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Primeira Edição: em inglês na revista académica americana Science and Society (nº 4, Verão de
1937)
Fonte: Biblioteca Comunista "A Velha Toupeira"
Tradução: Antonio Oliveira
HTML: Fernando A S Araújo.
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A teoria de Marx do desenvolvimento social é conhecida como "concepção materialista da história" ou "materialismo histórico". Antes de Marx, o termo "materialismo" era usado há muito em oposição a idealismo, pois enquanto os sistemas filosóficos idealistas assumiam algum princípio espiritual, alguma "Ideia Absoluta", como a base primária do mundo, as filosofias materialistas procediam partindo do mundo material real. Em meados do século XIX, era corrente outro tipo de materialismo que considerava a matéria física como a base primária da qual se devem derivar todos os fenómenos espirituais e mentais. A maioria das objecções que foram levantadas contra o marxismo são devidas ao facto de que não se o tem distinguido suficientemente deste materialismo mecânico.
A filosofia está condensada na famosa citação:
"não é a consciência dos homens que determina a sua existência, mas, ao invés, é a sua existência social que determina a sua consciência".
O marxismo não se ocupa da antítese mente-matéria; trata do mundo real e das ideias derivadas a partir dele. Este mundo real engloba tudo o que é observável, isto é, tudo o que pela observação possa declarar-se como um facto objectivo. A relação salarial entre operário e patrão, a constituição dos Estados Unidos, a ciência da matemática, embora não sejam constituídas por matéria física, são efectivamente tão reais e objectivas como a maquinaria fabril, o Capitólio ou o rio Ohio. Mesmo as próprias ideias, por sua vez, actuam como factos reais e observáveis. O materialismo mecânico assume que os nossos pensamentos estão determinados pelos movimentos dos átomos nas células dos nossos cérebros. O marxismo considera que os nossos pensamentos estão determinados pela nossa experiência social observada através dos sentidos ou sentida como necessidades corporais directas.
O mundo, para o homem, é a sociedade. Certamente, o mundo mais amplo é a natureza, e a sociedade é a natureza transformada pelo homem. Mas no decorrer da história esta transformação foi tão completa que agora a sociedade é a parte mais importante do nosso mundo. A sociedade não é simplesmente um aglomerado de homens; os homens estão conectados por relações determinadas, não escolhidas por eles, mas impostas pelo sistema económico sob o qual vivem e no qual cada um ocupa o seu lugar.
As relações que o sistema produtivo estabelece entre os homens são tão estritas como os factos biológicos; mas isto não significa que os homens pensem apenas na alimentação. Significa que a maneira como o homem ganha a vida — isto é, a organização económica da produção — "GramE" — situa cada indivíduo em determinadas relações com os outros homens, determinando assim o seu pensamento e a sua sensibilidade. É certo, claro, que até ao presente quase todos os pensamentos dos homens se orientaram em torno de conseguir comida, porque o sustento nunca esteve assegurado para todos. O medo à necessidade e à fome pesou como um pesadelo nas mentes dos homens. Mas, num sistema socialista, quando este medo se tiver dissipado, quando a humanidade for dona dos meios de subsistência e o pensamento for livre e criativo, o sistema de produção continuará também a determinar as ideias e as instituições.
O modo de produção, que forma a mente do homem, é, ao mesmo tempo, um produto do homem. Foi edificado pela humanidade durante o correr de séculos, todos participando no seu desenvolvimento. Em qualquer momento dado, a sua estrutura está determinada pelas condições dadas, as mais importantes das quais são a técnica e o direito. O capitalismo moderno não é simplesmente produção por meio de maquinaria de grande escala; é produção por tais máquinas sob a dominação da propriedade privada. O crescimento do capitalismo não foi só uma mudança de uma economia que utilizava pequenas ferramentas para uma indústria em grande escala, mas, simultaneamente, uma transformação de artesãos gremiais em trabalhadores assalariados e homens de negócios. Um sistema de produção é um sistema de técnica determinado, regulado para o benefício dos proprietários por um sistema de normas jurídicas.
A tese, citada frequentemente, do jurista alemão Stammler, que o direito determina o sistema económico ("das Recht bestimmt die Wirtschaft"), está baseada nesta circunstância. Stammler pensava que por meio desta frase tinha refutado o marxismo, que proclamava a dominação da economia sobre as ideias jurídicas. Proclamando que o elemento material, o aspecto técnico do processo de trabalho, está governado e dominado por elementos ideológicos, pelas normas jurídicas com as quais os homens regulam as suas relações segundo a sua própria vontade, Stammler sentiu-se convencido que tinha estabelecido o predomínio da mente sobre a matéria. Mas a antítese entre a técnica e o direito não coincide de modo nenhum com a antítese mente-matéria. O direito não é só uma norma espiritual, mas também um duro constrangimento; não só um artigo nos códigos legais, mas também o bastão do polícia e os muros da prisão. E a técnica não são só as máquinas materiais, mas também a capacidade de construí-las, incluindo a ciência da física.
As duas condições, a técnica e o direito, desempenham diferentes papéis na determinação do sistema de produção. A vontade daqueles que controlam as técnicas não pode por si criar estas técnicas, mas pode — e fá-lo — elaborar as leis. Estas são resultado da vontade, mas não caprichosas. Não determinam as relações produtivas, mas aproveitam-se destas relações para o benefício dos proprietários e são alteradas para fazer frente aos avanços nos modos de produção. A manufactura que usa a técnica de pequenas ferramentas conduz a um sistema de produção gremial, tornando assim necessária a instituição jurídica da propriedade privada. O desenvolvimento da grande indústria tornou possível e necessário o crescimento da maquinaria de grande escala, e induziu as pessoas a remover os obstáculos jurídicos ao seu desenvolvimento e a estabelecer a legislação comercial do laissez-faire. A técnica determina, deste modo, o direito; ela é a força subjacente, enquanto a lei pertence à superestrutura que se apoia nela. Assim Stammler, embora estando correcto na sua tese num sentido restrito, está errado no sentido geral. Precisamente porque o direito governa a economia, as pessoas procuram fazer as leis de modo a serem as requeridas por uma infra-estrutura produtiva dada; deste modo, a técnica determina a lei. Não há nenhuma dependência rígida, mecânica, entre ambas. O direito não se ajusta automaticamente a cada nova mudança da técnica. As necessidades económicas devem primeiro ser sentidas e, então, o homem tem que mudar e ajustar as suas leis de acordo com elas. Alcançar este ajustamento é o difícil e doloroso propósito das lutas sociais. Esta é a quinta-essência e o objectivo de toda a disputa política e de todas as grandes revoluções da história. A luta por novos princípios jurídicos é necessária para formar um novo sistema de produção adaptado ao gigantesco desenvolvimento moderno da técnica.
A técnica, como força produtiva, é a base de sociedade. Na sociedade primitiva, as condições naturais desempenham o papel principal na determinação do sistema de produção. No decorrer da história, os instrumentos técnicos são melhorados gradualmente mediante passos quase imperceptíveis. A ciência natural, investigando as forças da natureza, transforma-se na força produtiva mais importante. Todos os tecnicismos no desenvolvimento e na aplicação da ciência, incluindo a matemática mais abstracta, que é segundo todas as aparências um exercício da pura razão, pode considerar-se, por conseguinte, como pertencente à base técnica do sistema de produção, ao que Marx chamou as "forças produtivas". Deste modo, os elementos materiais (num sentido físico) e mentais estão combinados naquilo que os marxistas chamamos a base material da sociedade.
A concepção marxiana da história põe o homem vivo no centro do seu esquema do desenvolvimento, com todas as suas necessidades e todas as suas capacidades, tanto físicas como mentais. As suas necessidades não são só as necessidades do seu estômago (mesmo que estas sejam as mais imperativas), mas também as necessidades da cabeça e do coração. No trabalho humano, o lado material, físico, e o lado mental são inseparáveis; mesmo o trabalho mais primitivo do selvagem é tão cerebral como muscular. Só porque sob o capitalismo a divisão do trabalho separou estas duas partes em funções de classes diferentes, mutilando por conseguinte as capacidades de ambas, é que os intelectuais acabam por passar por alto a sua unidade orgânica e social. É deste modo que se pode entender a sua visão errónea do marxismo como uma teoria que trata exclusivamente do aspecto material da vida.
O materialismo histórico de Marx é um método de interpretação da história. A história consiste nos factos, nas acções dos homens. O que induz estas acções? O que determina a actividade do homem?
O homem, como um organismo com certas necessidades que devem satisfazer-se como condição da sua existência, está dentro de uma natureza circundante, que oferece os meios para satisfazê-las. As suas necessidades e as impressões do mundo circundante são os impulsos, os estímulos dos quais as suas acções são as respostas, tal como acontece com todos os seres vivos. No caso do homem, a consciência interpõe-se entre o estímulo e a acção. A necessidade, tal como se sente directamente, e o mundo circundante tal como é observado através dos sentidos, trabalham na mente, produzem pensamentos, ideias e objectivos, estimulam a vontade e põem o corpo em acção.
Os pensamentos e objectivos de um homem activo são considerados por ele como a causa das suas acções; não se pergunta de onde vêm estes pensamentos. Isto é especialmente certo porque os pensamentos, ideias e objectivos, não são por norma derivados das impressões pelo raciocínio consciente, mas são o produto de processos espontâneos subconscientes nas nossas mentes. Para os membros de uma classe social, as experiências diárias da vida condicionam, e as necessidades de classe moldam, a mente segundo uma determinada linha de sentimento e de pensamento, para produzir determinadas ideias sobre o que é útil e o que é bom ou mau. As condições de uma classe são necessidades vitais para os seus membros, e eles consideram o que é bom ou mau para eles como o bom ou mau em geral. Quando as condições estão maduras, os homens entram em acção e dão forma à sociedade de acordo com as suas ideias. A burguesia francesa ascendente no século XVIII, sentindo a necessidade das leis do laissez-faire, da liberdade pessoal para os cidadãos, proclamou a liberdade como palavra de ordem, e na Revolução francesa conquistou o poder e transformou a sociedade.
A concepção idealista da história explica os eventos históricos como causados pelas ideias dos homens. Isto é errado, na medida em que confunde a fórmula abstracta com uma acepção concreta especial, passando por alto o facto de que, por exemplo, a burguesia francesa queria só aquela liberdade que fosse boa para si. E mais, omite o problema real, a origem destas ideias. A concepção materialista da história explica estas ideias como causadas pelas necessidades sociais que surgem das condições do sistema de produção existente. De acordo com este ponto de vista, os eventos da história estão determinados por forças que provêm do sistema económico existente. A interpretação histórico-materialista da Revolução francesa em termos de um capitalismo ascendente que requeria um Estado moderno com legislação adaptada ás suas necessidades, não contradiz a concepção de que a Revolução foi provocada pelo desejo do cidadão de se libertar das restrições; simplesmente, vai além, à raiz do problema. Pois o materialismo histórico sustenta que o capitalismo ascendente produziu na burguesia a convicção de que a liberdade económica e política era necessária, e assim despertou a paixão e o entusiasmo que permitiram à burguesia conquistar o poder político e transformar o Estado.
Deste modo, Marx estabeleceu a causalidade no desenvolvimento da sociedade humana. Não é uma causalidade externa ao homem, pois a história é ao mesmo tempo o produto da acção humana. O homem é um elo na corrente de causa e efeito; a necessidade no desenvolvimento social é uma necessidade alcançada por meio da acção humana. O mundo material actua sobre o homem, determina a sua consciência, as suas ideias, a sua vontade, as suas acções, e assim ele reage sobre o mundo e muda-o. Para o modo tradicional de pensar da classe média, isto é uma contradição — a fonte de intermináveis deformações do marxismo —: ou as acções do homem determinam a história, como eles dizem, e não há nenhuma causalidade necessária porque o homem é livre; ou se, como o marxismo sustenta, há necessidade causal, esta só pode funcionar como uma fatalidade à qual o homem tem que submeter-se sem poder alterá-la. Para o modo de pensar materialista, ao invés, a mente humana está circunscrita por uma estrita dependência causal ao conjunto do mundo circundante.
Os pensamentos, as teorias, as ideias, que os anteriores sistemas de sociedade assim forjaram na mente humana, foram preservados para a posteridade, em primeiro lugar na forma material da actividade histórica subsequente. Mas também foram preservados numa forma espiritual. As ideias, sentimentos, paixões e ideais que incitaram as gerações anteriores à acção foram vertidas na literatura, na ciência, na arte, na religião e na filosofia. Entramos em contacto directo com elas no estudo das humanidades. Estas ciências pertencem aos campos de investigação mais importantes para os estudiosos marxianos; as diferenças entre as filosofias, as literaturas, as religiões de povos diferentes no decorrer dos séculos só podem entender-se em termos da conformação das mentes dos homens por meio das suas sociedades, isto é, por meio dos seus sistemas de produção.
Disse-se mais acima que os efeitos da sociedade sobre a mente humana foram depositados sob uma forma material nos eventos históricos subsequentes. A corrente de causa e efeito dos eventos passados, que procede das necessidades económicas às novas ideias, das novas ideias à acção social, da acção social às novas instituições e das novas instituições a novos sistemas económicos, reproduz-se sempre de modo completo. Tanto a causa original como o efeito final são económicos e podemos reduzir o processo a uma breve fórmula omitindo os termos intermédios que envolvem a actividade da mente humana. Podemos ilustrar, então, a verdade dos princípios marxianos mostrando como, na história actual, o efeito se sucede à causa. Analisando o presente, não obstante, vemos numerosas correntes causais que estão inacabadas. Quando a sociedade actua sobre as mentes dos homens, produz frequentemente ideias, ideais e teorias que não têm sucesso em despertar os homens para a acção social ou de classe, ou que falham em provocar as mudanças políticas, jurídicas e económicas necessárias. Frequentemente, também verificamos que as novas condições não se imprimem imediatamente na mente. Atrás de simplicidades aparentes escondem-se complexidades tão inesperadas que só um instrumento especial de interpretação pode desvelá-las nesse caso. A análise marxiana permite-nos ver as coisas mais nitidamente. Começamos a ver que estamos dentro de um processo carregado de influências convergentes, no meio de um lento amadurecimento de novas ideias e tendências que constituem a preparação gradual da revolução. É por isto que é importante para a geração presente, que hoje tem que conceber a sociedade do amanhã, saber como poderá utilizar a teoria marxiana na compreensão dos eventos e na determinação da sua própria conduta. Por isso será necessária aqui uma consideração mais completa de como a sociedade actua sobre a mente.
A mente humana está inteiramente determinada pelo mundo real circundante. Já dissemos que este mundo não se restringe somente à matéria física, mas compreende tudo o que é objectivamente observável. Os pensamentos e ideias dos homens, que observamos por meio da sua conversação ou através da leitura, estão incluídos neste mundo real. Mesmo que os objectos imaginários destes pensamentos, como os anjos, espíritos ou uma Ideia Absoluta, não pertençam ao mundo real, a crença em tais ideias é um fenómeno real e pode ter uma influência apreciável nos eventos históricos.
As impressões do mundo penetram a mente humana como uma corrente ininterrupta. Todas as nossas observações do mundo circundante, todas as experiências das nossas vidas, enriquecem continuamente os conteúdos das nossas lembranças e as nossas mentes subconscientes.
A recorrência de uma situação quase igual e da mesma experiência conduz a determinados hábitos de actuação; estes estão acompanhados por determinados hábitos de pensamento. A repetição frequente da mesma sequência de fenómenos observada é retida na mente e produz uma expectativa de sequência. A regra de que estes fenómenos estão sempre relacionados, é formada deste modo. Mas esta regra — às vezes, elevada a lei da natureza — é uma abstracção mental de uma multidão de fenómenos análogos, na qual as diferenças são desprezadas e a concordância é enfatizada. Os nomes pelos quais designamos determinadas partes similares do mundo dos fenómenos indicam concepções que estão formadas igualmente tomando as suas características comuns, o carácter geral da totalidade destes fenómenos, e abstraindo-os das suas diferenças. A diversidade interminável, a pluralidade infinita de todos as características insignificantes, acidentais, é desprezada, e as características importantes, essenciais são conservadas. Pela sua origem como hábitos de pensamento, estes conceitos tornam-se fixos, cristalizados, invariáveis; cada avanço na claridade do pensamento consiste em definir mais exactamente os conceitos no que se refere às suas propriedades, e em formular mais exactamente as regras. O mundo da experiência, no entanto, expande-se e transforma-se continuamente; os nossos hábitos são perturbados e têm que ser modificados, e novos conceitos têm que substituir os antigos. Os significados, as definições, o alcance dos conceitos são deslocados e mudam.
Quando o mundo não muda muito, quando os mesmos fenómenos e as mesmas experiências retornam sempre, os hábitos de actuar e pensar acabam por se fixar com grande rigidez; as novas impressões da mente encaixam-se na imagem formada pela experiência anterior e intensificam-na. Estes hábitos e estes conceitos não são nenhuma propriedade pessoal, mas propriedade colectiva; não se perdem com a morte do indivíduo. Intensificam-se pela inter-relação mútua dos membros da comunidade, que vivem todos no mesmo mundo; são transferidos à geração seguinte como um sistema de ideias e crenças, uma ideologia — a reserva mental da comunidade. Onde durante muitos séculos o sistema de produção não muda perceptivelmente, como por exemplo nas velhas sociedades agrárias, as relações entre os homens, seus hábitos de vida, e a sua experiência do mundo, permanecem praticamente idênticas. Em cada nova geração que vive sob tal sistema produtivo estático, as ideias, conceitos e hábitos de pensamento existentes petrificar-se-ão cada vez mais numa ideologia dogmática e inexpugnável de verdades eternas.
Quando, contudo, em consequência do desenvolvimento das forças produtivas, o mundo está em mudança, entram na mente novas e diferentes impressões que não combinam com a velha imagem. Começa, então, um processo de reconstrução, a partir dos fragmentos das velhas ideias e das novas experiências. Os velhos conceitos são substituídos pelos novos, os papéis e julgamentos anteriores são perturbados e emergem novas ideias. Agora todos os membros de uma classe ou grupo são afectados de maneira idêntica e simultânea. Surge a disputa ideológica relacionada com as lutas de classes e é prosseguida entusiasticamente, porque todas as diferentes vidas individuais estão enlaçadas de diversas maneiras com o problema de como organizar a sociedade e seu sistema de produção. No capitalismo moderno, as mudanças económicas e políticas ocorrem tão rapidamente que a mente humana mal pode acompanhar-lhes o passo. Nas ferozes lutas internas, as ideias revolucionam-se, algumas vezes rapidamente, devido a acontecimentos espectaculares, outras vezes lentamente, pela guerra contínua contra o peso da velha ideologia. Em tal processo de transformação incessante, a consciência humana adapta-se à sociedade, ao mundo real.
Por isso, a tese de Marx de que o mundo real determina a consciência não significa que as ideias contemporâneas estejam somente determinadas pela sociedade contemporânea. As nossas ideias e conceitos são a cristalização, a essência compreensiva da totalidade da nossa experiência, presente e passada. O que já foi fixado no passado sob formas mentais abstractas deve ser incluído com as adaptações ao presente que sejam necessárias. As novas ideias parecem, assim, surgir de duas fontes: a realidade presente e o sistema de ideias transmitido desde o passado. A partir desta distinção surge uma das objecções mais comuns contra o marxismo. A objecção, nomeadamente, de que o que determina a mente do homem e por conseguinte as suas acções e daí o futuro do mundo não é só o mundo material real, mas também e em não menor grau os elementos ideológicos — as ideias, crenças e ideais. Esta seria uma crítica correcta se as ideias se originassem por si mesmas, sem causa, ou da natureza inata do homem ou de alguma fonte espiritual sobrenatural. O marxismo, no entanto, diz que estas ideias têm que ter também a sua origem no mundo real sob condições sociais.
Como forças no desenvolvimento social moderno, estas ideias tradicionais estorvam a propagação das novas ideias que exprimem as novas necessidades. Ao levar em conta estas tradições não saímos do domínio do marxismo. Pois toda a tradição é um elemento da realidade, assim como cada ideia é ela mesma uma parte do mundo real, que vive na mente de homens; frequentemente, é uma realidade muito poderosa como determinante das acções dos homens. É uma realidade de natureza ideológica, que perdeu as suas raízes materiais devido a terem desaparecido as anteriores condições de vida que as produziram. Que estas tradições tenham podido persistir depois de as suas raízes materiais terem desaparecido não é simplesmente uma consequência da natureza da mente humana, que é capaz de conservar na memória ou subconscientemente as impressões do passado. Muito mais importante é o que pode ser chamado de memória social, a perpetuação das ideias colectivas, sistematizadas na forma de crenças e ideologias prevalecentes e transferidas às gerações futuras nas comunicações orais, nos livros, na literatura, na arte e pela educação. O mundo circundante que determina a mente não consiste só no mundo económico contemporâneo, mas também em todas as influências ideológicas derivadas da inter-relação contínua entre os homens. Daqui deriva o poder da tradição, que numa sociedade que se desenvolve rapidamente faz com que o desenvolvimento das ideias se atrase em relação ao desenvolvimento da sociedade. Ao fim, a tradição tem que ceder à força das investidas incessantes das novas realidades. O seu efeito no desenvolvimento social é que, em vez de permitir um ajuste gradual e regular das ideias e das instituições, em correspondência com as necessidades em mutação, estas necessidades, quando se põem intensamente em contradição com as velhas instituições, conduzem a explosões, a transformações revolucionárias, através das quais as mentes atrasadas são arrastadas para diante e são elas mesmas revolucionadas.
Este texto foi uma contribuição |
Inclusão | 29/03/2009 |
Última atualização | 02/04/2009 |