Anti-Dühring

Friederich Engels


Parte I - Filosofia da Natureza
Capítulo VI - Cosmologia, Física, Quimica.


Continuando o exame da obra, chegamos às teorias sobre as origens do mundo atual. Informa-nos que o estado universal de difusão da matéria era já a concepção inicial dos filósofos jônicos, mas que, sobretudo depois de Kant, a hipótese de uma nebulosa primitiva volta a desempenhar um papel, tendo a gravitação e a irradiação do calor servido de meios para a formação progressiva, a partir da nebulosa primitiva. de cada um dos diversos corpos celestes sólidos. No nosso tempo, a moderna teoria mecânica do calor permite formular, com muito mais precisão, as inferências relativas aos estados primitivos do universo. Entretanto,"o estado de difusão gasosa não pode servir de ponto de partida a deduções sérias, se, previamente, não se puder determinar, com a maior concretização, o sistema mecânico que nele se encerra. De outro modo, a idéia não só se perderá nas trevas, mas também, longe de se desfazer, a trela primitiva se tornará mais densa e impenetrável no curso de nossas deduções... Por enquanto, tudo continua ainda no vago e informe de uma idéia cuja difusão é impossível de se determinar mais detalhadamente". E assim"não temos desse universo gasoso senão uma concepção absolutamente aérea".
     A teoria sobre a gênese dos mundos atuais, pela rotação das massas nebulosas, foi o maior progresso que a astronomia fez desde Copérnico. Pela primeira vez abalou-se a idéia de que a natureza não teria história no tempo. Até então, acreditava-se, os corpos celestes se moviam, constantemente, desde a sua origem, nas mesmas órbitas invariáveis; e se bem fosse admitido que sobre cada um dos corpos celestes os seres orgânicos individuais pereciam, entendia-se que essa morte não afetava. em nada, às espécies e aos gêneros. A natureza estava, de fato, visivelmente empenhada num movimento perpétuo: mas esse movimento parecia não ser mais que a repetição incessante dos mesmos fenômenos. Nessa concepção, que correspondia inteiramente ao método filosófico metafísico, Kant abriu a primeira brecha, e isso de maneira tão científica que a maior Parte dos argumentos empregados por ele têm, ainda hoje, um grande valor. É certo que a teoria de Kant não é, ainda agora, rigorosamente mais que uma hipótese. Mas o sistema cosmológico do próprio Copérnico não conseguiu ser senão uma hipótese, até hoje; e, depois que as investigações espetroscópicas, derrubando todos os argumentos contrários. apresentaram a prova evidente de que existem tais massas gasosas ígneas no firmamento, a oposição científica à teoria de Kant foi reduzida ao silêncio. O Sr. Dühring não pode, igualmente, construir o seu mundo, sem apelar para um estado de nebulosidade precedente, mas ele vinga-se exigindo que lhe demonstrem o sistema mecânico dessa nebulosa e, como não pôde ser atendido, investe contra essa demonstração com toda a espécie de epítetos desdenhosos. Infelizmente, a ciência atual não pode definir e concretizar esse sistema, de modo a satisfazer ao Sr. Dühring. E não é capaz, muito menos, de responder a outras perguntas. A pergunta seguinte: por que os sapos não têm rabo? não pôde, até hoje, ser respondida senão pela hipótese de que, possivelmente, o perderam. Se, a propósito, perdendo a calma, disséssemos que tudo Isso é muito vago e informe, que é uma idéia pouco concreta de"perda", uma concepção sumamente"aérea", é possível que uma semelhante aplicação da moral às ciências naturais não nos faça avançar nem um passo. Essas condenações e essas explosões de descontentamento podem ter lugar não importa onde nem quando e é justamente por isso que não devem ser usadas em Parte alguma. Se tudo está errado quem é que impede ao Sr. Dühring de descobrir, ele próprio, o sistema mecânico da nebulosa primitiva?
     Por felicidade, sabemos agora que a massa nebulosa de Kant está bem longe de se confundir com um estado totalmente idêntico do meio universal, ou, melhor, com o estado da matéria, idêntico a si próprio. Eis aí um verdadeiro triunfo para Kant, que tinha razões para se contentar em fazer remontar desde os corpos celestes, atualmente existentes, até a esfera nebulosa, sem lembrar-se, por nada deste mundo, do estado da matéria idêntico a si próprio.
     Observemos, de passagem, que, na ciência da natureza, a massa de névoa de Kant, que é designada atualmente pelo nome de nebulosa primitiva, não deve ser tomada, como é fácil compreender, senão num sentido relativo. Quando dizemos que ela é nebulosa primitiva, por um lado, queremos dizer que nela está a origem dos corpos celestes existentes e que ela é, por outro lado, a mais antiga forma de matéria a que podemos, até agora, remontar. O que absolutamente não exclui, mas, pelo contrário, supõe que a matéria tenha atravessado, antes da nebulosa primitiva, uma série infinita de outras formas.
     E nisso o Sr. Dühring não vê nenhuma vantagem. Enquanto somos obrigados, com a ciência, a nos deter provisoriamente na nebulosa primitiva, como numa estação de trânsito, a sua ciência da ciência permite-lhe subir muito mais alto, até aquele"estado do meio universal que não poderia ser concebido, nem como puramente estático, no sentido atual do termo, nem como dinâmico, e que, portanto, de nenhum modo é possível conceber"."A unidade de matéria e força mecânica, à qual damos o nome de meio universal, é uma fórmula por assim dizer lógico-real, da qual nos valemos para designar o estado da matéria idêntico a si próprio, como fase prévia de todas as etapas da evolução que possamos estabelecer."
     Evidentemente, não terminamos ainda com o estado da matéria idêntico a si mesmo. Esse estado é aqui designado como a "unidade de matéria e força mecânica","fórmula lógico-real", etc. Assim, logo que cessa a unidade de matéria e força mecânica, o movimento se inicia.
     A"fórmula lógico-real, não é senão uma fraca tentativa de utilizar. na"filosofia da realidade", as categorias hegelianas do em si (Ansich) e para si (Fursich). Na primeira categoria reside, para Hegel, a identidade primitiva das antíteses ainda latentes e embrionárias, ocultas numa coisa, num fenômeno, num conceito; na segunda. manifestam-se a diferenciação e a separação desses elementos ocultos e começa o seu conflito. É preciso pois, e para isso nos convida O Sr. Dühring, representarmo-nos o estado de imobilidade primitiva como unidade de matéria e força mecânica e a passagem para o movimento como separação e oposição destes dois elementos.
     O que com isso ganhamos não é a prova da realidade desse fantástico estado primitivo, mas somente a possibilidade de compreendê-lo sob a categoria hegeliana do Ansich e de compreender-lhe a cessação, também fantástica, sob a categoria do Fursich. Continua valendo o auxílio de Hegel!
     A matéria, diz o Sr. Dühring, é a portadora de tudo o que é real, de tal maneira que não pode haver força mecânica fora da matéria. A força mecânica é, além disso, um estado da matéria. Assim, no estado primitivo, em que nada se passava, a matéria e seu estado, a força mecânica, eram uma e a mesma coisa. A seguir, quando começou a se passar algo, necessariamente esse estado se diferenciou da matéria. Será preciso, pois, que nos contentemos com essas frases mitológicas e com essa vaga afirmação de que o estado da matéria idêntico a si próprio não era nem estático nem dinâmico, nem equilíbrio, nem movimento, como quer o Sr. Dühring? Não saberemos jamais em que lugar a força mecânica se achava, naquele estado primitivo, nem como pôde, sem um impulso de fora, isto é, sem Deus, passar da imobilidade absoluta ao movimento.
     Antes do Sr. Dühring, os materialistas falaram da matéria e do movimento. Ele reduz o movimento à força mecânica como sua pretensa forma fundamental e por aí se torna impossível compreender a verdadeira relação entre matéria e movimento, a qual, de resto, foi igualmente obscura para todos os materialistas que o precederam. E, no entanto, a coisa é bastante simples. O movimento é o modo de existência da matéria.
     Nunca, em Parte alguma, existiu, nem pode existir, matéria sem movimento. Movimento no espaço absoluto, movimento mecânico de pequenas massas em qualquer dos mundos existentes, vibrações moleculares sob a forma de calor, de corrente elétrica ou magnética, de análise e síntese químicas, vida orgânica: em qualquer uma dessas formas de movimento, ou em várias ao mesmo tempo, é que se encontra, no mundo, cada um átomo de matéria, em cada instante determinado.
     O repouso e o equilíbrio são sempre relativos, e só têm sentido e razão de ser em relação a tal ou qual forma concreta de movimento. Um corpo, por exemplo, pode achar-se à superfície da terra, em equilíbrio mecânico, estar, do ponto de vista mecânico, em estado de repouso; isso não o impede, absolutamente, de participar do movimento da terra bem como do movimento do sistema solar inteiro, assim como não impede que as suas melhores partículas físicas experimentem as vibrações provocadas por sua temperatura, ou que os seus átomos efetuem um processo químico. Matéria sem movimento é tão inconcebível como movimento sem matéria.
     O movimento não pode, por conseqüência, ser criado ou destruído, como também não pode ser a própria matéria, e é a isso que a antiga filosofia (Descartes) se refere quando afirma que a quantidade de movimento existente no mundo é sempre a mesma. O movimento não pode, pois, ser criado; ele pode somente ser transmitido. Quando o movimento é transmitido de um corpo para outro podemos considerar que ele se desloca - ativamente - como causa do movimento, ou que é deslocado - passivamente - como efeito. Chamamos a esse movimento ativo de força e a esse movimento passivo de manifestação de força. É pois evidente que a força não pode ser maior nem menor que a sua manifestação, uma vez que o mesmo movimento se realiza em ambos os casos.
     Imaginar um estado da matéria sem movimento é, por isso mesmo, umas das idéias mais vazias e absurdas que se pode encontrar; é, mais que uma idéia, uma"pura fantasia febricitante". Para chegar até essa idéia da imobilidade é preciso representar-se como repouso absoluto o equilíbrio mecânico puramente relativo, no qual se pode achar um corpo à superfície da terra, para depois estender essa representação a todo o universo. É verdade que isso se torna mais fácil se se reduz o movimento universal à simples força mecânica. Além disso, essa limitação do movimento a uma simples força mecânica apresenta ainda a vantagem de que se pode representar uma força em repouso, dominada e, por conseguinte, momentaneamente sem ação. Com efeito, quando a transmissão de um movimento é, como sucede quase sempre, um fenômeno um tanto complexo, no qual não conhecemos diversos elos intermediários, pode-se retardar a transmissão propriamente dita, até o instante ,julgado oportuno, não se conhecendo, entretanto, o último elo da cadeia; por exemplo, quando se carrega um fuzil aguarda-se o momento em que, pela detonação do gatilho, deve produzir-se a descarga, e, com ela, a transmissão do movimento desenvolvido pela combustão da pólvora.
     Pode-se, pois, representar a matéria, durante o estado imóvel idêntico a si mesmo, como carregada de força; e é esse sentido que o Sr. Dühring parece dar, quando fala da unidade de matéria e força mecânica, se é que lhe dá algum sentido. Mas essa representação é absurda, porque transfere ao universo, como absoluto, um estado que é relativo por natureza e ao qual, consequentemente, não pode estar submetida, num mesmo tempo. senão uma Parte da matéria. Mesmo que se deixasse de lado essa objeção, restaria ainda a dificuldade de se saber, em primeiro lugar, como o mundo foi carregado de forças. visto que nem hoje os fuzis se carregam por si próprios; em segundo lugar, era preciso saber qual foi o dedo que apertou o gatilho. Por mais que mudemos a direção, por voltas e voltas, pelos ensinamentos do Sr. Dühring, chegamos sempre ao dedo... da Providência.
     Da astronomia, o nosso filósofo da realidade passa à mecânica e à física, e queixa-se de que a teoria mecânica do calor não tenha sido impulsionada, uma geração após a sua descoberta, para mais adiante do ponto em que Robert Mayer a situou. Além disso, diz-nos o Sr. Dühring, toda a questão permanece obscura, e devemos sempre"recordar novamente que os estados de movimento da matéria trazem consigo situações estáticas e que estas não são mensuráveis pelo trabalho mecânico... Se. acima, qualificamos a natureza de grande operária, expressão que tomamos no sentido restrito, falta-nos acrescentar ainda que os estados idênticos a si próprios e as situações de repouso não representam trabalho mecânico de espécie alguma. Voltamos, ainda uma vez, a sentir a falta da ponte que levaria do estático ao dinâmico; e, ainda que isso a que se chama calor latente continue sendo um impulso para a teoria, devemos reconhecer, ainda aqui, uma lacuna que não poderia ser negada em Parte alguma e muito menos nas suas aplicações à cosmologia."
     Toda essa fraseologia oracular demonstra, uma vez mais, a sua consciência de culpa, convencido do mau passo que deu com a sua teoria do movimento saindo da imobilidade absoluta, mas não se atrever, no entanto. a apelar para a sua única salvação, para o Criador do céu e da terra. Se, mesmo na mecânica, inclusive na mecânica do calor a ponte do estático ao dinâmico, do equilibro ao movimento, não pode ser descoberta, por que o Sr. Dühring teria a obrigação de encontrar a ponte que leva de seu estado de imobilidade ao movimento? Com isso acredita por-se a salvo.
     Na mecânica vulgar, a ponte do estático ao dinâmico é... o impulso exterior. Quando uma pedra do peso de cinqüenta quilos é elevada à altura de dez metros e mantida ao ar livre de maneira a ficar retida num estado idêntico a si próprio, no estado de repouso, é preciso recorrer a um público de crianças ingênuas para poder explicar que a situação atual desse corpo não representa trabalho mecânico, ou que a diferença entre essa situação e sua situação anterior não deriva do trabalho mecânico.
     O primeiro transeunte fará facilmente compreender ao Sr. Dühring que a pedra não subiu por si para se pendurar na corda e o primeiro manual de mecânica com que depare poderá explicar-lhe que, se deixar a pedra cair de novo, ela realizará, em sua queda, tanto trabalho mecânico quanto foi necessário para elevá-la à altura de dez metros. O simples fato de a pedra estar suspensa no alto representa trabalho mecânico, pois, se ela ficar pendurada por muito tempo, a corda se romperá, uma vez que, como resultado de uma decomposição química, não será bastante forte para sustentar a pedra.
     Ora, todos os fenômenos mecânicos podem, para falarmos com o Sr. Dühring, reduzir-se a"formas fundamentais" simples como essa; e ainda está para nascer o engenheiro que não seja capaz de achar a ponte do estático ao dinâmico, enquanto dispuser de um impulso suficiente.
     É, seguramente, uma noz um pouco dura e uma pílula amarga para os nossos metafísicos o fato de que o movimento deva encontrar a sua própria medida no seu contrário, o repouso. É uma contradição flagrante e toda a contradição (Widerspruch) é para o Sr. Dühring um contra-senso (Widersinn). Contudo, é certo que a pedra suspensa representa uma quantidade de movimento mecânico determinada, mensurável com precisão pelo seu peso e pelo seu afastamento do solo, quantidade essa que pode ser consumida à vontade, de diversas maneiras, como, por exemplo, deixando-se cair a pedra, fazendo-a deslizar sobre um plano inclinado, fazendo-a impulsionar um moinho de vento, etc., e o mesmo se dá com o fuzil carregado a que nos referimos anteriormente. Para o pensamento dialético, o fato de o movimento ser expresso em seu contrário, o repouso, não apresenta dificuldade alguma.
     Essa antítese é conforme tivemos oportunidade de ver, puramente relativa; não existe repouso absoluto nem equilíbrio, incondicional. Cada movimento concreto, tende ao equilíbrio, e o movimento total suprime esse equilíbrio. Assim, o repouso e o equilíbrio são, onde quer que se encontrem, o resultado de um movimento limitado e concreto, sendo natural que esse movimento seja mensurável por seu resultado ou seja nele expresso, podendo ser restabelecido a partir dele, sob uma forma ou outra. Mas uma exposição tão simples do caso não poderia contentar ao Sr. Dühring. Como bom metafísico, descobre ele entre o movimento e o equilíbrio um abismo, que na realidade não existe e, depois, admira-se de não poder encontrar uma ponte sobre o abismo que ele cavou. Poderia muito bem cavalgar a seu rocinante metafísico e ir à casa da"coisa em si" de Kant; porque é ela e não outra coisa que, em última análise, está à sua espera por detrás dessa ponte misteriosa.
     Mas vejamos o que acontece com a teoria mecânica do calor e do calor inativo ou latente que"vinha sendo um impulso" para essa teoria.
     Se tomarmos um quilo de gelo à temperatura do ponto da congelação e à pressão normal da atmosfera, e o transformarmos, por meio do calor, num quilo de água, tendo-se a mesma temperatura ambiente, desaparecerá, dessa forma, uma quantidade de calor suficiente para elevar o mesmo quilograma de água de 0 a 79 4/10 graus centígrados, ou, se preferirmos, para aquecer de um grau a quantidade 79 4/10 quilos de água. Se aquecermos esse quilograma de água até o ponto de ebulição, ou seja, até 100º e se o convertermos em vapor d'água, desaparecerá, até que a última gota de água se transforme em vapor, uma quantidade de calor aproximadamente sete vezes maior, suficiente para elevar de um grau a temperatura de 537 2/10 quilos de água. Essa temperatura que desaparece, diz-se que fica reprimida ou inativa. Se, pelo resfriamento, o vapor se tornar novamente água e a água se converter em gelo, essa mesma quantidade de calor, que estava até então retida, é posta em liberdade, o que quer dizer que ela pode ser medida ou percebida como calor. Essa libertação do calor, quando o vapor se condensa e a água se congela, é que faz com que o vapor, quando a temperatura alcança 100º, só se converta lentamente em água e que, a partir do ponto de congelação, se opere a congelação pouco a pouco. A questão, desde que os fatos foram colocados, é a seguinte: Em que se transforma o calor, enquanto está retido?
     A teoria mecânica do calor - segundo a qual o calor consiste em vibrações mais ou menos consideráveis de acordo com a temperatura e o estado de agregação das pequenas partículas fisicamente ativas (moléculas) dos corpos, vibrações essas suscetíveis de adotarem, em certas circunstâncias, qualquer uma das formas do movimento - a teoria mecânica é que explica o fenômeno, dizendo que o calor desaparecido realiza um trabalho, se transmite a um trabalho. Quando o gelo se derrete, a coerência estreita e firme das moléculas entre si, cessa e Se transforma, de um aglomerado coeso, numa dispersão total; quando a água se evapora, no ponto de ebulição, produz-se um estado em que as moléculas soltas não exercem mais ação sensível umas sobre as outras, dispersando-se, sob a influência do calor, nas mais opostas direções. Ora, é evidente que cada uma das moléculas de um corpo em estado gasoso encerram muito mais energia que no estado líquido e, neste, muito mais que no estado sólido. O calor retido, portanto, não desapareceu, mas apenas se transformou, adquirindo a forma da força de tensão molecular.
     Desde que desaparece a condição pela qual as moléculas podem conservar a sua liberdade absoluta ou relativa umas frente às outras, Isto é, desde que a temperatura alcance um mínimo, seja de 100º. seja de 0º, essa força de tensão desaparece e as moléculas se aglutinam com a mesma força com que antes se destacavam umas das outras; essa força desaparece, mas somente para reaparecer, sob forma de calor, e na quantidade mesma de calor que antes estava retida. Essa explicação é naturalmente uma hipótese, como, aliás, toda a teoria mecânica do calor, pois que ninguém, até agora, viu uma molécula e, muito menos, uma molécula vibrátil. Esta hipótese está cheia de defeitos como, aliás, toda a teoria térmica que é ainda bastante nova; mas pode, pelo menos, explicar os fenômenos sem entrar em contradição com a lei segundo a qual o movimento não se perde, nem se cria, ao mesmo tempo em que é capaz de explicar, com clareza, a existência do calor no curso de suas metamorfoses. O calor latente ou retidão não é, de maneira alguma, um impulso para a teoria mecânica do calor. Pelo contrário, essa teoria dá, pela primeira vez, uma explicação racional dos fenômenos e torna-se estranho que os físicos continuem a dar ao calor, transformado, numa outra forma de energia molecular, o qualificativo antiquado e impróprio de"calor retido".
     Os estados idênticos a si próprios e às situações de repouso da matéria em estado sólido líquido ou gasoso, representam, pois, trabalho mecânico e esse trabalho mecânico é a medida do calor. Igualmente, tanto a crosta sólida da terra como a água do oceano representam, em seu estado natural de agregação, uma quantidade concreta e determinada de calor posto em liberdade, à qual evidentemente corresponde uma quantidade também determinada e concreta de força mecânica. Quando a esfera gasosa, de que nasceu a terra, passou ao estado líquido e, mais tarde, em grande Parte, ao estado sólido, uma quantidade determinada de energia molecular se irradiou no espaço sob a forma de calor. A dificuldade de que fala misteriosamente o Sr. Dühring não existe, como vemos, já que mesmo nas aplicações cósmicas, se, por um lado, podemos encontrar defeitos e lacunas, devido aos meios imperfeitos de conhecimento de que dispomos - por outro lado nunca deparamos obstáculos teóricos intransponíveis. A ponte" do estático ao dinâmico é, aqui também, como sempre, um impulso de fora - resfriamento ou aquecimento ocasionado por outros corpus que agem sobre o objeto em equilíbrio. Quanto mais avançamos na filosofia da natureza do Sr. Dühring. mais nos parecem inconcebíveis e inconsistentes todas as tentativas de explicar o movimento pela imobilidade ou de encontrar a ponte pela qual o que está em repouso e é puramente estático poderia por si mesmo passar ao dinâmico, ao movimento.
     Nesse ponto, nos desembaraçamos, felizmente, por algum tempo, do famoso estado primitivo idêntico a si próprio. O Sr. Dühring passa agora à química, e, neste campo, revela-nos três leis de invariabilidade da natureza, conquistadas por ele em sua"filosofia da realidade": 1a. - A grandeza ou o volume da matéria universal é invariável; 2a. - o número dos elementos químicos simples é invariável; e 3a. - a grandeza ou volume da força mecânica é invariável.
     Assim, o caráter não criado é indestrutível da matéria e de seus elementos simples, na medida em que ela os tem, bem como o caráter do movimento, - que são fatos antigos universalmente conhecidos, mas que são expressos de maneira deficiente. - são o único resultado realmente positivo que o Sr. Dühring nos pode dar de sua filosofia natural do mundo inorgânico. Coisas que conhecíamos há muito tempo e nada mais. O que sabíamos, porém, é que se tratava de"leis da invariabilidade" e, portanto, de "propriedades esquemáticas do sistema das coisas". Volta a se dar aqui a mesma história que acima se deu com Kant: o Sr. Dühring arranja, não importa que velha banalidade arqui-conhecida, cola sobre ela uma etiqueta de Dühring e chama as coisas de"resultado e concepções essencialmente originais... idéias criadoras de sistema...ciência radical...
     Isso, porém, ainda não é razão para desespero. Quaisquer que sejam os defeitos da"ciência radical", - e não há instituição social, por melhor que seja, que não os possua - uma coisa há que o Sr. Dühring pode afirmar com segurança:"O ouro existente no universo existiu necessariamente sempre na mesma quantidade e não pode, assim como a própria matéria universal, aumentar ou diminuir." Mas o que podemos comprar com esse"ouro", o Sr. Dühring infelizmente não nos diz.


Inclusão 30/10/2002