Os Bolcheviques no Tribunal do Anarquismo

Francisco Martins Rodrigues

Dezembro de 1992


Primeira Edição: Política Operária n.º 37, Novembro-Dezembro de 1992
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.

Nos últimos decénios, pontos de vista anarquistas e anarquizantes contra o Estado revolucionário, a ditadura do proletariado e o partido comunista passaram a ser aceites por muitos que anteriormente seguiam a cartilha leninista. Agora, com a derrocada do que ainda restava do mal cheiroso “socialismo real”, a crença nos méritos da autonomia, a desconfiança da política e dos políticos conhece nova expansão em meios de esquerda.

“Afinal, quando os anarquistas previam a degenerescência do poder bolchevique eram eles que acertavam e era Lenine que se enganava”. É certo que o anarquismo como corrente não beneficia com estes reforços, devido à sua agónica letargia e pulverização. Mas o comunismo perde sem dúvida, como sempre que há um recuo na consciência operária. Importa, pois, voltar a debater a questão: a revolução russa teria tido melhor destino se o anarquismo e não o leninismo a tivesse orientado? Os libertários representavam uma linha mais avançada, à esquerda dos bolcheviques? É verdade que “o poder revolucionário destruiu a revolução”?

Dirão alguns que não temos grandes credenciais para debater a matéria. Ainda nós saudávamos a URSS como a “pátria do socialismo” e já havia muitos anos que os anarquistas a denunciavam como um capitalismo de Estado anti-operário. O nosso “marxismo-leninismo” de cepa estalinista não se incomodava com a inexistência de autogestão operária, com os sovietes reduzidos a um megafone do partido único, com a separação entre executantes e dirigentes, os privilégios dos aparatchiks, a supressão das liberdades em nome de uma asfixiante “verdade” oficial — tudo perversões apontadas pelos libertários. Em tudo isso víamos, quando muito, erros ou insuficiências cuja rectificação estaria garantida pela própria natureza socialista do regime. Só a partir dos anos 60 começámos a perceber que Estado “socialista” podia encobrir relações capitalistas e o poder do partido “comunista” podia ser um poder burguês. Desde aí, viemos às apalpadelas, ao longo dos últimos trinta anos, descobrindo que os alertas libertários contra o Estado tocavam em questões vitais da revolução. Não era assim tão fácil como julgávamos, começar por centralizar o poder para esmagar a burguesia e em seguida passar à autogestão socialista porque, entretanto, a revolução estava morta.

Mesmo assim, depois de reconhecermos que o fracasso da revolução russa veio quase da origem, não nos encontrámos mais próximos do anarquismo. A sua pretensa alternativa para o poder soviético — a abolição imediata do Estado e a passagem à associação das comunas livres — não resiste a qualquer análise dos acontecimentos. Devido ao primarismo das suas concepções sobre a luta de classes, foram perspicazes na denúncia de certos sintomas da doença, mas deduziram deles os mais fantásticos diagnósticos e tratamentos. De costas para a realidade, atribuíram à ditadura do proletariado um fracasso que, pelo contrário, resultou da insuficiência dessa ditadura, da estreiteza da sua base social, da imaturidade das condições económicas para o seu exercício.

Continuamos por isso a tentar compreender o fracasso russo à luz do leninismo, na convicção de que a teoria marxista sairá enriquecida da análise desta derrota. Quanto aos libertários, se ainda conservassem hoje alguma lucidez perguntar-se-iam porque é que se foram distanciando do centro da luta de classes à medida que progrediram no seu combate ao leninismo.

Acta de acusação

Pedra angular da crítica libertária é a acusação de que as forças criadoras da revolução russa, manifestadas na enorme diversidade de conselhos, comités, comunas, milícias, etc., foram destruídas pela fúria “autoritária”, “centralizadora” e “estatizante” do partido bolchevique. “Autodesignando-se como a vanguarda do proletariado, os bolcheviques olhavam com suspeição tudo o que lhes fugisse ao controlo e não descansaram enquanto não fizeram dos órgãos de base instrumentos do seu poder”. Antes da revolução exigiam “todo o poder aos sovietes”, apenas porque viam neles um trampolim para se apropriar do poder de Estado. Conseguido o objectivo, criaram, logo nas primeiras semanas, uma teia de organismos centrais, como o Gosplan, o Conselho Superior da Economia Nacional, Comissão Especial de Defesa, Inspecção Operária e Camponesa, etc., que se tornaram outras tantas fortalezas burocráticas, acima do controlo do Soviete Supremo, o órgão de onde teoricamente emanava o poder revolucionário.

O mesmo quanto ao apoio dos bolcheviques aos comités de fábrica e ao controlo operário; entre Fevereiro e Outubro apoiaram-nos em força, apenas como táctica para desorganizar o poder existente. Mas logo após Outubro começaram a integrar os comités de fábrica nos sindicatos, a pretexto de combater a atomização do controlo operário, e a subordinar estes ao Conselho Superior da Economia Nacional, contra a vontade de muitas fábricas. O governo de Lenine resistiu às exigências operárias de passar à expropriação imediata de toda a indústria, só a encetando quando a isso foi obrigado pelo começo da guerra civil. Seria por isso “ridículo afirmar que os bolcheviques em 17 eram pela autogestão operária” (Brinton).

O mesmo quanto ao exército. Lenine tinha proclamado nas jornadas revolucionárias que

“a nossa tarefa, que não devemos perder de vista nem por um momento, é armar todo o povo e suprimir o exército permanente”.

Contudo, passado pouco tempo, em nome da eficácia militar, o Exército Vermelho era organizado segundo uma rígida hierarquia autoritária.

Em resumo, o partido bolchevique teria recuperado tudo o que antes atacava: apoiava a autonomia, passou a exigir a centralização; apoiava as greves, passou a exigir a disciplina e produtividade do trabalho; amotinava as massas contra a burguesia, passou a defender o capitalismo de Estado e a contratar com bons vencimentos técnicos e administradores burgueses; protestava contra a “defesa da pátria”, passou a proclamá-la “dever sagrado”; etc.

Justificar esta “usurpação do poder operário em proveito do Estado” com as condições extraordinárias criadas pela guerra civil e pela intervenção estrangeira seria uma má desculpa dos marxistas, visto que ela começou logo após a tomada do poder.

A ditadura do proletariado ter-se-ia revelado como um aparelho de coerção estatal ainda mais rígido do que o anterior, como profetizara Bakunine:

“À sombra da ditadura do proletariado, o governo não se contentará em governar e administrar as massas politicamente, como fazem todos os governos actuais, mas administrá-las-á também economicamente, concentrando nas suas mãos a produção e a justa partilha da riqueza”.

O debate sobre o Estado

Esta soma de acusações, que os libertários acham esmagadora, cai pela base quando se lhes pergunta como poderia ser feita, na Rússia de 17, a passagem directa à autogestão dos produtores e às relações “livres e naturais” entre comunas numa base política. Dizer-se que a forma de chegar algum dia à autogestão comunista e à supressão do Estado é começar por pô-la em prática imediatamente após o derrubamento da burguesia pode parecer muito extremista mas não significa rigorosamente nada. É erigir o final em tarefa imediata através da cómoda recusa a tomar conhecimento da luta de classes real.

Só quem pairasse nas nuvens poderia pensar que a livre associação dos produtores, sem qualquer forma de coerção ou de exploração, pudesse surgir antes de se chegar à liquidação da burguesia como classe, à abundância de bens sociais e à acumulação de uma longa experiência de organização democrática dos trabalhadores.

Defendendo como os anarquistas uma sociedade sem Estado, os bolcheviques mostravam a utopia de se julgar possível a supressão deste da noite para o dia. Derrubado o poder burguês, seria inevitável um poder de transição que assegurasse a ditadura do proletariado sobre a burguesia e o estabelecimento de novas relações socialistas. Criar um Estado encarregado de destruir o Estado nada tinha de absurdo, como pretendiam os anarquistas, desde que esse Estado se baseasse em órgãos de democracia operária que promovessem a gradual ampliação do autogoverno e o gradual desaparecimento dos órgãos centrais. Seria um Estado em “processo de extinção”, na expressão de Marx.

Os bolcheviques não pretendiam usurpar a democracia operária porque sabiam que ela era o alicerce vital para a passagem ao socialismo. Lenine nos dias da revolução:

“O aparelho dos sovietes permitirá à massa começar imediatamente a aprender a gerir o Estado e a organizar a produção à escala de todo o país”; “Todos os cidadãos sem excepção devem participar no exercício da justiça, na gestão do país, na administração do Estado”; “O socialismo não pode ser instaurado por uma minoria, pelo partido”; “o Estado socialista será constituído por uma rede de comunas de produção e consumo”; “Quanto mais completa for a democracia, mais próximo o momento em que o Estado se tornará supérfluo”; etc., etc.

A questão estava em combinar o poder central com o poder local dos conselhos e comunas, de forma a avançar na ampliação das atribuições destes. Para já, um Estado dotado de poder centralizado e baseado nos conselhos era a salvação da revolução. Por isto mesmo, o anarquista Voline se lamentava que os operários, simpatizando com a sua propaganda contra o Estado, não deixavam de seguir os bolcheviques “autoritários”; de imediato, só sabiam que era preciso um poder revolucionário forte para derrubar o poder burguês, e que os bolcheviques eram os únicos capazes de o instaurar.

Porque falhou então este projecto? Por um quadro social que não estava ao alcance de nenhuma força política superar. Uma dúzia de semanas após a euforia da tomada do poder e da esperança na revolução mundial, começou a hora da verdade da revolução. Com a ofensiva alemã, os levantamentos reaccionários a propagar-se em cadeia, o caos, a fome, desvaneciam-se em fumo os sonhos de uma República do trabalho, amplamente democrática e descentralizada. Para sobreviver, impunha-se uma férrea centralização, um exército à altura de se bater com os invasores, a disciplina do trabalho, o terror contra os opositores. Os que condenam em nome dos princípios este estado de emergência e acusam Lenine de jacobinismo deverão explicar que outro caminho teria permitido evitar a vitória da contra-revolução.

Os partidos, inimigos dos conselhos?

Réu principal neste julgamento é o partido comunista. Para os libertários, a revolução russa teria confirmado a existência de um antagonismo entre conselhos, comités, comunas, sindicatos, “representantes genuínos dos interesses dos trabalhadores”, “que emanam directamente dos colectivos locais e podem ser por eles controlados”, dum lado, e do outro, os partidos políticos, “exteriores à classe operária”, “interessados na continuação do Estado”. Na fórmula lapidar de Ciliga, as massas operárias, apoiadas apenas em formas de organização primárias, de democracia directa, “chegam instintivamente à sua libertação total, atingem integralmente os seus fins”; não precisavam dos partidos para nada.

Mas a revolução não só não confirmou estas crenças como demonstrou o seu analfabetismo político. Os órgãos proletários de base, células vitais da democracia do trabalho e germes do futuro autogoverno, não substituíam a função dos partidos políticos. Mais: eram forçados a optar entre as linhas defendidas por estes.

A experiência de Fevereiro a Outubro mostrou, sem margem para dúvida, que a orientação dos conselhos, comités de fábrica e sindicatos dependia da corrente política que neles tinha maioria. A tomada do poder pelo II Congresso dos sovietes nunca se teria dado sem a propaganda e a acção prática dos bolcheviques. Entregues a si próprios, os sovietes ficavam à mercê das manipulações dos partidos da burguesia. Ainda em Maio, o soviete de Petrogrado, a alma da revolução, estava disposto a formar governo com a burguesia, apesar de esta continuar envolvida na guerra imperialista; se os bolcheviques não tivessem ganho a maioria, pode-se perguntar se teria chegado a haver revolução. Quanto aos sindicatos, considerados pelos anarco-sindicalistas como únicos representantes legítimos dos interesses operários pelo seu carácter “apolítico”, eram em muitos casos utilizados pelos mencheviques para combater o avanço da revolução, antes e depois de Outubro.

Na realidade, os conselhos e comités, “emanações autênticas da vontade operária”, em nenhuma ocasião deixaram de se guiar pela política de um ou outro partido, pela simples razão de que as opções em jogo excediam em muito a capacidade dos órgãos de poder local; só os partidos formulavam respostas estratégicas globais para a situação. O poder do conselho de fábrica acabava à porta da fábrica.

A tese da autonomia dos conselhos desperta a simpatia dos trabalhadores cansados do “divisionismo” trazido pelas disputas partidárias; mas este bom-senso popular ignora que os partidos se limitam a reflectir as divisões provocadas pela luta de classes. Qual foi o mal, durante a nossa indecisa crise de poder, em 1974-75? Foi a disputa dos órgãos populares de base pelos partidos e grupos políticos, como ainda hoje protestam os puristas “apartidários”, ou foi a falta de fôlego revolucionário do movimento, que não lhe permitiu aspirar à tomada do poder e dotar-se dum partido com a estatura do partido bolchevique?

Condenar como uma “intromissão dos políticos” o facto de os diversos partidos disputarem a influência nos conselhos revela ideias muito estranhas acerca da democracia operária. Se os conselhos não escolherem o seu caminho mediante um livre confronto das propostas partidárias, feitas às claras, a alternativa será escolherem-no às cegas, sob a influência de um clima emocional criado por demagogos “apartidários”.

A solução federativa

Argumentam os libertários que os conselhos não significariam necessariamente a dispersão, a incapacidade duma acção coerente. Poderiam, se os “políticos” lho tivessem permitido, actuar em coordenação, traçar estratégias globais, unir-se numa confederação sem necessidade de os partidos se imiscuírem nos seus assuntos.

Se a concepção libertária da revolução social não tivesse sido reprimida pela “tendência política, autoritária, estatal e centralista”, poderia ter-se encetado a colaboração federativa das organizações económicas e sociais dos trabalhadores, visto que o decisivo não era apoderar-se do poder de Estado mas sim apoderar-se da economia e organizá-la em bases novas (Voline).

Teoricamente, isto significa que uma federação livre de sovietes, comunas, cooperativas teria sido possível na Rússia se a ordem proletária tivesse subjugado a burguesia, se existisse entre os camponeses uma corrente largamente maioritária a favor do socialismo, se a economia funcionasse com um mínimo de normalidade… Mas nada disso existia. Havia um país camponês, atrasado, em desagregação ao fim de três anos de guerra imperialista, com as fábricas paradas, o caos nos transportes, as matérias-primas e combustíveis esgotados, a fome generalizada.

Na situação que a Rússia atravessava, e admitindo por absurdo que uma tal federação chegasse a formar-se, ela teria que ser dotada de extensos poderes para a luta contra o inimigo, sob pena de ser aniquilada. Teria que tomar medidas de excepção para assegurar o abastecimento, debruçar-se sobre todos os problemas políticos em jogo, avaliar a força das diversas classes em presença, decidir de eventuais alianças, unir-se em torno de chefes prestigiados, etc. Isto é, acabaria por ser um partido com o nome de “comuna antipartido”. Com a desvantagem de ser um partido não assumido, prestando-se a toda a espécie de demagogias.

Defender o papel dos partidos significaria, porém, segundo os libertários, defender o “substitucionismo”, visto que as políticas partidárias escapam a todo o controlo da fábrica.

“Na qualidade de instituição, o partido escapava totalmente ao controlo da classe operária russa”. “As forças vivas, reais, das quais provinha o poder do partido bolchevique, não podiam controlá-lo”. (Brinton).

Também não é verdade. Brinton esquece que as eleições de delegados dos operários e soldados, em livres e democráticas assembleias, eram a forma de os trabalhadores se pronunciarem acerca das posições políticas dos diversos partidos e portanto, de os controlarem através da força relativa que lhes davam. Esta atribuição da força de cada partido no seio dos sovietes, em período de agitação revolucionária, nada tem de comum com as votações parlamentares, realizadas em período de submissão das massas à ordem burguesa.

Foi assim, graças ao controlo das “forças vivas do proletariado”, que os mencheviques, anteriormente maioritários, passaram a minoria, que o partido socialista-revolucionário se cindiu, ao passo que o partido bolchevique, pequeno em Fevereiro, se tornou maioritário no II Congresso dos Sovietes. Foi também por acção deste controlo que os operários atribuíram sempre uma escassa representação aos anarquistas nos conselhos. Isto deveria ser simples de entender a quem tanto se preocupa com a democracia operária.

A meta: o partido único

Um facto permanece contudo incontestável e é suficiente para os libertários: sob o governo do partido bolchevique, não só os conselhos perderam toda a autonomia e existência própria como os restantes partidos vieram a ser ilegalizados e destruídos. A classe operária acabou por perder efectivamente todo o controlo sobre o partido que se proclamava a sua vanguarda. Em menos de duas décadas, o poder do partido único produzia as aberrações do “grande líder” e do grande terror.

Resta demonstrar se essa evolução foi determinada pela “ambição totalitária” dos bolcheviques ou se não terá sido, pelo contrário, o fracasso inevitável da revolução, movimento adiantado sobre a sua época, que arrastou consigo o partido bolchevique para a degenerescência.

Afirmar que toda a política bolchevique tendia ao regime totalitário é uma acusação aceite como indiscutível à força de repetida, mas que a prática anterior do partido desmente. O próprio decorrer dos acontecimentos mostra como os partidos, o bolchevique como todos os outros, foram transformados pelo terramoto social.

Se o proletariado dispusesse de força suficiente para impor a toda a sociedade a sua reorganização social, esse peso social ter-se-ia reflectido no comportamento das massas camponesas, na atitude dos partidos perante os sovietes, nas suas relações mútuas. Nada teria impedido que o governo revolucionário se tivesse mantido como uma coligação dos dois partidos maioritários nos sovietes (bolcheviques e socialistas-revolucionários de esquerda), que outros partidos que acatassem a ordem soviética se mantivessem em actividade na oposição, que novos partidos surgissem, que a composição do governo se modificasse… O panorama partidário teria sido totalmente diferente se houvesse uma base social forte para o novo poder.

E é isto que parece difícil de compreender aos que traduzem “ditadura do proletariado” por governo totalitário de partido único. Essa ideia, alimentada durante décadas pelos pseudoleninistas da URSS e seus seguidores, reflectia a sua incapacidade para conceber uma sociedade não-burguesa. Baseados na sua vivência de aparatchiks tutores dos trabalhadores, não sabem imaginar o que seja a democracia proletária. Por isso, quando, nas últimas décadas, se viram acossados com acusações ao seu despotismo, curaram o mal pela raiz, declarando abolida a ditadura do proletariado.

Para os marxistas não sofre dúvida que, se a ditadura de classe da burguesia, baseada na extorsão, é compatível com formas de democracia política, a ditadura de classe do proletariado, uma vez consolidada, proporcionará uma democracia política muito mais ampla. Como escreveu Lenine,

“uma expansão até hoje desconhecida do princípio democrático em benefício das classes oprimidas pelo capitalismo”, a possibilidade de “desfrutar de direitos e liberdades como nunca houve, nem por aproximação, nas repúblicas burguesas mais democráticas”.

Democracia organizada, em qualquer caso, alheia aos esquemas anti-estatistas libertários, para os quais toda a submissão a um poder central é uma opressão intolerável.

Os argumentos anarquistas contra o partido, pelo exercício da vontade espontânea da classe, não podem ser discutidos seriamente; são meros desabafos dos elementos que julgam poder situar-se à margem da disputa entre os dois campos antagónicos, refugiados na sua utopia de “não-poder”.

Com um vício de raciocínio que lhes é típico, os anarquistas são capazes de divisar a luta de classes ao nível local mas não ao nível global; não podem compreender que os partidos não são um produto das “ambições de mando de aspirantes a chefes” mas são segregados pela luta de classes, como forma superior de organização, pois só por seu intermédio tomam as classes plena consciência dos seus objectivos próprios e adquirem capacidade de combate. Pregar aos operários a não-organização em partido num universo dominado pelos partidos da burguesia é uma daquelas saídas “ultra-revolucionárias” que só podem provocar regozijo aos detentores do poder.

O exército contra o povo em armas

O contraste entre a sonhada República do Trabalho e as duras realidades manifestou-se com igual violência na questão militar. Em vez de milícias livres do povo em armas sob o controlo dos conselhos, para a manutenção da ordem proletária, impôs-se de imediato a formação de um Exército Vermelho centralizado, para a defesa da República. Primeiro ainda na base do voluntariado, com assembleias de soldados e uma grande democracia interna, sem distinções de patentes nem privilégios para as chefias. Mas ao fim de pouco tempo, perante a sua provada ineficácia para fazer frente ao inimigo, transformado em exército clássico, capaz de concentrar grandes unidades com uma ordem rigorosa, o que acarretou a disciplina rígida, a recuperação de oficiais burgueses, a pena de morte na frente de combate, etc. Era uma necessidade imperiosa mas não deixava de ser a negação gritante dos sonhos da revolução.

A polémica exasperada que se travou no partido e fora dele a propósito da cedência ao ultimato alemão em Brest reflectia este dilema. Lenine contrapunha aos adversários da paz, que clamavam contra a “desonra” de negociar com o alto comando alemão e abandonar à sua ocupação uma parte da Rússia, um simples facto:

“Não temos exército, não nos podemos defender. Querer fazer uma guerra revolucionária nestas condições é embebedarmo-nos com frases revolucionárias e cairmos na armadilha montada pela burguesia”.

Para os anarquistas e os comunistas de “esquerda” então havia contudo alternativa; o poder dos sovietes deveria fazer a guerra de uma forma nova: não dar luta, deixar os alemães avançar e fazer-lhes uma guerra de guerrilha, a verdadeira guerra do povo, afogando-os na extensão da Rússia e conquistando os soldados alemães para o campo da revolução social.

Na base da divergência estava uma vez mais a avaliação que se fazia da base social do novo regime. Numa República dos trabalhadores minimamente consolidada, em que vigorasse a ordem dos produtores sob a direcção dos seus conselhos, a guerra popular de guerrilhas poderia ser a resposta adequada à invasão imperialista. Mas a realidade era bem diferente. O regime soviético, apenas acabado de proclamar, não vigorava efectivamente na maior parte do país; mal se começava a instaurar uma nova ordem social. Tudo levava a temer que a ocupação dos centros vitais do país pelos exércitos alemães provocasse a derrocada do poder soviético e a vitória da contra-revolução. A paz de Brest-Litovsk permitiu evitá-lo.

A centralização militar cada vez mais rigorosa durante a guerra civil levou o Exército Vermelho a tentar absorver ou suprimir os bandos armados que campeavam por todo o país. Um deles foi a guerrilha de Makhno, que levantava os camponeses do sul da Ucrânia contra a pilhagem dos exércitos alemães e a reacção feroz dos latifundiários. Goradas as propostas pessoais de Lenine para a integração no Exército Vermelho da força de Makhno, a pretensão deste de manter independência na guerra sem quartel que opunha os bolcheviques aos generais brancos e aos nacionalistas burgueses conduziu à destruição do seu exército local.

Para os libertários, a gesta de Makhno (que, diga-se de passagem, não descuidava uma férrea disciplina no seu exército apesar das suas convicções libertárias e não hesitou em fuzilar bolcheviques cuja única “culpa” era fazerem propaganda nas fileiras anarquistas) tornou-se desde então a mais gritante contraprova da “impostura” bolchevique e do seu “brutal estatismo”. Na realidade, ela foi mais um exemplo da recusa dos libertários a tomar conhecimento da opção que a vida punha a todas as forças na Rússia — ou com os vermelhos ou com os brancos. Desafiando uns e outros com a bandeira negra do anarquismo, Makhno foi o intérprete dos camponeses que não queriam o retorno dos latifundiários mas também não queriam ouvir falar de submissão à ditadura do proletariado. Não havia contudo lugar na revolução para o sonho das comunas camponesas autónomas de todo o poder central.

A agonia da revolução

Com isto, não se pode negar — e foi o que fizeram durante decénios os seguidores-deturpadores do leninismo — que o poder revolucionário saiu totalmente desfigurado das medidas de emergência para o salvaguardar.

Disciplina rigorosa nas fábricas, elevação da produtividade com recurso ao trabalho à peça e ao taylorismo, contratação de administradores e técnicos burgueses com altos salários, emancipação dos directores do controlo dos trabalhadores, absorção dos comités de fábrica pela burocracia sindical estatizada, criação dum aparelho burocrático de controlo e planificação, “grupos móveis de controladores”, campanha contra a brandura dos tribunais populares e para que inculcassem a disciplina do trabalho, antigos oficiais czaristas à frente dos soldados, polícia política dotada de enormes poderes…

Não se pode atenuar a gravidade das directivas então expedidas por Lenine. Defendendo “a ordem rigorosa”, com a “precisão dum relógio”, que só pode ser “criada pela vontade única do dirigente”, Lenine queixava-se de que

“é ainda muito insuficiente a submissão durante o trabalho, submissão absoluta, às ordens pessoais dos dirigentes soviéticos, ditadores eleitos ou nomeados pelas instituições soviéticas, investidos de plenos poderes ditatoriais (como especifica, por exemplo, o decreto sobre os caminhos de ferro)” (27, 330, sublinhado nosso).

Isto obviamente não só não tinha nada a ver com socialismo como destruía todos os germes de democracia operária e abria a porta ao posterior despotismo dos aparatchiks e da nomenklatura. Embelezar este regime, como se fez mais tarde, chamando-lhe a “edificação vitoriosa do socialismo” equivalia a renegar o marxismo. Lenine não o embelezava mas acreditava que as distorções ainda fossem recuperáveis. Fosse como fosse, quando “os piolhos ameaçavam comer a revolução”, todos os desvios eram admissíveis para evitar o afundamento. O Estado dos operários e camponeses saberia servir­se do capitalismo de Estado para organizar a produção e preparar a passagem ao socialismo.

“Ainda se está para saber quem utilizará a quem”, respondiam amargamente os comunistas de “esquerda”.

Arma de dois gumes

“A continuação da anarquia inerente à pequena propriedade é o mais grave dos perigos porque nos conduzirá à falência; mesmo se tivermos que pagar um tributo mais pesado ao capitalismo de Estado, isso não nos prejudicará em nada; servirá pelo contrário para nos conduzir ao socialismo pelo caminho mais seguro. Não devemos poupar os procedimentos ditatoriais (subl. por Lenine) para o implantar na Rússia, sem recuar perante o emprego de métodos bárbaros contra a barbárie”. “Virem aterrorizar-nos com os males do capitalismo de Estado equivale a puxar para trás, para o capitalismo pequeno-burguês. Não há nada que temer do capitalismo de Estado porque o poder dos operários e dos pobres está assegurado”.

Ora, precisamente, o poder dos operários e dos pobres não estava assegurado e o capitalismo de Estado acabou com o pouco que havia.

Durante uma das suas polémicas com os comunistas de “esquerda”, em 1918, Lenine exclamava:

“Se fosse verdade, como eles dizem, que a introdução do capitalismo de Estado irá pôr em causa a iniciativa e organização do proletariado, a nossa revolução estaria à beira da falência; mas é falso”.

Era contudo verdade; Lenine recusava admiti-lo, talvez porque visse que qualquer outra alternativa prometia um fim mais rápido.

O capitalismo de Estado foi a arma de dois gumes que impediu a desintegração por efeito da anarquia pequeno-burguesa mas que conduziu à gradual restauração da burguesia através do partido-Estado. No ano seguinte, já Lenine reconhecia melancolicamente que

“os sovietes não passam de órgãos de governo para os trabalhadores”.

Pela mesma altura Trotsky constatava que

“as massas foram pouco a pouco eliminadas do poder”.

Os bolcheviques cumpriram o seu dever de partido revolucionário mas não puderam (nem ninguém podia) superar a “desproporção entre o económico e o político” (Lenine), o desfasamento entre a capacidade política do proletariado para tomar o poder e o tremendo atraso económico, que não permitia mais do que a solução de emergência do capitalismo de Estado.

Para a mentalidade anarquista pode parecer um contra-senso que a revolução dos explorados tenha capacidade para derrubar a burguesia mas não possa, apesar disso, reorganizar a sociedade. Foi contudo o que se verificou.

A pequena burguesia contra a revolução

É realmente fácil dizer hoje que Lenine delirava ao julgar possível pôr o capitalismo de Estado ao serviço da ditadura do proletariado. Mas essa era na época, com todos os seus tremendos riscos, a única hipótese de ganhar tempo sem se deixar derrubar, na expectativa de uma revolução europeia… que não chegou.

Muitas das condenações posteriores das opções de Lenine e dos bolcheviques só são possíveis porque se abstrai do confronto de classes em curso na Rússia. Após a instauração do poder soviético, uma classe operária diminuta encontrou-se face a uma vaga pequeno-burguesa (camponesa, sobretudo), tanto mais incontrolável quanto se via subitamente liberta, graças à revolução, da pressão das classes superiores. Os camponeses tinham marchado com os operários para obter a terra; a partir daí, queriam desfrutá-la.

E isto traçou o destino da revolução. O proletariado não tinha força para exercer a sua ditadura de classe sobre a massa pequeno-burguesa cuja única filosofia era:

“Já expropriámos os ricos, agora deixem cada um governar-se e não nos venham com ordens, disciplina, programas a longo prazo”.

Era a psicologia do pequeno proprietário, cheio de ódio às classes superiores e ao Estado mas nada interessado em sacrifícios para a construção de uma nova ordem social.

Assim, o proletariado que derrubou a grande burguesia e o seu Estado veio a naufragar perante o capitalismo pequeno-burguês. A agonia da revolução jogou-se neste conflito irreconciliável de interesses entre o proletário, apontado para o socialismo mas incapaz de o instaurar, e o pequeno proprietário, interessado na liberdade do mercado mas impotente para a voltar a impor. Era o estrangulamento próprio de um país de capitalismo incipiente, que se repetiria mais tarde na China, Vietname, etc., com um cortejo semelhante de “grandes líderes”, partidos-guias e poder popular castrado.

Foi nesta ratoeira insolúvel que o partido bolchevique se desfez. Fazendo guerra à pequena burguesia durante o “comunismo de guerra”, tentando depois, a partir da crise de Cronstadt, neutralizá-la pelas concessões da NEP, passando mais tarde aos tratamentos de choque stalinianos da “liquidação dos kulaks como classe” — tentou-se absorver, controlar, suprimir a pequena economia mercantil numa sociedade que não podia dispensá-la porque não chegara ainda à grande produção capitalista.

Se alguns contributos o anarquismo deu para entender a revolução russa foram sobretudo pela negativa. Que o anarquismo ainda hoje idealize a resistência do pequeno produtor à mobilização contra o inimigo de classe e não consiga divisar na guerrilha de Makhno ou na revolta de Cronstadt o impulso da pequena burguesia contra a revolução, diz-nos bastante sobre o alinhamento profundo de classe do seu anticapitalismo libertário.


Inclusão