalin é para a felicidade da humanidade, não quero essa felicidade. Sufoca na atmosfera que ele criou. Não posso e não quero viver nem pensar com a cabeça no bloco da guilhotina."



Notas:

(1) Sobre estes julgamentos, ver detalhes no livro "Missão em Moscou", de Joseph E. Davies, (N. dos E.). (retornar ao texto)

Inclusão 12/05/2011