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A corrente M-L, nascida há 40 anos e que a certa altura chegou a ser quase um papão para a burguesia, entrou em declínio acelerado a partir de 1978-80 e acabou por se extinguir. A UDP actual, constituinte do Bloco, já não tem nada a ver com a sua origem, a não ser o nome. O saldo que essa corrente deixou não é bonito de se ver, com os seus mais destacados militantes de outros tempos a fazer penitência pelo seu passado, quando não se converteram em porta-vozes da burguesia.
Surgiu daqui a ideia de que a própria origem da corrente M-L (a crítica chinesa e albanesa à União Soviética) seria a causa do descalabro posterior. Há quem diga que o mal estaria na própria ruptura. Isto é esquecer o podre ambiente de colaboração de classes e de conciliação com o imperialismo em que se afundava o movimento comunista internacional em fins dos anos 50 e o papel histórico que desempenhou a crítica anti-revisionista lançada pelo PC da China para reagrupar os comunistas. Sem o ânimo revolucionário renovado criado por essa ruptura (e também pela revolução cubana e, depois, pelo Maio 68) teria sido impensável o surgimento da corrente M-L em Portugal. Essa herança anti-revisionista não é para deitar fora.
Mas a corrente M-L portuguesa não foi um produto de importação. Teve raízes internas. Nasceu do “aquecimento” da luta de classes que se começou a sentir na fase final da ditadura (candidatura Humberto Delgado, guerras coloniais). Em meados dos anos 60, a linha política do PCP, até aí aceite sem grandes objecções, começou a ser contestada pela esquerda: afinal vamos só ajudar os democratas e os oficiais do exército descontentes a substituir a ditadura por uma democracia burguesa, ou vamos aproveitar a queda do fascismo para abanar até aos alicerces o regime burguês? O papel dos comunistas é dar o corpo ao manifesto para proveito da burguesia democrática ou devemos conduzir as massas à rebeldia? Os aliados do proletariado são os burgueses descontentes ou são os camponeses e os povos coloniais?
Isto foi considerado por muita gente na altura (e é ainda hoje) como loucura ultra-revolucionária, esquerdismo, verbalismo radicalista, etc. Mas era isto que a vida punha na ordem do dia. Os M-L deram uma pedrada no charco da “sensatez” tradicional da nossa esquerda, do seu conformismo e tacanhez de espírito, do seu horror pequeno-burguês aos “excessos”. Criaram um novo clima de optimismo revolucionário. E isso também não devemos deixar que seja deitado fora a pretexto dos fracassos que vieram depois.
O contributo dos M-L para a queda do fascismo foi modesto, fez-se sentir sobretudo na luta contra a guerra colonial. Vimos como era difícil formar uma nova corrente política na clandestinidade (prisões, grupos desconfiados uns dos outros, mentalidade de seita, etc.). Mas a explosão popular que se deu no 25 Abril trouxe-nos um grande impulso. Veio provar aquilo que dizíamos: as massas procuravam espontaneamente aproveitar a paralisia do poder de Estado para ganhar posições, impor os seus direitos. O nosso envolvimento nas acções de ponta (lembro aqui, entre outras, a marcha da Lisnave de Setembro 74, o boicote ao congresso do CDS no Porto, em Janeiro de 75, a manifestação contra a NATO de Fevereiro 75, o assalto à embaixada de Espanha de Agosto) foi do que de mais positivo se fez naquela altura. O que interessava era alargar as conquistas, estreitar o campo da direita (já então chefiado, é bom lembrá-lo, pelo PS) e dificultar a restauração burguesa. “Mas então queriam fazer a revolução, tomar o poder?” Esta objecção, geralmente feita pelos militantes da área do PCP, revela o seu reformismo. Acham que enquanto não chegar a hora marcada pelo Partido para a tomada o poder, as massas não se devem “tresmalhar”. Ora, quando o poder está fraco e os oprimidos despertam, o nosso papel é alargar o mais possível o rasgão nas instituições, aumentar a ousadia das massas, desestabilizar o sistema. Até onde chegaremos, só depois se sabe.
Esta divergência agravou e tinha que agravar o nosso conflito com o PCP durante a crise de 74-75. O PCP desde o primeiro dia tentou aprisionar os trabalhadores na “Aliança Povo/MFA”. Queria acções populares, mas sem “excessos” que assustassem o MFA ou que enfurecessem a direita. Procurava uma transição do fascismo para a democracia burguesa, transição com forte participação popular que lhe proporcionasse um lugar seguro no novo regime, mas nada além da democracia burguesa.
Para nós, pelo contrário, o que interessava era reforçar a corrente do chamado “poder popular”, o que incluía aproximações e alianças com o PRP, MES, FSP e também deslocar para o nosso lado uma parte da base do PCP. Mostrar-lhe que estava a ser enganada, que os seus interesses não podiam ser defendidos com a “aliança Povo-MFA”. Não o conseguimos e essa foi a causa da derrota do movimento. Porque não o conseguimos? Era muito difícil anular o brutal sectarismo do PCP, a tratar-nos como “provocadores”, mas isso só por si não explica tudo.
Uma fraqueza dos M-L, que se revelou de forma desastrosa no Verão Quente foi o facto de que, sob o nome de “M-L”, havia na realidade duas correntes diferentes. À medida que a crise política se agravou, viu-se que uma parte dos M-L, em nome da “luta contra o social-fascismo” se estava a passar para o campo da social-democracia, dos golpistas, do Eanes. Falo do PC do Vilar, do MRPP, da maior parte da OCMLP.
A corrente M-L defrontava assim uma multiplicidade de lutas entrelaçadas: tinha que se bater contra a direita, contra o PC e contra os falsos M-L direitistas. Isto ao mesmo tempo que se estava a negociar a fusão dos grupos num partido. A carga era demasiada para uma corrente ainda tão imatura.
Deste modo, no final do “Verão quente”, a nossa intervenção começou a perder o pé. Não tínhamos uma resposta própria para o confronto que veio a desembocar no 25 de Novembro. As provocações da direita sucediam-se, iam em crescendo, e nós não tínhamos capacidade para retaliar.
Não digo que fosse errado apoiarmos a corrente otelista. Tendo em conta a nossa pequenez podia ser a única alternativa. Não digo que tivéssemos força para encabeçar uma resposta revolucionária popular. Não tínhamos. Mas fomos à deriva, sem saber para onde, sem plano próprio. Antes do golpe de 25 de Novembro, já estávamos derrotados, nós e toda a extrema-esquerda. Pior do que ser derrotado é ser mal derrotado, ser derrotado e não saber explicar porquê nem o que fazer a seguir.
A partir daí, a história da corrente M-L é uma agonia. Formou-se o partido com grandes proclamações, mas as injecções de optimismo, o “25 de Abril do Povo”, as campanhas de “proletarização”, o apoio da corrente M-L internacional, etc., não puderam evitar o desnorteamento, as cisões, a debandada para a direita. E isto porque errámos, penso, em três questões centrais: modelo de partido comunista, acumulação de forças e revolução socialista.
Partido. Conservámos aquilo a que chamávamos o “modelo leninista de partido”, que era na realidade o modelo stalinista de partido herdado do PCP: uma máquina de militantes arregimentados como um exército e não uma livre associação de revolucionários. Esse velho estilo de partido infectou o PC(R) com o dogmatismo, provocou a esterilidade ideológica, matou a democracia interna e o debate, favoreceu a ascensão dos carreiristas (e os carreiristas nunca têm tendência revolucionária, são sempre reformistas…), justificou aceitar-se a tutela de um dirigente vindo de fora que nada percebia da nossa realidade…
Acumulação de forças. Com o fim da crise revolucionária, impôs-se nas fileiras do PC(R) a ideia de que, para sobreviver em período contra-revolucionário, tínhamos que praticar o reformismo e o eleitoralismo. Isto foi justificado com o aval do 7º congresso da Internacional Comunista (linha Dimitrov), mas não passava de uma cópia dos velhos desvios do PCP, disfarçados com proclamações obreiristas e “bolcheviques”. Em nome do “leninismo”, deslocou-se o centro dos esforços das massas mais exploradas para as camadas médias (mais rentáveis eleitoralmente), atacou-se a tradição combativa dos primeiros tempos e sanearam-se os activistas de esquerda como “esquerdistas”. O aparelho do partido tornou-se um viveiro de oportunistas e reformistas.
Revolução. Nunca tendo conseguido formular uma perspectiva minimamente fundamentada do que seria a revolução e a passagem ao socialismo no nosso país (o que era compreensível, dada a nossa imaturidade), o PC(R) socorreu-se da China e da Albânia como modelos, justamente quando nesses países o “socialismo” se afundava. Para se demarcar do desenlace caótico da “revolução cultural” e da linha chinesa dos três mundos, que surgia cada dia mais claramente como uma aliança com o imperialismo ocidental, agarrou-se ainda mais à teoria oficial albanesa da “edificação socialista” na URSS, com a proibição de qualquer análise crítica ao período de Staline. O resultado foi propor um “socialismo” de quartel, que não tinha qualquer credibilidade junto dos trabalhadores de espírito revolucionário, desacreditar a ideia de revolução e acabar por meter a luta diária nos carris das “pequenas conquistas” e do respeito pela ordem.
O balanço dos M-L é assim o de uma corrente falhada. Foram reabsorvidos pela corrente reformista com que tinham rompido vinte anos antes. Não por “extremismo” ou “aventureirismo”, como sentenciam os reformistas, mas, pelo contrário, por não termos tido a clarividência de cortar até ao fim o cordão umbilical com o passado do movimento comunista. Não chegámos a formular uma nova linha comunista, à esquerda da experiência passada. As nossas críticas ao revisionismo, à social-democracia, ao trotskismo e ao anarquismo eram coxas porque se baseavam num “património” que devíamos ter deitado ao lixo.
Em 84, saímos para criar uma nova corrente. E se os avanços conseguidos nestes 20 anos são dramaticamente insuficientes, não temos dúvida de que são um nítido passo em frente em relação ao universo político e ideológico dos comunistas de há meio século. Somos hoje a expressão de uma corrente comunista incipiente mas que sabe que, mesmo na situação mais recuada, a nossa tarefa é acumular forças com vista à ruptura da ordem, à revolução; que usa cada acção diária como meio de emancipar o proletariado da dominação política e ideológica da burguesia e da pequena burguesia; que concebe o partido comunista como instrumento da revolução, não como tutor ou proprietário do movimento de massas; que concebe o socialismo, não como a arregimentação do proletariado ao serviço da estatização da economia, mas como uma democracia do Trabalho, numa sociedade de onde a revolução terá banido a exploração e a opressão.
Inclusão |