MIA > Biblioteca > Marx/Engels > Anti-Dürhing > Novidades
"Este esboço histórico (o da
gênese da chamada acumulação primitiva do capital, na Inglaterra) é, até agora,
o que há de melhor, relativamente, no livro de Marx e ainda poderia ter sido
melhor se não se apoiasse na agudeza erudita e, além disso, na dialética.
Recorre à negação da negação de Hegel para que ponha a seu serviço, na falta de
meios mais claros e melhores, os seus serviços de Parteira, ajudando-o a fazer
brotar o futuro das entranhas do passado. A abolição da propriedade individual,
que se processou, por esse modo, a partir do século XVI, é a primeira negação.
Esta, será seguida por outra, caracterizada como negação da negação e, portanto,
como a restauração da"propriedade individual", mas de uma forma mais elevada,
baseada na propriedade comum do solo e dos instrumentos de trabalho. O fato de o
Sr. Marx qualificar, em seguida, esta nova"propriedade individual" também com o
nome de"propriedade social", revela a unidade hegeliana de caráter superior, na
qual a contradição, conforme se verifica, fica cancelada; ou seja, de acordo com
o já conhecido jogo de palavras, a contradição se mantém, ainda que superada. A
expropriação dos expropriadores é, de acordo com isso, o resultado automático da
realidade histórica, em suas circunstâncias materiais externas... Naturalmente,
nenhuma pessoa que reflita deixar-se-á convencer só por terem sido invocados os
disparates de Hegel, e a negação da negação nada mais é que um dos tantos, da
necessidade de se implantar a comunidade da terra e dos capitais... Além disso,
a nebulosa ambigüidade das idéias de Marx não surpreenderá a quem já sabe que
ela pretende rimar com a dialética de Hegel, tomando-a como sua base científica,
ou melhor, tomando como conclusão o absurdo a que nos querem levar. Para quem
desconhece estes trechos, advertiremos que a primeira negação é, em Hegel, a
idéia do pecado original do Catecismo e a segunda é a idéia de uma unidade
superior que conduz à redenção do homem. E, sobre uma farsa desse gênero, tomada
à religião, não se pode, facilmente, fundar a lógica dos fatos. O Sr. Marx se
obstina em permanecer no mundo nebuloso de sua propriedade ao mesmo tempo
individual e social, deixando que os seus adeptos resolvam por si esse profundo
enigma da dialética." Assim fala o Sr.
Dühring.
Isto quer dizer que Marx não consegue
provar a necessidade da revolução social, a necessidade da instauração de um
regime de produção comum da terra e dos instrumentos de produção criados pelo
trabalho, a não ser pela invocação do critério hegeliano da negação da negação;
e, fundamentando a sua teoria socialista"nesta farsa tomada à religião",
conclui que na sociedade futura será implantada"uma propriedade ao mesmo tempo
individual e social", que é a unidade superior hegeliana a que terá que atingir
a contradição superada.
Deixemos por um momento
a negação da negação e analisemos, mais de perto, essa"propriedade ao mesmo
tempo individual e social". O Sr. Dühring nos diz que é"um mundo nebuloso" e,
ainda que pareça estranho, dessa vez ele está com a razão. O pior é que, como
sempre, não é Marx que vive extraviado nesse mundo nebuloso, mas, de fato, é o
próprio Sr. Dühring. Com efeito, como já vimos, o seu desembaraço no manejo do
método hegeliano do"delírio", permitiu-lhe definir, sem. dificuldade, o que
conteriam os volumes ainda não publicados de O Capital, e ainda aqui lhe é fácil
retificar Marx de acordo com Hegel, atribuindo-lhe a unidade superior de uma
propriedade sobre a qual Marx não disse uma só
palavra.
Eis o texto de Marx:"É a negação da
negação. Esta, restaura a propriedade individual, mas baseada nas conquistas da
era capitalista, baseada na cooperação de operários livres e na sua propriedade
coletiva sobre a terra e sobre os meios de produção produzidos pelo próprio
trabalho. A transformação da propriedade privada e dispersa dos indivíduos que é
baseada no seu próprio trabalho, em propriedade privada capitalista é,
naturalmente, um processo incomparavelmente mais difícil, mais duro e mais
trabalhoso que a transformação da propriedade privada capitalista, repousada de
fato num regime social de exploração, numa propriedade coletiva." Isto é tudo o
que disse Marx. Como se vê, o regime criado pela expropriação dos expropriadores
é designado como sendo a restauração da propriedade individual, desde que seja
baseada na propriedade social sobre a terra e sobre os meios de produção,
produzidos pelo próprio trabalho. Para qualquer pessoa que saiba ler, isto
significa que a propriedade coletiva se tornará extensiva à terra e aos demais
meios de produção, e a propriedade individual se limitará aos produtos, ou aos
objetos destinados ao consumo. E para que essa idéia possa ser compreendida
mesmo por crianças que tenham seis anos, Marx, na página 40, fala de"uma
associação de homens livres que trabalham com meios comuns de produção e que
despendem suas forças de trabalho individuais, conscientemente, como uma força
de trabalho social", isto é, de uma associação organizada de forma socialista, e
acrescenta:"O produto coletivo da associação é um produto social. Uma Parte
desse produto volta a servir como meio de produção. Continua sendo social. Mas
uma outra Parte é absorvida como meio de vida pelos membros da associação. Deve,
portanto, ser distribuída entre eles." Isto está mais do que claro e até mesmo
uma cabeça hegelianizada, como a do Sr. Dühring, deveria
compreendê-lo.
A propriedade ao mesmo tempo
individual e social, esta ambigüidade confusa, esse absurdo que necessariamente
teria que brotar da dialética hegeliana, este mundo nebuloso, esse profundo
enigma dialético que Marx deixa para ser resolvido pelos seus adeptos é,
naturalmente, como de costume, uma livre e imaginativa invenção do Sr. Dühring.
Como suposto hegeliano, Marx deveria nos fornecer, como resultado da negação da
negação, uma verdadeira unidade superior, e, como não o fez a gosto do Sr.
Dühring, teve este de recorrer mais uma vez ao seu elevado e nobre estilo,
atribuindo a Marx, no interesse da verdade plena, coisas que são um genuíno
produto das suas elucubrações. Um homem absolutamente incapaz de fazer, ainda
que por exceção, uma citação ajustada à verdade, poderá também deixar-se levar,
por um acesso de indignação moral, a investir contra a"erudição rebuscada" de
outras pessoas que citam sempre com exatidão e que, justamente por isso, não são
capazes de"descobrir" a falta de penetração no conjunto das idéias dos autores
citados". Mas o Sr. Dühring tem razão! Assim escrevem a história os
historiadores de"sentido histórico grandioso"! Até aqui, partimos do suposto de
que as citações falsas, nas quais O Sr. Dühring insiste, pelo menos, não
atentavam contra a boa fé, mas eram devidas a uma incapacidade total de
compreensão por Parte de quem as empregava, ou talvez a uma propriedade
característica dos que escrevem a história com um"sentido grandioso",
propriedade que, noutra pessoa, se chamaria de um mau costume de, por preguiça,
fazer citações de memória. Mas parece que chegou o momento em que o Sr. Dühring
também se converte de quantidade em qualidade. Com efeito, se tomarmos em
consideração que a frase de Marx é, por si mesma, perfeitamente clara, ainda
poderíamos completá-la com um outro trecho da mesma obra, caso fosse necessário,
de modo a não deixar lugar a dúvida. É preciso que se saiba que, na crítica a O
Capital, quer a publicada na obra a que nos referimos atrás, quer a que está
contida na primeira edição da História crítica, em nenhuma das duas consegue o
Sr. Dühring descobrir esse monstro da"propriedade ao mesmo tempo individual e
social", mas apenas adverte o leitor, na segunda edição de seu livro, e, assim
mesmo, depois de uma terceira leitura que se fizer. Nesta segunda edição,
refundida à maneira socialista, o Sr. Dühring mostrou grande interesse em
colocar nos lábios de Marx os maiores absurdos possíveis no que se refere à
organização futura da sociedade, para que, com isso, ressaltasse ainda mais
triunfalmente aquilo que ele chama de"Comuna econômica, por mim esboçada,
econômica e juridicamente, em meu Curso". Se tomarmos tudo isso em consideração,
teremos forçosamente de concluir que o Sr. Dühring, de um modo deliberado e
consciente,"ampliou beneficamente" - é claro que beneficamente para ele, - a
idéia de Marx.
Vejamos agora que papel
desempenha para Marx a negação da negação. Nas páginas 791 e seguintes expõe ele
os resultados finais das investigações econômicas e históricas, que constam de
cinqüenta páginas anteriores, sobre a chamada acumulação primitiva do capital.
Antes de sobrevir a era capitalista, dominava, pelo menos na Inglaterra, a
pequena indústria baseada na propriedade privada do operário sobre os meios de
produção. A chamada acumulação primitiva do capital se caracterizou, nestas
condições, pela expropriação desses produtores imediatos, isto é, pela abolição
da propriedade privada, baseada no trabalho do próprio produtor. Efetivou-se tal
coisa porque aquele regime de pequena indústria era compatível somente com as
proporções mesquinhas e primitivas da produção e da sociedade, engendrando, tão
logo os meios materiais de produção atingiram um certo grau de progresso, a sua
própria destruição. Esta destruição, que consistiu na transformação dos meios
individuais e dispersos de produção em meios de produção socialmente
concentrados, constitui a pré-história do capital. A partir do momento em que os
operários se transformam em proletários, em que as suas condições de trabalho
passam a ter a forma de capital, a partir do instante em que o regime
capitalista de produção começa a se mover por sua própria conta, a socialização
do trabalho e a mudança do sistema de exploração da terra e dos demais meios de
produção, e, portanto, a expropriação dos proprietários privados individuais, é
preciso, para continuarem progredindo, que seja adotada uma nova
forma.
"Não se trata mais de expropriar o
operário que produz por sua própria conta, mas o capitalista explorador de
muitos operários. E essa nova expropriação se realiza pelo jogo das leis
imanentes da própria produção capitalista, pela concentração dos capitais. Cada
capitalista devora muitos outros. E, ao mesmo tempo em que alguns capitalistas
expropriam a muitos outros, desenvolve-se, em grau cada vez mais elevado, a
forma cooperativa do processo de trabalho, a aplicação técnica e consciente da
ciência, sendo a terra cultivada mais metodicamente, os instrumentos de trabalho
tendem a alcançar formas que são manejáveis unicamente pelo esforço combinado de
muitos, economizam-se os meios da produção, em sua totalidade, ao serem
aplicados pela coletividade come meios de trabalho social, o mundo inteiro se vê
envolvido na rede do mercado mundial, e, com isso, o regime capitalista passa a
apresentar um caráter internacional cada vez mais acentuado. E, deste modo,
enquanto vai diminuindo progressivamente o número dos magnatas do capital, que
usurpam e monopolizam todas as vantagens desse processo de transformação,
aumenta, no pólo oposto, proporcionalmente, a pobreza. a opressão, a
escravização, a degradação e a exploração. Mas, ao mesmo tempo, cresce a revolta
da classe operária e esta se torna cada dia mais numerosa, mais disciplinada,
mais unida e organizada pelo próprio método capitalista de produção. O monopólio
capitalista transforma-se nas grilhetas do regime de produção que com ele e sob
as suas normas floresceu. A concentração dos meios de produção e a socialização
do trabalho chegam a um ponto em que se tornam incompatíveis com a sua envoltura
capitalista. E a envoltura se desagrega. Soou a hora final da propriedade
privada capitalista. Os expropriadores são
expropriados."
Após termos transcrito este
trecho, perguntamos ao leitor: onde estão os tais labirintos dialéticos e os
tais arabescos imaginativos, onde estão estas idéias confusas e embrulhadas,
segundo as quais tudo é uno e o mesmo, onde estão estes milagres dialéticos
feitos para os crentes, esse emaranhado de enigmas dialéticos e essa deturpação
da teoria do Logos de Hegel, sem os quais, Marx, segundo o Sr. Dühring, é
incapaz de desenvolver suas doutrinas? Marx demonstra, apoiando-se simplesmente
na história, conforme se vê no pequeno trecho transcrito, que, do mesmo modo
que, em sua época, a pequena indústria, ao expandir-se, criou, por força de uma
necessidade, as condições de sua própria destruição, isto é, as condições para a
expropriação dos pequenos proprietários, o atual regime capitalista de produção
engendra as condições materiais pelas quais deverá necessariamente perecer.
Trata-se de um processo histórico, e pelo fato de ser esse processo não só
histórico mas também dialético, por fatal que isso possa parecer ao Sr. Dühring,
a culpa não é precisamente de Marx.
Ao chegar a
este ponto, depois de desenvolver e esgotar a sua demonstração, baseada na
História da Economia, Marx afirma:"O regime capitalista de produção e de
apropriação, ou, o que vem a significar a mesma coisa, a propriedade privada
capitalista, é a primeira negação da propriedade privada individual, baseada no
trabalho do próprio produtor. A negação da produção capitalista surge dela
própria, pela necessidade imperiosa de um processo natural. É a negação da
negação."
Vemos, assim, que Marx, ao encarar
esse fenômeno como um caso de negação da negação, não tem em mente a idéia de
demonstrá-lo, por meio desse argumento, como um fenômeno de necessidade
histórica. Pelo contrário: somente depois de haver provado historicamente o
fenômeno que já se passara parcialmente e que terá necessariamente que se
desenvolver daqui por diante, é que o define como um fenômeno sujeito em sua
realização, a uma determinada lei dialética. E é suficiente essa explicação. O
Sr. Dühring volta a incorrer, pois, num ato de falsificação, quando afirma que a
negação da negação se vê aqui obrigada a prestar serviços de Parteira para fazer
o futuro surgir das entranhas do passado quando sustenta que Marx se socorre da
negação da negação para convencer os seus leitores da necessidade da aplicação
do comunismo aos capitais e à terra, o que é; seja dito entre parênteses, uma
nova contradição corpórea do Sr. Dühring.
Já
supõe uma total ausência de conhecimentos do que é a dialética, o fato de
considerá-la o Sr. Dühring como um expediente meramente probatório, que é,
aliás, o modo pelo qual as pessoas de horizonte limitado costumam usar a lógica
formal ou as matemáticas elementares. A lógica formal também é, antes de mais
nada e acima de tudo, um método de perscrutar novos resultados progressivos do
conhecido ao desconhecido. Dá-se o mesmo, ainda com um sentido mais evidente,
com a dialética que, além disso, rompendo os estreitos horizontes da lógica
formal, representa, por si mesma, o germe de uma ampla concepção do mundo. E a
mesma coisa ocorre também com as matemáticas. As matemáticas elementares, que
operam com grandezas constantes, se movem, pelo menos em termos gerais, dentro
das fronteiras da lógica formal; as matemáticas das grandezas variáveis, cujo
setor mais importante é o cálculo infinitesimal, não são, em essência, nada mais
que a aplicação da dialética aos problemas matemáticos. Aqui, o aspecto
puramente probatório fica, de uma vez por todas, relegado a um segundo plano,
substituído pela aplicação variada e constante do método a novas zonas de
investigação. Mas, a rigor. quase todas as demonstrações das matemáticas
superiores, a começar pelas introdutórias ao cálculo diferencial, são falsas do
ponto de vista das matemáticas elementares. O mesmo acontecerá, como se pretende
aqui, se desejarmos aplicar, por meio da lógica formal, os resultados obtidos no
terreno dialético. Querer provar alguma coisa, pela simples dialética, a um
metafísico tão declarado como o Sr. Dühring, seria perder tempo, e seria tão
infrutífero, como aconteceu quando Leibnitz e seus discípulos quiseram provar,
aos matemáticos de sua época, as operações do cálculo infinitesimal. As
diferenciais causavam àqueles cavalheiros exatamente a mesma indignação que hoje
a negação da negação causa ao Sr. Dühring, na qual, além do mais, a diferencial
desempenha, como veremos, um papel de relevo. Aqueles cavalheiros foram,
entretanto, pouco a pouco, pelo menos aqueles que sobreviveram àquela etapa, se
rendendo à nova doutrina, embora resmungando, não por que esta convencesse, mas
por que a verdade se impunha cada dia com mais força. O Sr. Dühring anda pelos
quarenta, conforme sua própria informação, e podemos garantir que passará pela
mesma experiência que aqueles matemáticos, se alcançar a idade avançada, como é,
aliás, nosso desejo.
Mas, afinal, em que
consiste essa espantosa negação da negação, que amargura a vida do Sr. Dühring,
até o ponto de ver nela um crime imperdoável, algo como se fosse um pecado
contra o Espírito Santo a que os cristãos não admitem salvação possível?
Consiste, como veremos, num processo muito simples, que se realiza todos os dias
e em todos os lugares, e que qualquer criança pode compreender, desde que o
libertemos da envoltura enigmática com que o cobriu a velha filosofia idealista
e com que querem continuar cobrindo-o, porque assim lhes convém, os fracassados
metafísicos da têmpera do Sr. Dühring. Tomemos, por exemplo, um grão de cevada.
Todos os dias, milhões de grãos de cevada são moídos, cozidos, e consumidos, na
fabricação de cerveja. Mas, em circunstâncias normais e favoráveis, esse grão,
plantado em terra fértil, sob a influencia do calor e da umidade, experimenta
uma transformação específica: germina. Ao germinar, o grão, como grão, se
extingue, é negado, destruído, e, em seu lugar, brota a planta, que, nascendo
dele, é a sua negação. E qual é a marcha normal da vida dessa planta? A planta
cresce, floresce, é fecundada e produz, finalmente, novos grãos de cevada,
devendo, em seguida ao amadurecimento desses grãos, morrer, ser negada, e, por
sua vez, ser destruída. E, como fruto desta negação da negação, temos outra vez
o grão de cevada inicial, mas já não sozinho, porém ao lado de dez, vinte,
trinta grãos. Como as espécies vegetais se modificam, com extraordinária
lentidão, a cevada de hoje é quase igual à de cem anos atrás. Mas tomemos, em
vez desse caso, uma planta de ornamentação ou enfeite, por exemplo, uma dália ou
uma orquídea. Se tratarmos a semente e a planta que dela brota, com os cuidados
da arte da jardinagem, obteremos como resultado deste processo de negação da
negação, não apenas novas sementes, mas sementes qualitativamente melhoradas,
capazes de nos fornecer flores mais belas; cada repetição deste processo, cada
nova negação da negação, representará um grau a mais nesta escala de
aperfeiçoamento. E um processo semelhante se dá com a maioria dos insetos, como,
por exemplo, com as mariposas. Nascem, estas, também, do ovo, por meio da
negação do próprio ovo, destruindo-o, atravessando depois uma série de
metamorfoses até chegar à maturidade sexual, se fecundam e morrem por um novo
ato de negação, tão logo se consume o processo de procriação, que consiste em
pôr a fêmea os seus numerosos ovos. Por enquanto nada mais nos interessa, nem
que não apresente o processo a mesma simplicidade noutras plantas e animais, que
não produzem uma, mas várias vezes, sementes, ovos ou crias. antes que lhes
sobrevenha a morte; a única coisa que nos interessa é demonstrar que a negação
da negação é um fenômeno que se dá realmente nos dois reinos do mundo orgânico,
o vegetal e o animal. E não somente nestes reinos. Toda a geologia não é mais
que uma série de negações negadas, uma série de desmoronamentos de formações
rochosas antigas, sobrepostas umas às outras, e de justaposição de novas
formações. A sucessão começa porque a crosta terrestre primitiva, formada pelo
resfriamento da massa fluida, vai-se fracionando pela ação das forças oceânicas,
meteorológicas e químico-atmosféricas, formando-se, assim, massas estratificadas
no fundo do mar. Ao emergir, em certos pontos, as matérias do fundo do mar à
superfície das águas, Parte destas estratificações se vêm submetidas novamente à
ação da chuva, às mudanças térmicas das estações, à ação do hidrogênio e dos
ácidos carbônicos da atmosfera; e a essas mesmas influências se acham expostas
as massas pétreas fundidas e logo depois esfriadas que, brotando do seio da
terra, perfuram a crosta terrestre, Durante milhares de séculos vão se formando,
dessa forma, novas e novas camadas que, por sua vez, são novamente destruídas em
sua maior Parte e, algumas vezes, são utilizadas como matéria para a formação de
outras novas camadas. Mas o resultado é sempre positivo em qualquer hipótese: a
formação de um solo onde se misturam os mais diversos elementos químicos num
estado de pulverização mecânica, que permite o desenvolvimento da mais extensa e
variada vegetação.
Com as matemáticas ocorre
exatamente o mesmo fato. Tomemos uma qualquer grandeza algébrica, por exemplo
a. Se a negarmos, teremos -a (menos a). Se negarmos esta negação,
multiplicando -a por -a, teremos +a2, isto é, a grandeza
positiva da qual partimos, mas num grau superior elevada à segunda potência. Mas
aqui não nos interessa que a este resultado (a2) se possa chegar
multiplicando a grandeza positiva a por si mesma, pois a negação negada é algo
que se acha tão arraigado na grandeza a2, que esta encerra, sempre e de
qualquer modo, duas raízes quadradas, a saber: a do a e a do -a. E
esta impossibilidade de nos desprendermos da negação negada, da raiz negativa
contida no quadrado, toma, nas equações dos quadrados, um caráter de evidência
marcante. Entretanto é maior ainda a evidência com que se nos apresenta a
negação da negação na análise superior, nessas"somas de grandezas
ilimitadamente pequenas" que o próprio Sr. Dühring considera como as supremas
operações das matemáticas e que são as que vulgarmente chamamos de cálculo
diferencial e integral. Como se desenvolvem essas operações de cálculo
Suponhamos, como exemplo, que, num problema qualquer que nos foi dado para
resolver, há duas grandezas variáveis x e y, nenhuma das quais pode variar sem
que varie também a outra, na proporção que as circunstâncias determinem.
Começamos, então, por diferenciar as duas grandezas, x e y isto é, por supor que
são tão infinitamente pequenas que desaparecem, comparadas com qualquer outra
grandeza real, por pequena que seja, não restando, portanto, de x e
y nada mais que sua razão ou proporção, despojada, por assim dizer, de
toda a base material, reduzida a uma relação quantitativa da qual se eliminou a
quantidadedy/dx, isto é, a razão ou proporção das duas diferenciais de
x e y, se reduz, portanto, a 0/0, mas esta fórmula - nada
mais é que a expressão da fórmula y/x. Observamos, de passagem, que esta
razão ou proporção entre duas grandezas eliminadas, bem como o momento exato em
que se eliminam, é uma contradição; mas esta contradição não nos deve
desorientar, como não desorientou os matemáticos de dois séculos atrás. Pois
bem, que fizemos neste problema, além de negar as grandezas x e y,
mas negá-las não nos descartando delas, que é o modo pelo qual a nega a
metafísica, mas sim negando-as de um modo que se ajusta à realidade da situação?
Substituímos as grandezas x e y pela sua negação, chegando, assim,
em nossas fórmulas ou equações a dx e dy. Isso feito, seguimos
nossos cálculos operando com dx e dy como grandezas reais, embora
sujeitas a certas leis de exceção e ao chegar a um determinado momento, negamos
a negação, isto é, integramos a fórmula diferencial, obtendo novamente, em vez
de dx e dy, as grandezas reais x e y. E, ao fazê-lo,
não tornaremos a nos encontrar no ponto do qual partimos, mas teremos resolvido
o problema contra o qual se debateram, em vão, por outros caminhos, a geometria
e a álgebra elementares.
O mesmo acontece com a
História. Todos os povos civilizados têm em sua origem a propriedade coletiva do
solo. E. em todos esses povos, ao penetrar numa determinada fase primitiva, o
desenvolvimento da agricultura, a propriedade coletiva converte-se num entrave
para a produção. Ao chegar a este momento, a propriedade coletiva se destrói, se
nega, convertendo-se, após etapas intermediárias mais ou menos longas, em
propriedade privada. Mas, ao chegar a uma fase mais elevada de progresso no
desenvolvimento da agricultura, fase essa que se alcança justamente devido à
propriedade privada do solo, esta, por sua vez, se converte num obstáculo para a
produção, conforme hoje se observa no que se refere à grande e à pequena
propriedade. Nestas circunstâncias, surge, por força da necessidade, a aspiração
de negar também a propriedade privada e de convertê-la novamente em propriedade
coletiva. Mas esta aspiração não tende exatamente a restaurar a primitiva
propriedade comunal do solo, mas a implantar uma forma multo mais elevada e mais
complexa de propriedade coletiva que, longe de criar uma barreira ao
desenvolvimento da produção, deverá acentuá-lo, permitindo-lhe explorar
integralmente as descobertas químicas e as invenções mecânicas mais
modernas.
Tomemos outro exemplo. A filosofia
antiga era uma filosofia materialista, porém primitiva e rudimentar. Esse
materialismo não seria capaz de explicar claramente as relações entre o
pensamento e a matéria. A necessidade de se chegar a conclusões claras a
respeito desse problema, levou à criação da teoria de uma alma separada do corpo
e logo depois se passou à afirmação da imortalidade da alma e, por fim, ao
monoteísmo. Desse modo, o materialismo primitivo se via negado pelo idealismo.
Mas, com o desenvolvimento da filosofia, também o idealismo se tornou
insustentável e, por sua vez, teve de ser negado pelo materialismo moderno. Este
não é, entretanto, como negação da negação, a mera restauração do materialismo
primitivo, mas, pelo contrário, corresponde à incorporação, às bases permanentes
deste sistema, de todo o conjunto de pensamentos, que nos provêm de dois
milênios de progressos no campo da filosofia e das ciências naturais e da
história mesma destes dois milênios. Não se trata já de uma filosofia, mas de
uma simples concepção do mundo, de um modo de ver as coisas, que não é levado à
conta de uma ciência da ciência, de uma ciência à Parte, mas que tem, pelo
contrário, a sua sede e o seu campo de ação em todas elas. Vemos, pois, como a
filosofia é, desse modo,"cancelada", isto é,"superada ao mesmo tempo que
mantida"; superada, com relação à sua forma; conservada, quanto ao seu conteúdo.
Pois ali onde o Sr. Dühring não vê mais que"um jogo de palavras", se esconde,
para quem sabe ver as coisas, um conteúdo e uma
realidade.
Finalmente, até a teoria
rousseauniana da igualdade, que tem apenas um eco apagado e falseado nas
futilidades do Sr. Dühring, foi incapaz de se constituir sem os serviços de
Parteira da negação da negação hegeliana: e isto, mais de 20 anos antes do
nascimento de Hegel. Longe de se envergonhar de tal coisa, essa teoria exibe,
quase ostensivamente. em sua primeira versão, a marca de suas origens
dialéticas. No estado de natureza e de selvageria, os homens eram iguais; e como
Rousseau considera já a linguagem uma deturpação do estado de natureza, tem
razão quando aplica o critério da igualdade, assim como, ao mesmo tempo,
pretendeu classificar hipoteticamente, como homens-bestas, sob a designação de
"alalos" (seres privados de fala). Mas estes homens-bestas, iguais entre si,
levavam sobre os outros animais a vantagem de serem animais perfectíveis, de
terem capacidade de desenvolvimento; eis onde está, segundo Rousseau, a fonte da
desigualdade. Rousseau vê, assim, no nascimento da desigualdade um progresso,
mas este progresso é contraditório, pois implica, ao mesmo tempo, num
retrocesso."Todos os demais progressos (a partir do estado primitivo da
natureza) foram, aparentemente, outros tantos dados para o aperfeiçoamento do
indivíduo humano", mas, na realidade, o que o progredia era a decadência da
espécie. A elaboração dos metais e o fomento da agricultura foram as duas artes,
cuja descoberta provocou esta grande revolução". (Rousseau se refere à
transformação das florestas virgens em terras e campos de trabalho, à
generalização da miséria e da escravidão, como efeito da implantação da
propriedade)."Para o poeta, o ouro e a prata, assim coma para o filósofo o
ferro e o trigo, civilizaram o homem e arruinaram o gênero humano". Cada novo
avanço da civilização é, por sua vez, um novo avanço da desigualdade. Todas as
instituições que nascem nas sociedades, no decorrer do processo de civilização,
se convertem no inverso de sua primitiva finalidade."É indiscutível, sendo uma
lei fundamental de todo o direito político, que os povos começaram por aceitar
príncipes que protegessem a sua liberdade e não que a destruíssem. Entretanto.
esses príncipes se converteram, por força da necessidade, em opressores dos
povos que deveriam proteger, e levaram essa opressão até um ponto em que a
desigualdade, elevada ao máximo, tem que se converter novamente no contrário do
que é, isto é, em fonte de igualdade: frente ao déspota, todos os homens são
iguais, pois todos se reduzem a zero."Ao chegar a essa fase, o grau máximo de
desigualdade é o ponto final que, fechando o ciclo, toca já o ponto inicial do
qual partimos: ao chegar a este ponto, todos os homens são iguais, pelo fato de
serem nada e, como súditos, têm todos, como única lei, a vontade de seu Senhor".
Mas o déspota é Senhor somente quando tem em suas mãos a força e, por isso,"no
caso de ser derrotado, não pode se queixar de ter sido derrotado pelo uso da
força...""A mesma força que o susteve, o derruba, e tudo se passa, de acordo
com uma causa adequada e de acordo com a ordem natural". Significa isso que a
desigualdade se transforma novamente em igualdade, mas esta já não é a igualdade
rudimentar e primitiva do homem"alado", em estado natural, mas é a liberdade
superior do contrato social. Os opressores se convertem em oprimidos. É a
negação da negação.
Em Rousseau, já nos
encontramos, pois, com um processo quase idêntico ao que Marx desenvolve em O
Capital. Além de todas as expressões dialéticas que são exatamente as mesmas
empregadas por Marx, encontramos também processos antagônicos por natureza,
cheios de contradições, contendo a transmutação de um extremo em seu contrário
e, finalmente, o ponto nevrálgico de toda a questão, a negação da negação.
Assim, já em 1754, Rousseau, que ainda não se podia exprimir pela nomenclatura
hegeliana, estava, 23 anos antes do nascimento de Hegel. devorado até a medula
pela peste da filosofia hegeliana, pela dialética da contradição, pela teoria do
Logos, pela teologia, etc.. etc. E quando o Sr. Dühring, reduzindo a zero a
teoria rousseauniana da igualdade, opera com os seus dois homenzinhos triunfais,
se vê forçado a deslizar por um plano perigoso, que o leva, irremediavelmente,
para a negação da negação da qual está querendo fugir. O estado em que floresce
a igualdade desses dois homens e que nos é apresentado, sem dúvida, como um
estado ideal, recebe à página 271 da Filosofia o apelido de"estado primitivo".
Mas, ao chegar à página 279, este"estado primitivo" se transforma, por lei
necessária, no"sistema de rapina": primeira negação. Graças, entretanto, à
filosofia da realidade, conseguimos abolir este"sistema de rapina", para
implantar, sobre suas ruínas, a Comuna econômica inventada pelo Sr. Dühring e
baseada na igualdade: negação da negação, igualdade elevada a uma potência mais
alta. É divertido ver como, além de ampliar de modo benéfico o nosso horizonte
visual, o próprio Sr. Dühring acaba cometendo, também, sem que se dê conta,
contra a sua augusta pessoa, o horrendo crime, que é o de incorrer na
intolerável negação da negação.
Que vem a- ser,
finalmente, a negação da negação É uma lei extraordinariamente geral, e, por
isso mesmo, extraordinariamente eficaz e importante, que preside ao
desenvolvimento da natureza, da história e do pensamento; uma lei que, como já
vimos, se impõe no mundo animal e vegetal, na geologia, nas matemáticas, na
história e na filosofia. A esta lei, o próprio Sr. Dühring acaba por se
submeter, embora sem o saber, apesar de todos os obstáculos e maldições que
lança contra ela. Já se disse que o processo que atravessa, por exemplo, o grão
de cevada, desde a sua germinação até que desapareça a planta a que ele deu a
vida, é uma negação da negação, e, com isto, não se pretende, de modo algum,
prejulgar o conteúdo concreto deste processo. Pois, se se pretendesse afirmar o
contrário, quando se sabe que o próprio cálculo integral - como já vimos - é
também negação da negação, seria cair no absurdo de sustentar que o processo de
vida de um grão de cevada eqüivale ao cálculo diferencial, e o que fazemos com o
cálculo diferencial poderíamos aplicar até ao socialismo. Isso é o que os
metafísicos constantemente críticam na dialética. Quando se diz que todos esses
processos têm de comum a negação da negação, o que se pretende é englobar a
todos, sob esta lei dinâmica, sem se prejulgar, no entanto, de modo algum, o
conteúdo concreto de cada um deles. Esta não é a missão da dialética. que tem
apenas por incumbência estudar as leis gerais que presidem à dinâmica e ao
desenvolvimento da natureza e do
pensamento.
Poder-se-ia objetar, ainda, que a
negação, que se realiza neste processo, não é a verdadeira negação; um grão de
cevada é também negado quando é moído, da mesma forma que um inseto é negado
quando esmagado, e a grandeza positiva A quando é negada se a anula etc. Ao se
negar a afirmação:"a rosa é uma rosa", quando se diz que"a rosa não é uma
rosa", qual é o resultado se, logo depois, se torna a negar esta negação, para
dizer:"Sim, a rosa é uma rosa"? Outros não são, com efeito, os argumentos
principais levantados pelos metafísicos contra a dialética, argumentos dignos da
estreiteza de horizontes, característica dessa maneira de pensar. Negar, em
dialética, não consiste pura e simplesmente em dizer não, em declarar que uma
coisa não existe, ou em destruí-la por capricho. Já Spinoza dizia: Omnis
determinatio est negatio, toda determinação, toda demarcação é, ao mesmo tempo,
uma negação. Além disso, em dialética, o caráter da negação obedece, em primeiro
lugar, à natureza geral do processo, e, em segundo lugar, à sua natureza
especifica. Não se trata apenas de negar, mas de anular novamente a negação.
Assim, a primeira negação será de tal natureza que torne possível ou permita que
seja novamente possível a segunda negação. De que modo? Isso dependerá do
caráter especial do caso concreto. Ao se moer o grão de cevada, ou ao se matar o
inseto, está-se executando, inegavelmente, o primeiro ato, mas torna-se
impossível o segundo. Portanto, cada espécie de coisas tem um modo especial de
ser negada, que faz com que a negação engendre um processo de desenvolvimento,
acontecendo o mesmo com as idéias e os conceitos. No cálculo infinitesimal,
nega-se, de um modo diferente, a obtenção de potências positivas que Partem de
raízes negativas. Mas estes métodos diferentes de negar devem ser conhecidos e
apreendidos, como acontece com todas as outras coisas. Não basta que saibamos
que a muda de cevada e o cálculo infinitesimal se encontram sob as leis da
negação da negação, para que possamos cultivar com sucesso a cevada ou para que
possamos realizar operações de diferenciação ou integração, da mesma maneira que
não nos é suficiente conhecer as leis que regem a determinação do som, pelas
dimensões das cordas, para que saibamos tocar violino. Mas é evidente que não
pode sair nada de um processo da negação da negação que se limite apenas à
puerilidade de escrever num quadro negro um A, e logo depois apagá-lo, ou a
dizer que uma rosa é uma rosa para, logo em seguida, dizer que não é. Somente se
poderia provar, dessa forma, a idiotice de quem se entrega a tais divagações.
Isso não obsta, porém, a que os metafísicos pretendam demonstrar que, se nos
empenharmos em raciocinar sobre a negação da negação, somente poderemos utilizar
este processo.
Chegamos, pois, à conclusão de
que é o Sr. Dühring a única pessoa que quer mistificar as coisas quando afirma
que a negação da negação é uma quimera analógica, inventada por Hegel,
emprestada do campo da religião, e calcada sobre o mito do pecado original e da
redenção. Muito antes de saber o que era dialética, o homem já pensava
dialeticamente, da mesma forma por que, muito antes da existência da palavra
escrita, ele já falava. Hegel nada mais fez que formular nitidamente, pela
primeira vez, esta lei da negação da negação, lei que atua na natureza e na
História, como atuava, inconscientemente, em nossos cérebros, muito antes de ter
sido descoberta. E se o Sr. Dühring fica aborrecido com um tal nome, e quer
realizar o processo, sem que ninguém saiba que o está realizando, ainda é tempo
de inventar um nome melhor. Mas se o que deseja é apagar a própria operação do
pensamento, deverá, antes, encontrar o modo de expulsar esse processo da
natureza e da história e, para isso, deverá inventar uma matemática na qual
-a X -a não deve dar +a2 e na qual seja proibido, sob penalidades
diversas, o cálculo diferencial e integral.
Inclusão | 30/10/2002 |