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Antes de me referir às acusações que nos são feitas, quero relatar como decorreu a instrução do processo que serve de base a este julgamento, para se ajuizar da sua validade.
Fui preso em 30 de Janeiro de 1966 numa rua de Lisboa, mas só dei entrada na cadeia de Caxias no dia 15 de Março. Isto significa que passei um mês e meio fechado num gabinete da sede da PIDE, ou seja, durante a maior parte da instrução do processo. Fiz dois períodos de 7 e 8 dias de privação total de sono, só intervalados por algumas horas de repouso. Os agentes revezavam-se para não me deixar dormir e obrigavam-me a andar ou a correr continuamente em volta do gabinete, à força de pancada. Quando caía, exausto, faziam-me levantar à cacetada. Nos últimos dias deste suplício, quando já não me sustinha de pé, com os pés e as pernas inchadas, sofrendo de alucinações, esbarrando contra as paredes, os agentes seguravam-me por debaixo dos braços e passeavam-me na sala, para mesmo assim não poder dormir. Como é bem conhecido, a privação do sono durante centenas de horas pede conduzir à loucura e até à morte.
Escusado será dizer que fui espancado brutalmente: fui espancado pelo inspector José Gonçalves e um grupo de agentes logo que entrei na sede da PIDE, provocando-me várias equimoses; fui espancado, três dias depois, pelo inspector Mortágua, durante mais de meia hora, a soco e pontapé; fui espancado várias vezes pelo agente Inácio Afonso e por outros cujo nome desconheço; fui repetidamente ameaçado de morte, tendo o agente Inácio Afonso feito uma simulação de fuzilamento, encostando-me uma pistola à cabeça; de outra vez fez-me despir e, exibindo uma faca de mato, dizia que me ia pôr os intestinos à mostra, como tinha feito em Angola aos guerrilheiros do movimento de libertação.
Passados estes primeiros 16 dias, já me deixaram dormir e não voltei a ser espancado, mas tive que ficar mais um mês na sede da PIDE, até desaparecerem as equimoses que tinha no rosto e pelo corpo. Isto pode dar uma ideia dos métodos utilizados, que, aliás, são os habituais da PIDE. Foi nestas condições que decifrei apontamentos que me haviam sido apanhados nos bolsos e que pus a minha assinatura em autos já feitos que a policia me apresentou, dizendo-me: "Se queres ir dormir, assina."
E como, passado o período de privação do sono e de espancamentos, recusei fazer novas declarações e assinar incondicionalmente os autos que me eram apresentados, a PIDE forjou várias folhas de "declarações", falsificou a minha rubrica no cimo das páginas e intercalou-as num auto que eu assinara. Foi só em Junho, quando o meu advogado me levou a cópia completa dos autos, que tomei conhecimento de declarações que me eram atribuídas e que não fizera nem assinara. O meu advogado requereu na altura um exame de letra para comprovar a falsificação e o parecer dos peritos encontra-se junto do processo.
Um processo baseado em declarações arrancadas pela violência e em autos forjados não tem qualquer validade e classifica suficientemente a polícia que o instruiu e o Estado fascista português. Repudio-o inteiramente.
E estou à vontade para o fazer porque nem pretendo fugir às responsabilidades pela minha actividade revolucionária, responsabilidades que assumo integralmente, como exporei a seguir, nem procuro diminuir perante os meus camaradas a gravidade das declarações que prestei. Como comunista, estava obrigado a não fazer quaisquer declarações aos inimigos da classe operária, fossem quais fossem as torturas empregadas, a exemplo do meu camarada João Pulido Valente. Foi preciso passar por esta experiência para verificar que ainda não tinha verdadeira têmpera de comunista. Mas se a PIDE esperava aniquilar-me política e moralmente, enganou-se. Tanto os meus camaradas como os meus inimigos podem estar certos de que me esforçarei por merecer o título de militante comunista.
Vou referir-me às acusações principais que constam do processo, integrando-as na nossa linha geral e nas circunstâncias em que surgimos, de modo a caracterizar exactamente o que são e o que pretendem os comunistas portugueses.
O despacho da pronúncia afirma que surgimos como urna dissidência do PCP por defendermos métodos de actuação mais eficazes, segundo uma linha pró-chinesa, e que o nosso objectivo seria constituir um novo Partido Comunista, desenvolvendo com esse fim diversas actividades clandestinas. Isto é exacto, mas só em parte, porque nem nós somos uma dissidência do partido de Álvaro Cunhal, nem as divergências que dele nos separam se limitam a métodos de actuação. Nos anos de 1961-62, o desenvolvimento da revolução mundial colocou o Partido Comunista em Portugal perante a necessidade de fazer urna escolha em três questões fundamentais: em primeiro lugar, deu-se no movimento comunista internacional o rompimento entre a ala revolucionária e a ala reformista; era preciso decidir se o Partido ia alinhar com a corrente marxista-leninista guiada pelo pensamento de Mao Tsé-tung, o dirigente do proletariado mundial e dos povos oprimidos, ou se, pelo contrário, ia alinhar com a corrente revisionista, concretizada na restauração do capitalismo na URSS e na paralisação da revolução no mundo inteiro; em segundo lugar, iniciou-se a guerra contra os movimentos de libertação nacional nas colónias portuguesas e era preciso decidir se o Partido ia trabalhar pela derrota do governo nessa guerra ou se ia limitar-se a fazer a sua condenação moral; em terceiro lugar, finalmente, o movimento popular antifascista entrara então numa fase de grandes manifestações e era preciso decidir se o Partido ia conduzir os trabalhadores a erguerem-se contra a repressão e preparar o desencadeamento da insurreição armada, ou se ia conter o movimento antifascista nos limites legais e pacíficos.
Nunca desde a sua fundação enfrentara o Partido uma prova política de tal envergadura. Como se sabe, a direcção chefiada por Álvaro Cunhal escolheu nestas três questões vitais a segunda via, a via revisionista, pacifista, reformista, provocando uma grande crise no interior do Partido. Esta traição aos interesses revolucionários do proletariado português não foi mais, afinal, do que o coroamento da política oportunista de uma direcção que há muito perdera a confiança nas massas trabalhadoras e na revolução e vinha amarrando a classe operária sob a canga da unidade com a burguesia liberal.
Depois disto, os militantes que se mantinham fiéis ao marxismo-leninismo e às tradições revolucionárias do Partido Comunista Português não tinham outra alternativa senão romper com o grupo revisionista e encetar a reconstituição do Partido. O Comité Marxista-Leninista Português, criado em 1964 por um grupo de militantes entre os quais nos encontrámos, tem justamente por missão preparar a reconstituição do Partido Comunista em Portugal. Como era de esperar, sob o efeito da campanha revisionista contra nós lançada, houve quem não compreendesse a justeza da nossa atitude e nos acusasse de estarmos a enfraquecer o Partido e a luta contra o governo fascista. Mas os acontecimentos começaram já a dar-nos razão e isso tomar-se-á cada vez mais evidente para todos os autênticos revolucionários. Sem um Partido efectivamente revolucionário, marxista-leninista, não há vitória possível para o movimento popular em Portugal, mas apenas derrotas e logros. Os comunistas não podem admitir qualquer compromisso com o revisionismo, agente da burguesia entre o proletariado, e têm como primeiro dever limpar as fileiras do Partido, ainda que isso produza dificuldades temporárias. Foi Staline quem disse com razão:
"O Partido toma-se mais forte e não mais fraco de cada vez que se depura dos oportunistas."
Interessa acentuar, portanto, que nem pretendemos criar um novo partido, nem somos uma nova facção na cena política portuguesa. Somos comunistas simplesmente. Estamos na continuação e no desenvolvimento do movimento comunista em Portugal. Somos os continuadores da orientação de José Gregório, Militão Ribeiro e dos milhares de militantes comunistas que construíram o Partido e conduziram o proletariado e o povo durante 40 anos em acções como a greve insurreccional de 1934, a grande greve de Julho de 1943 e as manifestações de 1958, 1961 e 1962.
E estamos certos que a nossa acção, sejam quais forem os seus insucessos temporários, acabará por ser coroada pelo reaparecimento do Partido Comunista de Portugal, porque é um facto histórico constatado em todo o mundo que o proletariado produz o seu partido comunista para o guiar na revolução, na destruição do capitalismo e na construção do socialismo. Se o Partido é desmantelado pela polícia, volta a reconstruir-se — e o nosso Partido já foi reconstruído por três vezes, em 1929, em 1941 e em 1950; se o Partido é infiltrado por políticos revisionistas que o fazem degenerar num partido "ordeiro", num partido burguês para operários, como lhe chamava Lenine, volta a reorganizar-se — e é o que está acontecendo desta vez. Alguém aparece sempre para empunhar a bandeira vermelha do marxismo-leninismo.
Para prepararmos a reconstituição do Partido, actuámos efectivamente na clandestinidade, tal como nos acusam. Recorremos a falsos documentos de identificação, usámos pseudónimos, entrámos e saímos clandestinamente do país, estabelecemos contactos, fizemos reuniões, constituímos comités, redigimos, imprimimos e difundimos propaganda clandestina. Tudo isto faz parte da actividade diária dos comunistas, que têm por objectivo destruir a ordem social existente e não esperam portanto qualquer tolerância das autoridades burguesas. A nossa clandestinidade, não a negamos, porque é parte integrante da nossa acção revolucionária.
E não nos causa receio, mesmo que o preço a pagar em prisões, perseguições e assassinatos seja mais pesado que o dos últimos 40 anos, porque é através dos sacrifícios da luta clandestina que o Partido e a revolução abrem o seu caminho. Nos últimos 6 anos, desde que foi fundado o Comité Marxista-Leninista Português, já passaram por este tribunal 50 réus que receberam mais de 100 anos em penas de prisão, além das "medidas de segurança". Nos próximos anos passarão talvez muitos mais e as condenações poderão subir a 200, 300 ou 500 anos, mas isso não evitará que muito em breve o Partido Comunista de Portugal seja uma realidade. No momento em que somos julgados, os trabalhadores de todo o mundo festejam o centenário do nascimento do grande Lenine, o genial continuador de Marx e condutor da revolução russa: estamos certos de que isso inspirará os comunistas portugueses a novos progressos na reconstrução do Partido, fazendo-o penetrar na classe operária e tomando a cabeça das suas reivindicações. O proletariado português voltará a ter à sua frente o seu estado-maior revolucionário, lançará ao caixote do lixo da história os revisionistas, social-democratas e outros agentes da burguesia e do imperialismo e seguirá o caminho da revolução.
O despacho da pronúncia afirma que visitei a China e, em contacto com os dirigentes do Partido Comunista da China, tracei a orientação do CMLP e da FAP. Isto levanta todo o problema da posição internacional dos comunistas portugueses que é preciso pôr a claro.
Antes de mais, é preciso dizer que estive de facto na China, em missão do CMLP (tal como estive na Albânia), e que tive de facto conversações com dirigentes do Partido Comunista da China. Mas não tracei nenhuma orientação "em contacto" com esses dirigentes, não recebi quaisquer directivas para a acção dos comunistas portugueses, como o despacho da pronúncia dá a entender. Os comunistas de todos os países auxiliam-se mutuamente sem restrições, mas não têm partidos chefes e partidos subordinados nem promovem revoluções telecomandadas. Convém não confundir os comunistas com a CIA. Somos o partido político do proletariado português e sabemos que a nossa tarefa é preparar a classe operária para que ela própria faça a revolução. O socialismo, ninguém o dará ao povo português, terá de ser ele a conquistá-lo. Mas isto não responde à questão: qual é a nossa atitude face à China? A nossa atitude é de apoio total ao povo chinês e ao governo chinês, no campo ideológico, político e militar. A revolução chinesa, dirigida por Mao Tsé-tung, libertou um quarto da humanidade, é a vanguarda da revolução mundial e o exemplo daquilo que os trabalhadores de todo o mundo têm para realizar. E a grande revolução cultural proletária levada a cabo nos últimos anos foi um novo grande salto em frente que libertou novas energias revolucionárias nas massas e acelera a construção do socialismo em todas as frentes.
Apoiar a China ou atacar a China — tal é hoje a linha de demarcação que em todos os países separa os comunistas e progressistas dos reaccionários, dos imperialistas e seus lacaios. É da China que sopra o vento revolucionário que percorre a Ásia, África e América Latina, levantando as massas oprimidas pelo imperialismo numa sucessão de insurreições e guerras revolucionárias de força irreprimível. Como um rastilho, o pensamento de Mao Tsé-tung transpõe todas as barreiras, chega a todos os cantos do mundo e desperta os oprimidos para a luta contra o imperialismo, contra o capital, por um mundo novo de trabalhadores livres e iguais. A fase de recuo e desorganização do movimento de libertação nacional, provocada pela irrupção do revisionismo moderno, está a chegar ao fim e agora assistimos ao início de uma nova onda revolucionária que arrancará novos milhões de seres humanos à exploração do capital e estreitará mais ainda os limites do campo imperialista. Nada pode deter esta força que transforma as regiões coloniais e neocoloniais no centro das tempestades revolucionárias da nossa época. Nós chamamos a classe operária portuguesa a enfileirar ao lado de todos os povos oprimidos na luta contra o imperialismo, a reconhecer nele o inimigo comum de toda a humanidade trabalhadora, a origem da exploração, da opressão e da guerra. O imperialismo americano é actualmente o exemplo vivo daquilo que o capitalismo tem para dar aos povos: a guerra de agressão ao Vietname alastra neste momento ao Camboja, ao Laos, à Tailândia, à Malásia, num esforço desesperado para conter o movimento popular libertador; na Palestina, na Coreia, na América Latina, em África, o governo americano organiza provocações armadas, golpes de Estado fascistas, massacres — tudo para assegurar a insaciável exploração das matérias-primas e dos mercados em beneficio dos trusts. Nós sempre temos dito, contra as estúpidas lendas postas a correr pelos revisionistas, que a natureza do imperialismo é imutável. Os EUA são os sucessores do nazismo, a expressão máxima do apodrecimento capitalista, e só se forem rechaçados por toda a parte com a mesma decisão de que dá provas o povo do Vietname serão impedidos de desencadear uma nova guerra mundial.
E a sua capacidade agressiva reforça-se ainda mais com a evolução desastrosa da URSS, que fora durante decénios o baluarte do socialismo e que, depois da guerra mundial, devido à formação de uma camada privilegiada ao abrigo da vigilância das massas, entrou na via da restauração do capitalismo, liquidando uma a uma as conquistas do povo soviético. A URSS actua já hoje como uma potência imperialista, concorre com os EUA na partilha do mundo em esferas de influência, ao mesmo tempo que se entende com eles para sufocar os movimentos revolucionários e estabilizar o imperialismo à custa dos povos.
Sabemos que, atacando o social-imperialismo russo, que é socialista na fachada e imperialista de facto, não somos compreendidos por muitos trabalhadores mal informados que ainda identificam a URSS actual com a grande revolução russa e com a URSS de Staline que esmagou o nazismo, mas é necessário que eles saibam que o regime actual da URSS já não é o bastião mas um inimigo disfarçado da revolução popular.
O domínio da cena mundial pelas duas grandes potências coligadas, EUA e URSS, longe de ser a garantia da paz, como se apregoa, acumula perigos imensos para os povos, não só porque os imperialistas poderão ser levados em qualquer altura a resolver as suas rivalidades pela guerra nuclear, como porque intervêm desde já contra os movimentos de libertação nacional, como e sobretudo porque adoptaram uma política de cerco e agressão à China, tentados a fazer uma guerra "preventiva", antes que o seu exemplo revolucionário contagie outros povos. Só não o fizeram ainda porque sabem que não têm de se haver com um exército capitalista convencional mas com 700 milhões de homens e mulheres em armas, unidos pelo pensamento revolucionário de Mao Tsé-tung, conscientes de que qualquer imperialista, por mais forte que seja, não passa dum tigre de papel impotente perante os povos.
Mas o risco de ataque à China avoluma-se todos os dias, camuflado sob uma cortina de silêncio. Se tal vier a dar-se, os comunistas portugueses chamarão a classe operária a lutar por todos os meios em apoio da China. Estamos certos de que, no fim de contas, uma tal aventura seria esmagada pelos povos e só serviria para apressar o triunfo da revolução mundial.
O despacho da pronúncia acusa-nos também de termos constituído a Frente de Acção Popular, "organização secreta e subversiva, visando alterar a Constituição e mudar a forma de governo por meios violentos e não consentidos". Isto levanta o problema da linha táctica que os comunistas preconizam contra o actual regime.
Ao constituirmos a FAP com o objectivo de unir o povo para uma acção revolucionária contra o regime, nós partimos do princípio de que nenhumas transformações se darão em Portugal sem uma insurreição popular e uma guerra revolucionária prolongada que varra à sua frente não só o governo, mas toda a máquina militar e burocrática montada pela burguesia nos últimos 150 anos. Um golpe militar, por melhor organizado que seja, é impotente para esta tarefa. Basta vermos como actua diariamente esse aparelho de Estado, as tradições de opressão, espoliação, arbitrariedade e obscurantismo que enraizou em toda a vida nacional, para compreendermos que qualquer tentativa de democratização tem de atacar desde logo os próprios fundamentos do Estado, que o fascismo português não é um acidente histórico nem uma aberração saída do cérebro de um ditador: ele é a forma necessária do regime burguês em Portugal que, pela sua própria fraqueza, desequilíbrio e sujeição ao estrangeiro, está condenado a só sobreviver amparado por um governo despótico. A alternativa que se coloca em Portugal é: ou ditadura fascista da burguesia sobre os trabalhadores, ou ditadura democrática dos trabalhadores sobre a burguesia. Não há outra possibilidade, ainda que os revisionistas acenem com uma utópica "democracia nacional" proletário-burguesa.
E isto ressalta com mais clareza ainda do que no momento da nossa prisão. Afastado Salazar do poder, passado ano e meio de governação de Marcelo Caetano e esgotado já o efeito dos slogans publicitários iniciais, o carácter fascista profundo das instituições afirma-se com maior vigor: as guerras coloniais avassalam toda a vida nacional e a histeria colonialista sobe de tom à medida que se desenha no horizonte a derrota inevitável, o regime de ditadura não foi afrouxado, apesar dos reajustamentos e das mudanças de etiquetas, e continua presente na PIDE, no partido único, nas eleições-farsa e na censura; o novo "Estado social" revela-se à nascença tão odioso para os operários como o "Estado corporativo", com os mesmos "sindicatos" policiais, a mesma proibição da greve, a mesma "Previdência" capitalista; se alguma coisa nos trouxe de novo foi a inflação, que é o meio de fazer pagar pelos trabalhadores a aventura da guerra e a opulência da burguesia. Para lá da fachada dos discursos, a grande massa dos trabalhadores portugueses continua subalimentada, sem assistência médica, sem cultura, vivendo em bairros de lata ou aldeias abandonadas, vendo os seus filhos dizimados pelas doenças, forçados à emigração. O povo português continua a ser o mais pobre e atrasado da Europa.
Nós não negamos que haja uma evolução do regime. Mas essa evolução, que se cobre com o rótulo de "liberalização", nada mais é do que uma modernização da ditadura que precisava de romper com o estilo patriarcal e rotineiro típico da burguesia latifundiária e roceira, para se tornar mais dinâmica e flexível, de modo a acompanhar o crescimento capitalista e a penetração brutal do imperialismo desde 1960. O que há de novo com Marcelo Caetano é que as ligações entre o Estado e a finança se tornam de dia para dia mais estreitas e que, à sombra dos discursos sobre "planeamento" e "racionalização", prolifera como nunca a anarquia dos monopólios, senhores das alavancas do poder. Entramos na etapa do capitalismo monopolista de Estado, que significa a subordinação total da sociedade aos interesses de uma dúzia de grupos financeiros internacionais. A "liberalização" de Caetano é afinal um reforçamento do fascismo e da contra-revolução em Portugal.
Como poderíamos nós deixar então de criticar as farsas oposicionistas que, nas últimas "eleições" de deputados, chamaram com toda a seriedade os cidadãos às urnas, "na ordem e no civismo", e abafaram todas as tendências populares para saltar por cima da legalidade e exprimir a sua indignação nas ruas? Pois não eram estas "eleições" tão falsas como as anteriores, com a massa dos operários e camponeses sem direito a voto, com o regime de partido único, com as mesmas restrições infames à liberdade de reunião e de informação? O resultado de uma luta em que a oposição consentia antecipadamente deixar-se amarrar de pés e mãos era facilmente previsível, mas a maioria dos grupos oposicionistas concorreu ordeiramente como lhes era pedido, fez todos os esforços para não ser considerada "irresponsável" pelo governo e até houve troca de amabilidades no fim da "batalha eleitoral"!
Nós, comunistas, nunca nos opusemos à utilização das possibilidades legais, por mínimas que sejam, mas é evidente que essa utilização tem de ser conduzida de modo a reforçar a unidade e a acção popular e não a servir as manobras do governo. Perante o espectáculo destas "eleições sem precedentes na nossa vida política dos últimos 40 anos", não podemos deixar de evocar a figura do general Delgado, que não pretendeu fazer-se passar por comunista nem por socialista, mas que era incapaz de aceitar docilmente as regras do jogo ditadas pelo inimigo.
É indiscutível que a oposição burguesa (e quando falamos em oposição burguesa incluímos nela de pleno direito o partido revisionista) está lançada na táctica de arrancar graduais concessões ao regime, de exercer uma pressão constante mas dentro dos limites da ordem, a fim de aproximar a almejada liberalização que lhes permita intervir na condução da política nacional. Estão convencidos de que a penetração do imperialismo estrangeiro provocará uma evolução automática para o regime de democracia burguesa, pelo figurino da Europa ocidental, esquecendo que o imperialismo fomenta invariavelmente nos países seus dependentes o fascismo e o terror, como único meio de impor a sobreexploração das massas.
E no que resulta afinal esta táctica? Resulta em policiar-se o movimento popular, arrastando-o para inofensivas demonstrações "cívicas", semeando ilusões absurdas e fechando o caminho à luta revolucionária. São pontos de vista já velhos na nossa política e que já deram as suas provas. No fim da Segunda Guerra Mundial, chamava-se a esta linha a "política de transição"; mais tarde, em 1957, teve de novo grande voga sob o rótulo da "solução pacifica". De ambas as vezes, moderou-se a luta contra a ditadura para não comprometer as perspectivas de uma democracia que diziam iminente. E de ambas as vezes esta táctica veio a revelar-se como uma forma de a oposição burguesa paralisar os trabalhadores em momentos críticos para o fascismo, ajudando-o a sobreviver e a consolidar-se. Isto é a condenação histórica do reformismo e só pode classificar-se de uma forma: é colaboracionismo puro e simples.
Essa mesma táctica está a tentar-se impor agora mais uma vez ao povo. Mas alguma coisa mudou na nova situação política. O CMLP e a FAP são ainda uma pequena força mas já fazem sentir a sua presença. O tempo em que os trabalhadores eram tutelados pelo bloco da oposição passou e há agora em luta contra o regime uma oposição burguesa, subdividida em várias correntes, e uma oposição popular revolucionária guiada pelos comunistas. Há quem considere esta divisão um passo atrás; nós consideramo-la indiscutivelmente um passo em frente e os acontecimentos tirarão a prova do que afirmamos.
Nós rejeitamos a ideia de que não há outra alternativa para o Partido Comunista senão aliar-se às forças liberais, revisionistas e social-democratas e entrar em compromissos com elas; há outra alternativa, que é procurarmos a aliança das largas massas populares sem partido, dos operários, camponeses, empregados e estudantes, concluirmos acordos tácticos com todos os agrupamentos dispostos a trabalhar pela insurreição popular, e construir assim uma larga Frente Popular que sirva os interesses das massas e não os da burguesia liberal. A FAP lançou as bases dessa política de Frente Popular autêntica, que não deixará de abrir caminho nos próximos anos. A FAP tem declaradamente objectivos revolucionários mas não é isso que impedirá a adesão do povo, como pensam alguns; porque a ideia da revolução popular não foi transplantada por nós artificialmente para a política portuguesa: ela é engendrada e alimentada todos os dias pelas contradições desta sociedade injusta e corrupta. O povo encaminhar-se-á forçosamente para a revolução porque só a revolução e a República Popular que dela sair podem satisfazer as suas aspirações de Paz, Liberdade, Pão, Terra e Independência. Eis porque estamos certos de que a FAP, em cuja fundação nos orgulhamos de ter colaborado, tem à sua frente um largo destino histórico.
O despacho de pronuncia não nos acusa só de preconizarmos uma orientação revolucionária; acusa-nos também de termos desenvolvido actos de violência revolucionária e cita, além do julgamento e execução dum espião da PIDE, por que já fomos condenados noutro tribunal, o lançamento de cocktails Molotov sobre instalações da polícia, quando das "eleições de deputados de 1965”, e ainda sessões de adestramento com armas e explosivos e a elaboração de planos de sabotagem.
Sobre este último ponto, acusa-me pessoalmente o despacho de pronúncia de ter planeado a destruição de caminhos-de-ferro e diz que "nem a Barragem de Castelo de Bode escapou aos meus planos terroristas". A acusação demagógica é fácil de fazer, para atemorizar os tolos, mas nem por isso é menos falsa; a verdade é que os croquis que a PIDE me apreendeu e que não conseguiu decifrar se referem de facto a acções de sabotagem planeadas, mas não têm nada que ver com descarrilamentos de comboios nem com barragens. Os actos de sabotagem dos comunistas, todos o sabem, não são dirigidos contra o povo mas contra os inimigos do povo e a sua máquina de guerra e repressão.
Acreditamos nós então na inevitabilidade da violência? São os comunistas uma espécie de fanáticos da bomba e da metralhadora? A melhor resposta que podemos dar a essa pergunta é com outra pergunta: que oportunidades dão a lei e a ordem burguesas aos operários e camponeses para se livrarem pacificamente dos exploradores que os escravizam? Nenhumas! A burguesia afecta uma atitude paternalista com os trabalhadores, mas de cada vez que eles se lançam na luta pelos seus direitos mais elementares, reage com crueldade indiscriminada, para os subjugar pelo terror. Os actos de violência dos oprimidos surgem sempre como resposta a uma longa sucessão de actos de violência dos opressores. Quando executámos um espião da PIDE, já tínhamos atrás de nós o assassinato de dezenas de militantes comunistas, desde Alfredo Dinis a Dias Coelho e a Cândido Capilé, os mortos do Tarrafal, o assassinato do general Delgado. Quando atacámos as instalações da polida, já tínhamos atrás de nós a repressão brutal das greves e das manifestações populares desarmadas, o assalto e pilhagem dos sindicatos e jornais operários livres em 1933, as arbitrariedades acumuladas nestes 40 anos. Em matéria de violência, foi o regime que deu o exemplo aos trabalhadores.
Não temos dúvidas sobre o carácter limitado dos actos de violência que realizámos. A sua importância não provém tanto da sua amplitude, mas de terem dado expressão ao ódio de classe acumulado nas massas, de terem rompido com a tradição de pacifismo que lhes vinha sendo imposta há decénios pelos dirigentes reformistas, de terem rasgado um caminho de saída ao movimento popular, mostrando-lhe pelo exemplo que não precisa de ficar na expectativa dos golpes militares e que a solução do problema está exclusivamente nas suas mãos, está no lançamento da guerrilha urbana e rural, como primeiro passo no caminho da insurreição, partindo das pequenas acções para as grandes.
Sim, é verdade que procuramos destruir a ordem social existente por meios violentos e não consentidos na nossa Constituição. Porque não temos a mínima dúvida de que não se pode começar a construir uma nova sociedade socialista sem primeiro destruir as estruturas desta. É preciso uma luta violenta e prolongada para elevar os trabalhadores de máquinas de produzir lucros e cães de guarda do colonialismo até à condição de produtores livres e senhores do seu destino. Prometer que uma nova sociedade mais justa pode sair desta sociedade infame, sem convulsões, sem guerra civil, por uma gradual democratização, é narcotizar os operários, e nós não colaboramos nesse trabalho. A teoria da passagem pacífica ao socialismo é o maior escárnio que se pode fazer ao socialismo.
A experiência da revolução russa, da revolução chinesa, de todas as revoluções populares deste século, já provou de maneira irrefutável que só há uma alternativa: ou o proletariado, apoiado pelos camponeses, reúne forças suficientes para destruir pelas armas a máquina do Estado burguês e construir o seu próprio Estado, ou tem que sujeitar-se indefinidamente à exploração, à opressão e à guerra. Não há outra alternativa. Por isso, nós, comunistas, baseamos toda a nossa actuação no princípio enunciado por Mao Tsé-tung: "O poder sai dos canos das espingardas" e procuramos educar as massas populares através da acção e da experiência prática no sentido de confiarem apenas nas suas próprias forças e de se atreverem a desafiar o poder burguês, recorrerem em escala diferente ao emprego da violência contra a violência fascista da burguesia, até virem a construir no decurso da luta o seu próprio exército revolucionário capaz de as elevar ao poder.
A luta de classes no nosso país está a entrar num período de conflitos agudos gerados pelo desmoronamento do colonialismo, pela crise geral em que se afunda o capitalismo português e todo o sistema imperialista. Apesar de se tentar revestir de uma nova fachada de "legalidade", o governo vai forçosamente intensificar a repressão sobre as massas numa escala que deixará a perder de vista a dos últimos 40 anos. Se, com a nossa acção prática e a nossa propaganda, contribuirmos para armar a classe operária e o campesinato, todo o povo, para as batalhas que se aproximam, damo-nos por satisfeitos.
Mas nós tínhamos ainda, além do mais, uma razão premente a exigir-nos o emprego imediato da acção violenta contra o regime: é que o país está lançado há nove anos numa guerra contra-revolucionária, tem 150 mil homens em armas a combater em África contra as insurreições nacionais dos povos de Angola, Moçambique e Guiné que exigem a sua independência. Portugal é hoje a expressão mais viva da tese de Mao Tsé-tung quando afirma que o centro das tempestades revolucionárias se deslocou, na nossa época, do proletariado europeu e norte-americano para os povos oprimidos da Ásia, África e América Latina. Em vez de serem os trabalhadores portugueses a dar a liberdade aos povos coloniais, como ainda há dois decénios se acreditava, são esses povos que estão dando uma contribuição decisiva para a derrocada do capitalismo português e para a emancipação dos trabalhadores portugueses.
Mas esperar tranquilamente que o sacrifício dos povos coloniais provoque a queda automática do regime fascista não é só uma inépcia, é também um crime. O povo português não tem o direito de assistir de braços cruzados, ou com simples protestos platónicos, à chacina de povos irmãos e aliados, chacina realizada pelos próprios trabalhadores portugueses enquadrados no circuito fascista, como coroamento de cinco séculos de opressão e pilhagem colonialista. Todos nós somos também responsáveis pelo que se passa em África.
Os trabalhadores portugueses sofrem a dura exploração capitalista nas fábricas e nos campos; mas os povos das colónias são espoliados da maneira mais infame, são arrebanhados nas "aldeias estratégicas", vêm os seus direitos nacionais e a sua cultura espezinhados pelo ocupante português, em nome do "multirracialismo". Nas prisões políticas de Portugal há uma centena de presos; mas no Tarrafal, na ilha das Galinhas, no Bié, Malvérnia, Machava, há milhares e milhares de africanos, condenados à morte lenta nos campos de concentração de estilo nazi. Em Portugal, a polícia abate de vez em quando um militante popular; mas nas colónias faz-se a guerra, mata-se sistematicamente, tentando dobrar as populações pelo terror.
Por isso, nós sentimos a obrigação de intervir por todos os meios para frustrar a política do governo, que consiste em manter a retaguarda calma, a fim de ficar com as mãos livres para descarregar toda a sua ferocidade sobre os povos oprimidos, como vem fazendo. O objectivo que tínhamos em mira com as actividades e a propaganda que desenvolvemos era dificultar por todos os meios o esforço de guerra, erguer um movimento popular de resistência activa contra a guerra, colocar o governo entre dois fogos.
Uma tal atitude desencadeia sem dúvida o furor da burguesia, que não deixará de procurar aniquilar-nos, sob a acusação de "traidores à Pátria". E preciso contudo ter a coragem de a assumir, na certeza de que, desta grande prova histórica, só sairão como revolucionários e progressistas as classes, os partidos, os agrupamentos, os homens e mulheres que ousem lutar activamente pela derrota do governo na guerra colonial. É uma questão fundamental, em que não se pode admitir qualquer compromisso, sob pena de cairmos no campo da reacção, do colonialismo, do imperialismo.
E quanto às acusações de "traição à Pátria", não as tememos. Nós dizemos abertamente que os trabalhadores não têm qualquer obrigação para com a pátria burguesa, que lhes arranca o produto do seu trabalho, que os reprime pela violência e por fim lhes exige que dêem a vida na guerra — tudo para garantir a taxa de lucro dos capitais investidos! As obrigações de cada trabalhador são para com a sua classe, para com o povo, para com os povos irmãos das colónias e de todo o mundo, não para com a burguesia e o imperialismo que lhe sugam o sangue. E àqueles que tão virtuosamente se indignam com a nossa posição podemos perguntar o que é trair a pátria. Não será sacrificar milhares de vidas e milhões de contos em Africa para assegurar os lucros da extracção do petróleo, dos diamantes, do ferro, do café, do algodão, do sisal? Não será abrir o país à invasão dos monopólios americanos, ingleses, alemães, japoneses, transferindo para o estrangeiro o controle da economia nacional? Não será conceder bases militares a americanos, alemães e franceses? Não será criar o paraíso para a burguesia parasita e o inferno para os operários e camponeses que tudo produzem? Não será receber milhões de turistas e expulsar meio milhão de camponeses famintos, à procura de trabalho pela Europa? Isto, sim, é trair os interesses do povo português e contra isto lutamos nós. Rejeitamos esse "patriotismo" do capital, que se manifesta simultaneamente na guerra implacável aos povos oprimidos das colónias e na submissão abjecta perante os trusts, para que os lucros não faltem. Ele prova a total degeneração da burguesia nacional, como classe ultrapassada pela história que tenta sobreviver amontoando crimes.
É verdade que, na ânsia de lutar contra a guerra, sobrestimámos as nossas forças mas, se o fizemos, foi por não querermos ser confundidos com a oposição "ordeira" que condena hipocritamente a guerra mas deixa passar todas as ocasiões de lutar contra ela. Nós sabíamos e sabemos que a história registará a ignomínia, não só dos governantes que ordenaram e prosseguiram uma tal guerra, mas também daqueles que, estando na oposição ao governo, puderem suportar durante tantos anos essa situação e não souberam fazer mais do que lançar campanhas "cívicas", criticar sobranceiramente a "imaturidade" das tendências "terroristas" e manobrar para tentar salvar o colonialismo sob uma forma neocolonialista.
Todos assumirão as suas responsabilidades perante o nosso povo e perante os povos do mundo, os que fizeram a guerra e os que a consentiram. Sim, nós quisemos ir mais longe do que o permitiam as nossas forças, é verdade! Quisemos acorrer em auxílio dos heróicos guerrilheiros africanos, para salvarmos a honra dos comunistas portugueses e do povo português. Se cometemos erros, uma coisa é certa: não ficaremos como cúmplices da burguesia fascista e do imperialismo, ficaremos como aliados verdadeiros dos povos coloniais, ficaremos como precursores da grande revolução popular que varrerá Portugal.
Aceitamos a acusação. A vossa sentença regozija-nos como prova da justeza da nossa actuação. Foi Mao Tsé-tung que disse:
"O facto de o inimigo nos odiar e nos atacar não é uma coisa má, pelo contrário, é urna coisa boa; porque isso indica que o inimigo já sente os nossos golpes e estamos na via justa."
Viva o Partido Comunista reconstruído!
Viva a insurreição popular antifascista!
Viva a luta libertadora de Angola, Moçambique e Guiné!
Viva o pensamento revoluciornário de Mao Tsé-tung, guia dos oprimidos de todo o mundo!
Notas de rodapé:
(1) Preso em janeiro de 1966, Francisco Martins Rodrigues seria sujeito, em Maio de 1970, a dois julgamentos separados, um político, no Tribunal Plenário de Lisboa, e outro de crime comum, no Tribunal de Sintra, concelho onde havia ocorrido a execução pelas FAP do informador da PIDE Mário Mateus. O texto da sua defesa não pôde ser lido em Tribunal Plenário, por o réu ter sido imediatamente reduzido ao silêncio. «O fantoche do juiz expulsou-nos logo, “cale-se, cale-se, cale-se”, e ele próprio é que chamou os pides. Fomos corridos da sala à porrada, descaradamente, diante do juiz e tudo” (Francisco Martins Rodrigues, ‘História de uma vida’, Dinossauro, Lisboa, p. 96). O texto tinha, contudo, sido passado a escrito, levado em segredo para o exterior da cadeia e feito circular clandestinamente em formato de pequeno livro. Onde esta defesa política pôde efectivamente ser lida, embora com interrupções, foi no julgamento feito no Tribunal de Sintra. (retornar ao texto)
Inclusão |