A Revolução de Outubro e a Tática dos Comunistas Russos
J. V. Stálin

III – Algumas particularidades da tática dos bolcheviques no período da preparação de Outubro


Para compreender a tática dos bolcheviques no período da preparação de Outubro é necessário conhecer, pelo menos, algumas particularidades sumamente importantes desta tática. Isto é tanto mais necessário, porquanto numerosos folhetos sobre a tática dos bolcheviques fazem silêncio justamente sobre estas particularidades.

Quais são essas particularidades?

Primeira particularidade: Ouvindo-se Trotski poder-se-ia crer que na história da preparação de Outubro, existem tão-só dois períodos: o período de reconhecimento e o período da insurreição, e que o que sobra disso seria obra do diabo. Que foi a manifestação de abril de 1917? "A manifestação de abril, que pendeu mais "para a esquerda" do que o necessário, foi um reconhecimento de exploradores para sondar o estado de espírito das massas e as relações entre elas e a maioria dos Soviets". E que foi a manifestação de julho de 1917? Segundo Trotski, "no fundo, também desta vez tudo se reduz a um novo e mais amplo reconhecimento, numa etapa nova e mais alta do movimento". É supérfluo dizer que a manifestação de junho de 1917, organizada por insistência do nosso Partido, com maior razão deve ser qualificada, segundo Trotski, de "reconhecimento".

Daí se conclui, por conseguinte, que, em março de 1917, os bolcheviques tinham, já preparado, um exército político de operários e camponeses e que, se não foi empregado para a insurreição nem em abril, nem em junho, nem em julho, limitando-se a fazer "reconhecimentos", foi porque e somente porque "esses reconhecimentos" ainda não produziam "indícios" favoráveis.

É desnecessário dizer que essa concepção simplista da tática política do nosso Partido não passa da confusão da tática militar comum com a tática revolucionária dos bolcheviques.

Na realidade, todas aquelas manifestações foram, antes de tudo, resultado de um impulso espontâneo das massas, resultado da indignação das massas contra a guerra, indignação que estourava em manifestações de rua.

Na realidade, o papel do Partido consistia, então, em dar à ação das massas, que surgia de modo espontâneo, uma organização e uma direção que correspondessem às palavras de ordem revolucionárias dos bolcheviques.

Na realidade, os bolcheviques não dispunham nem poderiam dispor, em março de 1917, de um exército político já preparado. Os bolcheviques foram formando esse exército (e este trabalho chega ao fim em outubro de 1917) no curso da luta e dos conflitos de classe, de abril a outubro de 1917; formaram-no passando pela manifestação de abril e pelas manifestações de junho e julho, através das eleições para as Dumas distritais e urbanas, através da luta contra Kornilov e da conquista dos Soviets. Um exército político não é um exército de soldados. Enquanto o comando militar entra em guerra com um exército já formado, o Partido deve constituir o seu exército no curso da própria luta, no curso dos conflitos de classe, à medida que as próprias massas se dão conta, pela sua experiência, da justeza das palavras de ordem do Partido, da justeza da sua política.

É evidente que cada uma dessas manifestações lançava, ao mesmo tempo, certa luz sobre as correlações de forças que não se percebiam à primeira vista e era uma espécie de reconhecimento; mas o reconhecimento não era o motivo da manifestação, e sim o seu resultado natural.

Analisando os acontecimentos que precederam a insurreição de outubro e confrontando-os com os de abril-julho, disse Lênin:

"Hoje, as coisas não mais estão como antes do 20 e do 21 de abril, do 9 de junho, do 3 de julho, porque havia então uma efervescência espontânea que nós, como partido, ou não percebíamos (20 de abril) ou refreávamos, dando-lhe a forma de manifestação pacífica (9 de junho e 3 de julho). Sabíamos, perfeitamente, naqueles momentos, que os Soviets ainda não eram nossos, que os camponeses ainda acreditavam no método Líber-Dan-Tchérnov e não no método bolchevique (a insurreição), que nós não podíamos, por isso, contar com a maioria do povo e que, por conseguinte, a insurreição teria sido prematura". (Vide vol. XXI, pág. 345).

É claro que só com "reconhecimentos" não se vai longe.

Trata-se, evidentemente, não de "reconhecimentos", mas de que:

1) durante todo o período da preparação de Outubro, o Partido, na sua luta, se apoiou constantemente no auge espontâneo do movimento revolucionário das massas;

2) ao apoiar-se neste auge espontâneo, o Partido conservava nas suas mãos, indivisa, a direção do movimento;

3) tal direção do movimento lhe facilitava a formação de um exército político de massas para a insurreição de Outubro;

4) tal política não podia deixar de ter como conseqüência que toda a preparação de Outubro se desenvolvesse sob a direção de um só partido, o Partido bolchevique;

5) tal preparação de Outubro, por sua vez, tinha como conseqüência que o Poder ficasse, como resultado da insurreição de Outubro, nas mãos de um só partido, o Partido bolchevique.

Portanto, a direção total por parte de um só partido, do Partido Comunista, como elemento fundamental da preparação de Outubro: eis um dos traços característicos da Revolução de Outubro, tal é a primeira particularidade da tática dos bolcheviques no período da preparação de Outubro.

Não é necessário demonstrar que, sem esta particularidade da tática dos bolcheviques, a vitória da ditadura do proletariado, nas condições do imperialismo, teria sido impossível.

Nisso a Revolução de Outubro se distingue com vantagem da revolução de 1871, na França, onde a direção da revolução foi dividida entre dois partidos, nenhum dos quais se podia qualificar de Partido Comunista.

Segunda particularidade: A preparação de Outubro se processou, pois, sob a direção de um só partido, o Partido bolchevique. Mas como exerceu o Partido esta direção, qual foi a sua linha? Esta direção seguiu a linha do isolamento dos partidos conciliadores, considerados como os grupos mais perigosos no período de desencadeamento da revolução, a linha do isolamento dos social-revolucionários e dos mencheviques.

Em que consiste a regra estratégica fundamental do leninismo? Consiste em reconhecer que:

1) no período em que se aproxima o momento de desencadear a revolução, os partidos conciliadores constituem o mais perigoso sustentáculo social dos inimigos da revolução;

2) é impossível derrotar o inimigo (o tzarismo e a burguesia) sem ter isolado esses partidos;

3) por conseguinte, no período preparatório da revolução os golpes principais devem visar ao isolamento desses partidos, a afastar deles as grandes massas trabalhadoras.

No período da luta contra o tzarismo, no período da preparação da revolução democrático-burguesa (1905-1916), o mais perigoso sustentáculo social do tzarismo era o partido liberal-monárquico, o partido dos democrata-constitucionalistas. Por quê? Porque era um partido conciliador, o partido da conciliação entre o tzarismo e a maioria do povo, isto é, os camponeses no seu conjunto. Era natural, portanto, que então, o nosso Partido dirigisse os seus golpes principais contra os democratas-constitucionalistas, pois, sem o isolamento destes, não se poderia contar com a ruptura dos camponeses com o tzarismo e, sem assegurar essa ruptura, não se poderia contar com a vitória da revolução Muitos não compreendiam, então, esta particularidade da estratégia dos bolcheviques e acusavam os bolcheviques de "ódio excessivo" aos democratas-constitucionalistas, afirmando que para os bolcheviques a luta contra esse grupo "punha em segundo plano" a luta contra o inimigo principal, contra o tzarismo. Mas aquelas acusações, infundadas como eram, revelavam uma absoluta incompreensão da estratégia bolchevique, a qual exigia o isolamento do partido conciliador com o objetivo de tornar mais fácil, de tornar mais próxima a vitória sobre o inimigo principal.

Não é necessário demonstrar que, sem aquela estratégia, a hegemonia do proletariado na revolução democrático-burguesa teria sido impossível.

No período da preparação de Outubro o centro de gravidade das forças em luta se deslocara para um novo terreno. Não havia mais o tzar.

O Partido Democrata-Constitucionalista se convertera de força conciliadora em força de governo, força dominante do imperialismo. A luta não mais se desenvolvia entre o tzarismo e o povo, mas entre a burguesia e o proletariado. Naquele período o mais perigoso sustentáculo social do imperialismo eram os partidos democratas pequeno-burgueses, os partidos social-revolucionário e menchevique. Por quê? Porque esses partidos eram, então, os partidos conciliadores, os partidos da conciliação entre o imperialismo e as massas trabalhadoras. Era natural, por conseguinte, que os golpes principais dos bolcheviques visassem, então, esses partidos, pois, sem o seu isolamento, não se podia contar com a ruptura das massas trabalhadoras com o imperialismo e, sem assegurar essa ruptura, não se podia contar com a vitória da revolução soviética. Muitos não compreendiam, então, esta particularidade da tática bolchevique, acusando os bolcheviques de nutrir "ódio excessivo" contra os social-revolucionários e os mencheviques e de "esquecer" o objetivo principal. Mas todo o período da preparação de Outubro demonstra claramente que, somente graças a esta tática, os bolcheviques puderam assegurar a vitória da Revolução de Outubro.

O traço característico desse período consiste em que o espírito das massas trabalhadoras camponesas se torna mais revolucionário, em que elas perdem as suas ilusões a respeito dos social-revolucionários e dos mencheviques, abandonam estes partidos e dão uma virada, agrupando-se diretamente em torno do proletariado, a única força revolucionária até o fim, a única força capaz de dar a paz ao país. A história desse período é a história da luta entre os social-revolucionários e os mencheviques, de um lado, e os bolcheviques, de outro, pelas massas trabalhadoras camponesas, pela conquista destas massas. A sorte desta luta foi decidida pelo período da coalizão, pelo período do governo de Kerensky, pela recusa dos social-revolucionários e dos mencheviques a confiscar as terras dos latifundiários, pela luta dos social-revolucionários e dos mencheviques em favor do prosseguimento da guerra, pela ofensiva de junho na frente, pela pena de morte para os soldados, pela revolta de Kornilov. E foi decidida exclusivamente a favor da estratégia bolchevique. Com efeito, sem o isolamento dos social-revolucionários e dos mencheviques, seria impossível derrubar o governo dos imperialistas e, sem derrubar o governo dos imperialistas, seria impossível sair da guerra. A política de isolamento dos social-revolucionários e dos mencheviques revelou-se a única política justa.

Portanto, o isolamento dos partidos mencheviques e social-revolucionários como linha principal de direção da preparação de Outubro: tal é a segunda particularidade da tática dos bolcheviques.

Não é preciso demonstrar que, sem essa particularidade da tática dos bolcheviques, a aliança da classe operária e das massas trabalhadoras camponesas teria ficado no vazio.

É significativo que Trotski, nas suas "Lições de Outubro", não diga nada, ou quase nada, dessa particularidade da tática bolchevique.

Terceira particularidade: A direção do Partido na preparação de Outubro seguia, pois, a linha do isolamento dos partidos social- revolucionário e menchevique, a linha do afastamento das grandes massas operárias e camponesas desses partidos. Mas como, concretamente, de que forma, com que palavras de ordem o Partido conseguia levar a cabo esse isolamento? Levava-o a cabo mediante um movimento revolucionário das massas pelo Poder dos Soviets, sob a palavra de ordem: "Todo o Poder aos Soviets!", lutando pela transformação dos Soviets, de órgãos de mobilização das massas, em órgãos da insurreição, em órgãos de Poder, em aparelho do novo Estado proletário.

Por que os bolcheviques se aferraram precisamente aos Soviets, nos quais viam a alavanca fundamental de organização, que tornava mais fácil o isolamento dos mencheviques e dos social-revolucionários, que fazia progredir a causa da revolução proletária e se destinava a levar as massas de milhões e milhões de trabalhadores à vitória da ditadura do proletariado?

Que são os Soviets?

"Os Soviets – dizia Lênin, já em setembro de 1917 – constituem um aparelho de Estado que, em primeiro lugar, cria a força armada dos operários e dos camponeses, não separada do povo, como o velho exército permanente, mas estreitamente ligada ao povo, incomparavelmente mais poderosa do que o velho exército, do ponto de vista militar, e insubstituível, do ponto de vista revolucionário. Em segundo lugar, este aparelho estabelece com as massas, com a maioria do povo, laços tão estreitos, tão facilmente controláveis e renováveis, que em vão se procuraria algo de semelhante no velho aparelho estatal. Em terceiro lugar, este aparelho, graças ao fato de que os seus funcionários são elegíveis e revogáveis, segundo a vontade do povo e sem formalidades burocráticas, é infinitamente mais democrático do que todos os aparelhos anteriores. Em quarto lugar, assegura a existência de fortes laços com as profissões mais diversas, facilitando, assim, a aplicação das reformas mais variadas e profundas, sem burocracia de espécie alguma. Em quinto lugar, é a forma de organização da vanguarda dos operários e dos camponeses – isto é, da parte mais consciente, mais enérgica e mais progressista das classes oprimidas – e permite, por isso, à vanguarda elevar, instruir, educar e guiar toda a massa gigantesca dessas classes, que até agora permanecia inteiramente fora da vida política e da história. Em sexto lugar, permite unir as vantagens do parlamentarismo com as da democracia direta e imediata, isto é, reunir na pessoa dos representantes eleitos do povo o Poder Legislativo e o Poder Executivo. Em comparação com o parlamentarismo burguês, isto é um progresso de importância histórica mundial no desenvolvimento da democracia... Se a força criadora popular das classes revolucionárias não tivesse gerado os Soviets, a revolução proletária na Rússia se veria condenada ao fracasso, pois o proletariado não teria podido conservar o Poder com o velho aparelho estatal, e não se pode criar de golpe um novo aparelho". (Vide vol. XXI, págs. 258-259).

Por isso, os bolcheviques se aferraram aos Soviets, em que viam o elo orgânico fundamental, que facilitava a organização da revolução de Outubro e a criação de um novo e poderoso aparelho, o aparelho do Estado proletário.

A palavra de ordem: "Todo o Poder aos Soviets!", do ponto de vista do seu desenvolvimento intrínseco, atravessou duas fases: a primeira (até a derrota dos bolcheviques em julho, durante o período do dualismo de poderes) e a segunda (depois da derrota da revolta de Kornilov).

Na primeira fase, essa palavra de ordem significava: ruptura do bloco dos mencheviques e dos social-revolucionários com os democratas-constitucionalistas, formação de um governo soviético composto de mencheviques e de social-revolucionários (porque os soviets eram então social-revolucionários e mencheviques), liberdade de agitação para a oposição (isto é, para os bolcheviques) e liberdade de luta dos partidos no seio dos Soviets, na esperança de que esta luta permitiria aos bolcheviques a conquista dos Soviets e à modificação da composição do governo soviético mediante um desenvolvimento pacífico da revolução. Esse plano não significava, naturalmente, a ditadura do proletariado, mas facilitava, sem dúvida, a preparação das condições indispensáveis para assegurar a mesma ditadura, pois, levando ao Poder os mencheviques e os social-revolucionários e obrigando-os a por em prática a sua plataforma anti-revolucionária, se acelerava o desmascaramento da verdadeira natureza desses partidos, se acelerava o seu isolamento, o seu afastamento das massas. A súbita derrota dos bolcheviques em julho conteve, porém, esse desenvolvimento, deu estímulo à contra-revolução dos generais e dos democratas-constitucionalistas e lançou nos seus braços os social-revolucionários e os mencheviques. Esta circunstância levou o Partido a retirar momentaneamente a palavra de ordem: "Todo o Poder aos Soviets!", para lançá-la de novo em um novo período ascendente da revolução.

A derrota da insurreição de Kornilov abre a segunda fase. A palavra de ordem: "Todo o Poder aos Soviets!" foi de novo posta na ordem do dia. Mas, então, esta palavra de ordem não tinha mais o mesmo significado que na primeira fase. O seu conteúdo havia mudado de forma radical. Agora, esta palavra de ordem significava: ruptura completa com o imperialismo e passagem do Poder aos bolcheviques, pois os Soviets já eram bolcheviques na sua maioria. Agora, esta palavra de ordem significava que a revolução abordava diretamente o estabelecimento da ditadura do proletariado mediante a insurreição. Mais: esta palavra de ordem significava agora a organização da ditadura do proletariado, a sua constituição em Estado.

O valor inestimável da tática da transformação dos Soviets em órgãos do Poder estatal consistia no fato de que arrebatava ao imperialismo massas de milhões de trabalhadores, desmascarava os partidos menchevique e social-revolucionário, como instrumentos do imperialismo, e conduzia essas massas, por assim dizer, por via direta, à ditadura do proletariado.

Assim, pois, a política de transformação dos Soviets em órgãos do Poder estatal, como condição essencial para o isolamento dos partidos conciliadores e pela vitória da ditadura do proletariado: tal é a terceira particularidade da tática dos bolcheviques no período da preparação de Outubro.

Quarta Particularidade: O quadro ficaria incompleto se não examinássemos como e porque os bolcheviques conseguiram transformar as palavras de ordem do seu Partido em palavras de ordem de uma massa de milhões de homens, em palavras de ordem que impulsionavam a revolução; se não examinássemos como e porque os bolcheviques conseguiram convencer da justeza da sua política, não somente a vanguarda e não somente a maioria da classe operária, mas também a maioria do povo.

A verdade é que, para a vitória da revolução, se esta revolução é verdadeiramente popular e abrange massas de milhões de homens, não basta que o Partido tenha palavras de ordem justas. Para a vitória da revolução se requer ainda outra condição indispensável: exige-se que as próprias massas se convençam, pela sua própria experiência, de que essas palavras de ordem são justas. Somente então as palavras de ordem do Partido se tornam palavras de ordem das próprias massas. Somente então a revolução se torna efetivamente uma revolução popular. Uma das particularidades da tática dos bolcheviques no período da preparação de Outubro é que soube determinar, com justeza, os caminhos e as viradas que levam de um modo natural as massas a identificarem-se com as palavras de ordem do Partido, que as levam, por assim dizer, ao umbral da revolução e, desse modo, tornam mais fácil para elas perceber, comprovar e reconhecer, pela sua própria experiência, a justeza dessas palavras de ordem. Noutros termos, uma das particularidades da tática dos bolcheviques consiste no fato de que ela não confunde a direção do Partido com a direção das massas, de que vê claramente a diferença entre o primeiro e o segundo gênero de direção, de que ela é, por conseguinte, a ciência da direção, não só do Partido, mas também de massas de milhões de trabalhadores.

Exemplo evidente do modo como se manifesta essa particularidade da tática bolchevique é a experiência da convocação e da dissolução da Assembléia Constituinte.

É sabido que os bolcheviques lançaram a palavra de ordem da República dos Soviets já em abril de 1917. É sabido que a Assembléia Constituinte era um parlamento burguês, em contradição flagrante com os princípios da República dos Soviets. Como pôde ocorrer que os bolcheviques, marchando para a República dos Soviets, exigissem, ao mesmo tempo, do governo provisório, a convocação imediata da Assembléia Constituinte? Como pôde ocorrer que os bolcheviques, não somente participassem das eleições, mas eles mesmos convocassem a Assembléia Constituinte? Como pôde ocorrer que os bolcheviques admitissem, um mês antes da insurreição, no momento da passagem do velho ao novo regime, a possibilidade de combinar temporariamente a República dos Soviets com a Assembléia Constituinte?

"Ocorreu" isso porque:

  1. a idéia da Assembléia Constituinte era uma das idéias mais populares entre as grandes massas da população;
  2. a palavra de ordem da convocação imediata da Assembléia Constituinte tornava mais fácil desmascarar a natureza contra-revolucionária do governo provisório;
  3. para desacreditar aos olhos das massas populares a idéia da Assembléia Constituinte, era necessário levar estas massas até as portas da Assembléia Constituinte com as suas reivindicações sobre a terra, a paz e o Poder dos Soviets, pondo-as em choque, assim, com uma Assembléia Constituinte real e viva;
  4. só assim se podia ajudar as massas a se convencerem, pela própria experiência, do caráter contra-revolucionário da Assembléia Constituinte e da necessidade de dissolvê-la;
  5. tudo isso, naturalmente, implicava na possibilidade de uma combinação temporária da República dos Soviets e da Assembléia Constituinte, como um dos meios para eliminar a própria Assembléia Constituinte;
  6. tal combinação, se se verificava com a condição de que todo o Poder passasse aos Soviets, não podia significar senão a submissão da Assembléia Constituinte aos Soviets, a sua transformação em apêndice dos Soviets, a sua extinção sem sofrimento.

Não é necessário demonstrar que, sem essa política dos bolcheviques, a dissolução da Assembléia Constituinte não teria sido tão fácil e que a atividade ulterior dos social-revolucionários e dos mencheviques, sob a palavra de ordem: "Todo o Poder à Assembléia Constituinte!" não entraria em bancarrota de modo tão clamoroso.

"Participamos – disse Lênin – das eleições para o parlamento burguês da Rússia, para a Assembléia Constituinte, em setembro-novembro de 1917. Era justa ou não a nossa tática?... Porventura, nós, os bolcheviques russos, não tínhamos em setembro-novembro de 1917 mais direito do que todos os comunistas do Ocidente de considerar que o parlamentarismo havia sido superado na Rússia? Naturalmente o tínhamos, pois a questão não reside em que os parlamentos burgueses existem há pouco ou há muito tempo, mas em que as grandes massas trabalhadoras estão preparadas (ideológica, política e praticamente) para adotar o regime soviético e dissolver (ou permitir a dissolução) do parlamento democrático-burguês. Que a classe operária das cidades, os soldados e os camponeses da Rússia estavam, em setembro-novembro de 1917, em virtude de uma série de condições particulares, excepcionalmente preparados para adotar o regime soviético e dissolver o parlamento burguês mais democrático, é um fato histórico absolutamente indiscutível e plenamente estabelecido. E, não obstante, os bolcheviques não boicotaram a Assembléia Constituinte, mas participaram das eleições, tanto antes como depois da conquista do Poder político pelo proletariado". (Vide vol. XXV, págs. 201 e 202).

E por que os bolcheviques não boicotaram a Assembléia Constituinte? Porque, diz Lênin:

"Mesmo algumas semanas antes da vitória da República dos Soviets e mesmo depois desta vitória, a participação num parlamento democrático-burguês, não só não prejudica o proletário revolucionário, mas lhe permite demonstrar às massas atrasadas porque tais parlamentos merecem ser dissolvidos, facilita o êxito da dissolução, facilita a "superação política" do parlamentarismo burguês". (Vide lugar citado).

É significativo que Trotski não compreenda essa particularidade da tática bolchevique e grunha contra a "teoria" da combinação da Assembléia Constituinte com os Soviets, chamando-a de teoria à la Hilferding.

Não compreende que admitir, em relação com a convocação da Assembléia Constituinte, uma combinação desse tipo, enquanto se lança a palavra de ordem da insurreição e quando é provável a vitória dos Soviets, é a única tática revolucionária, é uma tática que não tem nada a ver com a tática à la Hilferding, a qual tende a transformar os Soviets em apêndice da Assembléia Constituinte. Não compreende que o erro cometido por alguns camaradas nesta questão não o autoriza a denegrir a posição perfeitamente justa de Lênin e do Partido quanto à possibilidade de um "Poder estatal combinado" em determinadas condições. (Vide vol. XXI, págs. 395-397).

Não compreende que, sem a política peculiar dos bolcheviques em relação à Assembléia Constituinte, os bolcheviques não teriam podido colocar sob a sua influência massas populares de milhões de homens e que, se não tivessem conquistado estas massas, não teriam podido transformar a insurreição de Outubro numa profunda revolução popular.

É curioso que Trotski também bufe contra as palavras "povo", "democracia revolucionária", etc., que aparecem nos artigos dos bolcheviques, considerando-as indecorosas para um marxista.

Trotski se esquece, evidentemente, de que Lênin, este marxista autêntico, ainda em setembro de 1917, um mês antes da vitória da ditadura do proletariado, falava da "necessidade da passagem imediata de todo o Poder às mãos da democracia revolucionária dirigida pelo proletariado revolucionário". (Vide vol. XXI, pág. 198).

Trotski se esquece, evidentemente, de que Lênin, este marxista autêntico, citando a conhecida carta de Marx a Kugelmann (abril de 1871), em que se diz que a destruição do aparelho burocrático e militar do Estado é condição prévia de toda revolução verdadeiramente popular no continente, escreve, com clareza meridiana, as seguintes linhas:

"Merece especial atenção a observação extraordinariamente profunda de Marx, de que a destruição da máquina burocrática e militar do Estado é "a condição preliminar de toda revolução verdadeiramente popular. Este conceito de revolução "popular" parece estranho na boca de Marx, e os adeptos de Plekhanov e os mencheviques russos, esses discípulos de Struve que querem fazer-se passar por marxistas, poderiam talvez dizer que esta expressão de Marx é um "lapso". Deformaram o marxismo de modo tão idiotamente liberal, que nada existe para eles além da antítese: revolução burguesa ou revolução proletária, e mesmo esta antítese é por eles concebida do modo mais escolástico que se pode imaginar... Na Europa de 1871, o proletariado não constituía a maioria em nenhum país do continente. Uma revolução só podia ser "popular", só podia por em movimento a maioria efetiva, se englobasse o proletariado e os camponeses. Estas duas classes constituíam então o "povo". Estas duas classes se unem pelo fato de que a "máquina burocrática e militar do Estado" as oprime, escraviza e explora. Destruir esta máquina, demoli-la eis o que aconselham os verdadeiros interesses do povo, da maioria do povo, dos operários e da maioria dos camponeses, eis a "condição prévia" da livre aliança dos camponeses pobres com os proletários. Sem esta aliança não é possível uma democracia sólida, não é possível uma transformação socialista". (Vide vol. XXI, págs. 395-396).

Estas palavras de Lênin não devem ser esquecidas.

Assim, pois, a capacidade de convencer as massas, pela sua própria experiência, de que as palavras de ordem do Partido são justas, levando estas massas a ocupar posições revolucionárias, como condição essencial para colocar sob a influência do Partido milhões de trabalhadores: tal é a quarta particularidade da tática dos bolcheviques no período da preparação de Outubro.

Creio que o que ficou dito é suficiente para esclarecer os traços característicos desta tática.

IV – A Revolução de Outubro, Início e Premissa da Revolução Mundial

Não há dúvida de que a teoria universal da vitória simultânea da revolução nos principais países da Europa, a teoria da impossibilidade da vitória do socialismo num só país, demonstrou ser uma teoria artificial, impraticável. Os sete anos de história da revolução proletária na Rússia não falam em favor dessa teoria, mas contra ela. Essa teoria é inaceitável, não somente como esquema do desenvolvimento da revolução mundial, porque contraria fatos evidentes; ela é ainda mais inaceitável como palavra de ordem, porque encadeia, ao invés de estimular, a iniciativa dos diversos países que, em virtude de determinadas condições históricas, teriam a possibilidade de romper por si mesmos a frente do capital, porque não estimula esses países a empreender uma ofensiva enérgica contra o capital, mas os deixa passivamente à espera do momento do "desmoronamento geral", porque não cultiva nos proletários de diferentes países um estado de espírito decididamente revolucionário, mas as dúvidas de Hamlet: "E se os outros não nos apoiarem?" Lênin tem toda razão quando diz que a vitória do proletariado num só pais é "a regra" e que "uma revolução simultânea em vários países" só pode ocorrer como "rara exceção". (Vide vol. XXIII, pág. 354).

Mas a teoria leninista da revolução não se limita, como é sabido, a esse aspecto da questão. É, ao mesmo tempo, a teoria do desenvolvimento da revolução mundial.(2) A vitória do socialismo num só país não constitui um fim em si mesma. A revolução vitoriosa num país não deve ser considerada como entidade autônoma, mas como uma contribuição, como um meio para acelerar a vitória do proletariado em todos os países. Porque a vitória da revolução num só pais, neste caso na Rússia, não é somente o resultado do desenvolvimento desigual e da desagregação progressiva do imperialismo. E, ao mesmo tempo, o início e a premissa da revolução mundial.

É indubitável que as vias do desenvolvimento da revolução mundial não são tão simples como poderiam parecer antes da vitória da revolução num só país, antes do aparecimento do imperialismo desenvolvido, que é a "ante-sala da revolução socialista". Apareceu, com efeito, um novo fator: a lei do desenvolvimento desigual dos países capitalistas, lei que atua nas condições do imperialismo desenvolvido, lei que afirma a inevitabilidade dos conflitos armados, o debilitamento geral da frente mundial do capital e a possibilidade da vitória do socialismo em países isolados. Apareceu, com efeito, um novo fator: o imenso país dos Soviets, situado entre o Ocidente e o Oriente, entre o centro da exploração financeira do mundo e a arena da opressão colonial, e este país, pelo simples fato de existir estimula a revolução no mundo inteiro.

Esses fatores (para não citar outros, menos importantes), não podem ser esquecidos no estudo das vias do desenvolvimento da revolução mundial.

Antes, costumava-se supor que a revolução se iria desenvolvendo através de um "amadurecimento" regular dos elementos de socialismo, começando pelos países mais evoluídos, pelos países "avançados". Agora, esta concepção exige modificações substanciais.

"O sistema das relações internacionais – disse Lênin – assumiu hoje uma forma tal, que um dos Estados da Europa, a Alemanha, acha-se avassalado pelos Estados vencedores. Por outro lado, diversos Estados entre os mais antigos do Ocidente, tendo vencido a guerra, acham-se em condições de aproveitar a vitória para fazer às suas classes oprimidas uma série de concessões que, embora pouco importantes, retardam o movimento revolucionário e criam uma aparência de "paz social".

Ao mesmo tempo, muitos outros países – o Oriente, a Índia, a China, etc. – em virtude, precisamente, da última guerra imperialista, foram em definitivo postos fora da sua rotina. O seu desenvolvimento se ajustou definitivamente ao desenvolvimento do capitalismo europeu. Iniciou-se, neles, um processo de fermentação semelhante ao que se observa na Europa. E é agora claro para o mundo inteiro que eles entraram num processo de desenvolvimento que não pode levar senão a uma crise do capitalismo mundial no seu conjunto".

Por isso, e em relação com esses fatos, "os países capitalistas da Europa Ocidental levarão a termo a sua evolução para o socialismo... não como esperávamos anteriormente. Não o levam a termo por um processo gradual de "amadurecimento" do socialismo no seu seio, mas mediante a exploração de uns Estados por outros, mediante a exploração do primeiro Estado vencido na guerra imperialista, unida à exploração de todo o Oriente. Mas o Oriente, por outro lado entrou definitivamente no momento revolucionário, justamente após esta primeira guerra imperialista, vendo-se definitivamente arrastado à órbita geral do movimento revolucionário mundial. (Vide vol. XXVII, págs. 415-416).

Se se acrescenta a isto o fato de que não só os países vencidos e as colônias são explorados pelos países vencedores, mas que uma parte dos países vencedores cai na órbita da exploração financeira dos Estados vencedores mais poderosos, os Estados Unidos e a Inglaterra; o fato de que as contradições entre esses países constituem um importantíssimo fator da decomposição do imperialismo mundial; o fato de que, além dessas contradições existem e se desenvolvem outras contradições muito profundas no seio de cada um desses países; o fato de que todas estas contradições se aprofundam e se agravam pelo fato de existir, ao lado desses países, a grande República dos Soviets; se levarmos tudo isso em consideração, teremos um quadro mais ou menos completo dos elementos característicos da situação internacional.

O mais provável é que a revolução mundial se desenvolva mediante o desligamento revolucionário de uma série de países do sistema dos Estados imperialistas e o apoio aos proletários desses países, por parte do proletariado dos Estados imperialistas. Vemos que o primeiro país que se desligou, o primeiro país vitorioso, já conta com o apoio das massas operárias e trabalhadoras dos outros países. Sem este apoio, ele não poderia manter-se. É indubitável que este apoio se irá fortalecendo e desenvolvendo, mas é também fora de dúvida que o próprio desenvolvimento da revolução mundial, o próprio processo de desligamento do imperialismo por parte de uma série de novos países, será tanto mais rápido e profundo quanto mais profundamente o socialismo se consolidar no primeiro país vitorioso, quanto mais rapidamente este país se tornar a base de um ulterior desenvolvimento da revolução mundial, a alavanca de um ulterior esfacelamento do imperialismo.

Se é justa a tese de que a vitória definitiva do socialismo, no primeiro país a se libertar, é impossível sem os esforços comuns dos proletários de vários países, não é menos verdadeiro que a revolução mundial se desenvolverá tanto mais rápida e profundamente quanto mais eficaz for a ajuda do primeiro país socialista às massas operárias e trabalhadoras de todos os outros países.

Em que deve consistir essa ajuda?

Em primeiro lugar, no fato de que o país vitorioso realize "o máximo realizável num só país para desenvolver, apoiar, e despertar a revolução em todos os países". (Vide Lênin, vol. XXIII, pág. 385).

Em segundo lugar, no fato de que "o proletariado vitorioso" de um país, "depois de expropriar os capitalistas e de organizar no seu país a produção socialista", se subleve "contra o resto do mundo capitalista, atraindo para o seu lado as classes oprimidas dos outros países, estimulando-as à insurreição contra os capitalistas, intervindo, caso necessário, até mesmo com a força das armas contra as classes exploradoras e os seus Estados" (Vide Lênin vol. XVIII, págs. 232-233).

A particularidade característica dessa ajuda do país vitorioso é que não somente ele acelera a vitória dos proletários dos outros países, mas, ao tornar mais fácil esta vitória, assegura também a vitória definitiva do socialismo no primeiro país vitorioso.

O mais provável é que, no curso do desenvolvimento da revolução mundial, se formem, ao lado dos focos de imperialismo em diferentes países capitalistas e ao lado do sistema desses países no mundo inteiro, focos de socialismo em diferentes países soviéticos e um sistema desses focos no mundo inteiro, e que a luta entre esses dois sistemas encha a história do desenvolvimento da revolução mundial.

"Com efeito – disse Lênin – a livre união das nações no socialismo é impossível sem uma luta encarniçada, mais ou menos longa, das repúblicas socialistas contra os Estados atrasados".

A importância mundial da Revolução de Outubro não consiste somente no fato de que ela representa uma grande iniciativa de um só país para romper o sistema imperialista, de que constitui o primeiro foco de socialismo no oceano dos países imperialistas, mas também no fato de que é a primeira etapa da revolução mundial e uma poderosa base do seu desenvolvimento ulterior.

Por isso não erram apenas os que, esquecendo-se do caráter internacional da Revolução de Outubro, afirmam que a vitória da revolução num só país é um fenômeno exclusivamente nacional e nada mais do que nacional. Erram também os que, sem se esquecerem do caráter internacional da Revolução de Outubro, tendem a considerá-la como alguma coisa de passivo, destinada apenas a receber ajuda do exterior. Na realidade, não só a Revolução precisa do apoio da revolução dos outros países, mas ao mesmo tempo a revolução desses países precisa do apoio da Revolução de Outubro para acelerar e impulsionar a obra da derrocada do imperialismo mundial.

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Notas:

(2) Conforme "Princípios do leninismo" (J. Stálin). (retornar ao texto)

pcr
Inclusão 11/04/2006