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"A primeira e mais importante das teses sobre as propriedades lógicas fundamentais do ser refere-se à exclusão da contradição. O contraditório é uma categoria que somente pode ocorrer numa combinação especulativa, mas nunca na realidade. Não existem contradições nas coisas, ou, dito de outro modo, a contradição posta na realidade é o cúmulo do absurdo... O antagonismo de forças que se medem umas às outras em determinado sentido e, inclusive, a forma fundamental de todas as ações na realidade do mundo e dos seres que nele habitam. Mas esta divergência entre as diferentes direções de força dos elementos e dos indivíduos, não se concilia, de modo algum, com a idéia de absurdos contraditórios... Podemo-nos, sentir, neste ponto, satisfeitos por poder desfazer, com uma imagem clara do verdadeiro absurdo que representa a contradição na realidade, a névoa que parece levantar-se dos pretendidos mistérios da lógica, demonstrando a inutilidade do incenso que se gastou, aqui e ali, em homenagem ao fetiche de barro da dialética da contradição, grosseiramente talhado e burilado na esquemática dos antagonismos do mundo". É isso, mais ou menos, tudo o que o Curso de Filosofia nos diz sobre a dialética. Na sua História Crítica, o Sr. Dühring focaliza, de um modo completamente diferente, a dialética da contradição e nela, principalmente, a doutrina de Hegel."Na lógica hegeliana, ou melhor, na teoria do Logos, o contraditório não reside no pensamento, que, por sua própria natureza, só pode ser representado como função subjetiva e consciente, mas que existe objetivamente e pode ser apalpado, digamos, de um modo corporal, nas coisas e nos próprios fenômenos; ou seja, o contra senso não é de fato uma combinação impossível de pensamentos, mas sim uma potência real. A realidade do absurdo é o primeiro artigo de fé na unidade hegeliana da lógica e da falta de lógica... Quanto mais contraditório, mais verdadeiro, ou melhor, quanto mais absurdo, mais verossímil. Esta máxima, que nem sequer é nova, pois provém da teologia da revelação e da mística, é a expressão pura e simples do chamado principio dialético."
A ideia contida nesses dois trechos citados pode ser resumida pela afirmação de que a contradição é o absurdo e que, portanto, não pode se dar no mundo da realidade. Com efeito, para quem se ufana de possuir um sadio senso comum esta tese terá a mesma força de evidência que teria se disséssemos que uma reta não pode ser curva, nem uma curva pode ser reta. Entretanto, o cálculo diferencial, apesar de todos os protestos do sadio senso comum, equipara, em certas circunstâncias, as retas às curvas, atingindo, assim, resultados que jamais poderiam ser alcançados se os matemáticos comungassem com o presunçoso e sadio senso comum em considerar como absurda a identidade da curva e da reta. Considerando-se o papel de suma importância que a chamada dialética da contradição tem desempenhado na filosofia, desde os gregos antigos até os filósofos atuais, mesmo um adversário um pouco mais forte do que o Sr. Dühring sentir-se-ia na obrigação de lançar contra ela argumentos que não fossem apenas uma afirmação e umas tantas injúrias.
Certamente, desde que nos limitemos a focalizar as coisas como se fossem estáticas e inertes, contemplando-as isoladamente, cada uma de per si, no tempo e no espaço, não descobriremos nestas coisas nenhuma contradição. Encontrar-nos-emos com determinadas propriedades, umas comuns e outras diferentes e até mesmo contraditórias entre si, mas que não encerram uma contradição verdadeira uma vez que esta se encontra distribuída entre diversos objetos. Nos limites desta zona de observação podemos aplicar o método vulgar da metafísica sem nenhum perigo. Mas a coisa é diferente se quisermos focalizar os objetos dinamicamente, acompanhando-os em sua mobilidade, vendo-os transformar-se, viver, e influir uns sobre os outros. Ao pisar neste terreno, cairemos imediatamente numa série de contradições. O próprio movimento, por si mesmo, é uma contradição; o deslocamento mecânico de um lugar para outro somente pode ser realizado por estar um corpo, ao mesmo tempo, no mesmo instante, num e noutro lugar e também pelo fato de estar e não estar o corpo ao mesmo tempo no mesmo local. A sucessão continua de contradições desse gênero, ao mesmo tempo formadas e solucionadas, é precisamente o que constitui o movimento.
Temos, pois, diante de nós, uma
contradição"que existe objetivamente e que pode ser apalpada, digamos, de um
modo corporal, nas coisas e nos próprios fenômenos". Que diz a este respeito o
Sr. Dühring? O Sr. Dühring afirma que, até hoje,"na mecânica racional não se
encontra nenhuma ponte que ligue o estritamente estático e o dinâmico". O
leitor, finalmente, perceberá agora o que está oculto por detrás dessa frase da
predileção do Sr. Dühring e que se resume no seguinte: A inteligência que só
sabe pensar metafisicamente não pode, de modo algum, passar da idéia do repouso
à idéia do movimento, porque o obstáculo da contradição lhe barra o caminho.
Para os que assim pensam, o movimento é, como contradição, alguma coisa de
totalmente inconcebível. E ao afirmar que o movimento é inconcebível dá como
reconhecida, sem querer, a existência dessa contradição, reconhecendo, portanto,
a existência de uma contradição que se encontra objetivamente nas coisas e nos
fenômenos e, além disso, que esta contradição é uma força
efetiva.
E, se o simples movimento mecânico, a
simples mudança de um para outro lugar, contém uma contradição, suponha-se então
a série de contradições que estarão contidas nas formas superiores de movimento
da matéria, e, em particular, na vida orgânica e na sua evolução. Vimos atrás
que a vida consiste, precisamente, essencialmente, em que um ser é, no mesmo
instante, ele mesmo e outro. A vida não é, pois, por si mesma, mais que uma
contradição encerrada nas coisas e nos fenômenos, e que se está produzindo e
resolvendo incessantemente: ao cessar a contradição, cessa a vida e sobrevem a
morte. Vimos também como, no próprio mundo do pensamento, não poderíamos estar
livres de contradições, como, por exemplo, a contradição entre a capacidade de
conhecimento do homem, ilimitada interiormente e a sua existência real, no seio
de um conjunto de homens, cujo conhecimento é limitado e finito exteriormente.
Essa contradição, no entanto, se resolve na sucessão infinita, pelo menos para
nós, das gerações, num progresso
ilimitado.
Como já vimos, uma das bases
fundamentais das matemáticas superiores é, precisamente, a contradição, que
consiste em equiparar, em certas circunstâncias, as retas às curvas. Uma outra
contradição das matemáticas superiores é a que se observa quando se cruzam duas
linhas; estas, na distância de cinco ou seis centímetros do ponto de interseção,
se tornam linhas paralelas, que, por mais que se prolonguem, até o infinito, não
se hão de encontrar. Entretanto, é por estas contradições e por outras, ainda
mais acentuadas, não só que se encontram resultados exatos, como também se
alcançam resultados perfeitamente inexeqüíveis nos limites das matemáticas
inferiores. Não nos é necessário, todavia, sair
dos quadros limitados destas matemáticas inferiores, para encontrar contradições
em todos os terrenos. Não há uma contradição, por acaso, no fato de que uma raiz
de A seja uma potência de A, e, ainda mais, que encontremos:
Não há
uma contradição no fato de que uma grandeza negativa não possa ser quadrado de
nenhuma outra, embora toda grandeza negativa multiplicada por si mesma dê um
quadrado positivo? A raiz quadrada de menos um (- 1) é, pois, não somente uma
contradição, mas simplesmente uma contradição absurda, um verdadeiro
contra-senso. Entretanto, é, em muitos
casos, o resultado necessário de uma operação matemática exata; e mesmo, onde
estariam as matemáticas, tanto as elementares como as superiores, se lhes fosse
proibido operar com a raiz quadrada de menos
um?
As próprias matemáticas, ao tratar das
operações sobre grandezas variáveis, penetram no terreno dialético, e é
significativo o fato de que foi o filósofo dialético Descartes quem levou este
progresso ao campo das matemáticas. Pois bem; a relação que existe entre as
matemáticas das grandezas variáveis e as de grandezas invariáveis, é a mesma que
medeia entre a lógica dialética e a metafísica. Isso não impede, de modo algum,
que a grande maioria dos matemáticos não aceite a dialética fora desses limites
e não poucos deles continuem a servir-se dos métodos obtidos pelo método
dialético, à maneira antiga, limitada e
metafísica.
Poderíamos deter-nos a examinar
mais de perto o antagonismo de forças do Sr. Dühring e a esquemática antagônica
do mundo, se, sobre esse assunto, ele nos oferecesse alguma coisa a mais que
simples frases. Depois de as ter formulado, não sabe o nosso autor apresentar
esse antagonismo em ação, nem uma só vez, na esquemática do mundo, nem na
filosofia da natureza. Esta é a maior prova de que o Sr. Dühring nada sabe fazer
de positivo com"esta forma fundamental de todas as ações na existência do mundo
e dos seres que o habitam". Quando se tem conhecimento de como se reduziu a
"teoria do ser" de Hegel a esta vulgaridade de forças que se movimentem em
direção determinada, mas não por um processo de contradições. o melhor que se
tem a fazer é evitar cuidadosamente qualquer aplicação de um tal lugar
comum.
Um outro pretexto em que se apoia o Sr.
Dühring para dar vazão à sua cólera antidialética é O Capital de Marx."Falta de
lógica natural e inteligível, que serve para evidenciar os labirintos e
arabescos de idéias retorcidamente dialéticas... Ao trecho que temos em nossa
frente deve ser aplicado o princípio de que, em certos casos e mesmo de modo
geral, (!) em conformidade com o conhecido preconceito filosófico, deve
encontrar-se o todo em cada uma das coisas e cada uma das coisas deve ser
encontrada no todo e, de acordo com esta idéia de mistura e confusão, tudo é, em
última análise, uno." Isso quer dizer que, penetrando no"conhecido preconceito
filosófico", o Sr. Dühring pode prever com absoluta segurança qual será o"fim"
de toda a filosofia econômica marxista, e, portanto, qual o conteúdo dos
restantes volumes de O Capital faz essa declaração sete linhas depois de ter
afirmado que"entretanto, não há realmente nenhuma maneira de se saber o que
virá de fato, falando como homem e como alemão, nos dois
volumes."
Não é a primeira vez que as obras do
Sr. Dühring se vêem incluídas entre as"coisas" em que"o contraditório existe
objetivamente e pode ser apalpado, digamos, de um modo corporal". Isso não
impede, entretanto, de prosseguir num tom triunfal:"É de se esperar, todavia,
que a verdadeira lógica triunfará sobre a sua caricatura... O ar doutoral e a
banalização dos mistérios dialéticos não tentarão àqueles que conservam um pouco
de senso comum e não se deixam envolver por essas algaravias de pensamento e de
estilo... Na agonia destes últimos restos das tolices dialéticas, perderão estes
processos de mistificação, a sua enganosa influência... e já ninguém se
considerará obrigado a se atormentar na procura de uma profunda sabedoria lá
onde, uma vez posto a nu o núcleo de todas essas artimanhas retorcidas,
encontraremos, na melhor das hipóteses, vestígios de teorias vulgares ou, então,
lugares comuns... É absolutamente impossível reproduzir os labirintos (de Marx)
referentes à teoria do Logos, sem que se tenha de prostituir a lógica
verdadeira". O método de Marx consiste em"realizar milagres dialéticos, para
pasmo dos seus crentes", etc., etc.
Também aqui
se cogita de analisar a exatidão ou a falsidade dos resultados econômicos a que
chegam as investigações de Marx, mas apenas se analisa o método dialético por
ele aplicado. Pode-se bem afirmar que a maioria dos leitores de O Capital
começaram só agora a tomar conhecimento do que na realidade leram, graças ao Sr.
Dühring. E, entre esses leitores, se encontra o próprio Sr. Dühring que, em 1867
(Erganzungsblatter, III, caderno 3) pode, todavia, fazer um resumo deste livro,
relativamente racional para um pensador de seu calibre, sem se sentir na
obrigação de traduzir o desenvolvimento da obra de Marx em termos dühringuianos,
como agora acredita indispensável. Embora já naquela época incorresse no deslize
de confundir a dialética marxista com a hegeliana, não tinha ainda perdido por
completo a capacidade de distinguir o método dos resultados conseguidos por meio
dele, nem tampouco o dom de compreender que, para refutar de um modo concreto
estes resultados, não basta lançar por terra, de um modo geral, o
método.
Mas a verdadeira surpresa que nos tinha
reservado o Sr. Dühring é a de que, do ponto de vista marxista,"em última
análise tudo é uno", ou seja, que, para Marx, por exemplo, capitalistas e
operários assalariados, regimes de produção feudal, capitalista e socialista,
"tudo é uno" e acabamos, no fim de contas, por concluir que Marx e o Sr. Dühring
são também uno e o mesmo. Para não cair em tal tolice e em semelhante simplismo,
não temos mais que um caminho, que é o de supor que, pronunciando a palavra
"dialética", o Sr. Dühring se vê transportado automaticamente para um estado de
irresponsabilidade, no qual, partindo de uma idéia de balbúrdia e confusão,
acaba por achar que tudo é a mesma coisa, parecendo-lhe que é"um todo" tudo
quanto diz e faz.
Temos aí uma prova do que o
Sr. Dühring chama"o meu grandioso sentido histórico" ou, como diz noutra Parte,
"o processo sumário que ajusta contas com a espécie e com o tipo sem,
entretanto, se dignar a descer até prestar honrarias ao que Hume chamava a plebe
erudita, pondo a nu a sua ignorância com uma minuciosidade microscópica"; este
processo que é"no mais alto e mais nobre dos estilos, o único admitido pelos
interesses da verdade plena e que é compatível com os deveres para com o público
não arregimentado". A verdade é que o grandioso sentido histórico e essa
liquidação sumária de contas"com a espécie e com o tipo" são bastante cômodos
para o Sr. Dühring pois lhe permitem desprezar, como microscópicos e nulos,
todos os fatos concretos, eximindo-se do dever de provar alguma coisa para se
limitar a construir frases gerais e lançar afirmações e palavras vistosas. Além
disso, esse processo tem a vantagem de não fornecer ao adversário qualquer
pretexto material, não lhe deixando, portanto, a menor possibilidade de
refutação que não seja a de lançar, por sua vez, umas tantas afirmações sumárias
e grandiosas, perdendo-se em frases gerais e respondendo às palavras do Sr.
Dühring com outras tantas palavras vistosas, que é o que se pode dizer -
devolver a pelota; mas este processo não está no gosto de todos. Devemos por
isso solicitar ao Sr. Dühring que, excepcionalmente, abandone o seu estilo alto
e nobre para nos oferecer, ao menos, dois exemplos dos erros em que incorre Marx
em sua reprovável teoria do Logos.
"Como é
cômico, por exemplo, o apelo à idéia nebulosa e confusa de Hegel, de que a
quantidade se converte em qualidade e, portanto, de que, ao chegar em
determinado limite, uma quantidade aumentada, pelo simples fato de crescer
quantitativamente, se converte em capital."
Com
efeito, a idéia exposta dessa maneira pelo Sr. Dühring, depois de"podada"
cuidadosamente, não se pode negar que é bastante esquisita. Vejamos, porém, que
aspecto apresenta a idéia no original, tal como Marx a expõe. Na página 313 (2a.
edição de O Capital) Marx extrai da investigação anteriormente feita sobre o
capital constante e o capital variável e sobre a mais-valia, a conclusão de que
"nem toda a soma de dinheiro ou de valor, qualquer que seja, pode ser convertida
em capital, sem que esta transformação suponha antes, a existência de um
determinado mínimo de dinheiro ou de valor de troca nas mãos do possuidor de
dinheiro, ou de mercadorias." Dá como exemplo que, num ramo qualquer de
trabalho, o operário trabalha para si mesmo 8 horas diárias, ou seja, para criar
o valor de seu salário, trabalhando outras 4 horas para o capitalista a fim de
produzir a mais-valia que vai então para os seus bolsos. Para isso, deve,
necessariamente, existir alguém que disponha de uma soma de valor que lhe
permita fornecer aos operários matérias-primas, meios de trabalho e salários, do
modo a poder embolsar, todos os dias, a mais-valia necessária para poder viver,
pelo menos, tão bem como dois de seus operários. Mas como a produção capitalista
não tem como objetivo simplesmente o de viver e se sustentar, mas também, o de
incrementar a riqueza, não será suficiente que o nosso empresário tenha esses
elementos, para que, utilizando os seus dois operários, seja um verdadeiro
capitalista. Para poder viver duas vezes melhor do que um operário comum e para
voltar a transformar, além disso. em capital, a metade da mais-valia produzida,
deveria dar trabalho a oito operários, possuindo, portanto, quatro vezes a soma
de valor de que tiveram necessidade para sustentar dois trabalhadores. Somente
depois de estabelecer estas condições e, de acordo com outros desenvolvimentos
chamados a ilustrar e a fundamentar o fato de que não basta uma pequena soma
qualquer de valor para que se possa converter em capital, mas que, para isso, um
período todo de evolução e um ramo inteiro de produção deverão ultrapassar um
determinado limite mínimo, somente depois de tudo isso e em relação a estes
fatos é que Marx adianta:"Aqui, como nas ciências da natureza, se comprova a
verdade da lei descoberta por Hegel em sua Lógica, segundo a qual, ao chegar a
um determinado ponto, as mudanças meramente quantitativas se convertem em
variações qualitativas."
Poderá o leitor,
agora, admitir o alto e nobilíssimo estilo que permite ao Sr. Dühring, atribuir
a Marx justamente o contrário do que ele na realidade diz. Marx afirma que o
fato de uma soma do valor poder se converter em capital somente quando
ultrapassa um limite mínimo, que varia segundo as circunstâncias, mas que, em
cada caso, é um limite concreto, que esse fato prova a verdade da lei hegeliana.
E que é que o Sr. Dühring diz sobre essa afirmação? O seguinte:"Porque, de
acordo com a lei formulada por Hegel a quantidade se transforma em qualidade,
por isso e em virtude disso, é que uma quantidade aumentada, ao chegar a um
determinado ponto, se converte em capital. Como vemos, é justamente o
contrário.
Quando examinávamos a crítica que o
Sr. Dühring fazia de Darwin, tivemos ocasião de conhecer esse método, que
consiste em falsear as citações, sem dúvida porque assim o exige"o interesse da
verdade plena" e assim o reclamam os"deveres para com o público não
arregimentado". Essa prática constitui uma necessidade interna arraigada na
filosofia da realidade. O que não se pode negar é que ela oferece, a quem a
maneja. um processo bastante"sumário". Além disso, o Senhor Dühring apresenta
as coisas como se Marx tivesse falado de uma"quantidade aumentada" qualquer,
quando, na realidade, se trata, concretamente, de uma quantidade invertida em
matérias-primas, instrumentos de trabalho e salário. O Sr. Dühring as prepara de
modo a que apareçam nos lábios de Marx como um puro absurdo, e, logo depois,
comete a desfaçatez de considerar"cômico" e ridículo o absurdo que ele mesmo
acaba de engendrar. Faz com Marx exatamente a mesma coisa que com Darwin.
Constrói um Marx imaginário, feito à medida de suas forças, para poder, logo
depois, triunfar sobre ele. Não resta dúvida de que o seu"caráter histórico" é
"grandioso".
Mais atrás, ao examinarmos a
esquemática do mundo, vimos que, com o Sr. Dühring, se tinha passado a quase
desgraça de ter reconhecido e aplicado, num momento de debilidade, essa linha
nodal de desproporções, como a chama Hegel, na qual, em certos pontos, as
transformações quantitativas se convertem de repente em saltos qualitativos.
Citávamos um dos exemplos mais conhecidos: o da transformação dos estados da
agregação da água que, sob a pressão normal do ar, ao chegar a zero centígrado,
se converte de um corpo líqüido em corpo sólido e aos 100º, de líquido em
gasoso, caso esse que demonstra como, ao alcançar esses dois pontos decisivos,
uma simples mudança quantitativa de temperatura provoca uma transformação
qualitativa no corpo.
Centenas de casos como
estes, tomados da natureza ou da sociedade humana, poderiam ser lembrados para
demonstração dessa lei Assim, por exemplo, em O Capital de Marx, toda a seção
4a., dedicada ao estudo da produção da mais-valia relativa ao âmbito da
corporação, da divisão do trabalho, e da manufatura, da maquinaria e da grande
indústria, contém inúmeros casos de simples mudanças quantitativas que fazem
transformar-se a qualidade e, de mudanças quantitativas que fazem com que se
transforme a qualidade das coisas podendo-se dizer, portanto, para usar uma
expressão que tanta indignação provoca no Sr. Dühring, que a quantidade se
converte em qualidade e vice-versa. Temos, por exemplo, o fato de que a
colaboração de muitas pessoas, a fusão de muitas forças numa só força total,
cria, como diz Marx, uma"nova potência de forças" que se diferencia, de modo
essencial, da soma das forças individuais
associadas.
Para sua maior perplexidade, no
trecho que, no interesse da verdade plena, o Sr. Dühring virou às avessas, Marx
acrescenta a seguinte observação:"A teoria molecular, aplicada à química
moderna e desenvolvida cientificamente pela primeira vez por Laurent e Gerhardt,
descansa nesta mesma lei." O que conclui de tudo isso o Sr. Dühring? Ele sabe
que"ali, onde, como acontece ao Sr. Marx, e a seu rival Lassalle, a ciência sob
medidas, aliada a um pouco de filosofia rasteira, forma o mesquinho arcabouço
das pretensões eruditas, ali é que se nota, precisamente, uma maior ausência dos
elementos eminentemente modernos de cultura, que são os métodos das ciências
naturais"; ao contrário disso, o Sr. Dühring toma sempre por base de suas
investigações, como já vimos,"os dados, fundamentais das ciências exatas no
campo da mecânica, da física, da química", etc. Entretanto, para que também
possam os outros julgar, com pleno conhecimento de causa, vamos examinar um
pouco mais detidamente o exemplo que Marx deu em sua
nota.
Trata-se das séries homólogas de
combinações de carbono, muitas das quais já são conhecidas, cada uma delas tendo
a sua própria forma algébrica sintética. Assim, pois, Se, do mesmo modo que os
químicos, chamarmos um, átomo de carbono de C, um átomo de hidrogênio de H um
átomo de oxigênio de O e por n o número dos átomos de carbono encerrados em cada
combinação, podemos expor as fórmulas moleculares de algumas dessas séries, do
seguinte modo:
Série da parafina normal:
CnH2n +
2
Série de alcooes primários:
CnH2n +
20
Série dos ácidos graxos monobásicos:
CnH2n
O2.
Se tomarmos como exemplo
a última dessas séries e adotarmos, sucessivamente, n=1, n=2, n=3, etc., teremos
os seguintes resultados (deixando de pôr os isómeros):
ácido fôrmico -
CH2O2 - ponto de ebulição: 100 º - ponto de
fusão: 1.º
ácido acético -
C2H4O2 - ponto de
ebulição: 118º - ponto de fusão: 17.º
ácido
propriônico - C3H6O2 -
ponto de ebulição: 140º - ponto de fusão:
-
ácido butirico -
C4H8O2 - ponto de
ebulição: 162º - ponto de fusão: -
ácido
valeriânico - C2H10O2 -
ponto de ebulição: 175º - ponto de fusão: -
e assim sucessivamente, até
chegar ao ácido melíssico
(C30H60O2) que não se
funde até os 80º e não tem ponto de ebulição pela simples razão de que esse
ácido se decompõe ao se evaporar. Temos, pois, aqui, toda uma série de corpos
qualitativamente distintos, formados pela simples adição quantitativa de
elementos que são, além do mais, agregados sempre na mesma proporção. Esse
fenômeno ainda se torna mais claro quando todos os elementos, que entram na
composição, variam na mesma proporção e na mesma quantidade, como acontece com a
série das parafinas normais (CnH2n+2). A
primeira fórmula é o metano (CH4) que é um gás; a fórmula mais
elevada que se conhece é o hecdecano
(C16H34), corpo sólido formado por cristais
incolores, que se funde a 21.º, e que só atinge o seu ponto de ebulição a 278º.
Em ambas as séries basta acrescentar CH2 ou seja, um átomo de
carbono e dois de hidrogênio, à fórmula molecular do membro anterior da série,
para que se tenha um corpo novo; donde se conclui que uma mudança puramente
quantitativa da fórmula molecular faz surgir um corpo qualitativamente
diferente.
E estas séries são apenas um exemplo
fácil e palpável; em quase todos os campos da química, a começar pelos
diferentes óxidos de nitrogênio ou pelos diversos oxiácidos de fósforo ou de
enxofre, pode-se observar, a cada passo, como"a quantidade se converte em
qualidade e como esta, que se considera como uma idéia nebulosa e confusa de
Hegel, pode ser tocada corporalmente, por assim dizer, nas coisas e nos
fenômenos, sem que exista a menor confusão nem a menor nebulosidade a não ser na
cabeça do Sr. Dühring. O fato de ter sido Marx o primeiro que pôs em relevo esse
fenômeno e o fato de ser o Sr. Dühring capaz de ler essa argumentação sem
entendê-la, nem superficialmente, pois, se a tivesse entendido, não teria
cometido essa inaudita atrocidade, bastam para tornar claro, sem que seja
preciso recapitular a famosa filosofia dühringuiana da natureza, se é Marx ou
Dühring que sente falta, neste terreno, dos"elementos eminentemente modernos de
cultura que são os métodos das ciências naturais", qual dos dois conhece, e qual
ignora os"dados fundamentais... da
química".
Para terminar este capítulo vamos dar
um testemunho final a favor da mudança da quantidade em qualidade: o testemunho
de Napoleão. Napoleão descreve o combate travado entre a cavalaria francesa,
cujos soldados eram pouco afeitos à equitação, mas que eram, no entanto,
disciplinados, e os mamelucos, cuja cavalaria era a melhor do seu tempo para os
combates individuais, mas que eram indisciplinados. Eis o que nos diz Napoleão:
"Dois mamelucos sobrepujavam, indiscutivelmente, a três franceses; 100 mamelucos
faziam frente a 100 franceses; 300 franceses venciam 300 mamelucos e 1.000
franceses derrotavam, inevitavelmente, 1.500 mamelucos". Da mesma forma que, em
Marx, a soma do valor de troca tinha que alcançar um limite mínimo determinado,
embora variável, para se converter em capital, vemos que, na descrição
napoleônica, o destacamento de cavalaria tem que alcançar um determinado limite
mínimo para que a força da disciplina que se encerra na ordem unida de combate,
e no emprego das forças, com base num só plano, possa se manifestar e se
desenvolver até o ponto de poder aniquilar massas numericamente superiores de
uma cavalaria irregular, composta de melhores montarias e de soldados tão bravos
pelo menos quanto os outros. Que nos diz sobre isso o Sr. Dühring? Não acabou
por sucumbir Napoleão na sua luta contra a Europa? Não sofreu ele derrotas sobre
derrotas? Por que foi derrotado Napoleão? Pura e exclusivamente por ter desejado
aplicar à tática da cavalaria a confusa e nebulosa idéia de Hegel...
Inclusão | 30/10/2002 |