A Privação do Sono

Francisco Martins Rodrigues


Primeira Edição: ....
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
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Entrei na sede da Pide pelas 21:30 horas do dia 30 de Janeiro. Mandaram-me despir. Obedeci. Depois de me revistarem, devolveram-me as roupas. Entrou então o chefe de brigada José Gonçalves e vários agentes. Perguntou-me o nome. Disse que nada tinha a responder. Imediatamente, começaram a dar-me socos e pontapés, insultando-me e ameaçando-me de morte. Eu nada disse. Retiraram-se e veio um outro inspector, com modos correctos, que, sem nada me perguntar, mandou fazer um curativo, pois sangrava do nariz e dum lábio e tinha um sobrolho deitado a baixo. Fizeram-me o curativo e levaram-me para um gabinete no último andar, na secção reservada para os interrogatórios e espancamentos. Comecei pois imediatamente uma sessão de privação de sono.

Já tinha ouvido falar bastante acerca dos efeitos do sono e estava perfeitamente tranquilo. No gabinete havia um agente (revezam-se de 4, em 4horas) e não me deram cadeira. O agente tentou entabular conversa mas nada lhe disse e assim passou a noite. Na manhã seguinte, reclamei a um chefe, de brigada que apareceu, uma cadeira, mas não me atenderam. Deixavam-me sentar à hora em que me traziam a refeição. A comida pareceu-me boa. Ninguém me interrogou durante esse dia. Passei a segunda noite sem dificuldade, embora um pouco cansado. No dia 1 de Fevereiro, de manhã, levaram-me às fotografias. Deixei-me fotografar e marcar as impressões digitais, mas recusei dar indicações para a ficha de identificação. Não insistiram. À tarde apareceu o subdirector Sachetti, acompanhado do inspector Mortágua. Fez-me um discurso, garantindo que, ou eu falava, ou me levavam a Belas e me matavam lá como eu fizera ao Mateus; que eu fora entregue pelos meus camaradas; que, se falasse, a Pide “arranjaria” a minha situação e da minha mulher; que minha mulher estava presa e iria sofrer pesada condenação, etc. Nada respondi. O discurso de Sacchetti não me impressionou. Calculava que minha mulher devia estar de facto presa e que nos esperava a ambos pesada condenação, mas já há muito contava com isso. Quanto a ser morto pela Pide, não acreditei que o fizessem, pois fora preso na companhia do engenheiro Acácio Barata, gritara o meu nome repetidamente no local onde fui preso e no trajecto para a Pide, no Chiado, pela janela do táxi. Calculei portanto que a Pide não teria interesse em me matar e dispus-me aguentar o sono e as pancadas. Pouco depois, voltou o Mortágua com o Inácio Afonso e começou a fazer-me perguntas sobre a forma como havíamos matado o Mateus. Nada respondi. Mortágua deu-me então uma forte sova, a maior que sofri na Pide; socos, pontapés, murros no estômago, golpes de cutelo na nuca, etc. Gritava por vezes, mas nada disse. Foram-se embora.

Pouco depois, quando começara a jantar, entrou um agente cujo nome ignoro e que me começou a interrogar, ameaçando-me de morte. Continuei a comer. Ele então agarrou-me pelos cabelos e socou-me violentamente no rosto; deu-me pontapés nas pernas. Por fim, foi-se embora. Os agentes que se revezavam a guardar-me, até aqui só tinham intervindo impedindo-me de dormir, mas não me batiam; quando eu ia a fechar os olhos, davam violentas palmadas sobre o tampo da mesa, o que, sendo repetido, causa uma impressão dolorosa. Estava extenuado, mas lúcido e bem disposto. Talvez por efeito do cansaço começou-me a tomar o pânico de que pudesse dizer qualquer segredo no momento em que estivesse prestes a adormecer. Procurava fixar em mim mesmo a ideia de não falar em nenhuma questão de organização inadvertidamente.

Apareceu então o director da Pide. Com modos doces perguntou-me se sabia que minha mulher estava presa; se era verdade eu ter dois filhos pequenos; disse que sim. Ele aconselhou-me a pensar na minha situação, pois tudo se podia ainda resolver, e saíu. Creio que foi nesta noite (a terceira) que comecei a conversar com os Pides, para me conservar desperto. O sono era insuportável e as pancadas regulares e violentas sobre a mesa tornavam-se dolorosas. Falei sobre assuntos políticos muito gerais: as minhas convicções e a situação do país. Quando o agente tentava encaminhar a conversa para questões particulares (a morte do Mateus), eu desviava a conversa. Outras vezes andava falando sozinho ou cantarolava uma canção para me tentar manter desperto. Adormecia por um segundo para logo despertar com as pancadas na mesa. Não me deixavam estar parado nem encostar às paredes.

Na manha seguinte, voltei a reclamar uma cadeira, alegando que sofrera uma fractura da bacia recentemente (o que era verdade). Trouxeram-me a cadeira. Durante o dia, o sono não era tão violento, mas não podia estar sentado, pois adormecia, e então obrigavam-me a levantar e recomeçar a marcha.

Na quarta noite, tive as primeiras alucinações: pela janela entreaberta do gabinete, vi num prédio fronteiro televisão; via distintamente as imagens mexerem e convenci-me de que era realmente verdade; só quando olhei noutras direcções e comecei a ver ecrãs de televisão nas janelas que estavam iluminadas, percebi que era uma alucinação. Já contava com isto e não me assustei. Comecei mesmo a explicar ao pide que estava a ter alucinações mas que isso era um efeito da privação do sono e que não me alarmava. Contudo, lembro-me de pouco depois começar num semi-delírio a relatar ao pide o “programa de televisão” que via pela janela. Quando ele se ria dos disparates que eu dizia, tinha a noção de que estava a delirar, mas depois recaía no delírio. Pouco depois (talvez já de dia) tive outras alucinações: via baratas, escaravelhos e caranguejos andarem pelo soalho. Comecei a tentar matá-los com os pés e assim andei um bocado, tentando matar os bichos que via; por momentos apercebia-me de que o que via eram simplesmente os nós do soalho, mas depois a alucinação voltava.

A partir desta altura, comecei a entrar num estado diferente: o sono já não custava tanto, sentia-me eufórico, bem-disposto, com vontade de conversar. Comecei a perder a noção exacta da prova por que estava a passar: já não sabia que me estavam a privar do sono, mas só vagamente que estava na Pide. Lembro-me de estar a conversar com Inácio Afonso, que me perguntava se já tinha matado muitos bichos; eu dizia-lhe que sim, fazendo chalaça com o caso; mostrei-lhe una tomada de electricidade na parede, onde “ouvia” música, encostando o ouvido. Adormecia sem me aperceber disso, enquanto andava, chocando várias vezes contra as paredes, contra a janela, contra a porta. Nestes dias não me bateram; vinha um agente pôr-me pomada nas nódoas negras que tinha por todo o rosto e Inácio Afonso vinha umas duas vezes por dia saber “se eu já estava cansado ou se queria continuar”. Eu dizia-lhe a rir que estava óptimo. Ele perguntava se eu queria ficar vinte dias e eu dizia que queria ficar trinta. Estava numa espécie de bebedeira provocada pelo sono. Comecei a conversar continuadamente com os pides, num estado de semi-inconsciência. Lembro-me de explicar a um deles que, depois da revolução, todos eles seriam, presos e alguns seriam mortos durante a luta; horas depois, o inspector Óscar Cardoso veio-me pedir para repetir as minhas previsões, o que fiz, dizendo que queria ser inspector da futura polícia política; ele divertiu-se muito com isto.

Numa destas noites, juntaram-se três ou quatro agentes no gabinete e travou-se acesa discussão sobre religião; um deles, que é seminarista, defendia a religião; eu atacava e desenvolvia muitos argumentos, falava-lhe dos manuscritos do Mar Morto, da falsificação da história de Cristo, etc.; julgo que discorria com certa lógica. O que há a assinalar nisto é que eu já não falava para me manter desperto, mas discutia animadamente, perdendo a noção de onde estava; noto também que correspondia aos estímulos que me davam; entrava numa discussão que me lançavam e falava sem cessar. Perguntaram-me como fora a fuga de Peniche: contei pormenorizadamente como decorrera; só não falei no destino para onde tínhamos seguido; o que eles de resto não me perguntaram. Isto não eram interrogatórios mas conversas, como se fôssemos amigos ou conhecidos.

Travaram-se também animadas discussões políticas acerca do comunismo e da URSS. Um agente começava, a fazer críticas e eu imediatamente me lançava a defender e a explicar. Contava como são os países socialistas, como vivem os trabalhadores, etc.. Eles contradiziam-me, para me espicaçar e eu falava muito. Não creio que pensasse convencê-los ou que tivesse qualquer objectivo definido: correspondi apenas aos estímulos, de forma um pouco automática.

Neste período, os agentes não me faziam perguntas sobre a actividade clandestina, possivelmente porque não tinham ordem para isso; às vezes, falavam no Mateus, diziam-me que estava um fantasma atrás do mim, tentavam aterrorizar-me com gritos, etc., mas isto deixava-me indiferente; dizia-lhes que o Mateus estava bem morto e se me aparecesse que o matava outra vez.

Por vezes passava também bocados sem conversar, e nesses caía numa semi-inconsciência, que a partir do sexto dia (?) passou a ser mesmo delírio. Enquanto marchava sem cessar, tropeçando e batendo nas paredes, falava sozinho de ideias que me ocorriam. Lembro-me de una ocasião sair do estado de semi-inconsciência, por me despertar a atenção o facto de o agente estar a anotar qualquer coisa num papel que guardou no bolso. Perguntei-lhe o que era. Ele disse que era uma indicação secreta que eu tinha dito em voz alta, a morada clandestina do Rui. Disse-lhes que não acreditava e que desde o princípio tinha feito um esforço para controlar as minhas palavras, para o meu subconsciente não me permitir dizer coisas secretas; mas fiquei angustiado a pensar se seria verdade. Depois, recaí outra vez no estado de semi-inconsciência e de delírio (parece que usam bastante este truque do papel, para tirar confiança ao preso, para o desorientar).

A certa altura, comecei a ver jornais espalhados pelo chão; baixava-me para os apanhar, mas eles dissolviam-se no soalho quando estava prestes a agarrá-los; punha-me então a raspar com as unhas no soalho. O agente não me consentia que eu estivesse de joelhos para não adormecer e obrigava-me a levantar. Mas eu voltava a ver os jornais e lançava-me a raspar no chão. De outra vez, vi uns apontamentos meus, sobre assuntos conspirativos, metidos numa fenda junto do rodapé; julgava estar sozinho no gabinete e lancei-me para os apanhar, mas eles sumiam-se pela fenda e eu tentava ansiosamente agarrá-los. Por esta altura, creio que, tinha perdido a consciência exacta de onde estava. Nunca me passou pela cabeça dizer que queria dormir, perguntar o que queriam saber de mim, ou qualquer coisa parecida. Estava ali porque era preciso, e não sabia mais.

A certa altura, supunha estar numa cabana no campo; era de noite; nós esperávamos que chegasse uma pessoa importante para podermos partir para qualquer lado; não tinha a noção de que estava na Pide nem no sono; passeava na cabana enquanto esperava; ia espreitar à janela, e às vezes via, faróis de carros que se aproximavam, ouvia os carros parar, as portas baterem, pessoas que se aproximavam conversando; perguntava ao agente (que na altura não era um agente) se já nos vinham buscar; ele dizia que não; eu regressava para a janela, via o campo iluminado pela lua, uns canaviais; enquanto esperava que chegasse a tal pessoa, recomeçava a andar. Não tinha bem a noção de marchar, nem sentia os pés sobre o soalho; parecia que era a cabana (o gabinete) que ia lentamente andando à roda e oscilando. O chão era de terra batida mas levantava-se uma poeira densa. A certa altura, o agente chamou-me a atenção por eu cuspir para o chão e eu respondi-lhe espantado que o chão era de terra, não fazia mal cuspir.

Penso que estes delírios duravam horas, sobretudo durante a madrugada, em que havia mais sossego; quando falavam comigo, de dia, retomava consciência mas muito imperfeita. À euforia ia sucedendo um estado de prostração, de embrutecimento. Quando me traziam a comida, lançava-me avidamente sobre ela, com as mãos a tremer e rapava tudo num instante. Pedia mais nas não davam. Quando ia à retrete, ou quando ia meter a cabeça debaixo da torneira para despertar, também recobrava consciência de onde estava mas era muito superficialmente; não me lembro de formar ideias acerca da situação em que estava, da duração do sono, da situação dos camaradas no exterior, etc. Só me preocupava com as necessidades elementares. Durante todos estes dias, não me deixaram lavar nem fazer a barba, mas isso era-me indiferente.

Os agentes começaram então (pelo sétimo dia?) a bater-me para me manter acordado, pois eu adormecia de momento a momento. Tinha alternadamente um pide “bom”, que não me batia e me mantinha desperto batendo na mesa, atirando-me água à cara, andando atrás de mim com um papel enrolado a fazer-me cócegas na cara; e um pide “mau” que gritava e espancava a todo o momento, obrigando-me a correr, dando-me bofetões e pontapés no cu; não eram propriamente sovas, mas pancadas ligeira para não me deixar dormir; eu corria à volta do gabinete sem nada dizer.

Numa dessas noites, ao pide que estava de turno juntaram-se mais três, que começaram por me achincalhar, troçando de mim, insultando-me de forma grosseira; isto era-me mais ao menos indiferente no estado em que eu estava; diziam-me que estava prestes a morrer, que iam buscar o caixão, para que cemitério queria ir; ou que íamos partir para Belas para me abaterem; isto tudo pouco me impressionava, dado o embrutecimento a que chegara; ia correndo à volta o gabinete, enquanto me insultavam. Depois, mandaram-me pôr de pé, com os braços abertos e um pé no ar; caía ao chão; atacaram-me a pontapé e com os cassetetes e fizeram-me levantar; recomecei a correr; nos intervalos das pancadas recaía em delírio; estava numa mercearia onde antes entrara algumas vezes no bairro América, reconhecia a loja e a rua. Via o balcão e as prateleiras; como a porta estava fechada, pensava se seria possível partir a vitrina e sair para a rua; via a rua através da vitrina.

De outra vez ia numa espécie de casa voadora, que oscilava enquanto voava a grande velocidade; pelas fendas das paredes via os campos em baixo; tentava alargar uma fenda para ver se me podia lançar para fora. De outra vez, era um prisioneiro de guerra que tinha sido transformado em escravo pelos inimigos; obrigavam-me a correr e a carregar fardos como se fosse um cavalo; isto devia ser provocado por um agente que, para se divertir, me tratava como um cavalo, dando-me palmadas, mandando correr, parar, recuar, ao que eu obedecia.

Conto isto para dar uma ideia dos efeitos do sono; foi também por esta altura (sétimo dia?) que comecei a ter uma sensação de desdobramento da personalidade: ouvir-me falar como se fosse um outro e inclusivamente ficar admirado com as palavras que ouvia a mim próprio; o controle consciente daquilo que dizia ou fazia era muito reduzido. Contudo, o subconsciente levava-me a resistir, sem eu saber bem porquê nem a quê: um dos agentes “mau” ordenou-me que beijasse uma fotografia de meu filho que Mortágua trouxera para o gabinete; eu disse que não queria; ele começou então a dar-me pancadas e a torcer-me os braços atrás das costas, de forma muito dolorosa, fazendo-me andar de rastos pelo chão; eu gritava, quando ele aproximava a fotografia, desviava a cara para não a beijar; depois, começou a apertar-me as cabeças dos dedos contra a palma da mão, o que, com a continuação, se torna muito doloroso, até deixar as unhas roxas; gritava mas continuava a desviar a cara da fotografia; na altura, não sabia porquê, era apenas porque me ordenavam e eu sabia subconscientemente que não devia fazer o que me ordenavam.

Continuava sem dormir nem um minuto, pois me obrigavam a andar continuamente; adormecia quando estava a comer, mas logo me faziam levantar; adormecia quando me encostava à janela, e uma vez magoei-me por ter caído a dormir com a cara sobre um fecho. Já não era capaz de atravessar o gabinete, porque o chão parecia fugir-me sob os pés; ia andando de volta, encostado às paredes.

Em geral, nos turnos dos agentes “maus” falava pouco, por reacção às brutalidades e insultos deles; nos turnos dos agentes “bons” punha-me a conversar espontaneamente sem controlar muito bem o que dizia, e mergulhava no delírio. Foi no oitavo dia que comecei a descrever a forma como tínhamos matado o Mateus; não sei bem como comecei a falar no caso, só tomei consciência do que dizia a meio da conversa, quando o agente me começou a fazer algumas perguntas. Continuei a descrever o caso, na presença dele e de um outro. À tarde veio o Sacchetti com o Mortágua e o Inácio Afonso. Disseram-me que eu ia dormir mas que era preciso assinar o auto sobre a morte do Mateus, ao que eu acedi sem dificuldade. Não ditei o auto, não estava em condições para isso: trouxeram-mo escrito e leram-mo porque tinha também dificuldade em ler, via as letras a fugir; apercebi-me confusamente de que havia pormenores em que eu não falara: o nome do condutor do carro, que eu ignorava, o nome do Catanho, mas não fiz qualquer observação e assinei o auto, com grande dificuldade também, porque via as letras correrem e repetirem-se; lembro-me de estar com os olhos sobre o papel, esforçando-me por assinar correctamente.

Inácio Afonso fez-me ainda algumas perguntas, sem violência, como por exemplo onde estava a tipografia clandestina, mas eu dizia-lhe que não sabia de nada enquanto falava com ele, via o chão ondular perigosamente e segurava-me a ele para não cair; via passarem ratos e interrompia a conversa para dar um pontapé num; estes “ratos” já não eram as manchas do soalho, como ao princípio, eram as machas que eu via correr pelas paredes; o gabinete parecia alongar-se desmedidamente, depois as paredes recuavam. Veio ainda Mortágua perguntar-me onde era a tipografia, onde era a minha casa. Eu respondia, a rir, no estado de bebedeira em que estava: “não sei nada”. Mortágua, em brincadeira, apertava-me contra ele, a ver “se saía alguma coisa”. Por fim, trouxeram-me a cama, uma cama desmontável, e deixaram-me dormir. Isto foi no dia 6 de Fevereiro, salvo erro.

Dormi umas quinzes horas. Acordei alquebrado mas perfeitamente lúcido. Recordei-me de tudo o que se passara, em todo o pormenor. Fiquei acabrunhado por ver que cedera e que assinara um auto comprometendo outras pessoas. Tinha entrado na Pide firmemente disposto a não dizer nem assinar nada. Nas prisões anteriores não assinara nada. Durante o dia, pensei longamente no assunto. Estava sozinho no gabinete, vinha um agente espreitar de vez em quando e ninguém me interrogava.

Considerei que nada estava perdido. Sabia que ia recomeçar o sono e estava alarmado por a minha reacção ser diferente daquilo que tinha ouvido contar; pensei que devia firmar mais o meu subconsciente, que podia conseguir a mesma firmeza que outros. Não tinha nenhuma sensação de derrota irrecuperável nem de desmoralização. Nesse dia ninguém me interrogou e à noite deixaram-me dormir. No dia seguinte, veio Mortágua saber se eu estava disposto a responder às perguntas. Disse-lhe que não. Ele não insistiu; disse-me que iria recomeçar a privação do sono e que eu não aguentaria. Nada respondi. Vieram tirar a cama e nessa noite (8 de Fevereiro) comecei a segunda sessão de sono.

A minha disposição não era a mesma da primeira vez; além de estar fatigado, sentia menos confiança na minha resistência. Mas continuava disposto a dar luta. Admitia que o A pudesse já estar preso (preocupava-me a dúvida sobre se teria de facto dito a morada em delírio) mas, mesmo admitindo isso, não pensava que tudo estivesse perdido, ou coisa parecida; tinha plena confiança na continuidade da nossa luta, para além de quaisquer dificuldades e, estava perfeitamente adaptado à ideia de ficar preso muitos anos; as propostas de libertação a troco de traição, nem me demorava a pensar nelas. Recomecei pois a segunda sessão do sono martelando para mim mesmo estas ideias: “não me deixar condicionar pelos Pides”, “não dar conversa aos Pides”, “sou um comunista”. Esperava que elas ajudassem o subconsciente a manter a minha firmeza durante o delírio. Mas não sucedeu assim.

Comecei a segunda sessão de privação do sono no dia 8 de Fevereiro depois de dois dias do descanso. Estava decidido a controlar as minhas reacções e a não responder nada. Ao segundo dia apareceu Sacchetti; disse que eu devia ponderar que, de qualquer forma, já estava politicamente liquidado, tanto com o Partido como com a FAP e que a minha situação não tinha saída nenhuma; como tinham matado o pide ia passar o resto da vida na prisão; a minha mulher também ia levar medidas; propôs-me que eu dissesse tudo o que sabia, pois havia muita maneira de arranjar as coisas. Garantiu-me formalmente que me arranjaria uma fuga simulada de que ninguém desconfiaria e que tomaria o primeiro avião para o Brasil, com minha mulher e filhos; dizia-me também: “compreendo que você não queira aceitar favores da polícia; se não quer dinheiro, não lho damos”. Respondi-lhe que não receava o julgamento dos meus camaradas; ele retirou-se.

Desta vez não fizeram tanto esforço para estabelecer conversa; davam pancadas no tampo da mesa e faziam-me andar continuamente para não dormir. Na segunda ou terceira noite, estava ainda perfeitamente lúcido, começara a ouvir-se num gabinete ao lado gritos horríveis de mulher, com se estivesse a ser torturada; fiquei na dúvida se era teatro ou realidade, mas procurei manter um ar indiferente, para desiludir o pide que me vigiava. Foi talvez pelo quarto dia que comecei a notar os contornos dos objectos a mover-se como que a borbulhar continuamente; estava lúcido e procurei observar as minhas reacções; não tinha alucinações como da primeira vez (baratas, ratos, etc.) mas, talvez devido ao cansaço, mergulhei num torpor e numa espécie de indiferença pelo que se passava à minha volta.

Apareceu o Mortágua e pôs-se a dizer-me que estava liquidado, aconselhou-me a suicidar-me, mostrou o cordão da ventoinha, dizendo que o podia amarrar à parte superior da janela; estava só comigo e falava com ar sério, creio que para me abater o ânimo com a ideia da morte. Dizia-me também: “A primeira vez foi uma brincadeira: agora fazes vinte dias de sono e ficas maluco; como já tens mais malucos na família, a responsabilidade não é nossa”. Eu procurava mostrar indiferença.

Comecei a estar cansado e adormecia a andar com a maior frequência, batendo por vezes nas paredes; mesmo a comer ou na retrete adormecia de repente e eles estavam sempre a abanar-me, a atirar-me água à cara e a obrigar-me a andar. No quarto ou quinto dia, o mesmo pide que já da primeira vez me tinha apertado as unhas começou a interrogar-me sobre a minha vida no estrangeiro (o meu trabalho em Paris, etc.); eu disse que nunca lá estivera e ele teimava que sim. Creio que isto era só um pretexto para começar a apertar-me as unhas. Começou a apertar-me as unhas contra a palma das mãos; eu gritava com as dores, mas repetia que nunca tinha estado na Argélia e ele continuava; torcia-me os braços atrás das costas, dava-me golpes de cutelo no pescoço, fazia-me andar de rastos pelo chão, sempre com a pergunta sobre a Argélia; suponho que era um teste para ver a minha disposição de resistência, como da primeira vez. Esta sessão durou umas três horas e deixou-me com as unhas roxas, algumas a sangrar pelo sabugo.

Apareceu depois o Inácio Afonso a fazer-me perguntassobre a minha actividade e a casa onde morava; repetiu-me que o A já estava preso, que já estava “tudo acabado”; como eu não respondi e protestei contra os apertos das unhas, deu-me um soco na cara e uma bofetada e saiu. Com o cansaço a aumentar Com o cansaço iam aumentando o torpor e a apatia; de manhã estava consciente do que se passava, disposto a resistir; lembro-me de Inácio Afonso me estar a pôr pomada na cara para apagar as equimoses das pancadas e eu pensar com satisfação que isso era sinal de que me queriam pôr apresentável para me mandar para a célula e que o sono já não duraria muito tempo. Mas durante a tarde e sobretudo à noite e de madrugada caía num embrutecimento e numa abulia que ia aumentando gradualmente, sem eu me aperceber disso. Era também pela noite que os meus pensamentos degeneravam numa espécie de delírio confuso.

Talvezpelo sexto dia, já estava eu muito cansado, veio o Inácio Afonso com um velho (suponho que era um inspector), estiveram conversando ao pé de mim sobre Angola, dando a entender que estiveram lá ambos. O velho começou a descrever-me, com um ar bonacheirão, una “limpeza à barriga” que faziam aos guerrilheiros angolanos para os fazerem falar; põem-lhes os intestinos à mostra, lavam-lhos com água salgada e eles confessam tudo num instante, dizia o velho; não me ameaçaram directamente, julgo que queriam só meter-me essas ideias na cabeça. Julgo que foi nesse mesmo dia que veio o Inácio Afonso interrogar-me outra vez; tentou aterrorizar-me, fingindo que me ia matar; dizia: “bem, acabou-se tudo, vamos matar-te, estás pronto para morrer?”. Eu não sei se acreditei ou não, estava incapaz de raciocinar e embrutecido. Ele mostrou-me uma faca de mato e mandou-me despir, dizendo que me ia abrir a barriga como já tinha feito aos guerrilheiros angolanos. Eu despi-me como ele me mandava, automaticamente. Suponho que ele deve ter ficado aborrecido pela minha falta de reacção; fez desaparecer a faca, mandou-me vestir outra vez, dizia: “aqui não se mata ninguém, vocês é que são os criminosos, mas hás-de sofrer muito e hás-de falar”. Começou então a chegar-me um cigarro aceso aos olhos, dizendo que me ia cegar; eu adormecia de instante a instante, esgotado, e só desviava a cabeça quando sentia o calor do cigarro nos olhos. Ele começou outra vez a gritar e a dizer que me ia fazer o mesmo que tinham feito ao Mateus; trouxe uma pistola, encostou-ma ao ouvido, anunciava que ia disparar. Eu deixei-me ficar, apático, não me lembro de ter reacção nenhuma, creio que sentia confusamente que aquilo era teatro, mas acima de tudo tinha sono e nada me interessava. Por fim ele desistiu.

De outra vez, levaram-me para um outro gabinete e puseram-me voltado para a porta, dizendo para estar assim quieto, “é para te tirarmos o retrato”. Eu fiquei a olhar para a porta e comecei a delirar; vi um buraco na porta e surgir por ele o cano duma pistola apontado para mim; ali fiquei à espera que disparassem, até que me levaram para o gabinete anterior; soube depois que tinham feito aquilo para o B me reconhecer através do ralo da porta, mas durante muito tempo estive convencido de que tinham efectivamente apontado uma pistola pela porta.

Ainda outra vez, apareceram na sala Mortágua, Inácio Afonso, o inspector e mais dois ou três pides, aparentemente sem nenhum objectivo; começaram a gracejar comigo, talvez para avaliar o meu estado: se eu ainda não me tinha enforcado, para que cemitério queria ir, quais eram as minhas últimas vontades, etc. Eu ria-me estupidamente. Depois, o Inácio Afonso mostrou-me uma pistola, deu-ma para a mão, perguntou-me se eu a conhecia. Eu disse que não. “Podes guardá-la no bolso, fica para ti”, disse ele. Eu metia-a no bolso e eles riram à gargalhada. Levaram a pistola e foram-se embora.

Una vez, sei que era noite, apareceu Mortágua e fizeram entrar um homem no gabinete. O Mortágua disse-me que me aproximasse e visse se o reconhecia. Eu estava sem óculos, estive olhando para ele, nas não o conhecia. Por fim, disse que me parecia um dos agentes que me tinham prendido. O Mortágua riu-se, disse-me que era o irmão de Mateus e que me queria matar para vingar o irmão; passado um bocado disse que estava a brincar e com ar misterioso disse que o homem tinha sido preso com a tipografia clandestina. Todas estas cenas julgo que eram feitas para aumentar a minha confusão e desorientação.

Pelo sétimo dia, os pés começaram a inchar e a não caber os sapatos; passei a andar descalço. Sentia-me esgotado e estava sempre à espera da hora da refeição; quando vinha o comer, devorava tudo num instante e pedia mais mas não me davam. Foi então que Mortágua me apareceu com a mala com papéis que eu tinha no ateliê, perguntou-me se eu conhecia a mala e, eu disse que sim. Ele folheava os papéis à minha frente, creio para me provocar o pânico, mas não me lembro de ter qualquer reacção consciente; não reflecti sobre a maneira como tinham agarrado o ateliê nem sobre a importância daqueles papéis, fiquei à espera do que se seguiria; ele perguntou-me onde eu dormia, visto que não era no ateliê e eu disse sem dificuldade a morada do quarto, acrescentando: “não há lá nada que lhe interesse”. Ele, animado por eu ter dito quarto, começou a perguntar-me onde tinha eu guardado as outras malas que faltavam, dizia que havia uma mala com uma espingarda dentro, mas eu disse que não havia mais nada e ele não insistiu.

Como eu adormecia já a todo o momento, começaram a apertar-me mais para me manter sempre a correr. Um dos pides andava atrás de mim com um lápis (ou qualquer outra coisa pontiaguda, não sei bem o quê), que me metia no nariz e nos ouvidos para eu não adormecer a andar; acabou por me fazer sangrar bastante do nariz e também dum ouvido; outros atiravam-me água para os olhos; outros davam-me pontapés e cachações para me despertar, gritavam e insultavam-me, faziam-me correr à roda do gabinete até ficar esfalfado. Eu por vezes discutia com eles, mas sem ódio e sem o verdadeiro espírito de resistência.

Comecei a delirar com continuidade e a perder a consciência por largos períodos; o pide tinha pendurado o sobretudo no fecho da janela e eu via uma rapariga nesse sítio. Porque está ela aqui? Quem é? Aproximava-me da janela e via-lhe o rosto; era uma rapariga de uns dezasseis anos, magra, magra com aspecto de doente; cantarolava em voz baixa como se não desse pela minha presença e eu sabia que era proibido falar-lhe; noutras alturas, andando pelo gabinete, dizia a mim mesmo: “Não está ali rapariga nenhuma, se estivesseeu via-lhe as pernas e os pés”, mas depois via-a outra vez e ouvia-a a cantar baixinho. Noutra ocasião, quando o pide estava a insultar-me e a fazer-me correr com empurrões e pontapés no cu, eu imaginava que ele era um patrão ou encarregado e que estava descontente com o meu trabalho por qualquer razão. Comecei a discutir com ele e disse-lhe: “isto foi tudo por causa do José Leonel”. Ele ficou interessado, perguntou quem era o José Leonel, mas quando respondi que era o meu irmão, ele percebeu que eu estava a delirar e desinteressou-se.

Mortágua voltou a perguntar-me com insistência pela mala da espingarda, dizia-me que eu a tinha recebido num encontro à noite, numa rua que indicava. Eu concentrava a atenção no que ele dizia, mas não me lembrava de nada, dizia-lhe que era confusão; por fim, disse-lhe que tinha dado uma mala a guardar a uma pessoa amiga, mas que só tinha roupas; ele perguntou quem era essa pessoa e eu disse que não interessava. Nessa noite (a oitava?), entrou mais um pide de turno e começaram os dois a espancar-me à bofetada e a pontapé, perguntando quem era a pessoa que tinha a mala. Eu não respondia. Enquanto corria pelo gabinete para fugir aos pontapés, comecei a delirar e a esquecer-me de onde estava. Pedi a um pide uma lista telefónica, pois precisava de fazer una chamada; ele disse que desse o número, que ele falaria. Eu respondi que não era preciso mais pessoas saberem coisas conspirativas. Percebendo que eu estava a delirar, ele começou a dizer-me que era também camarada e pediu-me o número do telefone; julgo que o outro pide saíra do gabinete. Eu olhava espantado para ele porque sabia que ele estava a mentir, embora não tivesse a noção de que era um pide. Ele começou a gritar e a bater-me pedindo sempre o número do telefone, mas isto reforçava a minha defesa instintiva e eu não respondia. Pouco depois, eu via em delírio uma lista telefónica em cima da mesa; procurava um nome, mas as letras ondulavam e dissolviam-se e eu não sabia ao certo o nome que procurava; tão depressa julgava encontrá-lo como o perdia outra vez; a certa altura um dos pides fez-me levantar, pois eu andava de rastos procurando não sei o quê no chão.

Passado um bocado, julgo que me levaram para outro gabinete contíguo, talvez para não se ouvir barulho; pelo menos, recordo-me de entrar no gabinete, que em delírio julgava ser a casa dos amigos da mala. Fiquei intrigado por não ver ninguém nem mobília. Disse para o pide que se deviam ter mudado. Julgava que eram umas sete horas da noite e que estavam à espera que os Andrades chegassem. Eles recomeçaram a perguntar-me o número do telefone o recomeçaram a espancar-me e fazer-me correr.

Por fim, foram substituídos por outros pide, este dos “bons”, que nunca me bateu; só me mantinha acordado por meio de água na cara e pancadas na mesa; começou a brincar comigo por eu andar aos tombos com a bebedeira do sono; deixou-me ir meter a cabeça debaixo da torneira e passeava comigo pelo gabinete, dando-me o braço. Eu sentia-me grato para com ele e comecei-lhe a fazer queixa dos outros. Ele começou então a dizer-me voz baixa que era um camarada, que os camaradas estavam bons e que mandasse um bilhete a dizer onde estavam as coisas principais para se guardarem num lugar seguro. Isto despertou a minha desconfiança e pensei que era um truque; em todo o caso, perguntei-lhe se era verdade o A estar preso, ele disse que sim e que por isso mesmo precisava das moradas; eu não respondi, calava-me por instinto. Ele insistia, dizia que a mala da espingarda precisava de se levar urgentemente para outro sítio; depois propôs-me que fizesse um bilhete, que ele levaria onde fosso preciso, falava baixo, olhando para a porta, como se tivesse medo que o ouvissem. Eu comecei a hesitar, a certa altura creio que já admitia que ele fosse uma pessoa amiga. Pedi-lhe papel e comecei a escrever um bilhete dirigido à minha mãe para que ela procurasse una pessoa amiga, (que designava com um nome convencional) para ir procurar a mala e enviá-la para a polícia, para se certificarem que não tinha nenhuma espingarda; a insistência constante sobre a questão da mala, no estado em que eu estava, levou-me a este raciocínio disparatado. O bilhete, escrito em delírio, com a mão a fugir-me devia estar ilegível. O pide, ao meu lado, chamava-me a atenção, dizia que não se percebia nada, queria que eu copiasse de novo. Eu adormecia enquanto escrevia ou fazia riscos. Por fim, dei-lhe o bilhete e disse que fosse entregar à morada da minha mãe. Ele disse, que aquilo assim não resolvia nada, que era preciso saber onde estava a mala; eu estava indeciso, no meio da minha confusão e, de repente, tirei-lhe o bilhete das mãos e rasguei-o. Mas ele continuou a pressionar-me cada vez mais, insistindo em que era camarada e que tinha que levar uma indicação qualquer quando saísse, para resolver o assunto. Já pela manhã, quando ele estava para ser substituído, acabei por pedir a lista telefónica, que ele trouxe, mostrei-lhe o número do emprego da Z e pedi-lhe que a fosse procurar da minha parte e lhe pedisse a mala da roupa que lhe dera a guardar; recomendei-lhe que não dissesse a ninguém como tinha recebido a mala; ele estava desconfiado, perguntou se era verdade aquilo, queria saber o nome todo, mas eu dizia-lhe que bastava perguntar pela Z. Apesar do embrutecimento do sono me ter levado a este estado, era só o raciocínio e a vontade que estavam afectados; a memória funcionava normalmente não tive dificuldade em descobrir o número dotelefone na lista. Depois de ele sair, e entrar outro pide, não voltei a pensar no que tinha feito. Quando, daí por uma hora me apareceu o Mortágua com a lista telefónica a perguntar-me quem era a Z, tive a consciência do mal irreparável que tinha feito, mas não cheguei a desesperar-me, fiquei apático. Disse ao Mortágua que o casal X tinha uma mala minha com roupa mas não sabiam mais nada. Ele aconselhou-me com bons modos a confessar tudo; “acabas por dizer tudo mesmo, para que hás-de estar a dar cabo de ti”, etc. Começou também a dizer-me que o A e os outros já tinham dito tudo, já estavam em Caxias: “Eles perguntam por ti, quando é que tu vais para lá, para o pé deles”, etc. Respondi-lhe “não, (ilegíveis as últimas duas linhas da pág. 6 do original) coxeava. O pide começou a achincalhar-me por eu andar descalço, sujo e com a barba grande, dizia-me: “metes nojo, vais morrer como um bicho e ainda por cima todos te chamam traidor”. Eu, completamente embrutecido, pedia-lhe de comer, sentia-me morrer de fome e de sono. O pide começou a insultar-me grosseiramente e dizia: “julgas que vamos estar aqui toda a vida a aturar-te. Ou acabas com isto ou te rebento”. Eu respondi-lhe com um palavrão e ele começou-me a socar, pisou-me os pés. Esforçava-me por correr para ele não me bater. Entravam outros pides, que se punham a dizer graçolas, davam-me empurrões, faziam-me tropeçar e riam-se, para me desmoralizarem. À noite, quando entrou o pide “bom” eu estava exausto, tropeçava e adormecia a cada momento. Ele chamou outro para o ajudar e andavam os dois, um de cada lado, segurando-me debaixo dos braços, passeando e um lado para outro. Eu sentia-me satisfeito por eles não me baterem e ria-me. Pedia-lhes para me deixarem deitar um bocadinho no chão, mas eles diziam-me que não se podia e faziam-me andar sempre, aos tropeções. Eu via as paredes envidraçadas e para lá das vidraças via uma escada que descia muito larga, julgava estar num grande estabelecimento. Também via as paredes moverem-se, dando estalos que me assustavam. Perguntava se já eram horas de jantar mas eles diziam-me que era de madrugada. Eu não perguntei ao pide porque tinha dado o nome Z ao Mortágua; julgo que nem me lembrei disso; depois de as coisas acontecerem, não voltava a pensar nelas.

Voltou a equipe dos pides “maus”, que começaram brutalmente a fazer-me correr à volta da sala, um deles, sobretudo, agarrava-me pelo casaco e atirava-me contra as paredes continuamente, gritando-me que corresse. Não me perguntavam nada, só me insultavam e batiam. Eu quando estava esfalfado pedia-lhe para me deixar andar um bocadinho; ele transigia, mas como eu começava logo a adormecer e a tropeçar, ele atirava-me de novo contra as paredes para me despertar e data-me bofetões. Um deles foi buscar um rodo da limpeza e pôs-se no meio da sala a bater-me com o rodo pelas costas para eu correr. Dava-me também com o rolo nas pernas e nos pés inchado, o que me fazia doer bastante. Eu perguntava se já eram horas do pequeno-almoço, mas eles mandavam-me correr sempre. Completamente exausto, disse-lhe a certa altura porque não me matava. Ele disse-me: “Fala que isto ‘acaba. ‘Queres escrever as declaraçôes?” Eu não quis e ele recomeçou a espancar-me.

No décimo dia, creio que à tarde, apareceu o Mortágua, mandou sair os pides, pôs-me uma cadeira para eu me sentar e disse-me com bom modo mas com voz firme: ”Vamos acabar com isto”. Pôs-me em cima da mesa os papéis que eu trazia no bolso, num envelope, no momento da prisão, e que estavam em cifra. Eu comecei a decifrar à medida que ele ia apontando as coisas escritas. Não me lembro de pensar que estava a trair nem de esboçar qualquer resistência. Respondia à medida que ele me perguntava e adormecia a cada instante; sentia um grande bem-estar por estar sentado. Ele fazia-me fumar cigarros para despertar, sacudia-me e fazia-me novas perguntas sobre as notas que não compreendia nos papéis. Os pides entretanto armaram uma cama no gabinete e ele dizia-me: “acaba isto que vais dormir”. Ria-se e dava-me cigarros uns atrás dos outros. Eu decifrava as indicações correctamente, sem pensar sequer em dar-lhe uma tradução errada, ou em dizer que não me lembrava, sem qualquer espírito de defesa. Obedecia automaticamente sem raciocinar sobre o significado do que estava a fazer. Quando ele viu as coisas principais decifradas, mandou-me dormir.

Nos quatro dias seguintes, dormi 16 horas por dia; acordava para comer, passeava um pouco pelo gabinete e voltava a adormecer. Estava estupidificado, não me lembro de pensar nada, tinha só reacções animais; comer e dormir. Os pés e as pernas foram desinchando pouco a pouco. Pelo quinto dia comecei a tomar consciência do que fizera e do rompimento total com a minha vida anterior, mas não o sentia como um acto cometido por minha vontade, mas como uma coisa horrorosa que me acontecera. O delírio do sono parecia-me uma coisa terrível e receava recomeçar. Quando os pides vieram fazer os autos, assinei-os, tentando diminuir o mais possível o mal causado pela decifração dos papéis. Pouco a pouco, ia-me sentindo renascer, com se tivesse saído duma doença muito grave. Passados uns 15 dias sentia-me já normal, olhava de frente o que se passara e estava disposto a enfrentar a minha nova situação.


Inclusão