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Por seu conteúdo, o socialismo moderno é, antes de mais nada, o produto de uma dupla verificação: os antagonismos de classe entre possuidores e não-possuidores, burgueses e operários assalariados, que imperam na moderna sociedade, e a anarquia, que preside a produção. Mas, na sua forma teórica, o socialismo apresentava-se, em seus primórdios, como um desenvolvimento aparentemente lógico dos princípios proclamados pelos grandes nacionalistas franceses do século XVIII. Como toda nova teoria, o socialismo, ainda que tenha suas raízes nos fatos econômicos, teve que se ligar, ao nascer, ao material de idéias existentes.
Os grandes homens, que prepararam, na França,
os espíritos para a revolução, que haveria de desencadear-se, já adotavam
atitude resolutamente revolucionária. Não reconheciam nenhuma autoridade
exterior. A religião, a observação da natureza, a propriedade, a ordem pública,
tudo era submetido à mais desapiedada crítica; tudo o que existia devia
justificar sua existência perante o tribunal da razão ou renunciar a continuar
existindo. A tudo, aplicava-se, como crivo único, a razão. Era a época em
que, segundo a frase de Hegel, o mundo descobriu que tinha um cérebro. Em
primeiro lugar, porque o cérebro humano e as conclusões a que chega com seus
raciocínios se outorgam o direito de serem aceitos como base de todas as ações
e de todas as relações sociais; em segundo lugar, e no sentido mais amplo,
porque a realidade, que não se ajusta a esses princípios, é inteiramente
subvertida, dos seus alicerces à cúpula. Todas as formas anteriores de
sociedade e de Estado, todas as idéias tradicionais, foram postas à margem
como contrárias à razão, o mundo, até então, governara-se por puros
preconceitos; o passado merecia apenas comiseração e desprezo. O mundo, até
então, havia estado envolto em trevas; para o futuro, a superstição, a
injustiça, o privilégio e a opressão seriam substituídos pela verdade
eterna, pela eterna justiça, pela igualdade baseada na natureza e por todos os
direitos inalienáveis do homem.
Sabemos, hoje, que esse reinado da razão era
apenas o reinado idealizado pela burguesia; a justiça eterna corporificou-se na
justiça burguesa; a igualdade reduziu-se à burguesa igualdade perante a lei;
os direitos essenciais dos homens, proclamados pelos racionalistas, tinham, como
representante, a sociedade burguesa, e o Estado da razão, o contrato social de
Rousseau, ajustou-se, como de fato só podia ter-se ajustado, à realidade,
convertido numa República democrático-burguesa. Os grandes pensadores do século
XVIII, sujeitos às mesmas leis de seus predecessores, não podiam romper os
limites que sua própria época traçava.
Ao lado do antagonismo entre a nobreza feudal e a
burguesia, mantinha-se o antagonismo geral entre os exploradores e os
explorados, entre os ricos ociosos e os pobres, criadores da riqueza. E foi
precisamente esse fato que permitiu aos representantes da burguesia
apresentarem-se como representantes, não de uma classe determinada, mas de toda
a humanidade sofredora. Mais ainda, desde o próprio momento em que nasceu a
burguesia, ela trouxe em suas entranhas sua própria antítese, uma vez que os
capitalistas não podiam viver sem os operários assalariados. E na mesma proporção
em que os mestres dos grêmios medievais se convertiam em burgueses modernos, os
oficiais e aprendizes não agremiados se transformavam em proletários. Em
termos gerais, se a burguesia pôde arrogar-se o direito de representar, nas
suas lutas contra a nobreza, não só seus próprios interesses como também o
das diferentes classes trabalhadoras da época, em cada um dos movimentos
deflagrados já apareciam palpitações Independentes da classe que trazia
consigo o germe mais ou menos desenvolvido do proletariado moderno. E, de fato,
já na época da Reforma e da Guerra dos Camponeses, Thomaz Münzer representava
essa tendência. Na grande Revolução Inglesa foram os "niveladores"
que desempenharam esse papel e, na Revolução Francesa, Baboeuf serviu de
porta-voz da classe proletária. Com essas afirmações revolucionárias de
personalidade de uma classe incipiente surgem e se desenvolvem uma série de
manifestações teóricas a elas correspondentes: nos séculos XVI e XVII
aparecem as descrições utópicas de sociedades ideais e, no século XVIII,
teorias já diretamente comunistas, como as Morelly e Mably. O postulado da
igualdade rompia a envoltura dos direitos políticos para estender-se às condições
sociais da vida dos homens. Já não se tratava apenas de abolir os privilégios
de classe, mas também de destruir os próprios antagonismos de classe. Uma espécie
de comunismo ascético, inspirado nos espartanos, foi o primeiro sinal de vida
da nova idéia. Logo após, surgiram três grandes utopistas: Saint Simon, no
qual a tendência burguesa continua a se afirmar, até certo ponto, ao mesmo
tempo que a tendência proletária e Fourier e Owen, radicados no país onde a
produção capitalista estava mais desenvolvida e sob a impressão dos
antagonismos por ela engendrados, expuseram sistematicamente uma série de
projetos destinados a abolir as diferenças de classe, seguindo em linha reta as
pegadas dos materialistas franceses.
Nenhum dos três teóricos citados, entretanto,
representava o interesse do proletariado que, já nessa época, surgia como um
produto histórico, Da mesma forma que os racionalistas, esses três autores não
se propõem a emancipar uma determinada classe, mas toda a humanidade, com a
instauração do reinado da razão e da justiça eterna. Mas entre eles e os
racionalistas abria-se um abismo. Os novos pensadores descobrem que também o
mundo burguês, instaurado segundo os princípios do racionalismo, é injusto e
irracional, merecendo, portanto, ser desprezado como um traste inútil, da mesma
forma como já o foram o feudalismo e as formas sociais que o precederam. Se, até
então, a verdadeira razão e a verdadeira justiça não governaram o mundo,
Isso se deve a que. segundo o seu modo de ver, ninguém ainda conseguiu alcançá-las.
Faltava o homem genial que só agora se ergue frente a humanidade, com o segredo
da verdade que por fim foi descoberto. Por que é que só agora esse homem se
levanta, por que é que só agora, e não antes nem depois, é que se descobre o
segredo da verdade? Não foi porque isso lhe fosse imposto como algo de inevitável,
pela concatenação do desenvolvimento histórico mas apenas porque a sorte
assim o quis. O mesmo poderia ter ocorrido há quinhentos anos e teria sido
poupada a humanidade de quinhentos anos de erros, de sofrimentos e de lutas.
Esse modo de ver é, em suma, o de todos os socialistas ingleses e franceses e o
dos primeiros socialistas alemães, sem excluir Weitling. O socialismo é a
expressão da verdade, da razão e da justiça absoluta, e é suficiente
descobri-lo para que se imponha ao mundo por sua própria virtude. E, como a
verdade absoluta é independente do espaço, do tempo, do desenvolvimento do
homem e da história, só o acaso pode decidir quando e onde se deve revelar o
seu descobrimento. Acrescente-se a isso que a verdade absoluta, a razão e a
justiça absolutas, variam conforme o fundador de cada escola. E, como o caráter
específico da verdade, da razão e da justiça absolutas é agraciado, por sua
vez, em cada um deles, com a inteligência pessoal, as condições de vida, o
estado dos conhecimentos e a disciplina mental, forçosamente surge um conflito
entre as verdades absolutas, não restando outra solução senão a dos atritos
ou fusões de umas com as outras. Era, pois, natural e inevitável, que surgisse
uma espécie de socialismo eclético e, com efeito, a maior Parte dos operários
socialistas da França e da Inglaterra têm, nos cérebros, uma mistura
pitoresca que admite, aliás, toda uma série de matizes, na qual se fundem os
princípios econômicos, as expansões críticas e as representações sociais
do futuro, dos diversos fundadores de seitas. Essa mescla é tanto mais fácil
de ser composta quanto mais depressa os ingredientes individuais vão perdendo,
no curso das discussões, seus contornos agudos e concretos, como se fossem
pedras aplainadas pela corrente do rio. Assim, para converter o socialismo numa
ciência, só era possível situando-o no terreno da realidade.
Entretanto, junto à filosofia francesa do século
XVIII surge, logo após, a moderna filosofia alemã, à qual Hegel dá o último
remate. O principal mérito dessa filosofia foi a restauração da dialética
como forma suprema do pensamento. Os antigos filósofos gregos eram todos dialéticos
por natureza e o cérebro mais universal dentre eles, Aristóteles, chegou até
a penetrar na forma mais substancial do pensamento dialético. Em troca, a nova
filosofia, tendo alguns brilhantes pensadores dialéticos (por exemplo,
Descartes, Spinoza), deixou-se dominar cada vez mais pelas chamadas especulações
metafísicas, influenciada principalmente pelos ingleses, das quais não se
livram também os autores franceses do século XVIII, pelo menos no que se
refere às investigações filosóficas. Fora do estrito campo da filosofia, os
franceses souberam também criar obras mestras de dialética, como, por exemplo,
O Sobrinho do Rameau, de Diderot, e o estudo de Rousseau sobre A origem da
desigualdade, dos homens.
Resumiremos concisamente os traços principais de
ambos os métodos filosóficos, sem que, com isso, deixemos de estudar, mais
adiante, com mais detalhes, esse assunto.
Se submetermos à consideracão especulativa a
natureza ou a história humana ou a nossa própria atividade espiritual.
encontrar-nos-emos, logo de inicio, com uma trama infinita de concatenações e
de mútuas influências, onde nada permanece o que era nem como e onde existia,
mas tudo se destrói, se transforma. nasce e perece. Esta intuição do mundo.
primitiva, simplista, mas perfeitamente exata e congruente com a verdade das
coisas, foi utilizada pelos antigos filósofos gregos e aparece expressa,
claramente, pela primeira vez, em Heráclito: tudo é e não é, pois tudo flui,
tudo está sujeito a um processo constante de transformação, de incessante
nascer e perecer, Mas esta intuição, por ser exatamente a que reflete o caráter
geral de todo o mundo dos fenômenos, não basta para explicar os elementos
isolados de que se forma todo esse mundo. E esta explicação é indispensável,
pois, sem ela, nem mesmo a imagem total adquirirá sentido exato. Para penetrar
nesses elementos, antes de mais nada, precisamos destacá-los de seu tronco histórico
ou natural e investigá-los separadamente, cada um de per si, em sua estrutura,
causas e efeitos que em seu seio se produzem, etc...
Com efeito, é essa a missão primordial das ciências
naturais e da história, ramos de investigação que os gregos clássicos
situavam, com bastante razão, num plano puramente secundário, uma vez que o
seu papel se restringia, substancialmente, a fornecer, por um trabalho de
classificação, os materiais científicos. Os rudimentos das ciências naturais
exatas não se desenvolveram até chegar aos gregos do período alexandrino e,
muito mais tarde, na Idade Média, com os árabes. Na realidade, a autêntica ciência
da natureza data somente da segunda metade do século XV e, a partir de então,
não fez mais que progredir com velocidade constantemente acelerada. A análise
da natureza em suas diferentes Partes, a classificação dos diversos fenômenos
e objetos naturais em determinadas categorias, a investigação interna dos
corpos orgânicos segundo a sua diferente estrutura anatômica, foram outras
tantas condições fundamentais a que obedeceram os progressos gigantescos
realizados nos últimos quatrocentos anos, no que se refere ao conhecimento
científico da natureza. Mas estes progressos processaram-se juntamente com o
progresso no modo de analisar as coisas e os fenômenos da natureza,
isoladamente, destacados da grande concatenação do universo. Não são, pois,
encarados dinamicamente, mas estaticamente, não são considerados como situações
substancialmente variáveis, mas como dados fixos, dissecados como materiais
mortos e não apreendidos como objetos vivos. Por esse método de observação,
ao passar, com Bacon e Locke, das ciências naturais à filosofia, sobreveio a
limitação especifica, característica destes últimos tempos, no método metafísico
de especulação.
Para o metafísico, as coisas e suas imagens no
pensamento, os conceitos, são objetos isolados de investigação, objetos
fixos, imóveis, observados um após o outro, cada qual de per si, como algo
determinado e perene. O metafísico pensa em toda uma série de antíteses
desconexas: para ele, há apenas o sim e o não e, quando sai desses moldes,
encontra somente uma fonte de transtornos e confusão. Para ele, uma coisa
existe ou não existe, Não concebe que essa coisa seja, ao mesmo tempo, o que
é uma, outra coisa distinta. Ambas se excluem de modo absoluto, positiva e
negativamente, causa e efeito se revestem da forma de uma antítese rígida. A
primeira vista, esse método especulativo parece-nos extraordinariamente plausível,
porque é o do chamado senso comum. Mas o verdadeiro senso comum, personagem
bastante respeitável dentro de portas fechadas, entre as quatro paredes de sua
casa, vive peripécias verdadeiramente maravilhosas, quando se arrisca pelos
amplos campos da investigação. E o método do pensamento metafísico, por
justo e necessário que seja em vastas zonas do pensamento, mais ou menos
extensas, de acordo com a natureza do objeto de que se trata, tropeça sempre,
cedo ou tarde, com uma barreira que, franqueada, faz com que ele se torne um método
unilateral, limitado, abstrato; perde-se em contradições insolúveis, uma vez
que, absorvido pelos objetos concretos, não consegue enxergar as suas relações.
Preocupado com sua própria existência, não reflete sobre sua gênese e sua
caducidade; concentrado em suas condições estáticas, não percebe a sua dinâmica;
obcecado pelas árvores não consegue ver o bosque. Na realidade de cada dia,
sabemos, por exemplo, e disso podemos dizer ter toda a certeza, se um animal
existe ou não. Mas, se investigarmos mais detalhadamente, veremos que o
problema pode complicar-se, e de fato se complica às vezes consideravelmente,
como não o ignoram os juristas que, em vão, se atormentam para descobrir um
limite nacional, a partir do qual deve ser considerado como um assassinato a
morte de um feto no útero materno. Tampouco é fácil determinar fixamente o
momento da morte, uma vez que a fisiologia demonstrou que a morte não constitui
um acontecimento automático, instantâneo, mas faz Parte de um longo processo.
Do mesmo modo, pode-se afirmar que todo o ser orgânico é, no mesmo momento,
ele mesmo e um outro. Surpreendido em qualquer instante, estará assimilando
materiais absorvidos do exterior e eliminando outros de seu seio. Em qualquer
momento que o observarmos, veremos que em seu organismo morrem umas células e
nascem outras. E, no transcurso de um período mais ou menos longo, a matéria
de que está formado se renova radicalmente e novos átomos de matéria ocupam o
lugar dos antigos, donde se pode concluir que todo o ser orgânico é, ao mesmo
tempo, o que é e um outro. Mesmo assim, se observarmos as coisas detidamente,
veremos que os dois pólos de uma antítese, o positivo e o negativo, são antitéticos
e que, apesar de todo seu antagonismo eles se completam e se articulam
reciprocamente. E vemos, também, que a causa e o efeito são representações
que só vigoram como tais na sua aplicação ao caso concreto, mas que, situando
o fato concreto em suas perspectivas gerais. articulado com a imagem total do
universo, se diluem na idéia de uma trama universal de ações recíprocas,
onde as causas e os efeitos trocam constantemente de lugar e o que, antes, era
causa, toma, logo depois, o papel de efeito e vice-versa.
Nenhum desses fenômenos e métodos de investigação
se enquadra nos limites das especulações metafísicas. O contrário acontece
com a dialética, que encara as coisas e as suas imagens conceituadas,
substancialmente, em suas conexões, em sua filiação e concatenação, em sua
dinâmica, em seu processo de gênese e caducidade, como os fenômenos que
acabamos de expor, que nada mais são do que outras tantas confirmações do método
experimental que lhe é próprio. A natureza é a pedra de toque da dialética e
não temos outro remédio senão agradecer às modernas ciências naturais nos
terem oferecido um acervo de dados extraordinariamente copioso e que vêm
enriquecendo todos os dias, demonstrando, assim, que a natureza se move, em última
análise, pelos canais da dialética e não sobre os trilhos metafísicos. Mas,
até hoje, os naturalistas, que têm sabido pensar dialeticamente, são pouquíssimos
e esse conflito, entre os resultados descobertos e o método especulativo
tradicional que utilizam, desvenda aos nossos olhos a ilimitada confusão hoje
reinante na teoria das ciências naturais e que constitui o desespero de mestres
e discípulos, de autores e leitores.
Só pela via dialética, não perdendo de vista a
ação geral das influências recíprocas, da gênese e da caducidade de tudo
quanto vive, das mudanças de avanço e retrocesso, podemos chegar a uma concepção
exata do universo, de seu desenvolvimento e do desenvolvimento da humanidade,
assim como da imagem por ele projetada nos cérebros dos homens. Este foi o
caminho pelo qual seguiu, desde o primeiro instante, a moderna filosofia alemã,
Kant começou sua carreira de filósofo transformando o sistema solar estável e
de duração eterna de Newton num processo histórico: no nascimento do sol e de
todos os planetas pelo movimento de rotação de uma massa nebulosa. Deste fato,
tirou a conclusão de que esta origem implicava, também, necessariamente, na
futura morte do sistema solar. Meio século mais tarde, sua teoria foi
confirmada matematicamente por Laplace, e, depois de mais 50 anos, o espectroscópio
demonstrou a existência, no espaço, daquelas massas ígneas de gás, em
diferentes graus de condensação.
A filosofia moderna alemã foi completada por
Hegel, no qual, pela primeira vez - esse é o seu grande mérito - se concebe o
mundo da natureza, da história e do espírito, como um processo, isto é, como
um mundo sujeito à constante mudança, transformações e desenvolvimento
constante, procurando também destacar a íntima conexão que preside este
processo de desenvolvimento e mudança. Encarada sob este aspecto, a história
da humanidade já não se apresentava como um caos áspero de violências
absurdas, todas igualmente condenáveis perante o. julgamento da razão filosófica
madura, apenas interessantes para que as deixasse de lado o mais depressa possível,
mas, pelo contrário, se apresentava como o processo de desenvolvimento da própria
humanidade, que incumbia ao pensamento a tarefa de seguir em suas etapas
graduais e através de todos os desvios, até conseguir descobrir as leis
internas, que regem tudo o que à primeira vista se pudesse apresentar como obra
do acaso.
Não importa que Hegel não tenha resolvido esse
problema. Seu mérito, que marcou época, consistiu apenas em o ter colocado.
Mas não se trata de um problema que pode ser resolvido apenas por um homem. E,
mesmo sendo Hegel, ao lado de Saint-Simon, o cérebro mais universal de seu
tempo, seu horizonte estava circunscrito, em primeiro lugar, pela limitação
inevitável de seus próprios conhecimentos, e, em segundo, pela dos
conhecimentos e observações de sua época, também limitados em extensão e
profundidade. A tudo isso deve-se ainda acrescentar uma terceira circunstância.
Hegel era idealista. As idéias de seu cérebro não eram, para ele, imagens
mais ou menos abstratas das coisas e dos fenômenos da realidade, mas coisas
que, em seu desenvolvimento, se lhe apresentavam como projeções realizadas de
uma"idéia", existente não se sabe onde, antes da existência do
mundo. Este modo de ver tudo subvertia, revirando pelo avesso toda a concatenação
real do universo. Por mais justas e mesmo geniais que fossem muitas das concepções
concretas concebidas por Hegel, era inevitável, pela razão que acabamos de
aludir, que muitos de seus detalhes tivessem caráter acomodatício,
artificioso, arbitrário, falso, numa palavra. O sistema Hegel foi um aborto
gigantesco, porém o último de sua espécie. Com efeito, sua filosofia padecia
ainda de uma contradição interna incurável, pois que, se, por um lado,
considerava como suposto essencial da concepção histórica, segundo a qual a
história humana é um processo de desenvolvimento que não pôde, por sua própria
natureza, encontrar solução intelectual no descobrimento disso que se chama de
verdades absolutas, por outro, se nos apresenta precisamente como resumo e compêndio
de uma dessas verdades absolutas, Um sistema universal e compacto,
definitivamente plasmado, no qual se pretende enquadrar a ciências da natureza
e da história, é incompatível com as leis da dialética. Isso, entretanto, não
exclui, mas, ao contrário, faz com que o conhecimento sistemático do mundo
exterior, em sua totalidade, possa progredir, a passos gigantescos, de geração
em geração.
A consciência da total inversão em que o
idealismo alemão incorrera, necessariamente, tinha que levar ao materialismo,
Mas, note-se bem, não se trata do materialismo puramente metafísico e
exclusivamente mecânico do século XVIII Afastando-se da simples repulsa,
candidamente revolucionária, de toda a história anterior, o materialismo
moderno vê, na história, o processo de desenvolvimento da humanidade, cujas
leis dinâmicas tem por encargo descobrir. E, desviando-se da idéia da natureza
que dominava entre os franceses do século XVIII, da mesma forma que da idéia
concebida por Hegel, idéia pela qual se considerava a natureza como um todo
permanente e inalterável, com mundos eternos que se moviam dentro de um
estreito ciclo, tal como a representava Newton, e com espécies invariáveis de
seres orgânicos, como ensinava Lineu, o materialismo moderno resume e
sistematiza os novos progressos das ciências naturais, segundo os quais a
natureza tem também a sua história no tempo e os mundos, as espécies e os
organismos, que, em condições propícias, o habitam, nascem e morrem, e onde
os ciclos, na medida em que sejam admissíveis, se revestem de dimensões
infinitamente mais grandiosas. Tanto num como noutro caso, o materialismo
moderno é substancialmente dialético e já não há necessidade de uma
filosofia superior para as demais ciências. Desde o instante em que cada ciência
tenha que se colocar no quadro universal das coisas e do conhecimento delas, já
não há margem para uma ciência que seja especialmente consagrada a estudar as
concatenações universais. Tudo o que resta da antiga filosofia, com existência
própria, é a teoria do pensamento e de suas leis: a lógica formal e a dialética.
Tudo o mais se dissolve na ciência positiva da natureza e da história.
A nova etapa das ciências naturais, entretanto, só
conseguiu impor-se na medida em que a investigação lhe fornecia materiais
positivos correspondentes, e, enquanto isso, já há muito tempo, se haviam
revelado certos fatos históricos que abalaram decisivamente o modo de encarar a
história. Em 1931, rompe, em Lyon, a primeira sublevação operária e, de 1838
a 1842, o primeiro movimento operário nacional, o dos cartistas ingleses, alcança
o seu apogeu. A luta de classes entre o proletariado e a burguesia passou a
ocupar o primeiro plano na história dos países europeus mais avançados, no
mesmo ritmo em que se desenvolvia a grande indústria e em que se firmava a
hegemonia política da burguesia recentemente conquistada. Os fatos vinham
desmentir, cada vez mais categoricamente, as doutrinas econômicas burguesas
sobre a identidade de interesses entre o capital e o trabalho e sobre a harmonia
universal e o bem-estar geral das nações como fruto da livre concorrência.
Esses fatos não podiam passar desapercebidos,
assim como não podia ser ignorado o socialismo francês e o inglês, que eram a
sua expressão teórica, embora ainda bastante imperfeita. Mas a velha concepção
idealista da história, que ainda não havia sido abandonada, não podia
reconhecer sequer interesses materiais de qualquer espécie. Para ela, a produção,
como todos os outros fatores econômicos, só existia como acessório, como
elemento secundário dentro da"história cultural". Os novos fatos,
que a realidade revelava, obrigaram a uma revisão de toda a história antiga e,
dessa maneira, ficou demonstrado que a história havia sido, sempre uma história
de luta de classes e que estas classes em luta foram, em todas as épocas, condições
de produção e de troca, ou seja, fruto das condições econômicas e que a
estrutura econômica da sociedade em todos os fatos da história era, portanto.
a base real sobre a qual se erigia, em última instância, todo o edifício das
instituições jurídicas e políticas, da ideologia filosófica, religiosa,
etc.. de cada período histórico. Assim, o idealismo via-se despojado de seu último
reduto na ciência histórica. Lançava-se os alicerces para uma concepção
materialista e abria-se o caminho para verificar-se que a existência é quem
determina a consciência do homem e não é a consciência quem determina a
existência, como se afirmava tradicionalmente.
Verificamos, assim, que o socialismo tradicional
era incompatível com a nova concepção materialista da história bem como a
concepção dos materialistas franceses, sobre a natureza, não podia coexistir
com a dialética moderna e com as novas ciências naturais. Com efeito, o
socialismo críticava o regime capitalista de produção existente e suas conseqüências,
mas não conseguiu explicá-lo e, portanto, também não o poderia destruir,
limitando-se apenas a repudiá-lo, simplesmente, como imoral. Era preciso, porém,
entender esse regime capitalista de produção em suas conexões históricas,
como um regime necessário para uma determinada época da história,
demonstrando, com isso, ao mesmo tempo, seu aspecto condicional histórico, a
necessidade de sua extinção e do desmascaramento de todos os seus disfarces,
uma vez que os críticos anteriores se limitavam apenas a apontar os males que o
capitalismo engendrava em vez de assinalar as tendências das coisas a que
obedeciam. A principal máscara, sob a qual se disfarçava o capitalismo, caiu
por terra com a descoberta da mais-valia. Esta descoberta revelou que o regime
capitalista de produção e a exploração dos operários que dele se origina
tinham, como base fundamental, a apropriação do trabalho não pago. Revelou
ainda que o capitalista, mesmo supondo-se que comprasse a força de trabalho de
seu operário por todo o seu valor, por todo o valor que representava como
mercadoria no mercado, e que este excedente do valor, esta mais-valia era, em última
instância, a soma do valor de que provinha a massa cada vez maior do capital
acumulado nas mãos das classes possuidoras. Desde então, o processo da produção
capitalista e o da criação do capital já não continham nenhum segredo.
Estas duas descobertas: a concepção materialista
da história e a revelação do segredo da produção capitalista que se resume
na mais-valia são devidas a Karl Marx. Graças a estas descobertas, o
socialismo converte-se numa ciência, que não é preciso senão desenvolver em
todos os seus detalhes e concatenações.
Era esse, mais ou menos, o sentido com que se
apresentavam as coisas no campo do socialismo teórico e da decadente filosofia,
quando o Senhor Eugênio Dühring veio à cena e anunciou, com o auxílio de
tambores e fanfarras, a total subversão da filosofia, da economia política e
do socialismo, subversão feita unicamente por ele.
Vejamos, agora, o que o Senhor Dühring promete
e... o que cumpre.
Inclusão | 30/10/2002 |
ùltima alteração | 03/05/2014 |