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Já tivemos ocasião de conhecer várias aplicações do método do Sr. Dühring. Consiste ele em analisar um determinado grupo de objetos do conhecimento, em seus pretendidos elementos simples, aplicando a estes elementos uns tantos axiomas não menos simples, considerados evidentes pelo autor, para, em seguida, operar com os resultados assim obtidos. Do mesmo modo, os problemas encontrados no campo da vida social, "devem ser resolvidos, axiomaticamente, pela comparação com os diversos esquemas simples e fundamentais, exatamente como se se tratasse de simples... esquemas fundamentais das matemáticas". Assim, a aplicação do método matemático à história, à moral e ao direito, deverá nos garantir, também aqui, a certeza matemática na verdade dos resultados obtidos, imprimindo-se-lhes o selo de verdades autenticamente imutáveis.
Na realidade, não é mais do que um novo rodeio do velho e favorito método ideológico, também chamado apriorístico, que consiste em estabelecer e provar as propriedades de um objeto, não partindo do próprio objeto, mas derivando-as do conceito que dele formamos. A primeira coisa a fazer, é converter o objeto num conceito desse objeto; em segundo lugar, não é preciso mais que inverter a ordem das coisas e medir o objeto pela sua imagem, o conceito. Não é, pois, o conceito que se deve ajustar ao objeto, mas este é que se deve ajustar àquele. Nas elucubrações do Sr. Dühring, são os elementos simples, últimas abstrações a que se pode chegar, que desempenham o papel de conceitos, mas isso em nada modifica os termos do problema, pois esses elementos simples podem ter, na melhor das hipóteses, um caráter puramente conceitual. Como vemos, a"filosofia da realidade" também aqui não é mais que uma pura ideologia, ou seja, uma realidade que é deduzida, não de si mesma, mas da idéia.
Pois bem, se o ideólogo quer construir a
moral e o direito, não baseado na realidade das condições sociais em que vivem
os homens que o rodeiam, mas partindo do conceito"da sociedade", ou seja,
daquilo que ele chama elementos simples, com que materiais conta ele para uma
tal tarefa de construção? Com duas classes de materiais, evidentemente: a
primeira, os escassos vestígios de qualquer conteúdo real que possam existir
ainda naquelas abstrações que servem de base à construção, e uma segunda classe,
que é o conteúdo que carrega o nosso ideólogo, e que ele retira de sua própria
consciência. Em sua maior Parte, intuições sobre moral e direito, que são uma
expressão, mais ou menos adequada - positiva ou negativa, favorável ou não - das
condições sociais e políticas em que ele vive. Talvez, além dessas intuições,
possam encontrar-se idéias tomadas da literatura sobre estes problemas e, por
casualidade, em último lugar, uma série de figurações pessoais. O que quer que
faça o nosso ideólogo, colocando-se onde quer que seja, o resultado será que a
realidade histórica, que ele expulsa pela porta, volta a entrar pela janela, e,
quando acredita estar construindo uma teoria da moral e do direito, para todos
os tempos, e para todos os mundos, o que na realidade está fazendo é esboçar uma
imagem caricatural, - arrancada de sua base real, invertida como se num espelho
côncavo - das correntes conservadoras ou revolucionárias de seu
tempo.
O Sr. Dühring analisa a sociedade em
seus elementos simples e descobre que a mesma, reduzida em sua expressão mais
simples, é formada, no mínimo, por dois homens. Estes dois homens formarão, em
seguida, o material para as suas manipulações axiomáticas. Colocado neste ramo,
chega-lhe às mãos, por si mesmo, o axioma básico da moral:"duas vontades
humanas são, como tais, absolutamente idênticas uma à outra, e uma delas não
pode, inicialmente, exigir nada de positivo da outra". Fica, desse modo,
"caracterizada a forma fundamental da justiça moral" e, também, da justiça
jurídica, pois,"para desenvolver os conceitos fundamentais do direito,
basta-nos desenvolver a relação simples e elementar entre dois
homens".
Afirmar que dois homens ou duas
vontades humanas, consideradas como tais, são absolutamente idênticas entre si,
não somente não é um axioma, como também pode ser considerado, pelo menos, um
grande exagero. Dois seres humanos podem, mesmo considerados como tais, diferir
entre si, antes de mais nada, pelo sexo, e este fato, tão simples. leva-nos,
imediatamente, à conclusão de que os elementos simples da sociedade - para nos
entretermos um momento com estas infantilidades - não são precisamente dois
homens, dois varões, mas um homem e uma mulher que fundam uma família, forma
primeira e mais simples da sociedade, colocada ao serviço da produção. Mas isso
não convém ao Sr. Dühring. de modo algum. Por quê? Porque necessita, a todo
transe, que sejam os dois fundadores de sua sociedade completamente iguais, se
possível, e também porque não seria capaz mesmo o Sr. Dühring, de construir,
baseado na família primitiva, a equiparação jurídica e moral do homem e da
mulher. Das duas uma: ou a molécula da sociedade dühringuiana, de cuja
multiplicação deve sair toda a sociedade, está condenada, desde o nascimento, a
perecer, pois que dois homens não procriarão nunca, ou são eles representados
como dois chefes de família. Mas, neste caso, voltamos de repente ao
singelíssimo esquema fundamental, que nos demonstra não a igualdade humana, mas,
em essência, a igualdade dos cabeças de família e, como nada se pergunta com
respeito às mulheres, demonstra também o fato da subordinação da
mulher.
Sinto muito ter de comunicar ao leitor
uma notícia desagradável: não tardará muito que tenhamos de vista estes dois
famosos homens do Sr. Dühring. Estes dois personagens vieram representar,
aproximadamente, no campo das relações sociais, o mesmo papel que até aqui
estava destinada aos habitantes dos outros mundos, dos quais, afortunadamente,
já nos livramos. Existe algum problema de economia, de política, etc... para
resolver? Imediatamente se põem em campo os nossos dois homens e resolvem a
coisa"axiomaticamente", de um só golpe. É uma descoberta magnífica, original, e
"capaz de criar sistema', a desse nosso filósofo da realidade! É pena que o
respeito à verdade nos obrigue a dizer que a descoberta não é precisamente sua!
Esses dois homens de encomenda são patrimônios de todo o século XVIII. Já os
conhecemos em 1754 no"Discurso sobre as desigualdades dos homens", de J. J.
Rousseau, onde - seja dito entre parênteses - se demonstra, também
axiomaticamente, o contrário do que o Sr. Dühring afirma. Tornamos a nos
encontrar com eles, desempenhando um papel de relevo, na economia política,
desde Adam Smith até Ricardo, embora já não sejam, nesse assunto, completamente
iguais, pois que exercem ofícios diferentes - geralmente os de caçador e
pescador - e trocam entre si os seus produtos. Mas o século XVIII se utiliza, de
um modo quase exclusivo, desses personagens, a titulo de ilustração e exemplo; a
originalidade do Sr. Dühring consiste em tornar esse método puramente
ilustrativo como método fundamental aplicável a toda a ciência da sociedade e
como critério para o estudo de todas as manifestações históricas. Realmente, a
"concepção estritamente científica sobre coisas e homens" não poderia ser mais
fácil.
Mas, para extrair logo depois axioma
fundamental, segundo o qual esses dois homens e suas respectivas vontades são
totalmente idênticos entre si, sem que nenhum dos dois tenha nada a exigir do
outro, não é suficiente que sejam dois homens quaisquer. Deverão ser dois ares
humanos tão fora de toda a realidade, tão despidos de todas as condições
nacionais, econômicas, políticas, religiosas, existentes em nosso mundo, que, de
todas as características e peculiaridades de pessoa e de sexo, neles só deve
restar o mero conceito de homem, de ser humano. Somente assim, poderão ser
"completamente idênticos". Como se vê, não estamos precisamente diante de dois
homens, mas de dois perfeitos fantasmas, evocados por este mesmo Sr. Dühring.
que vive a descobrir e a denunciar, por toda a Parte, as reações"espiritistas".
Esses dois espectros são naturalmente condenados a fazer tudo o que homem que os
evocou deles exija; e por isso são absolutamente indiferentes às outras coisas
do mundo para as suas manipulações
artificiais.
Penetremos, um pouco, na
axiomática do Sr. Dühring. Dizíamos que aquelas duas vontades nada podiam exigir
de positivo, uma da outra. Se uma delas falta a esse dever e apresenta uma
exigência, chegando mesmo a impô-la pela força, cria-se, então, um estado
injusto e, deste esquema fundamental, faz o Sr. Dühring derivar a injustiça, a
dominação, a escravidão, numa palavra, toda a condenável história desde a
antigüidade até os nossos dias. Entretanto, já Rousseau, no estudo que citamos
atrás, valendo-se exatamente de nossos dois homens, provou, de modo axiomático,
justamente o contrário, ou seja, que entre os dois homens,"A" não pode
escravizar"B" pela violência, a não ser colocando-o numa tal situação que"B"
não possa prescindir de"A". Esta concepção peca, no entender do Sr. Dühring,
por ser excessivamente materialista. Focalizemos, pois, essa mesma coisa, de
outro modo. Suponhamos que dois náufragos, sozinhos numa ilha, contratam uma
sociedade. Suas vontades, são formalmente idênticas, e ambos assim o consideram,
Mas entre os dois sócios existem grandes diferenças materiais."A" é um homem
resoluto e enérgico;"B" ,é indeciso, indolente, preguiçoso;"A" é inteligente,
"B" é retardado. É natural que, cedo ou tarde,"A" acabe de impor a sua vontade
a"B", primeiramente pela persuasão e, a seguir, pouco a pouco, por força do
hábito, mas sempre de um modo livre e espontâneo. Significa a mesma coisa que
sejam respeitadas ou desprezadas as formas voluntárias: voluntária ou não, a
servidão é servidão. A aceitação voluntária da servidão é encontrada em toda a
Idade Média e, na Alemanha, chega mesmo até a Guerra dos 30 Anos. Quando, na
Prússia, depois das derrotas de 1806 e 1807, foi abolida a servidão e com ela a
obrigação imposta ao nobre feudal de zelar pelos seus súditos, em casos de
miséria, enfermidade ou velhice, dirigiram-se os camponeses ao rei para suplicar
que os deixasse continuar como servos, pois, de outro modo, quem iria cuidar
deles e ampará-los na miséria? O esquema dos dois homens encerra, pois, os
germes de desigualdade e servidão, tanto quanto os de igualdade e cooperação. E
como, além disso, devemos, a não ser que os condenemos a perecer, concebê-los
como cabeças de família, verificamos que esse esquema contém, além do mais, a
explicação da escravização hereditária.
Mas
deixemos por um momento este assunto e suponhamos que nos tenha convencido a
axiomática do Sr. Dühring e que estejamos verdadeiramente entusiasmados com a
absoluta equiparação das duas vontades, com a"soberania humana geral", com a
"soberania do indivíduo", verdadeiras expressões' maravilhosas ao lado das quais
o"Único", de Max Stirner, com todas as suas propriedades, fica obscurecido,
embora também a ele seja devida uma Parte modesta da criação. Admitamos pois que
somos todos absolutamente iguais e independentes. Todos? Não, todos não.
Existem, também, umas"dependências legitimas", mas estas não se originam de
"razões baseadas no exercício das duas vontades, como tais, mas num terceiro
fator, como acontece, por exemplo, com as crianças; nestas, este terceiro fator
provém da insuficiência de sua própria
determinação".
Magnífico! Desse modo, não se
deve buscar as razões a que se deve a dependência no exercício de ambas as
vontades como tais. Como se há de buscar aí a razão quando justamente a
dependência consiste em entorpecer o exercício de uma das vontades? Essa razão,
deve ser encontrada, como nos diz o Sr. Dühring,"num terceiro fator". Esse
terceiro fator é a insuficiente capacidade de determinação concreta da vontade
quando sujeita à coerção. O nosso filósofo da realidade tanto dela se distanciou
que, como vemos, comparado com expressões abstratas e vazias como a da vontade,
o conteúdo real de determinação, própria dessa vontade, se lhe assemelha a um
"terceiro fator". Mas, seja o que for, o caso é que a equiparação das duas
vontades tem exceções, pois uma vontade não se ajusta à outra, a própria
determinação de uma delas é reconhecida como insuficiente. Limitamo-nos a
consignar: reteirada número um!
Prossigamos.
"Ali, onde homem e animal formam uma só pessoa, pode-se perguntar, em nome de
uma segunda pessoa completamente humana, se a sua conduta pode, neste caso, ser
a mesma que teria sido frente a pessoas exclusivamente humanas, digamos assim...
Começamos por supor duas pessoas moralmente desiguais, uma das quais tem, de
certo modo, um pouco do caráter das bestas, e, dessa forma, criamos um esquema
fundamental ap1icável a todas as relações que podem, de acordo com essa
diferença, ser encontrados... entre os grupos humanos e dentro deles." E o
leitor, se quiser, que procure entender o atormentado libelo que o Sr. Dühring
apresenta ao enveredar por esta última saída, na qual dá voltas e mais voltas,
deslizando por sendas tortuosas, como um jesuíta, para acabar sentenciando,
judiciosamente, até que ponto pode o homem humano proceder contra o homem
bestial; até que ponto lhe é licito empregar contra este último a manobra, a
astúcia guerreira e mesmo os recursos da violência, do terror, da mistificação,
sem faltar em nada aos postulados da moral
imutável.
Assim, a igualdade também termina ali
onde duas pessoas são"moralmente desiguais". Então, para que esse esforço todo
no sentido de reunir dois seres humanos absolutamente idênticos, se sabemos que
não existem duas pessoas que sejam moralmente iguais? Pois é o Sr. Dühring quem
nos diz que a desigualdade consiste em que uma delas é pessoa humana, enquanto
que a outra tem dentro de si uma qualquer coisa de besta. Entretanto, a própria
procedência animal do homem já nos indica que ele não pode nunca se desprender
totalmente da condição de besta, e que, além disso, o problema da distinção
entre a bestialidade e a humanidade é puramente quantitativo, referindo-se
apenas a uma diferença de grau. A classificação dos homens em dois bandos
nitidamente distintos e separados, o dos humanos e os dos bestiais, os bons e os
maus, os cordeiros e os lobos, somente pode ser admitida pela filosofia da
realidade e pelo cristianismo, com a diferença de que este é mais conseqüente,
pois cria um juiz universal, que tem a seu cargo a tarefa da classificação de
cada indivíduo num dos dois grupos. Mas, na filosofia da realidade, quem há de
ser o juiz universal? Sucederá com ela o que costuma acontecer, na prática,
entre os cristãos, em que os piedosos cordeirinhos se encarregam da função, com
grande êxito, como sabemos, de juiz universal de seus próximos, os lobos deste
mundo. A seita dos filósofos da realidade, caso fosse fundada algum dia, não
poderia ser pior, com relação a esse assunto. Mas isto pouco nos importa; o que
nos interessa é tomar nota da concessão que acaba de nos fazer o Senhor Dühring
de que a desigualdade moral entre os homens acaba por anular a igualdade.
Retirada número dois.
Continuemos a leitura.
"Se uma pessoa age, respeitando a ciência e a verdade, enquanto que outra se
deixa levar por preconceitos... necessariamente, haverá entre elas algumas
perturbações... Quando atingirem um certo grau a brutalidade ou as tendências
malignas do caráter, produzir-se-á forçosamente um choque... Não são apenas as
crianças e os loucos que conhecem outras armas além da força. A sucessão dos
grupos naturais e das classes culturais pode tornar uma necessidade inadiável a
submissão de cada vontade desviada e hostil, até submetê-la aos vínculos
coletivos. Ao fazer tal coisa, respeita-se como igualmente legitima a vontade
alheia; o que se dá é que o seu exercício, coletivo quando hostil e prejudicial,
provoca uma compensação e, se lhe faltam forças, não faz mais que suportar os
efeitos reflexos, provocados pela sua própria
injustiça".
Como vemos, não é só a desigualdade
moral, mas também a desigualdade espiritual que pode deitar por terra a
"completa identidade" das duas vontades, instaurando o reino de uma moral que
justifica todas as infâmias praticadas pelos Estados civilizados em sua cruzada
de rapina contra os povos mais fracos, até mesmo as repugnantes façanhas dos
russos no Turquestão. Quando, no verão de 1873, o general Kauffmann caiu, como
um vendaval. sobre a tribo tártara dos jomudas, incendiou suas tendas,
massacrou."à boa maneira caucasiana", como rezava a ordem, as mulheres e as
crianças, invocava ele também a necessidade inevitável de submeter a vontade
"desviada e hostil" daqueles selvagens, para reduzi-los aos"vínculos
coletivos", afirmando que os meios postos em prática por ele eram os mais
eficazes para conseguir tal coisa; e já se sabe, além do mais, que os fins
justificam os meios, O que verificamos é que o general conquistador era um pouco
menos cruel, pois não lhe ocorria, além de tudo, rir-se dos jomudas,
enganando-os com a fábula de que, ao exterminá-los, como"compensação", não
fazia mais que render homenagem à sua própria vontade, acatando-a como
"igualmente legitima". Neste conflito, os eleitos são ainda, em última
instância, os filósofos da realidade, que dizem agir de conformidade com a
verdade e a ciência, e que portanto são chamados a definir o que quer dizer a
superstição, o preconceito, a brutalidade, o que são as tendências malignas do
caráter e quando é que devem ser indicadas a dominação e a força como meios de
compensação. A igualdade fica reduzida, pois, ainda uma vez, à nivelação pela
força e a segunda vontade deve ser equiparada à primeira por meio de um ato de
submissão, Retirada número três, que, mais que retirada, é já uma fuga
vergonhosa.
Acrescentaremos, entre parênteses,
que a frase segundo a qual a vontade alheia é sancionada como"igualmente
legítima", justamente por meio da nivelação pela força, não é mais que uma
deturpação da teoria de Hegel, de acordo com o qual o criminoso tem direito à
pena:"No fato de ver implícito na pena um direito próprio do criminoso é que se
reconhece e se honra a este como um ser racional". (Filosofia do Direito,§ 100,
nota).
Acreditamos que isso é suficiente, Não é
preciso seguir passo a passo o Sr. Dühring para a destruição gradual de seu
principio de igualdade, tão axiomaticamente proclamado, de sua soberania humana
geral, etc. etc.; é inútil continuarmos a observar que, embora se necessitem
apenas de dois homens para construir a sociedade, é preciso, para edificar o
Estado, mais um terceiro, sem o qual - para resumir de um modo conciso - não se
poderia resolver nenhum problema pelo sistema da maioria e, sem esta, isto é,
sem o domínio da maioria sobre a minoria, não é possível conceber-se o Estado.
Não precisamos ver como, pouco a pouco, vai o Sr. Dühring navegando para as
águas tranqüilas da construção de seu Estado socialitário do futuro, no qual
teremos oportunidade, numa manhã de bom tempo, de fazer-lhe uma visita.
Basta-nos o que foi dito atrás para compreender que a completa igualdade entre
as duas vontades fica liquidada desde o momento e no ponto exato em que qualquer
uma delas chegue a desejar alguma coisa. Compreendemos, desse modo, que, desde o
momento em que deixam de ser vontades humanas como tais e passam a ser vontades
reais, individuais, acabou-se a igualdade das vontades de dois homens reais e
concretos. Compreendemos que a infância, a loucura, o que ele chama de
bestialidade, a suposta superstição, os preconceitos denunciados, a presumida
incapacidade de um lado e o prurido de humanidade de outro, o domínio da verdade
e das ciências, ou seja, que a mínima diferença do ponto de vista qualitativo
entre as duas vontades, ou no tocante à inteligência que as orienta, justificam
ume desigualdade que pode chegar até a submissão. Para que continuar, quando já
o próprio Sr. Dühring pulveriza tão radicalmente, em seus próprios fundamentos,
o seu edifício da igualdade?
Mas o fato de
termos liquidado a absurda e tola construção que o Sr. Dühring cria sobre a
idéia da igualdade, não quer dizer que tenhamos liquidado a própria idéia, que
ocupa um lugar tão importante na teoria, principalmente a partir de Rousseau, e
que exerceu tanta influência na política prática da Grande Revolução, e nos
períodos que a seguiram e que, pela sua ação agitadora, influencia ainda hoje o
movimento socialista de quase todos os países. Analisando o seu conteúdo
científico, tentaremos pôr em evidência o valor que tem esta idéia para o
movimento proletário.
A crença de que todos os
homens, pelo simples fato de sê-lo, têm alguma coisa de comum que os torna
iguais, na proporção em que exista esse ponto comum, é naturalmente
antiquíssima. Mas o postulado moderno da igualdade difere radicalmente desta
idéia e, pelo contrário, faz ressaltar da própria natureza, comum a todos os
homens, dessa igualdade dos homens como tais, o princípio da equiparação
política e social de todos os seres humanos, ou, pelo menos, de todos os
cidadãos de um Estado, ou de todos os indivíduos de uma mesma sociedade. Foi
preciso que muitos milhares de anos passassem e, de fato, passaram, antes que
aquela idéia primitiva da igualdade relativa inspirasse, como um corolário, a
idéia da igualdade dentro da sociedade e do Estado e muito mais tempo seria
preciso até que esta dedução se impusesse como algo evidente e natural. Nas
velhas comunidades naturais, somente se podia falar de igualdade, de fato, entre
os membros da mesma coletividade; as mulheres, os escravos, os estrangeiros,
ficavam excluídos, naturalmente, desta comunidade, e essa exclusão era
considerada como perfeitamente natural. Na Grécia e em Roma, as desigualdades
entre os homens tinham muito mais força que qualquer forma de igualdade. E se
ocorresse a alguém dizer, então, que os gregos e os bárbaros, os livres e os
escravos, os cidadãos do Estado e os estrangeiros acolhidos sob a sua proteção,
os cidadãos romanos e os súditos de Roma (para empregar um termo geral) eram
merecedores de um mesmo tratamento político, deveria essa pessoa passar por
louca aos olhos dos antigos; no Império Romano, estas desigualdades foram
desaparecendo pouco a pouco, com exceção apenas da que separava os escravos dos
homens livres, surgindo então entre estes últimos aquele sistema de igualdade
baseado no qual se desenvolveu o Direito Romano, a mais perfeita expressão que
se conhece de um Direito cimentado sobre a instituição da propriedade privada.
Mas, embora subsistisse a distinção entre os homens livres e os escravos, não
havia razão para se falar dos corolários jurídicos derivados da igualdade de
todos os homens; até há pouco tempo, podia-se ainda observar este fenômeno nos
Estados escravagistas da América do Norte.
O
cristianismo reconhecia apenas uma igualdade entre os homens: a do pecado
original, igualdade essa que se enquadrava perfeitamente no seu caráter de
religião dos escravos e dos oprimidos. Ao lado desta, admitia no máximo a
igualdade dos eleitos, mas não insistia a respeito desta, a não ser muito nos
primórdios da religião. Os vestígios da comunidade dos bens, com que defrontamos
igualmente, nos primeiros tempos da nova religião, tinham a sua origem mais na
solidariedade entre os perseguidos do que numa verdadeira idéia de igualdade.
Ademais, a distinção entre os sacerdotes e os leigos veio logo pôr um fim a este
rudimento de igualdade cristã. A invasão do ocidente da Europa pelos germanos
varreu por vários séculos toda idéia de igualdade, levantando, pouco a pouco,
uma hierarquia social e política tão complicada como até então não se conhecera;
entretanto, ao mesmo tempo, a invasão germânica arrastava consigo, para o mesmo
movimento histórico. todos os países do ocidente e do centro da Europa, criando,
pela primeira vez, uma área compacta de cultura e sobre esta área erigindo
também pela primeira vez na história, um sistema de Estados predominantemente
nacionais, que se influenciavam e se contrapunham uns aos outros. Foi desse modo
que se preparou o terreno para, tempos mais tarde, ser possível falar-se da
igualdade humana e dos direitos do homem.
Além
disso, no bojo da Idade Média feudal, entrou em gestação a classe chamada a
proclamar quando atingisse a idade madura, o postulado da igualdade humana
moderna: a burguesia. A burguesia, que também em seus começos era apenas uma
camada feudal imprimiu um grau relativamente elevado de desenvolvimento à
indústria artesanal e à troca de produtos dentro da sociedade feudal por ocasião
de abertura de novas rotas marítimas, como resultado das grandes descobertas dos
fins do século XV. O comércio extra europeu, que até então se realizava somente
entre a Itália e os portos do Levante, torna-se extensivo agora à América e à
Índia e logo ultrapassa em importância o intercâmbio entre muitos países
europeus e mesmo o comércio interior destes países. O ouro e a prata da América
inundaram a Europa e penetraram. como um ácido corrosivo, em todos os poros.
fendas e vácuos da sociedade feudal. Não bastava já a produção artesanal para
cobrir as crescentes necessidades; a manufatura tomou posições nos ramos da
produção mais importantes dos países mais
adiantados.
Entretanto, este gigantesco
crescimento das condições econômicas de vida da sociedade não foi seguido de
perto pela mudança correspondente da organização política. O regime estatal
continuava sendo feudal, embora a sociedade se fosse tornando cada dia mais
burguesa. O comércio em grande escala e principalmente o comércio internacional
e mais ainda o comércio mundial requerem livres proprietários de mercadorias,
desembaraçados em seus movimentos, capazes todos de realizar transações,
dispondo de um direito igual para todos, pelo menos dentro de cada localidade. A
passagem do artesanato para a manufatura pressupõe a existência de um certo
número de operários livres - livres, de um lado. dos entraves gremiais e, de
outro, donos dos meios de explorarem, por si próprios, a sua força de trabalho -
capazes de estabelecer contrato com o fabricante, vendendo-lhe a sua força de
trabalho, e que, portanto, sejam capazes de contratar de igual para igual.
Finalmente, a igualdade e a igual valorização de todos os trabalhos humanos, na
qualidade de manifestações do trabalho da homem, encontrou a sua mais forte
expressão. embora inconsciente, na lei do valor da economia burguesa moderna,
segundo a qual o valor de uma mercadoria se mede pelo trabalho socialmente
necessário contido nela.(5) Mas ali onde as
condições econômicas clamavam por igualdade de direitos e por liberdade, a ordem
política lhes opunha, a cada passo, os entraves feudais e os privilégios de
classe. Por todas as Partes se erguiam privilégios locais, barreiras
alfandegárias para cada produto, leis de exceção de todo o gênero, prejudicando
o comércio não só dos estrangeiros e dos habitantes das colônias, mas até,
muitas vezes, de categorias inteiras dos próprios súditos do país; por todas as
Partes, inúmeros privilégios gremiais barravam-lhes o caminho e se antepunham ao
desenvolvimento da manufatura. Os competidores burgueses não encontravam
liberdade e igualdade de condições em nenhuma Parte, e, entretanto, essa sua
reivindicação era essencial e cada vez mais
premente.
A emancipação dos entraves feudais e
a implantação da igualdade jurídica, pela abolição das desigualdades do
feudalismo, eram um postulado colocado na ordem do dia pelo progresso econômico
da sociedade, e que depressa alcançaria grandes proporções. Embora proclamado
este postulado da igualdade de direitos no interesse da indústria e do comércio,
não havia mais remédio senão torná-lo extensivo também à grande massa de
camponeses que, submetida a todas as nuanças de vassalagem, que chegava até a
servidão completa, passava a maior Parte de seu tempo trabalhando gratuitamente
nos campos do nobre senhor feudal, além de ter de pagar a ele e ao Estado uma
infinidade de tributos. Postos neste caminho, não havia outro remédio para os
burgueses senão exigir também a abolição dos privilégios feudais, da isenção de
impostos para a nobreza, dos direitos políticos singulares de cada categoria
social feudal. E como a sociedade não vivia mais num império mundial como o
romano, mas sim dividida numa rede de Estados independentes, que mantinham entre
si relações de igualdade e tinham chegado a um grau quase burguês de
desenvolvimento, era natural que aquelas tendências adquirissem um caráter
geral, ultrapassando as fronteiras dos Estados e era natural, portanto, que a
liberdade e a igualdade fossem proclamadas direitos humanos. Para compreender o
caráter especificamente burguês de tais direitos humanos, nada mais eloqüente
que a Constituição norte-americana, a primeira em que são definidos os direitos
do homem, na qual, ao mesmo tempo, se sanciona a escravidão dos negros, então
vigente nos Estados Unidos, e se proscrevem os privilégios de classe, enquanto
que os privilégios de raça são
santificados.
Sabe-se, por outro lado, que a
burguesia, desde o instante em que sai do embrião da burguesia feudal, instante
em que, de camada feudal se converte em classe moderna, se vê ladeada, sempre e
em todas as Partes, inseparavelmente, como por sua própria sombra, pelo
proletariado. E ao movimento da igualdade burguesa acompanha, também, como a
sombra ao corpo, o movimento da igualdade proletária. Desde o instante em que se
proclama o postulado burguês da abolição dos privilégios de classe, ergue-se o
postulado proletário da abolição das próprias classes postulado esse que adota
primeiro a forma religiosa, baseada no cristianismo primitivo, e que, mais
tarde, se apoia nas próprias teorias burguesas da igualdade. Os proletários
colhem a burguesia pela palavra: é preciso que a igualdade exista não só na
aparência, que não se circunscreva apenas à órbita do Estado, mas que tome corpo
e realidade, fazendo-se extensiva à vida social e econômica. E, desde que a
burguesia francesa, sobretudo depois da Grande Revolução, passou a considerar em
primeira plano a igualdade burguesa, o proletariado francês coloca, passo a
passo, as suas próprias reivindicações, levantando o postulado da igualdade
social e econômica, e, a partir dessa época, a igualdade se converte no grito de
guerra do proletariado, e, muito especialmente, do proletariado
francês.
O postulado da igualdade tem, pois, na
boca do proletariado, uma dupla acepção. As vezes - como sucedeu sobretudo nos
primeiros tempos, na guerra dos camponeses, por exemplo, - este postulado
significa a reação natural contra as desigualdades sociais clamorosas, contra o
contraste entre ricos e pobres, Senhores e servos, famintos e glutões. Este
postulado da igualdade não é mais que uma explosão do instinto revolucionário e
somente isso é que o justifica. Outras vezes, no entanto, nasce esse postulado
como reação contra o postulado de igualdade da burguesia e tira dele muitas
conseqüências avançadas, mais ou menos exatas, sendo utilizado como meio de
agitação para levantar os operários contra os capitalistas, usando para isso
frases tomadas dos próprios capitalistas e, considerado desse aspecto, se
organiza e cai por terra esse postulado juntamente com essa mesma liberdade
burguesa. Tanto num como noutro caso, o verdadeiro conteúdo do postulado da
igualdade proletária é a aspiração de alcançar a abolição das classes. Qualquer
outra aspiração de igualdade que transcenda a tais limites desborda,
necessariamente, para o absurdo. Demos já alguns exemplos a este respeito e
poderemos encontrá-los em abundância quando chegarmos às fantasias sobre o
futuro, do Sr. Dühring.
Como vemos, a idéia da
igualdade, tanto na sua forma burguesa como na proletária, é, por si mesma, um
produto histórico que somente podia tomar corpo em virtude de determinadas
condições históricas, as quais, por sua vez, tinham por trás de si um grande
passado. Está longe, pois, de ser uma verdade eterna. E se alguma coisa é
atualmente evidente para o grande público - num ou noutro sentido - se, como diz
Marx, - alguma coisa"possui já a completa estabilidade de um preconceito
popular", não há de ser devido à sua verdade axiomática, mas por ser resultado
da difusão generalizada e da permanente atualidade das idéias do século XVIII.
Portanto, se o Sr. Dühring pode se dar ao luxo de colocar os seus dois homens a
viver num plano de igualdade, isso se dá. pura e simplesmente, porque para o
povo, devido a esse preconceito, parece essa igualdade ser a coisa mais natural
do mundo. Não esqueçamos que o Sr. Dühring chama de filosofia natural à sua
filosofia, por ser proveniente de toda uma série de coisas que parecem a ele
naturalíssimas. Por que é que lhe parecem naturais é uma coisa que não merece a
preocupação do Sr. Dühring.
Inclusão | 30/10/2002 |