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Segundo o Sr. Dühring, a
filosofia é o desenvolvimento da forma suprema da consciência do mundo e da
vida, compreendendo, num sentido amplo, os princípios, de toda a ciência e de
toda a vontade. Onde quer que se apresente à consciência humana, uma série de
conhecimentos ou de impulsos, ou um grupo de formas de existência, os princípios
que presidem a essas manifestações implicam necessariamente num problema de
filosofia. Estes princípios são os elementos simples, ou os que assim são
considerados até hoje e dos quais se compõem as mais diversas modalidades da
ciência e da vontade. Do mesmo modo que a constituição química dos corpos se
reduz a formas e a elementos fundamentais, pode reduzir-se, também, a seus
elementos simples a constituição de qualquer coisa. E estes elementos ou princípios,
uma vez obtidos, não governam apenas aquilo que conhecemos e que nos é
diretamente acessível, mas também envolvem o mundo que nos é desconhecido e
igualmente inacessível. Os princípios filosóficos formam, portanto, o último
complemento de que necessitam as ciências para se converterem num sistema harmônico
de explicação da natureza e da vida dos homens. Além das formas fundamentais
de toda a existência, a filosofia só conhece os verdadeiros objetivos de
investigação: a natureza e o mundo dos homens. Para a classificação dessa
matéria, temos três grupos, que dela se derivam com absoluta espontaneidade: a
esquemática geral do mundo, a teoria dos princípios da natureza e, finalmente,
a dos princípios do homem. Além disso, essa hierarquia contém uma ordem lógica
interna, pois, à frente, estão os princípios formais pelos quais se rege e,
logo após, em gradação subordinada, as zonas materiais a que esses princípios
se aplicarão. Até aqui, limitamo-nos a transcrever quase que literalmente as
palavras do Sr. Dühring.
Quando ele fala de princípios, refere-se a princípios
de pensamento independentes, não deduzidos do mundo exterior, e de princípios
formais, derivados, aplicáveis à natureza e ao mundo dos homens pelos quais,
portanto, a natureza e o homem serão regidos. Mas, de onde tira o pensamento
esses princípios? Tira de si mesmo? Não, pois o próprio Sr. Dühring diz que,
na zona puramente ideal, não há mais do que esquemas lógicos e figuras matemáticas
(afirmação falsa, como veremos adiante). Os esquemas lógicos só podem
referir-se a formas conceituais, e, aqui, trata-se apenas das formas do que
existe, do mundo exterior, formas que jamais o pensamento pode derivar de si
mesmo, mas que deve buscar no mundo exterior. Mas isto inverte toda a relação
estabelecida: os princípios já não são o ponto de partida da investigação,
mas seus resultados finais; não se aplicam à natureza e à história humana,
mas deles são extraídos; não é a natureza e o mundo dos homens que se regem
pelos princípios, mas só estes é que têm razão de ser quando coincidem com
a natureza e com a história. Nisto consiste a verdadeira concepção
materialista das coisas, o oposto do que afirma o Sr. Dühring, que é idealista
e cuja concepção inverte todas as coisas, construindo o mundo real partindo da
idéia, de uma série de esquemas, planos ou categorias existentes e de valor
eterno e anterior à existência do mundo, nada mais e nada menos que... um
Hegel.
Com efeito, coloquemos a Enciclopédia de Hegel,
com todas as suas fantasias febris, junto às verdades definitivas e inapeláveis
do Sr. Dühring. Ao que o Sr. Dühring chama de esquemática geral do mundo,
Hegel chama de lógica. O que o primeiro aplica à natureza como esquemas, o
segundo o faz com as categorias lógicas e daí temos a filosofia da natureza,
e, finalmente, a sua aplicação ao mundo do homem, que, em Hegel, se chama
filosofia do espírito. Como vemos, a"ordem lógica interna" da
hierarquia dühringuiana nos encaminha diretamente,"com absoluta
espontaneidade", à Enciclopédia de Hegel, donde foi tirada com tal
fidelidade, que faria chorar de ternura ao judeu errante da escola hegeliana, o
professor Michelet, de Berlim.
A isto se chega quando se considera a"consciência",
o"pensamento", com um critério absolutamente materialista, como se
se tratasse de algo determinado em contraposição; desde o primeiro instante,
ao que existe, à natureza. E nada mais se pôde fazer senão admirar que possam
coincidir a consciência e a natureza, o pensamento e a existência, as leis do
pensamento e as leis naturais. Mas, se queremos, na realidade, saber o que são
o pensamento e a consciência e de onde procedem, saberemos, então, que são
produtos do cérebro humano e o próprio homem nada mais é de que um produto
natural que se formou e se desenvolveu dentro de seu ambiente e com ele.
Tiramos, então, a conclusão, lógica por si mesma, de que os produtos do cérebro
humano, que não são, em última análise, mais que produtos naturais, não se
contradizem, mas se harmonizam com a concatenação geral da natureza.
Mas o Sr. Dühring não se conforma com uma concepção
tão simples. Ele não pensa apenas em nome da humanidade - o que já seria
suficiente - pensa também em nome da essência consciente e pensante de tudo o
que existe no mundo. Com efeito, seria"degradar as formas fundamentais da
consciência e da cultura, pretender excluir a sua soberana vigência, e os seus
títulos incondicionais de verdade ou disso suspeitar por se as considerar
atributos humanos." Para que não surja dúvida de que possa existir algum
planeta no qual dois e dois sejam igual a cinco, o Sr. Dühring se vê obrigado
a prescindir da qualificação do pensamento humano e forçado, com isso, a
separar essa função da única base real que para nós existe, - o homem e a
natureza -, submergindo, assim, uma ideologia que nada mais é do que o epígono
do"epígono de Hegel". Além disso, teremos muitas ocasiões de
saudar o Sr. Dühring noutros planetas.
Facilmente se compreende que, nessa base ideológica,
não é possível fazer-se uma teoria materialista. Adiante veremos como o Sr. Dühring
se vê forçado a impor à natureza, mais de uma vez, uma norma consciente de
conduta, ou seja, o que vulgarmente chamamos, - um Deus.
O nosso filósofo da realidade tinha, entretanto,
também outras razões para transplantar a base de toda a realidade do mundo
real para o mundo do pensamento. Não é em vão que a ciência desse
esquematismo geral do mundo, desses princípios formais de tudo o que existe
seja precisamente a base da filosofia do Sr. Dühring. E se pudéssemos derivar
o esquematismo do mundo, não de nosso cérebro, mas por meio dele, do mundo
real, se pudéssemos derivar os princípios da existência daquilo que existe, não
seria necessária essa filosofia, mas, pelo contrário, contentar-nos-íamos com
uma série de conhecimentos positivos do mundo e do que nele ocorre,
conhecimentos que não formam uma filosofia, mas apenas uma ciência positiva.
Como vemos, todo o trabalho do Sr. Dühring seria tempo perdido.
E, se não necessitássemos de uma filosofia como
tal, tampouco necessitaríamos de um sistema, ou mesmo de um sistema natural de
filosofia. A consciência de que a totalidade dos fenômenos naturais forma um
conjunto sistemático força a esta ciência verificar essa dependência nas
suas diversas Partes, tanto nos detalhes como no conjunto. Mas. querer reduzir
um sistema científico congruente e fechado, a esse conjunto, pretender tirar
uma imagem ideal exata do sistema do mundo em que vivemos, é uma simples
quimera, tanto para nós, como para os tempos vindouros. Se, ao chegar a um período
qualquer do progresso humano, se tornasse possível construir um sistema
definitivo e determinado das concatenações universais, tanto no físico como
no espiritual e histórico, ter-se-ia encerrado o ciclo dos conhecimentos
humanos e, uma vez que a sociedade se sujeitasse a esse sistema, levantar-se-ia
uma barreira a todo o desenvolvimento histórico futuro, o que seria um
contra-senso, um absurdo. Os homens vêm-se, pois, colocados ante esta contradição:
de um lado, levados a investigar o sistema do mundo, englobando todas as suas
condições e relações; de outro, por sua própria natureza e pela natureza
mesma do sistema do mundo, não podem jamais resolver por completo esse
problema.
Mas esta contradição não se baseia apenas na
natureza destes dois fatores: o homem e o mundo. A contradição é a alavanca
principal de todo o progresso intelectual e resolve-se diária e incessantemente
no desenvolvimento progressivo e infinito da humanidade, do mesmo modo que os
problemas matemáticos, por exemplo, encontram sua solução numa série
infinita ou naquilo que os matemáticos chamam de fração contínua. O fato é
que toda a imagem conceitual do sistema do mundo é e continuará sendo sempre,
objetivamente, por força da situação histórica e, subjetivamente, por assim
o desejar a contextura espiritual de seu autor, uma imagem limitada. É claro
que o Sr. Dühring proclama de antemão sua mentalidade como algo que exclui
todo o perigo de representação subjetivamente limitada do mundo.
Anteriormente, vimos que contava, entre os seus dons, a onipresença, uma vez
que podia falar em nome de todos os planetas do universo. Agora, vemos que goza
também do dom da onisciência, pois não foi em vão que resolveu os últimos
problemas da ciência, fechando, por meio de tábuas, o futuro de toda a ciência
do mundo.
E, do mesmo modo que age em relação às formas
fundamentais do que existe, o Sr. Dühring crê que pode fazer, ao tirar de seu
cérebro. acabadas e perfeitas, de um modo apriorístico, isto é, sem
considerar a experiência que oferece o mundo exterior, todas as matemáticas
puras. Nas matemáticas puras pôde, segundo ele, mover-se livremente a inteligência,
com as"suas criações e imaginações próprias"; os conceitos de número
e de figura são o"seu objetivo suficiente e a sua própria obra",
razão pela qual as matemáticas puras têm"uma validez independente da
experiência concreta e do conteúdo real do mundo".
É indubitavelmente certo que os conceitos das
matemáticas puras regem independentemente da experiência concreta de qualquer
indivíduo, ainda que essa virtude não pertença exclusivamente às matemáticas,
o que é fato comum comprovado por todas as ciências e, mais ainda, a todos os
fatos em geral, cientificados ou não. Os pólos magnéticos, a composição da
água por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio, o fato de que Hegel está
morto e de que o Sr. Dühring está vivo, são fatos que existem
independentemente de minha experiência ou da experiência de outras pessoa, e
mesmo independentemente da experiência do Sr. Dühring, assim que ele dormir o
sono dos justos. O que não é certo é que as matemáticas puras são
entendidas pela inteligência apenas com as suas próprias criações e imaginações.
De onde são tirados os conceitos de número e figura, senão do mundo real? Os
dez dedos pelos quais se aprende a contar e, por conseguinte, a executar a
primeira operação aritmética, nada têm de uma livre criação do espírito.
E, para contar, não só fazem falta os objetos contáveis, como também a
capacidade de prescindir, à vista desses objetos, de todas as suas qualidades,
com exceção da do número, capacidade que é fruto de um longo desenvolvimento
histórico, empírico. É o mesmo que acontece com o conceito do número,
acontece também com o da figura, que é tomado exclusivamente no mundo exterior
e não surge no cérebro de ninguém por obra da pura especulação. Tiveram que
existir objetos que apresentassem uma forma, e cujas formas pudessem ser
comparadas entre si, para que pudesse surgir o conceito de figura. As matemáticas
puras versam sobre as formas no espaço e as relações quantitativas do mundo
exterior e, portanto, de uma matéria bastante real. O fato de essa matéria se
nos apresentar sob forma sumamente abstrata, apenas superficialmente, pode nos
fazer crer que não têm sua origem no mundo exterior. O que acontece é que,
para poder investigar essas formas e relações em toda a sua pureza, é necessário
desligá-las completamente de seu conteúdo, deixando-o de lado como
indiferente, para assim chegarmos aos pontos sem dimensões, às linhas sem
largura e espessura, aos a, aos b, aos x, e aos y, às constantes e às variáveis;
e por fim, depois de percorrer todos esses caminhos, chegarmos às criações
verdadeiramente livres da inteligência, isto é, às grandezas imaginária.. A
aparente demonstração das grandezas matemáticas não prova tampouco sua
origem apriorística, mas apenas sua concatenação racional. Para se poder
chegar à idéia da forma de um cilindro, pela rotação de um retângulo em
torno a um de seus lados, foi necessário investigar-se, na realidade, apesar de
ser forma bastante rudimentar, toda uma série de retângulos e de cilindros. As
matemáticas, assim como todas as outras ciências, surgiram das necessidades
dos homens. da necessidade de medir terras e volumes, do cálculo do tempo e da
mecânica. Mas, como acontece em todos os campos do pensamento humano, ao chegar
a uma determinada fase de desenvolvimento, as leis abstraídas do mundo real se
vêm separadas desse mundo real do qual nasceram, consideradas como se fossem
alguma coisa aParte, como se fossem leis vindas de fora e às que o mundo se
deveria ajustar. Assim aconteceu com a sociedade e o Estado e assim acontecera,
num determinado momento, com as matemáticas puras, que serão aplicadas ao
mundo, apesar de nele ter sua origem e de não representar mais do que uma Parte
de suas formas de síntese. E é isso, precisamente, o que faz com que sejam
aplicáveis ao mundo.
Mas o Sr. Dühring, do mesmo modo que imagina
poder derivar as matemáticas puras dos axiomas matemáticos,"que, numa
representação puramente lógica, não admitem nem necessitam fundamentação",
sem aditamento empírico de espécie alguma, para logo depois aplicar essas
matemáticas puras ao mundo, imagina também poder arrancar do cérebro, sem
mediador algum, as formas fundamentais de tudo o que existe, os elementos
simples de toda a ciência, os axiomas da filosofia, deles derivando toda a
filosofia ou esquemática do mundo, outorgando, logo após a sua Constituição,
por decreto graciosíssimo de Sua Soberana Majestade, à natureza e ao mundo dos
homens. Infelizmente para ele, a natureza nada tem a ver, e o mundo dos homens
muito pouco, apenas uma fração insignificante, com os prussianos de 1850, com
os súditos de Manteuffel.
Os axiomas matemáticos são outras tantas expressões
do conteúdo conceitual, extremamente exíguo, que as matemáticas precisam
emprestar da Lógica. Na realidade esses axiomas podem reduzir-se apenas a dois:
1) O todo é sempre maior que suas Partes. Esse
axioma é pura tautologia, uma vez que a idéia quantitativa da Parte se refere,
desde o primeiro momento, num sentido bastante concreto, à idéia do todo, e
quando dizemos"Parte" já dizemos que o"todo" quantitativo
é formado quantitativamente por várias"Partes". O mencionado
axioma, ao dar expressão a esta verdade, não nos faz avançar um só passo.
Poderíamos até provar, de certo modo, essa tautologia, dizendo que o
"todo" é o que consta de várias"Partes";
"Parte" é aquilo que, unindo-se com outras, forma um
"todo", de onde se deduz que a"Parte" é sempre menor que o
"todo", demonstração na qual a aridez da repetição acentua ainda
mais a inconsistência do conteúdo.
2) Duas grandezas iguais a uma terceira são
iguais entre si. Como demonstrou Hegel, esse axioma é uma afirmação, cuja
exatidão a lógica subscreve e, portanto, pode ser demonstrado mesmo fora da
matemática pura. Todos os demais axiomas sobre igualdade e desigualdade são
meros corolários deste.
Mas, com essas pobres verdades, não avançamos
muito, nem em matemática, nem em coisa alguma. Se quisermos progredir um pouco,
não teremos outro remédio senão introduzir nas verdades, fenômenos reais,
relações e formas plásticas, tomadas da realidade. As idéias de linha, de
superfície, de ângulo, de quadrado, de quadrilátero, de esfera, etc., etc., são
todas idéias derivadas da realidade, e apenas quem professa uma ideologia
inteiramente ingênua pode crer nos matemáticos quando estes dizem que a
primeira linha se originou do movimento de um ponto no espaço, a primeira
superfície do movimento de uma linha, o primeiro corpo, do movimento de uma
superfície, e assim sucessivamente. Até a própria linguagem se revolta contra
semelhante tese. Uma figura matemática de três dimensões chama-se corpo e, em
latim, corpus solidum, que significa a mesma coisa que corpo tangível, nome,
como vemos, que não pode ter nascido de um ato, intelectivo e livre, da imaginação
pura, mas da realidade concreta.
Mas, por que todas essas digressões, depois de se
ter cantado, nas páginas 31 e 32, um hino entusiasta à matemática pura, como
ciência independente do mundo da experiência, ao seu apriorismo, às criações
e imaginações puramente livres da inteligência, o Sr. Dühring, diz à página
44:"Na verdade, esquece-se facilmente que aqueles elementos matemáticos
(número, grandeza, tempo, espaço e movimento geométrico) apenas são ideais
por sua forma... as grandezas absolutas são, portanto, algo absolutamente empírico,
qualquer que seja o gênero a que pertençam" ..., mas"os esquemas
matemáticos são suscetíveis de uma caracterização independente da experiência
e que são suficientes", afirmação esta aplicável, em maior ou menor
grau, a qualquer abstração, mas não demonstra que essa abstração, mesmo o
sendo, não se deriva da realidade. Na esquemática do mundo, a matemática pura
brota do intelecto puro; na filosofia da natureza, é algo perfeitamente empírico,
tomado do mundo exterior, para dele se abstrair imediatamente. A qual das duas
afirmações devemos dar crédito?
Inclusão | 30/10/2002 |