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"No que se refere aos
problemas políticos e jurídicos, os princípios proclamados neste Curso repousam
nos mais conscienciosos estudos especializados. Portanto, o ponto de partida
será... a matéria de que já tratamos... a exposição conseqüente dos resultados
das ciências jurídicas e políticas. Comecei por dedicar-me ao estudo da
jurisprudência e não só consagrei a ela os três anos usuais da preparação
teórica universitária, como ainda mais três anos da prática judicial, ocupados
por um constante estudo, principalmente destinado a aprofundar o seu conteúdo
científico... Também enfrentaria seguramente a crítica das instituições de
direito privado e suas correspondentes imperfeições jurídicas, com idêntico
domínio da matéria, se não estivesse certo de conhecer todos os pontos fracos
desta especialidade, da mesma forma que conhecia os seus pontos
fortes."
Um homem que possui títulos
suficientes para falar de si mesmo em tais termos há de nos infundir,
forçosamente, uma confiança ilimitada, desde o primeiro momento, ainda mais se
compararmos a sua preparação com os"estudos jurídicos primários do Sr. Marx,
tão descuidados, segundo ele mesmo confessa". A única coisa que nos assombra é
que uma crítica às instituições do direito privado, que se ergue com tanta
segurança, se reduza a explicar que"a cientificidade da jurisprudência... não é
grande", que o direito civil positivo é a injustiça, pois que sanciona a
propriedade baseada na forma e que o"fundamento natural" do direito penal é a
vingança, afirmação que não prima pela novidade, a não ser com a roupagem
mística do"fundamento natural". Os resultados da ciência política ficam
reduzidos às já conhecidas negociações entre os três homens já conhecidos, um
dos quais, até agora, vem exercendo a violência sobre os outros, dois, além do
que, o Sr. Dühring investiga conscienciosamente se será o segundo ou o terceiro
que, em primeiro lugar, introduzirá a violência ou a
escravidão.
Mas, observemos de perto os
conscienciosos estudos especializados e o profundo domínio da ciência, adquirido
por nosso jurista, durante os três anos de prática
judiciária.
Quanto a Lassalle, conta-nos o Sr.
Dühring, foi acusado e processado"como instigador de tentativa de roubo de uma
maleta","mas não foi possível uma condenação judicial, tendo-se aplicado a
chamada absolvição de instância, que ainda existia nesse tempo... essa meia
absolvição".
O processo Lassalle, a que se
refere, foi julgado em Colônia, em 1848, onde estava em vigor, como em quase
toda a província renana, o direito penal francês. Só para os delitos e
contravenções políticos era aplicado, em caráter excepcional, o direito nacional
prussiano, até que, em abril de 1848, Champhausen aboliu também essa lei de
exceção. O direito francês não admite, de modo algum. essa desnecessária
categoria do direito prussiano que se chama"instigação a um delito", nem
tampouco, como daí se depreende, a instigação a uma tentativa de delito.
Reconhece apenas a excitação ao crime; e esta, para ser condenável, deve ser
realizada"por meio de presentes, promessas, ameaças, abuso de prestígio ou de
força, astúcia ou artifícios culposos." (Código Penal, artigo 60). O Ministério
Público, mergulhado no direito nacional prussiano, passou por alto, da mesma
forma que o Sr. Dühring, sobre a diferença essencial que distingue o preceito
francês, concreto e preciso, da confusa imprecisão da norma prussiana, e, desse
modo, pretendeu envolver Lassalle num processo tendencioso, tendo saído
fragorosamente derrotado. Afirmar que o direito processual francês, assim como o
prussiano, admite uma absolvição de instância, uma"meia absolvição", exige uma
audácia que só se pode permitir em quem desconhece completamente o moderno
direito francês. O direito francês admite apenas, com relação ao processo penal,
uma absolvição, ou uma condenação - não há meio
termo.
Podemos, pois, afirmar, que o Sr.
Dühring não poderia aplicar a Lassalle, com o modo seguro com que o faz, esta
sua"historiografia de grande estilo", caso tivesse em suas mãos, mesmo que
fosse uma só vez, o Código de Napoleão. Não temos outro remédio senão concluir
que o Sr. Dühring ignora, de modo absoluto, o único Código Civil moderno que se
baseia nas conquistas sociais da Grande Revolução Francesa e que traduz estas
conquistas para a linguagem jurídica: o moderno direito
francês.
Noutro trecho, quando o Sr. Dühring
crítica a instituição do jurado, implantada em todo o continente, depois de se
ter aberto o precedente francês, e no qual o veredictum é tomado por maioria de
votos, transmite-nos o seguinte ensinamento:"Sim, teremos de aceitar mesmo a
idéia, que não é sequer nova na história, segundo a qual, numa comunidade
perfeita, deveria ser considerada instituição absurda uma condenação por votos
contraditórios... Entretanto, esse modo sério e profundamente espiritual de
encarar as coisas há de nos parecer, forçosamente, inadequado, em relação às
instituições tradicionais, como já apontamos acima, por ser demasiado bom para
elas".
O Sr. Dühring continua ignorando que a
unanimidade dos jurados, não só nas condenações penais, mas também nas sentenças
cíveis, é um requisito indispensável de acordo com o direito comum inglês, ou
seja, o direito consuetudinário, não escrito, que vem sendo aplicado, na
Inglaterra, desde tempos imemoriais, pelo menos do século XIV em diante. Um modo
tão sério e tão profundamente espiritual de conceber as coisas, como esse que o
Sr. Dühring reputa demasiado bom para o nosso mundo, tem sido aplicado na
Inglaterra, a partir do período mais sombrio da Idade Média e, desse país, foi,
a seguir, exportado para a Irlanda, para os Estados Unidos da América e para
todas as suas colônias, sem que os conscienciosos estudos especializados do Sr.
Dühring na matéria lhe tivessem revelado nem uma informação sobre tais fatos. A
área, na qual é aplicado o princípio da unanimidade do jurado, não só é
infinitamente grande, em comparação com o diminuto raio de ação do direito
prussiano, como engloba também um território maior do que todos os países em que
o principio da maioria prevalece com relação à instituição do júri. Daí se
conclui, pois, que o Sr. Dühring ignora completamente não apenas o único direito
moderno, o direito francês, como demonstra mesmo idêntica incultura com respeito
ao único direito germânico que se desenvolveu até os nossos dias, estendendo-se
aos quatro cantos do mundo, fora de qualquer influência romana: o direito
inglês. E é natural que assim seja, pois o próprio Sr. Dühring nos afirma que o
pensamento jurídico inglês"não poderia ser comparado com a disciplina dos
conceitos puros dos juristas clássicos romanos, forjada dentro da Alemanha". E
acrescenta:"O que poderá significar o mundo de língua inglesa com o amalgama
pueril de sua linguagem, ao lado de nosso vigoroso e antiquíssimo idioma?"
Basta-nos responder a isto com as palavras de Spinoza: -"lgnorantia non est
argumentum".
Depois da que acabamos de expor,
somos forçados a concluir que os conscienciosos estudos especializados do Sr.
Dühring se reduziram a três anos de esforços teóricos consagrados ao Corpus
Juris e outros três anos de preocupações práticas ao nobre Direito Nacional
Prussiano. Estudos bastante meritórios, sem dúvida, e que são suficientes para
um respeitabilíssimo juiz distrital ou para um senhor advogado prussiano. Mas
quando se deseja criar uma filosofia do direito que seja válida para todos os
mundos e todos os tempos, achamos que não seria demais acumular um pequeno
conhecimento das instituições jurídicas de países como a França, a Inglaterra e
os Estados Unidos da América, que representaram na História, e ainda
representam, um papel bastante diferente que o direito desse recanto da Alemanha
onde floresce o direito nacional prussiano. Continuemos o exame das teorias
jurídicas do Sr. Dühring.
"A pitoresca mescla
de direitos locais, provinciais e nacionais, que se entrechocam nas mais
diversas direções, adquirindo, de um modo caprichoso, ora a forma de direito
consuetudinário, ora a da lei escrita, reduzindo matérias importantíssimas, não
poucas vezes, à simples forma estatutária, este quadro, modelo de desordem e de
contradição, no qual, o concreto contradiz o geral, e, às vezes, até mesmo as
normas gerais contradizem os preceitos concretos, não é certamente um quadro
adequado para permitir a alguém a formação de uma clara consciência jurídica."
Mas, onde é que impera esse quadro de confusão que tanto desnorteia o Sr.
Dühring? Que saibamos, essa confusão reina no já referido Direito Nacional
Prussiano, no qual, ao lado de um direito nacional, por cima e por baixo dele,
vigora toda uma série de direitos provinciais e de estatutos locais, combinados
nalgumas localidades com o direito comum e com outras complicações do mesmo
estilo, numa inacabável gama de variáveis relativas, que provocam em todo o
jurista profissional esse grito de angústia que com tanta simpatia recolhe aqui
o Sr. Dühring. Mas nem sequer precisa cruzar as fronteiras de sua amada Prússia;
basta-lhe dar um passeiozinho pelo Reno para se convencer de que aqui não
exista, há mais da 70 anos, nada disso que ele descreve, sem falar de outros
países civilizados em que faz muito tempo que esse antiquado regime
desapareceu.
Continuemos:"De um modo menos
flagrante, observamos que a responsabilidade natural do indivíduo fica encoberta
pelos juízos e pelos atos coletivos, secretos e, portanto. anônimas. dos
tribunais sob a forma de colégios ou de outros órgãos da autoridade, nos quais
se disfarça a contribuição pessoal de cada membro." E noutro trecho:"No atual
estado de coisas, seria considerado surpreendente e excessivamente rigoroso um
postulado que não permitisse que a responsabilidade individual fosse encoberta
ou disfarçada por tribunais colegiais." Talvez seja uma noticia surpreendente
para o Sr. Dühring. a de que, nos territórios em que vigora o direito inglês,
todos os juizes do tribunal colegial são obrigados a emitir despachos e a
expender individualmente a sua opinião em sessões públicas; e talvez se
surpreenda também quando souber que os organismos administrativos colegiais. que
nada tem de eletivos e de atuação e votação públicas, são uma instituição
eminentemente prussiana, desconhecida na maioria dos países, razão pela qual o
seu postulado acima referido somente pode ser reputado surpreendente e
excessivamente rigoroso... na Prússia.
A mesma
coisa acontece com os seus lamentos a respeito das intromissões injustificadas
do ritual religioso no nascimento, no matrimônio, na morte e nos enterros; de
todos os países civilizados de certa extensão, tais lamentos se aplicam somente
à Prússia, e. mesmo nesta, já se tornam desnecessários desde a implantação do
sistema do Registro Civil. Até mesmo um
foi capaz de resolver, há pouco
tempo, por uma simples lei, o problema que o Sr. Dühring não sonhava que se
pudesse resolver a não ser por meio de seus planos"socialitários" sobre o
futuro. Na sua"queixa a respeito da defeituosa preparação dos juristas para
exercer a sua profissão", aliás extensiva até"aos funcionários da
administração", volta a martelar a tecla das lamentações especificamente
prussianas. Também o anti-semitismo, tendo ou não importância e que é levado a
extremos ridículos, merecendo o entusiasmo do Sr. Dühring, nos demonstra a mesma
qualidade, se não especificamente prussiana, pelo menos característica de uma
determinada região da Prússia: o Leste do
Elba.
Com efeito, este filósofo da realidade,
que contempla com um desprezo soberano todos os preconceitos e superstições, se
deixa influenciar profundamente pelas quimeras pessoais até o ponto de querer
qualificar o preconceito popular contra os judeus, herdado da beataria medieval,
de preconceito natural" baseado em"fundamentos naturais" lançando a seguinte
afirmação digna de nota:"O socialismo é a única força capaz de fazer frente a
Estados de população com uma forte mescla judia." (Estados de mescla judia! Que
linguagem!)
Parece que é suficiente. Todas
aquelas pretensões de erudição jurídica, se reduzem - no melhor dos casos - à
vulgaríssimos conhecimentos profissionais de um vulgaríssimo demagogo prussiano.
E a ciência jurídica e política, cujos frutos nos são oferecidos,
consequentemente, pelo Sr. Dühring, se restringe ao raio de ação do direito
nacional prussiano, Afora os conhecimentos de direito romano que possui qualquer
profissional do direito, atualmente, mesmo na Inglaterra, a sua ciência jurídica
limita-se simplesmente ao direito nacional prussiano, esse código ilustrado do
despotismo patriarcal, escrito num alemão que se parece com o que aprendeu o Sr.
Dühring, código que parece estar cheio da era pré-revolucionária, pelas suas
glórias morais, pelo seu estilo vago e pela falta de consciência jurídica, bem
como pelos açoites que adotava como meio de tortura e como pena. Fora disso,
nada reza conforme a cartilha do Sr. Dühring: para ele não existe o moderno
direito civil francês, nem tampouco o direito inglês, com a sua peculiaríssima
evolução e suas garantias de liberdade pessoal, desconhecidas estas em todo o
continente. Uma filosofia"que não se deixa limitar pela aparência de nenhum
horizonte, mas que revolve numa profunda comoção todas as terras e todos os céus
interiores e exteriores da natureza", não tem outro horizonte real senão as
fronteiras das seis províncias orientais do velho reino da Prússia, e, também,
uns dois ou três palmos de terra, que ficam do outro lado dessas fronteiras e
nos quais vigora o nobre direito prussiano; fora desses horizontes, não
estremecem terras nem céus, não se revolve natureza alguma exterior ou interior;
o que somente se agita é um quadro da mais crassa ignorância, com respeito ao
que ocorre no resto do mundo.
Não é fácil falar
de moral e de direito sem tocar no problema do chamado livre arbítrio, o
problema da responsabilidade humana, o problema das relações entre a necessidade
e a liberdade. Em relação a este problema, a filosofia da realidade nos oferece
não apenas uma, mas duas soluções.
"Todas essas
falsas teorias da liberdade devem ser substituídas pelo caráter da relação, em
que se fundem, como a experiência nos revela, partindo, de um lado, a penetração
racional e, de outro, os impulsos instintivos, como para formar uma força
intermediária. A observação fornece-nos os fatos fundamentais dessa espécie de
dinâmica e podemos também calculá-los, com antecedência, de uma maneira mais ou
menos boa, no que concerne ao gênero e à grandeza, com relação mesmo ao que não
foi observado. Desse modo, caem por terra todas essas tolas figurações a
respeito da liberdade interior com as quais se remoeram e se torturaram os
homens durante milhares de anos, deixando, em seu lugar, alguma coisa de
positivo e de útil para a organização prática da vida." De acordo com essa
idéia, a liberdade consiste em que a penetração nacional leva o homem para a
direita e os impulsos irracionais para a esquerda, formando um paralelogramo de
forças em que o movimento real toma a direção da diagonal. A liberdade seria,
pois, a linha média entre a razão e o instinto, entre a inteligência e a
irreflexão, poder-se-ia determinar o grau de liberdade, em cada indivíduo, de
modo empírico, por meio de uma"equação pessoal", para dizê-lo em linguagem
astronômica. Vamos encontrar, páginas adiante, a seguinte afirmação:"Baseamos a
responsabilidade moral na liberdade, mas esta significa para nós apenas a
receptividade do homem em relação aos móveis conscientes, como resultado da
inteligência natural e adquirida. Todos estes móveis agem com o caráter
inflexível das leis naturais, apesar de se perceber um possível antagonismo
entre eles; e é precisamente com este caráter necessário e inelutável que
podemos contar como pontos de apoio para as alavancas
morais."
Essa segunda definição da idéia da
liberdade, que se choca flagrantemente com a primeira, não é mais do que uma
fraca vulgarização da filosofia hegeliana. Foi Hegel o primeiro que soube expor
de um modo exato as relações entre a liberdade e a necessidade. Para ele, a
liberdade não é outra coisa senão a convicção da necessidade."A necessidade
somente é cega enquanto não compreendida," A liberdade não reside, pois, numa
sonhada independência em relação às leis naturais, mas na consciência dessas
leis e na correspondente possibilidade de projetá-las racionalmente para
determinados fins. Isto é verdade não somente para as leis da natureza exterior,
mas também para as leis que presidem a existência corporal e espiritual do
homem: duas espécies de leis que podemos distinguir, quando muito, em nosso
pensamento. mas que, na realidade, são absolutamente inseparáveis. O livre
arbítrio não é. portanto, de acordo com o que acabamos de dizer, senão a
capacidade de decisão com conhecimento de causa. Assim, pois, quanto mais livre,
for o juízo de uma pessoa com relação a um determinado problema, tanto mais
nítido será o caráter de necessidade determinado pelo conteúdo desse juízo; ao
contrário, a falta de segurança que, baseada na ignorância, parece escolher,
livremente, entre um mundo de possibilidades distintas e contraditórias, está
demonstrando, desse modo, justamente a sua falta de liberdade, está assim
demonstrando que se acha dominada pelo objeto que pretende dominar, A liberdade,
pois, é o domínio de nós próprios e da natureza exterior, baseado na consciência
das necessidades naturais; como tal é, forçosamente, um produto da evolução
histórica. Os primeiros homens que se levantaram do reino animal eram, em todos
os pontos essenciais de suas vidas, tão pouco livres quanto os próprios animais;
cada passo dado no caminho da cultura é um passo no caminho da liberdade. Nos
primórdios da história da humanidade, realizou-se a descoberta que permitiu
converter o movimento mecânico em calor: a produção do fogo pela fricção; o
progresso tem, atualmente, como sua etapa terminal, a descoberta que transforma,
inversamente, o calor em movimento mecânico: a máquina a vapor. E apesar do
colossal abalo de libertação que a máquina a vapor trouxe ao mundo social - e
que até hoje ainda não deu sequer a metade de seus frutos - é indubitável que a
produção do fogo pela fricção, nos tempos primitivos, foi superior àquela
descoberta como condição emancipadora. O fogo, obtido dessa forma, foi que
permitiu ao homem o domínio sobre uma força da natureza, emancipando-o
definitivamente das limitações do mundo animal. A máquina a vapor não poderá
jamais representar um passo tão gigantesco na história do homem, por mais que
apareça, ante nossos olhos, como a representação de todas essas gigantescas
forças produtivas a ela incorporadas e sem as quais não seria possível instaurar
um regime social livre de todas as diferenças de classe, no qual desapareçam as
preocupações com relação aos meios de subsistência individual e se possa falar,
pela primeira vez, de uma liberdade verdadeiramente humana, de uma vida em
harmonia com as leis naturais que conhecemos. O simples fato de toda a história
anterior à nossa época poder ser designada como a história do período que começa
com a descoberta prática, que converte o movimento mecânico em calor e culmina
com a descoberta que transforma o calor em movimento mecânico, esse simples fato
indica como é jovem ainda a história humana, e também como seria ridículo querer
imprimir às nossas idéias atuais um caráter
absoluto.
Mas o Sr. Dühring compreende a
história de outro modo. De maneira geral, a história, concebida como sendo a
história dos erros, da ignorância e da barbárie, da violência e da escravização,
é matéria que repugna à filosofia da realidade; para essa filosofia, a história,
focalizada concretamente, se divide em duas grandes épocas, a saber: 1) do
estado da matéria idêntica a si mesmo até a Revolução Francesa; e 2) da
Revolução Francesa até o Sr. Dühring. Neste segundo período, o século XIX
continua sendo"ainda essencialmente reacionário e, no terreno espiritual, chega
a ser ainda mais (!) reacionário do que o século XVIII", apesar de já trazer em
suas entranhas o socialismo e, com este,"o germe de um renascimento muito mais
poderoso do que o concebido (!) pelos precursores e heróis da Revolução
Francesa. O desprezo em que a filosofia da realidade tem toda a história
anterior a este período se justifica da maneira seguinte:"Os poucos milênios a
que se pode remontar a recordação histórica, por meio de documentos originais,
para estabelecer a estrutura da humanidade até os nossos dias, não significam
grande coisa, quando se pensa na série de milênios que ainda estão por vir... O
gênero humano, considerado como um todo, é ainda muito jovem, e, quando chegar o
dia em que as documentações científicas retrospectivas possam operar com dezenas
de milhares e não apenas com milhares de anos, o caráter espiritualmente pueril
e incipiente de nossas instituições ter-se-á imposto, indiscutivelmente, como
sendo uma hipótese evidente sobre a nossa época, que será, então, considerada
como a mais primitiva das antigüidades."
Sem
nos determos na configuração realmente"vigorosa e antiquíssima" dessa última
frase, teremos que observar duas coisas. Em primeiro lugar, essa"primitivíssima
antigüidade" será sempre, aconteça o que acontecer, um período histórico de
grande interesse para todas as gerações futuras, pois que constitui a base de
todo o progresso posterior, tendo por ponto de partida a emancipação do homem
das condições do reino animal e tendo, por conteúdo, a superação de dificuldades
tão grandes como jamais voltarão a se contrapor ao homem associado do futuro. Em
segundo lugar, o cancelamento de toda essa primitivíssima antigüidade, em
relação à qual os futuros períodos históricos, que não sofrerão contraposição
dos diques das mesmas dificuldades e obstáculos, prometem muitos triunfos
científicos, técnicos e sociais tão diferentes, esse cancelamento é, logo à
primeira vista, um modo brilhantemente escolhido para se poder ditar normas aos
séculos futuros por meio de verdades definitivas e inapeláveis, de verdades
imutáveis e de concepções baseadas no conhecimento das coisas até as suas
raízes, descobertas no estudo da infantilidade e da incipiência espiritual de
nosso século, tão"atrasado" e"retrógrado". É preciso que se seja um Richard
Wagner filósofo - embora sem o mesmo talento - para não se compreender que todos
os desprezos, que se costumam lançar sobre a história humana anterior aos nossos
dias, acabam por se voltar, necessariamente, contra o próprio resultado final de
suas investidas, a chamada filosofia da
realidade.
Um dos capítulos mais eloqüentes
dessa nova ciência radical é o que trata da individualização e da potenciação do
valor da vida. No decorrer de três capítulos inteiros vemos fluir, aos
borbotões, em fluxos irresistíveis, sempre os mesmos lugares comuns, vestidos de
roupagens oraculares. Limitar-nos-emos, pois, infelizmente, a oferecer aos
nossos leitores, apenas um par de botões como amostra de toda essa
riqueza.
"A essência profunda de todas as
sensações, e, portanto, de todas as formas subjetivas de vida, repousa na
diferença de estados... Mas com relação à vida íntegra (!) pode-se afirmar
simplesmente (!) que o que exalta a sensação de vida e desenvolve os impulsos
decisivos não é a imobilidade, mas, sim, a passagem de uma situação de vida para
outra... O estado quase idêntico a si mesmo, inerte por assim dizer, como que em
equilíbrio, não significa nada de importante qualquer que seja o caráter com que
se apresente, como uma prova de vida... O hábito e a assimilação, por assim
dizer, acabam por converter-se em algo completamente indiferente, que não se
diferencia em grande coisa da morte. Em resumo, manifestar-se como uma espécie
de reação negativa de vida, a tortura do tédio... Numa vida estagnada,
desaparece, para os indivíduos como para os povos, toda a paixão e todo o
interesse pela existência. A nossa lei da diferença explica todos esses
fenômenos".
É verdadeiramente incrível a
rapidez com que o Sr. Dühring sabe pôr em prática as suas conclusões
autenticamente originais. Nas linhas anteriores, a filosofia da realidade foi
explicada pelo lugar comum de que o friccionamento constante de um mesmo nervo
ou a repetição de um mesmo friccionamento acaba por fatigar a qualquer nervo e a
qualquer sistema nervoso. Assim, em circunstâncias normais, impõe-se uma
interrupção ou uma mudança das reações nervosas, lugar comum esse, que é
encontrado, há já muitos anos, em qualquer manual de fisiologia e que qualquer
pessoa conhece por experiência própria; mas apenas foi revestida essa velha
vulgaridade pelo misterioso postulado de que a essência profunda reside na
diferença dos estados, da qual emerge instantaneamente"a nossa lei da
diferença". E essa lei da diferença"explica perfeitamente" toda uma série de
fenômenos que não são, por sua vez, mais que outros tantos exemplos e
ilustrações de como são agradáveis as variações na utilização da cada nervo,
fato esse que não necessita de demonstração nem para a mais vulgar inteligência
de filisteu e não adquire nem um átomo de clareza pelo fato de ter sido invocada
em seu apoio essa pretensa lei da
diferença.
Não se pense que com isso esgotamos
a radicalidade"de nossa lei da diferença"."A graduação das idades e as
mudanças nas situações da vida, que dela derivam, fornecem um exemplo, bem ao
nosso alcance, para ilustrar o nosso princípio da diferença. A criança, o
adolescente, o moço, o homem, não experimentam a força de suas respectivas
sensações de vida, quer em cada estado fixo em que se encontram, quer nas épocas
de transição de um para outro estágio." Mas, continua ainda:"Nossa lei da
diferença pode ter uma aplicação ainda mais remota quando se tem em conta o fato
de que a repetição do fenômeno já experimentado ou realizado não oferece encanto
algum". Deixemos ao leitor que tire, por si mesmo, as suas conclusões, sobre o
remate oracular em que vão culminar todas essas profundas e"radicais"
afirmações. Não é de estranhar que, ao terminar o livro, possa o Sr. Dühring
exclamar, com um ar de triunfo:"Para a apreciação e a potenciação do valor da
vida, a lei da diferença teve um caráter decisivo, tanto prática como
teoricamente". Decisivo não só para esse efeito, mas também para a apreciação
que faz o Sr. Dühring do nível espiritual de seu público: pelo visto, ele Parte
do suposto de que todos os seus leitores são uns asnos ou uns
mentecaptos.
Um pouco mais adiante, vamos
encontrar as seguintes regras, extraordinariamente práticas, de vida:"Os meios
para incentivar o interesse geral pela vida" (bela missão para filisteu ou para
quem deseja chegar a sê-lo),"consistem em deixar que se desenvolvam ou se
substituam uns aos outros os interesses concretos, por assim dizer elementares,
de que se compõe a vida total, tendo como base os seus períodos naturais.
Simultaneamente, dentro de um mesmo estado, deverá também ser utilizada a
gradação na série dos apetites baixos e fáceis de satisfazer, até as emoções
mais altas e de eficácia mais duradoura, de modo a evitar que se produzam
lacunas de uma total ausência de interesse. Além disso, tudo dependerá de se
precaver contra a tendência das tensões, que se produzem naturalmente ou no
curso normal da existência social, se acumularem ou crescerem de um modo
arbitrário ou a tendência de uma aberração inversa, a de se satisfazer à menor
reação impedindo desse modo o desenvolvimento de um apetite capaz de causar um
prazer. A observação do ritmo natural é, neste como noutros casos, a condição
prévia que determina o movimento constante e atrativo. Não devemos tampouco nos
propor o objetivo irrealizável de ampliar os encantos de uma situação qualquer
além dos limites marcados pela natureza ou pelas circunstâncias, etc. etc." O
homem honesto, que aceitar como norma de vida todos esses oráculos solenes com
que o pedantismo caviloso de um filisteu reveste as mais desconexas
vulgaridades, não terá que se queixar, certamente, de"lacunas completamente
desprovidas de interesse" pois gastará todo o seu tempo para preparar e pôr em
ordem os seus prazeres obedecendo a esta receita e não lhe restará, sequer, um
minuto livre para os próprios gozos.
É preciso
viver a vida, a vida íntegra. O Sr. Dühring nos proíbe apenas duas coisas:"a
imundície e o uso do tabaco" e as bebidas e alimentos que"provocam sensação de
nojo ou contêm qualquer outra qualidade contrária às sensações delicadas". Mas
como, no seu curso de economia, o Sr. Dühring dedica uma série de ditirambos à
destilação de aguardente, devemos por isso entender que a sua proibição não é
extensiva a estas bebidas, mas somente ao vinho e à cerveja. Proíbe-nos, também,
o uso da carne e essa proibição eleva a filosofia da realidade àquelas alturas
em que se colocou, em seu tempo, com tanto êxito. Gustavo Strouvé: nas alturas
da mais pura futilidade. Ademais, podia o Sr. Dühring ser um pouco mais liberal
no que se refere aos espirituosos. Um homem que reconhece que não pode encontrar
ainda a ponte entre a estática e a dinâmica, devia ter razões de sobra para
julgar com certa benevolência a um pobre diabo, que, tendo dobrado o cotovelo
mais do que podia, busca também, em vão, a ponte entre a dinâmica e a estática.
Inclusão | 30/10/2002 |