MIA> Biblioteca> Marini > Novidades
Primeira edição:...
Tradução: Ilse Gomes Silva, Jair Pinheiro e Lúcio Flávio Almeida, membros Neils.
Fonte: Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais
Transcrição: Diego Grossi
HTML: Fernando A. S. Araújo
O objetivo deste ensaio é, partindo de uma análise crítica das tentativas de revolução socialista, formular questões e sugerir novos caminhos para a transformação social. Com este objetivo, o autor se detém especialmente na análises da complexa relação entre socialismo e democracia.
A crise em que o movimento socialista ingressou desde meados da década passada, especialmente no Ocidente, pode ser objeto de duas considerações. A primeira consiste em não perder de vista que essa crise é parte de um processo teórico e prático no qual se articulam os distintos movimentos que, no plano das idéias e da luta social e política, realizaram a crítica do capitalismo como modo de organização da vida social. De Sismondi à esquerda ricardiana, de Owen a Marx, de Kautski e Hilferding a Lenin, Rosa Luxemburgo, Trotski e Gramsci, a teoria socialista revelou os fundamentos da economia capitalista e da sociedade burguesa; evidenciou a perversidade estrutural e a expropriação do trabalho social que elas propiciam, e armou ideologicamente os povos que contra elas lutaram.
Têm sido muitos esses povos, desde os operários parisienses de 1871 e os destacamentos operários-camponeses da Rússia até as massas espoliadas da China, Cuba, Vietnã, Angola, Nicarágua. Mais de um terço da humanidade optou, em seu momento, pela recusa ao capitalismo e em favor do desenvolvimento social orientado para a supressão das desigualdades de classe e para a implantação de uma democracia radical de massas. Sob essas bandeiras, e ainda suportando o isolamento e as agressões internacionais, partindo de um atraso econômico e social sem paralelo entre as potências ocidentais, a União Soviética conquistou, em pouco mais de trinta anos, uma posição destacada no cenário mundial. Em todos os países que tomaram esse rumo, as necessidades básicas da população em matéria de educação, saúde e alimentação se viram satisfeitas e acabaram as agruras e o desemprego.
Portanto, não é fácil apagar o socialismo da memória dos povos e muito menos convencer a imensa maioria da humanidade, para a qual a solução dessas questões aparentemente elementares ainda continua pendente, de que o socialismo foi somente um equívoco dos que não haviam compreendido que a história acabou. Para esta humanidade explorada e carente, a história nem sequer começou. O camponês do Nordeste do Brasil tenta ingressar nela todos os dias, amontoando-se em paus-de-arara que o conduzem às regiões mais prósperas do Sul, para descobrir, nas favelas do Rio de Janeiro ou de São Paulo, que continuam lhe negando a entrada.
A segunda consideração referente ao que se passou com o socialismo implica perguntar se a crise do chamado "socialismo real" ou, mais precisamente, europeu, invalida e encerra essa busca de formas superiores de organização social, a que assistimos há quase dois séculos, ou apenas representa mais um desses momentos de autocrítica radical que marcam a história do socialismo e dos quais este ressurgiu com uma criatividade renovada. Foi assim após a derrota da Comuna de Paris e a dissolução da Associação Internacional de Trabalhadores que, em pouco tempo, foram seguidos pela difusão do socialismo na Europa e a fundação da Segunda Internacional. Foi assim quando, face aos acontecimentos da Primeira Guerra Mundial e a divisão da Segunda Internacional, se assistiu à primeira revolução socialista vitoriosa na Europa e à criação da Internacional Comunista. Foi assim depois de lalta, quando, insurgindo-se contra os limites que lhes foram impostos pelo compromisso estabelecido entre Estados Unidos e União Soviética, os iugoslavos e os chineses proclamaram seu direito à revolução socialista. Foi assim na América Latina, até que o povo cubano rompesse com supostas improbabilidades teóricas e geográficas e, em todo o mundo, até que o Vietnã apontasse com o dedo a nudez do imperialismo.
É porque sabia disso que Marx pôde comparar a revolução socialista com a toupeira, que passa boa parte de sua vida trabalhando as entranhas da terra. É por isso, também, que, em períodos como este, ele afiava a arma de sua crítica, dedicando-se à sua principal obra, ao mesmo tempo que se comprometia inteiramente com as novas formas que, com os partidos operários, assumia o desenvolvimento do socialismo na Europa. Guardadas as proporções, este é o exemplo que nos deve inspirar.
A atual tendência a apresentar a questão do capitalismo e do socialismo como se fossem dois sistemas abstratos, dissociados dos processos da luta de classes e suscetíveis de comparação em termos de pragmatismo e eficiência, é totalmente enganoso. Este procedimento ignora os interesses reais que inspiram os dois sistemas, e omite sua historicidade.
Isto nada tem a ver com o ponto de vista de Marx, que vinculou o socialismo à emancipação da classe trabalhadora e o concebeu como uma nova etapa histórica. Tal etapa corresponderia à recuperação, em um nível superior, da propriedade individual, a qual representa o ato supremo de afirmação do homem face ao mundo que o cerca e é tanto mais efetiva quanto mais elevado o grau de cooperação em que se baseia(1). Referindo- se à pequena propriedade individual, que precede a propriedade capitalista (a tal, enquanto base da pequena indústria, "é uma condição necessária para o desenvolvimento da produção social e da livre individualidade do próprio trabalhador"), Marx assinala:
"Este modo de produção pressupõe o parcelamento do solo e dos demais meios de produção. Assim como a concentração destes últimos, exclui também a cooperação, a divisão do trabalho dentro dos próprios processos de produção, dominação social e regulação da Natureza, livre desenvolvimento das forças sociais produtivas" (1985: 293).(2)
Apresentar capitalismo e socialismo como dois sistemas abstratos não foi, tampouco, o enfoque adotado por Lenin que, partindo da noção de socialismo como fato histórico, considerava-o uma das características centrais da nova era em que ingressara a humanidade, que ele definia como a era do imperialismo e das revoluções proletárias triunfantes.(3)
Se as coisas se apresentam assim, isto é, se assumimos a ótica a partir da qual a história nos aparece como o desenvolvimento das formas de organização e convivência social que tendem para a plena emancipação do homem, é útil recorrer à análise do socialismo, com base na analogia e no contraste, em relação à época histórica que o precede ou seja, a do capitalismo. Isto nos permitirá captar suas diferenças mais marcantes em relação a esta e nos aproximarmos, por fim, do que constitui sua natureza mais profunda.
Configurando-se em meados de século XVI, a era capitalista não consagra, de saída, a hegemonia da forma do capital que lhe conferiria depois seus principais atributos: o capital industrial, que, então, adquire o caráter de capital manufatureiro. Este se encontra, ainda, subordinado ao capital comercial, embora seja onde o comércio e, em especial, o comércio exterior, impulsiona com mais força seu desenvolvimento, isto é, na Inglaterra, que o capitalismo engendra mais rapidamente os fenómenos que o conduzem à maturidade. Estes fenómenos são: primeiro, a revolução burguesa, que permitiu aos donos do capital superar os obstáculos que lhe opunha o velho mundo feudal e criar os mecanismos de proteção e estímulo ao desenvolvimento do novo modo de produção; e, em seguida, a revolução industrial, que acelera a metamorfose da produção manufatureira em produção fabril e leva o capital industrial a subordinar as demais formas de capital existentes.
Durante a fase manufatureira, ocorre a transformação maciça da propriedade privada individual, fruto do trabalho próprio, em propriedade privada capitalista, mediante a expropriação dos pequenos produtores rurais e urbanos pela burguesia e a conversão destes em trabalhadores assalariados, forçados a vender no mercado sua força de trabalho. O lucro deixa progressivamente de ser o resultado de transferências de valor propiciadas por relações mercantis que se efetuavam entre diferentes modos de produção, para derivar da parte do produto do trabalho que é apropriada pelo capitalista.
Em outras palavras, o lucro, em suas formas distintas, não é outra coisa que a forma aparente de que se reveste o fruto da exploração do trabalho levada a cabo pelo capital industrial, ou seja, a mais-valia. Esta nasce, essencialmente, do prolongamento do tempo de trabalho além do tempo necessário para que o operário reproduza o valor da sua força de trabalho, cristalizando-se na mais-valia absoluta. Porém, a partir de um certo momento, como o demonstra a cooperação manufatureira, a mais-valia também é produzida sob sua forma relativa, isto é, mediante a redução do tempo de trabalho necessário à reprodução do valor da força de trabalho. É um erro comum entre os marxistas separar mecanicamente, no tempo, estas duas formas de produção de mais-valia e desconhecer o fato de que a mais-valia absoluta é condição sine qua non do capitalismo, seja qual for a fase em que este se encontre. O desenvolvimento do sistema mostra que o mecanismo por excelência de produção de mais-valia absoluta é o prolongamento da jornada de trabalho, enquanto os métodos de produção de mais-valia relativa correspondem ao aumento da intensidade ou da produtividade do trabalho (isto é, à redução do tempo requerido para a produção de determinado valor, graças, por um lado, à intensificação do ritmo de trabalho e, por outro, à adoção de técnicas superiores de produção ou de métodos de trabalho mais eficientes). No plano da concorrência, a remuneração da força de trabalho abaixo de seu valor — ou a apropriação pelo capitalista de parte do salário, a título de mais-valia — viola a lógica desses métodos de exploração e, portanto, da teoria da mais-valia, a qual se baseia na relação existente entre os dois tempos de trabalho constitutivos da jornada (necessário e excedente), tendo como premissa a coincidência entre o valor da força de trabalho e sua remuneração, ou salário. Como, neste caso, esta coincidência não se dá, o resultado é um método extraordinário (embora frequente) de exploração do trabalho ou, antes, de superexploração, que:
O capital comercial podia conviver com distintos modos de produção, já que era na esfera da circulação que se apropriava do fruto do trabalho alheio. Este não é o caso do capital industrial, que opera no plano da produção e necessita criar uma organização econômica especial. Compreende-se, assim, porque, na medida em que se fortalece a burguesia manufatureira, o capitalismo vai se tornando incompatível com o modo de produção feudal e termine por postular a transformação deste. Mas também se entende que a revolução burguesa, que leva à conquista do Estado pela burguesia para proceder a essa transformação, só possa ocorrer quando o desenvolvimento capitalista estiver relativamente avançado.
É o que se verá na Inglaterra em meados do século XVII, entre a revolução de 1648, que deu origem à ditadura de Cromwell, e a chamada "Revolução Gloriosa", de 1688-9, que instaurou a monarquia constitucional e a converteu em expressão institucional da aliança de classe entre a burguesia e a nobreza feudal, ou a fração aburguesada desta. Tal aliança se foi apurando, até chegar — com o predomínio da Câmara dos Comuns sobre a dos Lordes — à cristalização da hegemonia burguesa no interior do bloco dominante.
Neste mesmo período em que ocorre a revolução burguesa na Inglaterra, a França se vê dilacerada por uma guerra civil na qual se enfrentam duas frações da nobreza. A burguesia emergente participa dividida neste processo. O resultado da Fronda é o fortalecimento do poder real que, situando-se acima dos conflitos de classe, encarna a monarquia absoluta de Luís XIV. Esta, sustentando com uma mão, os privilégios feudais, concede, com a outra, benefícios à burguesia, mediante uma política industrializante e protecionista.
Durante um século, enquanto a burguesia francesa se ajusta ao marco que foi traçado — as manufaturas do Estado, o comércio ultramarino e a administração estatal e feudal — os camponeses continuam oprimidos por um sistema cada vez mais parasitário e as cidades vêem crescer os pequenos comerciantes e artesãos, ao lado de uma massa de profissionais carentes de perspectivas. A revolução de 1789 forçará a direção burguesa a aliar-se, num primeiro momento, com essas classes e frações de classe que, apresentando reivindicações sociais e políticas que redefinem, e muito, a base dos interesses especificamente burgueses, a impulsionam a levar até o limite o enfrentamento com a nobreza. Em meio aos esforços para configurar um novo bloco dominante, a burguesia lançará o país na instabilidade política e na radicalização das lutas de classes por quase um século, até a derrota os operários parisienses em 1871.
Esses processos, de certo modo, paradigmáticos, se complementam com o da frustrada revolução burguesa na Alemanha, em meados do século XIX, que culmina com a subordinação da classe à nobreza, que constrange seu desenvolvimento nos marcos do militarismo e da necessidade de conquistar mercados exteriores. Tudo isso está mostrando que a afirmação do capitalismo em seu espaço originário, a Europa, se traduziu em processos sociais e políticos diversos, que se realizaram em diferentes momentos históricos e se basearam em distintas alianças de classes. Se considerarmos como a burguesia se converteu em classe dominante e impôs nacionalmente seu modo de produção nos Estados Unidos e na América Latina, teremos um mosaico de situações que, apenas em um elevado nível de abstração podem ser tratados como fenômenos de um mesmo tipo.
O importante a assinalar é que o período de transição do capitalismo se estendeu por mais de dois séculos e só foi superado uma vez estabelecida a dominação burguesa e concluída a revolução industrial. Neste período, o capitalismo ensaiou distintas formas políticas, centradas na idéia de democracia representativa, e promoveu uma revolução cultural que consagrou alguns conceitos-chave: individualismo, representação política, mercado, progresso, ciência. A partir da segunda metade do século XIX, a história se converte de fato em história do capitalismo, que se tornou, enfim, sistema universal, e o horizonte do pensamento humano corresponde cada vez mais aos marcos que lhe são fixados pelo mundo burguês.
O socialismo pode ser entendido como o período de transição para uma nova era histórica e se caracteriza pela superação da propriedade privada em favor de uma nova forma de propriedade individual, baseada na socialização dos meios de produção. Ele corresponde, no plano político, a uma democracia ampliada e participativa, dirigida à imensa maioria da sociedade.
Sendo um período de transição, o socialismo é também parte integrante dessa nova era histórica, do mesmo modo que o capitalismo comercial e manufatureiro integra a história geral do capitalismo. Não procede, pois, considerá-lo como simples articulação de modos de produção, como pretende o marxismo estruturalista francês, assim como teóricos latino- americanos. Um período de transição contém elementos novos, advindos tanto do modo de produção que está nascendo, quanto daquele já existente, que se formam não mediante a combinação de ambos, mas principalmente através do enfrentamento e da luta entre eles. A história desse período é a dos êxitos e dos fracassos do novo modo de produção e da classe que o representa, em sua projeção para o futuro.
Tratando-se do socialismo, isto é ainda mais verdadeiro. O capitalismo, cujo fundamento é um tipo específico de propriedade privada, iniciou sua existência dentro do modo de produção feudal. Foi necessário certo tempo para que a ordem feudal se apresentasse como obstáculo para o seu desenvolvimento. Foi então que a revolução burguesa, a conquista do poder, se colocou como inevitável. E ainda assim, mesmo que as condições sociais existentes dificultassem que este se concretizasse, o capitalismo pôde seguir seu caminho, ainda que por vias mais tortuosas, até a extinção total do regime anterior.
Distinta é a situação que o socialismo enfrenta, pois a conquista do poder pelos trabalhadores é condição sine qua non para a sua existência. É certo que o capitalismo cria as premissas do socialismo, ao concentrar a propriedade dos meios de produção e ao favorecer, deste modo, a expropriação do capital e a socialização do processo de trabalho; ao proletarizar as amplas massas da população e prepará-las, desta forma, material e ideologicamente, para a propriedade individual baseada na coletivização das fontes de riqueza; ao desenvolver as forças produtivas e tornar possível, por sua vez, o domínio do homem sobre a natureza e a transformação do trabalho em ato plenamente criador. Entretanto, até que se produza a revolução proletária, todos esses processos não fazem mais que aumentar o poder burguês e tornar mais rígidas as correntes que prendem os trabalhadores ao capital.
A conquista do poder pelos trabalhadores torna possível imprimir uma marca distinta a estes processos, mas, de forma alguma, substituí-los imediatamente por outros. Enquanto período de transição, o socialismo implica a continuidade desses processos por certo tempo e sua gradual transformação em algo diferente. Mesmo uma medida de crucial importância para a revolução proletária — a supressão da classe burguesa — só pode ser o resultado de uma evolução, apressada e orientada por medidas revolucionárias, como por exemplo a extinção do direito de herança.(4)
Com maior razão, todavia, a transformação da base material da sociedade burguesa somente em escala muito limitada pode ser objeto de atos de vontade e decisões superestruturais, condicionada como está pelo desenvolvimento das forças produtivas. O drama do chamado socialismo real deriva de que partiu de condições materiais e espirituais muito diferentes e tentou (muitas vezes por pressão externa) superá-las prematuramente. Foi o que ocorreu quando tentou, por exemplo, suplantar os mecanismos de mercado pela planificação centralizada ou integrar em um só Estado etnias conflitantes.
Isto não implica menosprezar o fator subjetivo. A luta ideológica é um elemento essencial em um período de transição. É por seu intermédio que a classe ascendente concebe e impõe à sociedade uma nova escala de valores, uma nova moral, uma nova visão de mundo. Para a burguesia, que se constituía sobre condições de existência distintas daquelas em que vivia a nobreza, não houve maior dificuldade para opor à ética aristocrática, justificadora da ociosidade e do parasitismo social, uma filosofia do trabalho, do mercado e do lucro. Isto foi possível inclusive porque, sendo possuidora de riqueza, póde edificar seu próprio sistema educacional, além de colocar a seu serviço parte da elite intelectual científica e artística originária da nobreza. Na Inglaterra, onde a revolução burguesa ocorreu quando essa situação não se verificava plenamente, a burguesia fez um compromisso com a nobreza, delegando-lhe muitas dessas funções culturais, compromisso que deixou profundas marcas em seu sistema político e administrativo.
O proletariado, cujas condições de existência derivam, do mesmo modo que a da burguesia, do capitalismo, se depara com obstáculos quase intransponíveis para transcender a cultura burguesa, mesmo depois de conquistar o poder. Esta parece ser uma das tarefas mais árduas do período de transição, como a entendia Lenin, ao apresentar a questão da revolução cultural(5). Não há dúvida de que o fracasso neste terreno foi uma das causas principais da crise que derrotou o socialismo real, cabendo-lhe, pois, lugar destacado na reflexão marxista.
O capitalismo caracteriza-se, desde a sua origem, por sua vocação internacional, o que faz do mercado mundial instância privilegiada para o desenvolvimento de suas contradições. Isto corresponde a uma fuga para adiante, o que significa que o capitalismo não pode contar com o mercado mundial para superar efetivamente suas contradições, mas somente para ampliar o espaço em que elas ocorrem e, portanto, para torná-las cada vez mais universais. A conquista de novos territórios e a extensão de seu império a um número crescente de povos, processo que começa já na fase da acumulação primitiva e continua ao longo de seu desenvolvimento, lhe permitem amenizar o perfil acentuado que suas contradições adquirem no centro do sistema, às custas da transferência para a periferia de seu potencial explosivo a autodestrutivo.
Esta é a razão pela qual a ruptura com o capitalismo e a passagem para o socialismo começaram nos países mais atrasados, onde a exploração capitalista dispensa artifícios e disfarces, além de se exercer sobre uma massa de trabalhadores ainda pouco submetidos à ideologia burguesa. Isto acarreta duas consequências para o socialismo nascente: implantar-se sobre uma base material incipiente, pouco capacitada para enfrentar a competição com o mundo capitalista, e depender da mobilização de povos que não tiveram acesso à plenitude da cultura burguesa, ainda que apresentassem muitos de seus vícios. Este último aspecto foi possível porque esses povos não eram, como pretendiam alguns, uma página em branco (a versão socialista do bom selvagem). Ao contrário, sua cultura estava marcada pela desigualdade e pelo valor de troca, sendo-lhes, portanto, fácil assimilar o que o capitalismo lhes oferecia de pior: a possibilidade de se oprimirem e se explorarem mutuamente, movidos pela ambição de possuir bens e sobretudo dinheiro.
Nestes termos, a conquista do poder não comporta a possibilidade de transformar de um só golpe as estruturas socioeconômicas e, o que é ainda mais grave, instala na direção do Estado uma classe cujo desenvolvimento, no seio da sociedade anterior, não lhe permitiu amadurecer ideologicamente, mediante a conquista e a superação da cultura burguesa. A crise atual do socialismo nos força a refletir sobre este problema e esta reflexão aponta para a recolocação da problema da vanguarda, ou do partido, e sua relação com as massas.
Em um movimento inverso ao que Marx efetuou entre o fracasso das revoluções de 1848 e a criação da Associação Internacional dos Trabalhadores, os revolucionários têm sido levados, sob a influência da revolução russa de 1917 e da necessidade de lutar contra as estruturas políticas, rígidas dos países atrasados, a fundamentar sua estratégia na dinâmica da vanguarda e a confiar em que a gestação de uma nova ética e uma nova cultura no seio do partido assegurará a realização do socialismo. A vida tem mostrado que, mesmo se mantém intactos seu sistema ideológico e sua vocação revolucionária (o que não é a regra), o partido não pode substituir a classe na construção de uma nova sociedade. Esta é uma tarefa que cabe, fundamentalmente, à prática coletiva das massas e que obedece às leis gerais dos processos sociais.
Não se trata de negar a validade do partido enquanto instrumento de luta das massas nem seu papel condutor e educador. Trata-se tão somente de entender que o amadurecimento da capacidade revolucionária das massas depende, antes de mais nada, de sua própria experiência de vida. É justo e correto que o partido exerça o papel de direção e farol nas lutas sociais, que desenvolva a agitação e a propaganda, que se preocupe com a formação de quadros, que se esforce para formular propostas táticas e estratégicas que centralizem as ações dispersas da sociedade.
Mas, em última instância, a sorte da revolução depende da consciência real que as massas adquiram acerca dos obstáculos que o capitalismo impõe à realização humana e das limitações inerentes aos métodos reformistas. Para isto, não basta a agitação nem a propaganda: as massas têm que se educar na prática e, neste sentido, devem ser estimuladas a tentar a superação dos males do capitalismo por meio do exercício amplo dos mecanismos que a burguesia afirma servir para este fim ou daqueles aos quais ela não pode se opor sem desmascarar a natureza discriminatória e excludente do sistema.
Para dominar as forças produtivas, para distribuir de modo justo a riqueza, para exercer a direção da sociedade no socialismo, é necessário que as massas saibam usar os meios que a burguesia utiliza e que os submeta a sua crítica prática. Este caminho deve conduzi-las a se apoderarem, de fato, da grande conquista democrática que significou o surgimento da era burguesa: o conceito de cidadania, depurado, na teoria, das exclusões com que se tem tratado de restringi-lo a grupos sociais étnicos e sexuais definidos.
Ainda que a luta dos trabalhadores, das minorias étnicas e sexuais, das mulheres e dos jovens tenha ampliado a vigência real desse conceito, ele ainda sofre, no capitalismo, as limitações impostas pelas desigualdades de classe e diferenças económicas. A democracia socialista, na medida em que tem o objetivo de suprimir essas desigualdades e diferenças, aponta para a realização plena do conceito de cidadania e lhe proporciona um foro efetivamente universal.
Esta é uma das grandes contribuições do socialismo à história humana, que o diferencia radicalmente do capitalismo, o qual é incapaz de conduzir a este resultado. A cidadania socialista, expressão da perfeita igualdade política, é a condição necessária para que os homens desenvolvam integralmente sua diversidade individual e estabeleçam entre si relações sociais de uma riqueza e complexidade sem paralelo no passado. É este o sentido em que, com Marx, é possível falar não no fim, como pretendem alguns, mas no começo da história — vencida enfim esta pré-história de exploração e opressão do homem pelo homem que nos cabe ainda a viver.
Na história das idéias, socialismo e democracia não têm a mesma origem nem tendem necessariamente a ser idênticos. Tanto Platão como Saint-Simon foram capazes de imaginar sistemas socialistas de caráter marcadamente autoritário, do mesmo modo como a ideologia burguesa, mesmo em suas expressões mais avançadas, conseguiu colocar a questão da democracia sem vinculá-la ao socialismo. É o socialismo moderno, que surge como crítica ao processo e à idéia da sociedade burguesa, com Babeuf, Blanqui, a esquerda ricardiana, e culmina com o marxismo, o que relaciona intimamente os dois conceitos e os torna inseparáveis.
Inseparáveis, porém não idênticos. Em sua expressão superior, isto é, como governo das maiorias, a democracia supõe o socialismo, na qualidade de modo de organização social que, por assentar-se na propriedade coletiva dos meios de produção, assegura igualdade política dos produtores — embora, como afirmou Marx, não lhes garanta ainda igualdade econômica. Além disso, a democracia plena não somente tem o socialismo como premissa, mas conduz a ele, a menos que se possa imaginar uma maioria que governe em benefício da minoria, ou seja, contra si mesma.
A interdependência que assim se estabelece entre democracia e socialismo não deve ocultar o fato de que, longe de constituir uma identidade, ambos correspondem a dois conceitos — e, se os conceitos são bons, a duas realidades — perfeitamente diferentes, ainda que unidos por um nexo indissolúvel. Enquanto relação dialética, as realidades que ali se inscrevem, ainda que mutuamente determinadas, possuem vida própria, podendo desenvolver-se de maneira assimétrica e até contraditória. Foi assim que, no curso da revolução proletária, deparamos com situações em que a defesa do socialismo se fez às custas da democracia (o comunismo de guerra soviético, de 1918 a 1921, por exemplo) ou as exigências da democracia impuseram limites à socialização (Nicarágua sandinista).
Em geral, as críticas equivocadas, da direita ou da esquerda, às revoluções proletárias nascem da incompreensão do caráter dialético da relação socialismo/democracia. Pior ainda: elas não percebem que esta relação se realiza por meio de processos nacionais, que, por suas determinações peculiares de caráter socioeconômico e cultural, bem como pela correlação de forças internacional em que se inserem, afetam o modo pelo qual ela se desenvolve, da mesma forma que fazem do tempo histórico o momento particular em que produz cada revolução.
No que se refere a relação socialismo/democracia, a confusão quanto ao que é essencial ou contingente, o que corresponde ao conceito ou a realidade a que se refere não é, todavia, exclusiva de seus críticos. Existe em cada processo particular a tentação de converter em leis ou imperativos gerais o que não passa de características específicas. Ela é tanto maior quanto mais controvertidas são essas características, ou seja, quanto mais parece ser necessária sua justificativa. Foi assim com a coletivização forçada da União Soviética, a qual, sendo apenas o resultado do isolamento internacional do país e das lutas de classes que lá se travavam, foi elevada por seus partidários mais entusiastas à condição do efeito de uma hipotética lei de acumulação primitiva socialista.
A realidade é que a expropriação violenta dos camponeses —além de não ter ocorrido nas revoluções posteriores (na China, por exemplo, ou em Cuba) — foi, na União Soviética, a expressão e, de certo modo, o momento histórico de solução das contradições que se verificavam no seio da aliança operário/camponesa, as quais haviam dado lugar ao confisco de grãos, próprio do comunismo de guerra. Quando Lenin formulou a Nova Política Econômica (NEP), que restabeleceu o jogo de mercado para a produção camponesa, o fez precisamente para abrir um caminho pacífico, isto é, democrático, para o desenvolvimento dessas contradições.
Este é, sem dúvida, um elemento central do conceito de democracia e que lhe confere sua especificidade, independente do sistema econômico com o qual convive: o reconhecimento de divergências e choques de interesses entre os atores políticos (a democracia socialista não faz mais do que converter em sujeitos políticos reais as grandes massas do povo, o que a democracia burguesa coíbe e reprime) e a possibilidade efetiva de que eles sejam solucionados pacificamente, por meio de negociação e do consenso. No momento em que um sujeito impõe a outro uma solução de força, está abandonando o terreno da democracia, por mais que, aos olhos dos contemporâneos em perspectiva histórica se procure justificar esta imposição como destinada a garantir, a longo prazo, a própria democracia. Pode-se discutir se, caso não houvesse ocorrido a coletivização, a União Soviética teria sido capaz de levar adiante sua edificação socialista; mas não há dúvida de que a coletivização constituiu um modo não-democrático de solucionar a crise a que havia chegado a aliança operário/camponesa.
Nesta perspectiva, a democracia, mais além das instituições jurídico políticas em que se expressa, configura um modo, um método para solucionar as divergências entre os sujeitos políticos, isto é, de modo geral, entre as classes sociais. Entre todas? A visão leninista, inscrita em um contexto de guerra civil e de agressão internacional, responde a esta pergunta restringindo a democracia ao campo da revolução, à aliança operário-camponesa, e a torna gêmea da ditadura a ser exercida sobre a burguesia, que promove esta guerra e esta agressão. Deixemos de lado, por enquanto, a questão de saber se essa dualidade é consubstancial ao conceito de democracia socialista e nos ocupemos, inicialmente, de como Lenin concebe o seu exercício.
Na Revolução Russa, a aliança operário-camponesa não é uma aliança entre iguais. Isto fica claramente estabelecido na Constituição de 1921, que superdimensiona a representação política do proletariado em detrimento dos camponeses. Considera-se esta aliança como a que realiza a classe classe revolucionária — o proletariado — com a imensa massa oprimida e explorada da Rússia, a qual se compõe essencialmente de camponeses, e que ela se baseia na insubmissão destes a esta opressão e exploração, o que também os converte em revolucionários. Porém, enquanto os camponeses podem se contentar com o acesso ao direito de propriedade, mantendo-se, por ele, nos marcos da revolução burguesa, o proletariado quer ir além e suprimir a propriedade privada dos meios de produção, como modo de garantir a igualdade política e, enfim, a liberdade. A questão consiste, para o proletariado, em convencer o campesinato a lutar contra seu interesse imediato, a propriedade privada, em troca da satisfação de seu interesse geral, ou seja, o término de qualquer forma de opressão e exploração.
Convencer significa persuadir. Existe, para isto, uma razão prática: por sua situação minoritária na sociedade, o proletariado não tem condições de submeter o campesinato pela força, mesmo que alegasse que o faz em benefício deste, sem colocar em cheque a aliança de classes. Mas também existe uma questão de princípio: submetê-lo pela força contraria a vocação democrática do proletariado.
Portanto, é preciso recorrer mais à persuasão do que à coerção: isto é o que faz do Estado operário-camponês um Estado democrático, ou seja, um Estado cuja característica central é a solução das divergências entre as classes mediante a discussão e o consenso. A forma e a duração da transição socialista estarão determinados, antes de tudo, pelo modo como se enfrentam as divergências e tempo que sua resolução exija. Até então, as duas classes têm de conviver pacificamente, fazendo concessões mútuas, nos marcos das instituições estatais que assegurem esta convivência.
A convivência democrática não impede, mas, ao contrário, exige iniciativas tendentes a modificá-la. Do contrário, resultaria em estagnação, o pior inimigo dos grandes projetos históricos. Enquanto essas iniciativas se mantém no plano da persuasão, elas não afetam em nada o caráter democrático do Estado. Bastaria, porém, que assumissem um caráter coercitivo para que a democracia fosse posta em xeque.
Isto nos leva a perguntar o que é a lei em um Estado democrático. Instrumento mediante o qual este fixa objetivos e estabelece procedimentos sob pena de sanção, o que a converte em medida coercitiva, a lei não poderia existir em um regime no qual todos fossem iguais e ninguém tivesse o direito de impor qualquer coisa ao outro. Para que ela exista, é necessário que a tomada de decisões em uma sociedade não se reparta equitativamente entre os indivíduos e as classes que a compõem — o que não tem nada a ver com a igualdade de todos perante a lei, noção que a revolução proletária herda da revolução burguesa.
Democracia e igualdade política não são, pois, idênticas. A democracia implica desigualdade no plano da tomada de decisões e implica necessariamente um modo de dominação. A especificidade da democracia socialista reside em que a dominação tende a se exercer predominantemente por meio da persuasão e não pela coerção.
Eis porque, para Lenin, a lei não é um mero imperativo que implica uma sanção (como ocorre na democracia burguesa), mas também — e sobretudo — enquanto meio de ação da democracia socialista, um elemento educativo, que coloca objetivos e que os explica, cabendo ao Estado (e ao partido) aplicá-los por meio da persuasão. A lei ideal na democracia socialista, é aquela que contém mais preâmbulo do que artigos e que serve de ferramenta aos agitadores e propagandistas para induzir comportamentos revolucionários(6). No limite, a lei é apenas uma forma mais desenvolvida de educação política(7). A este respeito, Lenin afirmou que,
"se esperássemos que a redação de uma centena de decretos fosse mudar toda a vida do campo, seríamos uns rematados idiotas. Mas se renunciássemos a indicar nos decretos o caminho a seguir, seríamos traidores ao socialismo. Estes decretos, que na prática não puderam ser aplicados imediata e integralmente desempenharam um grande papel para a propaganda (...) O nosso decreto é um apelo, mas não no espírito anterior: 'Operários, erguei-vos, derrubai a burguesia!' Não, é um apelo às massas, um apelo à ação prática. Os decretos são instruções que chamam à ação prática de massas." (s/d b, III, 122).(8)
O método persuasivo de governo apresenta-se como algo possível quando exercido entre classes que enfrentam um inimigo comum e compartilham objetivos históricos, sendo, por isto, capazes de atuar com base no consenso. Relações de classes desta natureza constituem uma aliança e sua expressão política é a democracia.
Distinta é a situação em que se trata de classes cujo relacionamento se baseia na opressão e na exploração de uma pela outra. Neste caso, o método de governo por excelência é a coerção, por muito que a resistência e luta da classe dominada obrigue a classe dominante a fazer concessões e a recorrer, se não à persuasão, pelo menos ao engano, com propósito de limitar o uso indiscriminado da coerção.
De fato, nenhum Estado pode operar exclusivamente por meio da coerção. Mesmo o Estado escravista, que repousa em uma relação de opressão e exploração quase indisfarçável e que, por isso mesmo, se encontra sempre com as armas na mão, é forçado, para exercer seu poder, a empregar meios não coercitivos: a tradição, a idéia da inferioridade do escravo, etc. Com o advento da sociedade burguesa, isto se acentua, já que a classe dominante se vê obrigada a conciliar a opressão e a exploração que exerce sobre outras classes com o projeto histórico que ela propôs a estas e que se baseia nas noções de liberdade e igualdade, assim como na de progresso.
Cabe à ideologia burguesa realizar esta tarefa. Arma privilegiada que representa para a conquista do poder político, a ideologia constitui também, para a burguesia, instrumento fundamental para exercê-lo. Nenhuma classe na história, antes dela, concedeu à ideologia papel tão decisivo em seu modo de dominação. Valendo-se da ideologia, a burguesia realizou um esforço gigantesco, com o objetivo de converter à igualdade e subordinação de todos perante a lei; à liberdade na livre disposição da própria força de trabalho; e ao progresso, em perspectiva individual de ascensão social.
A pedra angular desta construção ideológica foi o conceito de cidadania ou, o que é o mesmo, a titularidade individual dos direitos civis e políticos, mediante o qual burguesia escamoteou às classes sociais e destinou a cada qual o papel de participante isolado na vida do Estado. Desta maneira, o indivíduo se confrontou inteiramente desarmado com o Estado, fonte e guardião da ordem estabelecida e que baseia sua existência no monopólio da força. O papel destacado que assumiu a ideologia na implementação da ordem burguesa não deixa margem ao uso da força, cabendo também à burguesia a invenção do monopólio estatal da mesma. Este inexiste em regimes anteriores, sendo que o maior grau de dispersão da força que observamos em instituições estatais é o que ocorre no Estado escravista, em que cada proprietário de escravos é livre para empregá-las contra seus trabalhadores.(9)
A democracia socialista, que rompe com o individualismo burguês e se assume como expressão da luta de classes, renuncia também à mistificação ideológica como instrumento de dominação. Já vimos a rude franqueza que reina no interior da aliança operário-campesina, baseada no interesse comum de pôr fim à opressão e à exploração, ainda que nela subsistam divergências em relação aos interesses de classe imediatos. Em relação à burguesia, com a qual não compartilha nenhum objetivo histórico e da qual lhe separa seu interesse de classe geral, o proletariado não pode praticar uma política de aliança: ao contrário, está obrigado a submetê-la à força, pela coerção, a seu projeto de sociedade.
Compreende-se, portanto, que, em uma época em que a correlação mundial de forças a favorece, a burguesia se oponha firmemente aos movimentos nacionais de revolução socialista, mediante o fomento à resistência interna e à agressão externa. Nesse contexto, a dualidade democracia-ditadura, tal como a formula Lenin, mantém vigência. Persuasão e coerção se apresentam, nesta perspectiva, como duas linhas claramente diferenciadas, pólos opostos e complementares da ação estatal.
Mas nem a resistência da burguesia se exerce de maneira constante e uniforme, nem a correlação mundial de forças tem preeminência sobre a que, internamente, vai construindo a revolução. Assim, seja porque a burguesia fraqueja temporariamente em sua luta opositora, seja porque se vê forçada a aceitar situações situações de facto, a democracia socialista pode — a partir de uma clara posição de força — fazer-lhe concessões, bem como a setores de outras classes a ela vinculados (como os intelectuais burgueses).
Estas concessões não se confundem com as que são feitas no interior da aliança operário-camponesa. Estas são ilimitadas em seu conteúdo e no tempo, determinando por isto o caráter, o ritmo e a duração da transição socialista. As concessões à burguesia, inversamente, estão condicionadas pelas exigências da transição, a qual contribui para fixar sua natureza e seus prazos. Caso se revelem exitosas, abrem a possibilidade de acordos específicos, os quais, sem chegar a configurar uma aliança, dado que excluem objetivos históricos comuns, se definem como compromissos.
A política leninista pratica compromissos sem nenhum disfarce. Um exemplo disso é o decreto de 1918 que regulamentava a publicidade comercial, o qual, como sublinhou o próprio Lenin, indicava claramente que o governo soviético não se propunha como tarefa imediata a socialização total da indústria e do comércio. Outro é que os privilégios concedidos aos técnicos, no período da NEP. A revolução chinesa assegurou a sobrevivência das empresas capitalistas nacionais, pelo tempo de vida de seus proprietários. Cuba manteve durante muito tempo intocado o pequeno comércio. E a Nicarágua sandinista, na linha esboçada pelo governo socialista chileno da Unidade Popular, consagrou três formas de propriedade em seu estatuto jurídico: estatal, cooperativa e privada.
Neste plano, o conceito de ditadura, enquanto regime de violência aberta de uma classe contra outra, não se aplica plenamente. Os compromissos representam uma forma de exercício do poder até certo ponto consensual, embora tenham como premissa a capacidade de coerção material do Estado. Diferentemente das alianças, eles não implicam questões relativas a propósitos históricos comuns, mas que se referem a interesses de classe imediatos, claramente identificados e devidamente equacionados pelas partes. A importância para o desenvolvimento da democracia socialista transcende o plano meramente tático e vai mais além do âmbito atinente às relações proletariado-burguesia. Com efeito, para chegar a praticar uma política de compromissos, o proletariado tem que haver resolvido corretamente sua política de alianças: somente um sólido bloco revolucionário assegura um Estado forte, condição sine qua non, como já indicamos, do compromisso. Em outras palavras, a política de compromissos não é possível se a democracia não se exerce plenamente no seio da aliança, sem o que se abrirá o flanco a manobras do inimigo.
Nesta perspectiva, a política de compromissos não representa senão a irradiação da prática democrática do bloco revolucionário ao conjunto da sociedade. Por seu intermédio, mesmo a dominação baseada na coerção assume matizes mais suaves, permitindo a extensão ilimitada da prática democrática à própria burguesia. Ela abre caminho para a universalização da persuasão, particularmente em relação às novas gerações originárias da burguesia, respaldando as conquistas que logrem mediante a revolução cultural. Por isso, o uso do compromisso, sempre que for possível, imprime um caráter mais democrático ao conjunto da transição socialista, a qual, neste contexto — e somente nele — pode adotar-se de maneira ampla o pluralismo.
É para uma transição socialista que privilegia o compromisso que Marx concebeu o programa exposto no Manifesto Comunista. Após mais de um século de lutas de classes, a maioria dos pontos ali incluídos foi total ou parcialmente aplicada no interior do próprio capitalismo, ao menos nos países mais avançados. Porém se enganam, os que acreditam por isso que aquele era o programa da revolução democrático-burguesa. Basta constatar que, entre esses pontos, está a supressão do direito de herança para que se dê conta de que o programa apontava para a promoção do desaparecimento da coluna de sustentação de toda a sociedade burguesa: a propriedade privada dos meios de produção.
A aparente modéstia e o gradualismo que se expressam no programa do Manifesto têm a ver com a maneira como Marx concebe o advento do comunismo, isto é, como fruto do próprio desenvolvimento histórico. Em um nível de abstração mais elevado, ele o formulou em seu "Prefácio à contribuição...", em que nos apresenta a passagem do capitalismo ao comunismo como uma sucessão quase natural de modos de produção. O capitalismo cria, neste marco, as premissas do comunismo e é sobre elas que se apoia o proletariado para promover a transição socialista.
Isto não exclui, de forma alguma, o fato da revolução, ou seja, da conquista do poder político pelo proletariado. Efetivamente, para Marx, o Estado é a pá que o proletariado deve tomar em suas mãos para remover as formas capitalistas que obstruem a marcha da história. As formas capitalistas que bloqueiam a marcha da historia. Esta idéia percorre toda sua obra, está presente em O Capital (em que reivindica, por certo, o programa do Manifesto), em sua polêmica com os cooperativistas e, sobretudo, em sua reflexão sobre a Comuna de Paris. Ao reconhecer nesta a primeira expressão histórica do Estado proletário, Marx apenas reafirma (como Engels) o que o Manifesto expusera, sem deixar lugar para dúvidas: a necessidade da revolução proletária como parteira do socialismo.
Esta revolução é necessariamente violenta? Marx admite a possibilidade do caminho pacifico, baseado no compromisso, em países sem grande desenvolvimento da burocracia e do exército, ou seja, países onde o Estado burguês não alcançou sua plena maturidade. Em sua análise do problema, Lenin parte da visão do capitalismo em sua fase imperialista para sustentar que a via pacífica estava cancelada precisamente naqueles países onde Marx a julgara mais praticável (Estados Unidos, por exemplo). As reflexões de Lenin, retomadas depois pela Terceira Internacional, farão do imperialismo a pedra angular da estratégia da revolução violenta, particularmente nos países do Terceiro Mundo.
A história deu razão a Lenin. Não há motivo para supor que a possibilidade da revolução pacífica não se possa recolocar, ainda sobre bases distintas das que Marx estabeleceu. Em um marco que se caracterizara pelo reforço constante do socialismo e o avanço permanente do movimento revolucionário mundial, a correlação de forças internacional se tornará inteiramente desfavorável à burguesia. Isto assentará as premissas para as revoluções pacíficas, capazes de praticar em ampla escala o compromisso e o pluralismo, o que poupará custos e sofrimento dos povos que estiveram em condições de fazê-lo.
Obviamente, esta não é a situação que estamos vivendo. Pior ainda, passamos por um período que não favorece uma estratégia ofensiva por parte das forças socialistas, o que faz, ao menos por certo tempo, improvável a revolução violenta. Vemo-nos, pois, forçados a buscar novas formas de ação, orientadas para colocar os trabalhadores em condições de solucionar a seu favor a disputa pelo poder, nas circunstâncias atuais.
Como nós, os marxistas, sabemos, estas formas de ação não podem ser fruto de uma simples invenção, mas têm que representar a expressão consciente do movimento espontâneo das lutas de classes. Setenta anos de triunfos e derrotas do socialismo proporcionam uma ampla gama de experiências, cuja riqueza nossa reflexão está, todavia, longe de esgotar. Porém, não há dúvida de que elas nos colocam uma exigência fundamental: apreender, em sua expressão concreta e particular, a especificidade da relação socialismo-democracia e entender, em cada caso, como se configurarão as contradições que ela implica. Em particular, estamos obrigados a analisar as causas da crise do socialismo na União Soviética e na Europa Oriental, sem lamentar a derrocada de regimes que sabíamos incapazes de realizar as tarefas da transição socialista.
Mas é preciso ir ainda mais longe. Trata-se, para nós, de investigar e descobrir as perspectivas de transformação social que o atual desenvolvimemto das forças produtivas está abrindo, na medida em que tende a superar as diferenças entre o campo e a cidade, homogeneizar em âmbito mundial as condições técnicas de produção e internacionalizar o processo de trabalho. Trata-se também de determinar até que ponto este desenvolvimento, que privilegia o trabalho intelectual e os serviços produtivos, afeta o conceito de proletariado, pelas diferenciações que introduz no interior da classe trabalhadora. Trata-se, sobretudo, de entender as novas formas de ação e os mecanismos de participação que as massas estão criando para intervir de modo mais ativo no plano da gestão empresarial e política.
O controle operário, a co-gestão e a autogestão das empresas; a luta eleitoral e a participação no parlamento e nos governos locais; a participação e o controle popular sobre as políticas orçamentária, educacional, de saúde, de transporte público, junto à reivindicação de uma maior autonomia regional e local; a democratização dos meios de comunicação e o rechaço da censura; a crítica às desigualdades de base econômica, étnica ou sexual: estes são alguns dos instrumentos de que as massas estão lançando mão, aqui e ali, para defender seus interesses, elevar sua cultura política e amadurecer seu espírito revolucionário. É por este caminho que elas estão se capacitando para — diferentemente do ocorreu até agora nas revoluções socialistas — assumirem, elas mesmas, a direção do processo de transição socialista. O que, ao fim e ao cabo, é a única garantia segura de seu êxito.
Bibliografia:
GARCIA, A. (1975). Lenin y la revolución cultural. México, Era.
LENIN, V. (s/d a). "Sobre a cooperação". In Obras escolhidas, vol. III. São Paulo, Alfa-Omega.
_____. (s/d b). "Relatório sobre o trabalho no campo". In Obras escolhidas, vol. III. São Paulo, Alfa-Omega.
MARX, K. (1977). "Introdução à crítica da economia política". In: Contribuição à crítica da economia política. São Paulo, Martins Fontes.
_____. (1985). O Capital, vol. II, livro 1. São Paulo, Nova Cultural.
RAGGIONIERI, E. (1973). "Lenin y la Internacional Comunista". In Los cuatro primeros congresos de la Internacional Comunista. Córdoba, Cuadernos de Pasado y Presente.
Notas de rodapé:
(1) Marx considera a propriedade como conceito social básico, em nível abstrato, e como critério de periodização da história humana. Assim, "...afirmar que não pode haver produção, nem por conseguinte sociedade - na qual não existe nenhuma forma de propriedade, é pura tautologia. Uma apropriação que não se apropria de nada é uma contradictio in subjecto"' (1977:205-6). (retornar ao texto)
(2) Após examinar a passagem da propriedade privada capitalista e a supressão desta, Marx conclui: "Esta (a supressão da propriedade capitalista - RMM) não restabelece a propriedade privada, mas a propriedade individual sobre o fundamento do conquistado na era capitalista: a cooperação e a propriedade comum da terra e dos meios de produção produzidos pelo próprio trabalho" (1985:294). (retornar ao texto)
(3) Esta concepção informa sua teoria do imperialismo e se expressa na criação da Terceira Internacional, estando definida com singular nitidez em sua participação no segundo congresso desta organização, em 1920, particularmente no informe internacional com o qual inaugurou o evento (s/d, vol. 33: 33937). Referindo-se a uma fase anterior do pensamento de Lenin, correspondente a 1908-1913, Raggionieri (1973:XVII) enumera assim suas preocupações com o desenvolvimento histórico mundial: "a agudização das posições de classe na Europa, o surgimento de movimentos antiimperialistas e, sobretudo, a perspectiva de 'uma nova era de revoluções'". (retornar ao texto)
(4) Este é o sentido das medidas contempladas por Marx e Engels no programa da revolução proletária, incluído no Manifesto Comunista. (retornar ao texto)
(5) "no nosso país a revolução política e social precedeu a revolução cultural, essa revolução cultural perante a qual nos encontramos agora" - disse Lenin, em um de seus últimos escritos, acrescentando: "Para nós é suficiente agora esta revolução cultural para nos tornarmos um país completamente socialista. Mas esta revolução cultural apresenta incríveis dificuldades para nós, tanto no aspecto puramente cultural (pois somos analfabetos) como no aspecto material (pois para sermos cultos é necessário um certo desenvolvimento dos meios materiais de produção, é necessária uma certa base material". (s/d a, 36: 502-3). (retornar ao texto)
(6) Isto foi o que vislumbrou Rousseau, ao se ocupar do tema da desigualdade, e que quase o levou ao ponto de ruptura com a ideologia burguesa. Sua fidelidade ao pequeno produtor e, por fim, à pequena propriedade individual o impediu de fazê-lo. Disto se aproveitou a burguesia para, mesmo a contragosto, empreender a recuperação de sua doutrina. (retornar ao texto)
(7) É mais desenvolvida porque a classe que a utiliza conta com o Estado para apoiá-la, mesmo que não tanto pelo uso da força, mas antes pela pressão econômica; v.g., a prioridade concedida às cooperativas agrícolas para a obtenção de recursos do Estado. (retornar ao texto)
(8) Mais adiante, ele acrescenta: "Os nossos decretos em relação às explorações camponesas são basicamente justos. Não temos motivos para renunciar a nenhum deles nem para lamentar um único. Mas se os decretos sao justos, é injusto impô-los pela força ao camponês" (s/d, b:125). (retornar ao texto)
(9) A burguesia, em sua luta contra a ordem feudal, postula o monopólio da força e, transformada em classe dominante, o emprega conta as demais classes, chegando, inclusive, a suprimir suas próprias organizações armadas, constituídas, na Idade Média, em defesa da autonomia dos burgos. Sob o regime jurídico burguês, o direito de portar armas só é concedido a cidadãos qualificados e em funçao exclusiva de sua defesa individual. (retornar ao texto)
Uma colaboração do |
Inclusão | 18/11/2012 |
Última atualização | 14/04/2014 |