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O Capital
Crítica da Economia Política
Karl Marx

Livro Primeiro: O processo de produção do capital

Sétima Seção: O processo de acumulação do capital

Vigésimo quarto capítulo: A chamada acumulação original


1. O segredo da acumulação original


capa

Viu-se como o dinheiro é transformado em capital, como por meio do capital se faz mais-valia e da mais-valia se faz mais capital. Entretanto a acumulação do capital pressupõe a mais-valia, a mais-valia a produção capitalista, mas esta a existência de massas maiores de capital e força de trabalho nas mãos de produtores de mercadorias. Todo este movimento parece, portanto, girar num círculo vicioso, do qual só saímos subpondo [unterstellen] uma acumulação «original» («previous accumulation»(1*) em Adam Smith) precedendo a acumulação capitalista, uma acumulação que não é o resultado do modo de produção capitalista mas o seu ponto de partida.

Esta acumulação original desempenha na economia política aproximadamente o mesmo papel que o pecado original na teologia. Adão(2*) deu uma dentada na maçã, e deste modo o pecado desceu sobre o género humano. A origem daquele é explicada ao ser contada como anedota do passado. Num tempo remoto havia, de um lado, uma elite diligente, inteligente, e sobretudo poupada, e do outro uma escumalha preguiçosa, que delapidava tudo o que tinha e mais. A lenda do pecado original teológico conta-nos, certamente, como o homem foi condenado a comer o pão com o suor do seu rosto(3*); a história do pecado original económico, porém, revela-nos como é que há pessoas que não precisam de o fazer. Mas é indiferente. Assim aconteceu que os primeiros(4*) acumularam riqueza e os últimos(5*), por fim, nada tinham para vender a não ser a sua própria pele. E deste pecado original datam a pobreza da grande massa, a qual continua, a despeito de todo o trabalho, a não ter nada para vender a não ser a si própria, e a riqueza de uns poucos, a qual cresce continuamente, embora eles há muito tenham deixado de trabalhar. Esta chocha criancice conta-a ainda, p. ex., o senhor Thiers, com o ar sério das solenidades de Estado, aos Franceses outrora de espírito tão vivo, em defesa da propriété(6*). Mas assim que a questão da propriedade está em jogo, torna-se dever sagrado manter o ponto de vista da cartilha infantil como o único justo para todas as classes etárias e estádios de desenvolvimento. Na história real é sabido que conquista, subjugação, assassínio para roubar, numa palavra, violência [Gewalt], desempenham o grande papel. Na suave economia política reinou desde sempre o idílio. Direito e «trabalho» foram desde sempre os únicos meios de enriquecimento, naturalmente com a excepção todas as vezes repetida de «este ano». De facto, os métodos da acumulação original são tudo o que se quiser, só não são idílicos.

Dinheiro e mercadoria não são desde o início capital, tão-pouco os meios de produção e de vida. Carecem da transformação em capital. Mas esta mesma transformação só pode processar-se em circunstâncias determinadas, que convergem no seguinte: duas espécies muito diversas de possuidores de mercadorias têm de se pôr frente a frente e entrar em contacto, de um lado proprietários de dinheiro, de meios de produção e de vida, aos quais o que interessa é valorizar a soma de valor por eles apropriada por meio da compra de força de trabalho alheia; do outro lado trabalhadores livres, vendedores da força de trabalho própria e portanto vendedores de trabalho. Trabalhadores livres no duplo sentido de que nem eles próprios pertencem imediatamente aos meios de produção, como os escravos, servos, etc., nem também os meios de produção lhes pertencem, como no caso do camponês que trabalha para si, etc., antes estão livres, desembaraçados e libertos deles. Com esta polarização do mercado das mercadorias estão dadas as condições fundamentais da produção capitalista. A relação de capital pressupõe a separação entre os operários e a propriedade das condições de realização do trabalho. Logo que a produção capitalista se firma nos próprios pés, ela não conserva apenas essa separação, mas reprodu-la numa escala sempre crescente. O processo que cria a relação de capital não pode, portanto, ser outra coisa que não o processo de separação do operário relativamente à propriedade das suas condições de trabalho, um processo que por um lado transforma os meios de vida e de produção sociais em capital e os produtores imediatos, por outro lado, em operários assalariados. A chamada acumulação original nada é, portanto, senão o processo histórico de separação de produtor e meios de produção. Ele aparece como «original» porque forma a pré-his- tória do capital e do modo de produção que lhe corresponde.

A estrutura económica da sociedade capitalista proveio da estrutura económica da sociedade feudal. A dissolução desta libertou os elementos daquela.

O produtor imediato, o operário, só podia dispor da sua pessoa a partir do momento em que deixara de estar agrilhoado à gleba e de ser servo ou adscrito a uma outra pessoa. Para se tomar vendedor livre de força de trabalho, o qual leva a sua mercadoria a toda a parte em que ela encontra um mercado, ele tinha além disso de ter escapado à dominação das corporações, às suas ordenações sobre aprendizes e oficiais e a preceitos de trabalho inibitórios. Com isto o movimento histórico que transforma os produtores em operários assalariados aparece, por um lado, como a libertação destes da servidume [Dienstbarkeit] e da coacção das corporações; e só este lado existe para os nossos historiógrafos burgueses. Mas, por outro lado, estes recém-libertos só se tomam vendedores de si mesmos depois de lhes serem roubados todos os seus meios de produção e todas as garantias da sua existência proporcionadas pelas velhas instituições feudais. E a história desta sua expropriação está inscrita nos anais da humanidade com caracteres de sangue e fogo.

Os capitalistas industriais, estes novos potentados, tiveram pelo seu lado de desalojar não só os mestres artesãos corporativos mas também os senhores feudais que se encontravam de posse das fontes de riqueza. Por este lado, o seu ascenso apresenta-se como fruto de uma luta vitoriosa contra o poder feudal e os seus privilégios revoltantes, bem como contra as corporações e os grilhões que estas colocavam ao livre desenvolvimento da produção e à livre exploração do homem pelo homem. Os cavaleiros da indústria, todavia, só conseguiram desalojar os cavaleiros da espada por meio da exploração de acontecimentos de que estavam completamente inocentes. Eles ascenderam por meios tão vis como aqueles por meio dos quais o liberto romano se fez outrora senhor do seu patronus(7*).

O ponto de partida do desenvolvimento que gera tanto o operário assalariado como o capitalista foi a servidão [Knechtschaft] do operário. O avanço consistiu numa mudança de forma desta servitude [Knechtung], na transformação da exploração feudal em capitalista. Para compreender o seu curso não precisamos de recuar muito. Embora os primeiros começos de produção capitalista se nos deparem esporadicamente já nos séculos XIV e xv em algumas cidades do Mediterrâneo, a era capitalista data apenas do século XVI. Ali onde ela aparece, está a abolição da servidão [Leibeigenenschaft] há muito consumada, e o ponto mais brilhante da Idade Média, a existência de cidades soberanas, desde longo tempo a empalidecer.

Historicamente, fazem época na história da acumulação original todos os revolucionamentos que servem de alavanca à classe dos capitalistas em formação; acima de todos, porém, os momentos em que grandes massas humanas de súbito e violentamente são arrancadas aos seus meios de subsistência e atiradas para o mercado de trabalho como proletários fora-da-lei(8*)(9*). A expropriação do produtor rural, do camponês, da terra forma a base de todo o processo. A sua história assume coloração diversa em diversos países e percorre as diversas fases em sequência diversa e em diversas épocas da história. Apenas em Inglaterra, que por isso tomamos como exemplo, possui ela forma clássica(10*).


Notas de rodapé:

(1*) Em inglês no texto: «acumulação prévia». Cf. Adam Smith, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth ofNations, vol. 1, Edinburgh, 1814, pp. 434-435. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(2*) Adão implica aqui também o economista inglês clássico Adam (Adão) Smith, nesta irónica alusão de Marx. (retornar ao texto)

(3*) Cf. Génesis, 3, 19. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(4*) Isto é, a elite que acumula. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(5*) Isto é, a escumalha que delapida. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(6*) Em francês no texto: propriedade. Cf. Adolphe Thiers. De la propriété, Paris, 1848, pp. 36, 42 e 151. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(7*) Em latim no texto: senhor, amo. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(8*) Vogelfrei, no original alemão. Há aqui um jogo de palavras, pois o termo alemão significa «fora-da-lei» e «livre como um pássaro». (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(9*) Em Itália, onde a produção capitalista se desenvolve mais cedo, também a dissolução das relações de servidão tem lugar mais cedo. O servo é aqui emancipado antes de ter assegurado qualquer direito prescritivo à terra. A sua emancipação transforma-o, portanto, logo num proletário fora-da-lei que, para mais, encontra novos senhores à sua espera nas cidades, na sua maioria já legadas do tempo dos romanos. Quando a revolução do mercado mundial desde o fim do século XV 11951 aniquilou a supremacia comercial da Itália do Norte, surgiu um movimento em direcção inversa. Os operários das cidades foram empurrados em massa para o campo e aí deram um impulso nunca visto à pequena cultura, conduzida segundo a maneira da jardinagem. (retornar ao texto)

(10*) Na edição francesa: Ela [a expropriação] ainda só se efectuou de uma maneira radical em Inglaterra: este país desempenhará portanto o papel principal no nosso esboço. Mas todos os outros países da Europa ocidental percorrem o mesmo movimento, se bem que, de acordo com o meio, ele mude de cor local, ou se encerre num círculo mais estreito, ou apresente um carácter menos fortemente pronunciado, ou siga uma ordem de sucessão diferente. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

Inclusão 05/05/2016