Novos Acontecimentos e Velhos Problemas

V. I. Lênin

1 de Dezembro de 1902


Primeira Edição: Iskra, n.° 29, 1 de dezembro de 1902. Encontra-se in Obras, t. VI, págs. 247/252.
Fonte: Editorial Vitória Ltda., Rio, novembro de 1961. Traduzido por Armênio Guedes, Zuleika Alambert e Luís Fernando Cardoso, da versão em espanhol de Acerca de los Sindicatos, das Ediciones em Lenguas Extranjeras, Moscou, 1958. Os trabalhos coligidos na edição soviética foram traduzidos da 4.ª edição em russo das Obras de V. I. Lênin, publicadas em Moscou pelo Instituto de Marxismo-Leninismo, anexo ao CC do PCUS. As notas ao pé da página sem indicação são de Lênin e as assinaladas com Nota da Redação foram redigidas pelos organizadores da edição do Instituto de Marxismo-Leninismo. Capa e planejamento gráfico de Mauro Vinhas de Queiroz. Pág: 134-139.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
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Pelo visto, a breve “calma” que caracterizou a última metade do ano, ou os três últimos trimestres do ano, de nosso movimento revolucionário — em comparação com o rápido e impetuoso desenvolvimento precedente dele — começa a chegar ao fim. Por fugaz que tenha sido essa “calma”, por evidente que tenha sido para todo observador atento e avisado que a ausência (durante esse curto período) de manifestações abertas da indignação maciça dos operários não significa absolutamente que tenha cessado o crescimento dessa indignação em profundidade e extensão, contudo, entre nossa intelectualidade de espírito revolucionário, mas que com frequência não tem uma sólida ligação com a classe operária, nem firmes princípios de convicções socialistas definidas, começaram a fazer-se ouvir inúmeras vozes de desânimo e de falta de confiança no movimento operário de massas, por um lado, e, por outro, vozes em favor de que se reincida na velha técnica de atentados políticos, como processos de luta política necessário e obrigatório atualmente. Durante os poucos meses transcorridos desde as manifestações da temporada passada, já pôde formar-se entre nós o “partido” dos “socialistas revolucionários”, que falou da impressão desanimadora das manifestações, de que “o povo não se levantará tão cedo”, de que é fácil, naturalmente, falar e escrevei a respeito de armar as massas, mas que agora é preciso empreender a “ação individual”, sem afastar a imperiosa necessidade do terror individual com frouxas invocações a uma tarefa exclusiva (maçante e “despida de interesse” para um intelectual livre da fé “dogmática” no movimento operário!), a tarefa da agitação entre as massas do proletariado e da organização das ações de massas.

Mas eis que estoura em Rostov do Don uma das greves mais comuns e “correntes”, à primeira vista, e origina acontecimentos que mostram claramente toda a insensatez e toda a nocividade da tentativa feita pelos socialistas revolucionários de restaurar o movimento de Narondnaia Volia com todos seus erros teóricos e táticos. A greve, que envolveu muitos milhares de operários e que teve origem em reivindicações de caráter puramente econômico, transformou-se rapidamente num acontecimento político, apesar de nela haver participado um número extraordinariamente insuficiente de forças revolucionárias organizadas. A multidão popular, que, segundo o depoimento de alguns participantes, chegou a 20 ou 30 000 pessoas, realiza assembleias políticas que assombram por sua seriedade e grau de organização, nas quais são lidos e comentados ávidamente manifestos social-democratas, pronunciam-se discursos políticos, explicam-se aos representantes mais fortuitos e menos preparados do povo trabalhador as verdades mais elementares do socialismo e da luta política, dão-se lições práticas e “concretas” de comportamento com os soldados e de como dirigir-se a estes. A direção das empresas e a polícia perdem a cabeça (quem sabe se, em parte, por sua insegurança nas tropas?) e tornam-se impotentes para impedir que durante vários dias se realizem reuniões políticas de massas ao ar livre, como nunca se tinha visto na Rússia. E quando, por último, recorre-se à força militar, a multidão opõe encarniçada resistência, e o assassinato de um companheiro serve de motivo para uma manifestação política no dia seguinte diante de seu cadáver... Quanto ao mais, os socialistas revolucionários compreendem as coisas, pelo visto, de outro modo e, em sua opinião, teria sido “mais conveniente” que os seis companheiros assassinados em Rostov tivessem dado sua vida por atentar contra tais ou quais energúmenos da polícia.

Em compensação, acreditamos que tais movimentos de massas, ligados ao crescimento, evidente para todos, da consciência política e da atividade revolucionária da classe operária, são os únicos que merecem o nome de atos autenticamente revolucionários e os únicos capazes de infundir verdadeiro alento aos que lutam pela revolução russa. Não vemos aqui a famosa “ação individual”, cuja ligação com as massas consiste apenas em manifestações verbais, em escritos anônimos condenando à morte esse ou aquele verdugo, etc. Vemos uma ação efetiva da multidão, e a falta de organização, o despreparo, a espontaneidade desta ação nos leva a ter presente quão torpe é exagerar as forças revolucionárias, quão criminoso é desprezar a tarefa de levar a esta multidão, que luta de modo real diante de nossos olhos, uma organização e um preparo cada vez maiores. A única tarefa digna de um revolucionário consiste, não em dar motivo para a excitação por ocasião de uns disparos, alimentar a agitação e o pensamento político, mas sim em aprender a elaborar, a utilizar e a apoderar-se do material que a vida russa proporciona em quantidade mais que suficiente. Os social revolucionários não podem envaidecer-se de que seja grande a influência “agitadora” dos atentados políticos, sobre os quais tanto se cochicha nos salões dos liberais e nas tabernas do povo. Os social revolucionários não se envergonham (para algo estão emancipados de todos os dogmas estreitos de uma teoria socialista mais ou menos definida!) de substituir (ou apenas completar) a educação política do proletariado pelo sensacionalismo político. Consideramos, pelo contrário, que podem ter influência real e seriamente “agitadora” (estimulante), e não só estimulante, mas também (e isto é muito mais importante) educativa, os acontecimentos em que o protagonista é a própria massa e que são originados pelo estado de espírito da massa, e não postos em cena “com fins especiais” por essa ou aquela organização. Achamos que uma centena de regicidas jamais produzirá a influência estimulante e educativa que exerce a simples participação de dezenas de milhares de operários em assembleias onde se examinam seus interesses vitais e a ligação entre a política e esses interesses, a influência que essa participação exerce na luta, que realmente põe de pé novas camadas “bisonhas” do proletariado, erguendo-as a uma vida mais consciente, a uma luta revolucionária mais ampla. Falam-nos da desorganização do governo (obrigado a substituir os senhores Sipiaguin pelos senhores Pleve e a “recrutar” para seu serviço os mais vis cafajestes), mas estamos convencidos de que sacrificar ainda que apenas um revolucionário por dez canalhas significa exclusivamente desorganizar nossas próprias fileiras, já por si escassas, tão escassas que não podem atender a todo o trabalho que os operários lhes “exigem”. Achamos que a verdadeira desorganização do governo só se consegue quando as amplas massas que realmente são organizadas pela própria luta obrigam o governo a desconcertar-se, quando a legitimidade das reivindicações dos representantes avançados da classe operária é esclarecida diante da multidão na rua, e começa a ser esclarecida inclusive entre uma parte das tropas chamadas a “reprimir”, quando às ações militares contra dezenas de milhares de homens do povo precede a vacilação das autoridades, que carecem de toda a possibilidade real de determinar aonde levarão essas ações militares; quando a multidão vê e reconhece nos mortos no campo da guerra civil seus camaradas, seus companheiros, e acumula novas reservas de ódio e o desejo de uma luta mais decidida contra o inimigo. Então, já não é apenas um canalha, mas todo o regime atual, que aparece como inimigo do povo, contra o qual se conjuram as autoridades locais e as de São Petersburgo, a polícia, os cossacos e o exército, isso sem falar dos gendarmes e dos juízes, que são o complemento e o coroamento, como sempre, de toda insurreição popular.

Sim, insurreição. Por longe que esteja da “verdadeira” insurreição o começo desse movimento, aparentemente grevista, desenvolvido numa longínqua cidade de província, seu prosseguimento e seu final fazem pensar, queiramos ou não, na insurreição. A simplicidade do motivo da greve e o caráter variado das reivindicações apresentadas pelos operários acentuam com particular vigor a poderosa força da solidariedade do proletariado, que viu num instante que a luta dos ferroviários é sua própria causa comum, e a disposição do proletariado em aceitar as ideias políticas, a propaganda política, e a sua decisão de defender com seu peito, em combate aberto com as tropas, o direito a uma vida livre e ao livre desenvolvimento, direito que já é patrimônio comum e elementar de todos os operários que pensam. Tinha mil vezes razão o Comitê do Don, que, no manifesto reproduzido na íntegra mais adiante, falava “a todos os cidadãos” da greve de Rostov como de um dos episódios que levam ao ascenso geral do movimento operário russo sob a reivindicação da liberdade política. Nos acontecimentos desse gênero observa-se clara e efetivamente que a insurreição armada de todo o povo contra o governo autocrático amadurece não só como ideia, nos cérebros e nos programas dos revolucionários, como também no passo seguinte, inevitável, prático e natural do próprio movimento, como resultado da crescente indignação, da crescente experiência e da crescente decisão das massas, que receberam da realidade russa lições tão valiosas e uma educação tão magnífica.

Disse um passo inevitável e natural, mas me apresso em fazer esta reserva: apenas com a condição de que não consintamos em nos afastar um só passo da tarefa que está diante de nós, que paira sobre nós, de ajudar estas massas que já se erguem e colocá-las de pé com maior audácia e unanimidade, de proporcionar-lhes não dois, mas dezenas de oradores populares e de dirigentes, e criar uma verdadeira organização de combate, capaz de orientar as massas, e não uma pretensa “organização de combate” que orienta (se é que orienta) uns quantos militantes clandestinos. Esta tarefa é difícil, nem é preciso dizer, mas podemos com pleno direito modificar as palavras de Marx repetidas ultimamente com tanta frequência e com tanto desacerto, e dizer: “Cada passo do movimento efetivo é mais importante que uma dúzia” de atentados e ações individuais, mais importantes que centenas de organizações e “partidos” exclusivamente intelectuais.

Paralelamente à batalha de Rostov passam ao primeiro plano dos fatos políticos dos últimos tempos as condenações à prisão impostas a manifestantes. O govemo resolveu intimidar por todos os meios, começando com o chicote e acabando com o presídio. Mas, que magnífica foi a resposta dos operários, cujos discursos ante o tribunal reproduzimos mais adiante! Como é instrutiva esta resposta para todos os que se alvoroçaram tanto a propósito da influência desalentadora das manifestações, não com o objetivo de estimular o trabalho posterior nesse mesmo sentido, mas sim com o objetivo de pregar a famosa ação individual! Estas palavras pronunciadas ante o tribunal são um admirável comentário, saído do mais profundo do proletariado, a acontecimentos como os de Rostov, e, ao mesmo tempo, uma magnífica declaração (uma “confissão pública”, eu diria, se isto não fôsse uma expressão especificamente policial), que infunde ilimitado alento ao prolongado e árduo trabalho de assegurar passos “efetivos” do movimento. É admirável nesses discursos a exposição simples e verdadeiramente exata de como se realiza a passagem dos fatos mais cotidianos, repetidos a dezenas e centenas de milhões, de “opressão, miséria, escravidão, humilhações e exploração” dos operários na sociedade contemporânea, ao despertar de sua consciência, ao crescimento de sua “indignação”, à manifestação revolucionária desta indignação (pus entre aspas as expressões que tive que usar para caracterizar os discursos dos operários de Nijni-Novgórod, pois são as mesmas magníficas palavras de Marx das últimas páginas do primeiro tomo de O Capital, que suscitaram por parte dos “críticos”, oportunistas, revisionistas, etc, tantas ruidosas e vãs tentativas de refutar os social-democratas e de acusá-los de não dizer a verdade).

Exatamente porque esses discursos foram pronunciados por simples operários, de modo algum avançados pelo grau de seu desenvolvimento, e inclusive não como membros de uma determinada organização, e sim como homens da multidão; precisamente porque insistiram, não em suas convicções pessoais, mas sim nos fatos da vida de cada proletário ou semiproletário da Rússia, suas conclusões produzem uma impressão tão animadora: “Por isso fomos conscientemente à manifestação contra o govêrno autocrático”. O caráter corrente e “maciço” desses fatos, dos quais esses operários tiraram essa conclusão, é a garantia de que a essa mesma conclusão podem chegar e inevitavelmente chegarão milhares, dezenas e centenas de milhares, se soubermos prosseguir ampliar e consolidar a influência revolucionária (social-democrata) sistemática, firme do ponto de vista dos princípios e exercida em todos os aspectos sobre eles. Estamos dispostos a ser encarcerados por lutar contra a escravidão política e económica, de vez que sentimos os ares da liberdade — disseram quatro operários de Nijni-Novgórod. Estamos dispostos a morrer: responderam-lhes milhares de vozes em Rostov, conquistando por alguns dias a liberdade de reuniões políticas e rechaçando tôda uma série de ataques militares sôbre a multidão inerme.

Assim venceremos: é o que nos resta dizer, dirigindo-nos aos que têm olhos para ver e ouvidos para ouvir.


Inclusão 07/11/2012