Entrevista ao Programa Roda Viva

Armênio Guedes

11 de Agosto de 2008


Fonte: Memória Roda Viva
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.

Lillian Witte Fibe: Boa noite. Ele diz que saiu do Partido Comunista, mas que não abandonou o vício, e muito menos critica quem segue o partido como fazem, por exemplo, muitos dos que param de fumar e pulam para o lado do anti-tabagismo. Ele se diz um comunista avulso: sem partido, sem carteirinha. Aos noventa anos e com cinquenta de militância no Partido Comunista Brasileiro, ele é referência de pensamento democrático para muita gente de esquerda. Referência de pensamento e também exemplo no convívio diário de cordialidade, de tolerância e de generosidade. O Roda Viva entrevista hoje o jornalista Armênio Guedes, que já foi da cúpula do PCB, e cuja história pessoal se confunde com a história do comunismo no Brasil. A entrevista começa já, já.

Lillian Witte Fibe: Armênio Guedes esteve durante décadas na linha de frente do Partido Comunista Brasileiro. Discreto e anônimo para o público, assumiu um papel marcante dentro do partido: pensar, questionar e apontar rumos. Nas comemorações de seus noventa anos, havia representantes históricos da esquerda brasileira.

[Comentarista]: Houve festa em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Salvador. Intelectuais, artistas, políticos, nomes conhecidos da vida pública brasileira, gente que ajudou a construir parte da história política recente do Brasil. E que se reencontrou, em junho de 2008, nas comemorações dos noventa anos de Armênio Guedes. Paciencioso e articulador, aqui ou no exílio, ele é quem procurava reunir e unir os opositores da ditadura divididos em várias correntes políticas. E que fazia, permanentemente, a defesa da via da atuação política e da democracia como caminho para levar o país ao socialismo, uma história que é a própria história pessoal desse baiano de Mucugê. Nascido em 1918, um ano depois da Revolução Russa, aos três anos de idade se mudou para Salvador com a família: pai, mãe e mais dez irmãos. O pai queria que todos os filhos estudassem. Armênio começou pelos livros de ciências jurídicas e aos 16 anos entrou na Faculdade de Direito da Bahia para se formar advogado. Tomou contato com o comunismo por influência do irmão mais velho, Enéas. E se filiou, em 1935, ao grupo baiano do Partido Comunista levando junto o irmão mais novo Celito. Em 1941, fugindo da perseguição que o Estado Novo de Getúlio Vargas impôs aos comunistas, Armênio Guedes veio para São Paulo e em seguida foi para o Rio de Janeiro. Com vários líderes comunistas presos, Armênio articulou entre companheiros paulistas e cariocas a Conferência da Mantiqueira, que praticamente refundou o PCB, em 1943. Com a queda de Getúlio Vargas em 1945 o Partido Comunista foi legalizado. Os líderes presos, incluindo o secretário geral Luiz Carlos Prestes, foram soltos e Armênio se tornou [integrante do] quadro profissional do PCB ao ser indicado secretário particular de Prestes. Hoje ele é uma das poucas testemunhas vivas de vários fatos da vida do mítico secretário geral do "partidão". A legalidade dos comunistas durou pouco. O partido foi cassado e assumiu uma linha radical e sectária que o levou ao isolamento. Com a saúde abalada por uma doença pulmonar, Armênio Guedes foi se tratar em Moscou em 1952, onde viveu três anos, período que coincide com a morte de Stalin e com os preparativos do vigésimo Congresso do Partido Comunista Soviético, onde Kruschev denunciou os crimes do stalinismo. Em Moscou, Armênio Guedes já questionava a cartilha soviética. De volta ao Brasil, torna-se um dos principais articuladores da Declaração de Março de 1958 que colocou a democracia como objetivo da ação política do Partido Comunista. Nessa época, atuou como assessor parlamentar e dirigiu a revista Estudos Sociais, junto com Astrojildo Pereira, um dos fundadores do partido. Depois de 1964, mesmo com a repressão do governo militar aos movimentos de esquerda, Armênio ficou no Brasil clandestinamente até 1971. Saiu do país depois de ser abordado por um agente da CIA em frente da casa onde morava e se exilou no Chile. Com o codinome Lázaro Feitosa, se juntou aos outros exilados como José Serra, Fernando Gabeira, Almino Afonso, Maria Conceição Tavares e Betinho, em ações políticas para denunciar a repressão no Brasil. Nesse período, perde o irmão mais próximo, Celito Guedes, que foi preso torturado e morto no Rio de Janeiro. Com o golpe militar de Pinochet e a morte de Allende em 1973, Armênio buscou exílio na França, onde chegou com o codinome Júlio. Com os exilados em Paris, entre eles Oscar Niemeyer, Miguel Arraes, Aloysio Nunes Ferreira, Luiz Hildebrando Pereira, José Leite Lopes, Armênio também organiza um esquema de denúncia da ditadura brasileira. E se torna o responsável pelo jornal do partido, Voz Operária, levando seu grupo a consolidar o princípio de que a democracia é um valor permanente e não apenas tático. Em 1979, com a anistia, volta ao Brasil. No ano seguinte, Prestes rompe com o PCB, que já mostrava outra divisão: de um lado, os que pregavam a democracia e criticavam o modelo soviético, como Armênio, de outro, os que discordavam dessa linha. A divergência levou mais gente a deixar o partido. Armênio Guedes saiu em 1986. Encerrou ali a militância de cinqüenta anos. Continuou, como ele mesmo diz, um comunista. Mas sem partido e sem carteirinha.

[Seguem trechos de vídeos com depoimentos]

Roberto Freire [deputado federal e candidato à presidência pelo PCB em 1989]: Armênio Guedes significa para todos nós, que viemos dessa família dos comunistas brasileiros, aquilo que foi a grande conquista: a questão da democracia.

Marco Antônio Coelho [jornalista e ex-membro do Comitê Central do PCB]: A sua luta não foi assim uma coisa que teve uma grande repercussão do público brasileiro, não teve. Mas, na verdade, entre aqueles que formam opinião no Brasil sempre se compreende a importância das teses traçadas sob orientação de Armênio Guedes.

Almino Afonso [advogado, foi ministro do Trabalho e Previdência Social no governo de João Goulart, teve seu mandato cassado pelo Golpe de Estado de 1964]: Nós participávamos de uma comissão chamada Comisión de denúncia de lá repression em Brasil...

José Serra: Tratava-se de um grupo para resistir ao avanço de repressão, da tortura, dos assassinatos que havia entre nós. Era um grupo plural. Havia gente como ele, que pensava numa saída democrática para o Brasil, da mesma maneira que havia o Hoffmann, o Almino Affonso, eu...

Almino Afonso: Esse foi um trabalho notável que eu me lembro que o nosso Armênio realizou ao meu lado, e de muitos mais, nos nossos anos de exílio no Chile.

José Serra: Eu aprendi muito a respeito do Brasil com ele. E aprendi muito a respeito dele também. Um homem modesto. Um homem com visões claras. Um homem sem qualquer intolerância. Uma pessoa afável. Mas, ao mesmo tempo, muito firme nas suas convicções. E nos tornamos, desde então, amigos, muito bons amigos.

Luiz Hildebrando P. da Silva [cientista e professor da Universidade de São Paulo (USP). Foi exilado com o golpe militar. Foi integrante do Comitê Brasileiro de Anistia de Paris]: E é lamentável que essa personalidade e essa grande competência, essa grande qualidade política que ele tem não tenha sido muito mais, digamos, aproveitada no processo político após a democratização, nos anos 1980 e 1990, que seguiram no país.

Aloysio Nunes Ferreira: O Armênio Guedes teve uma importância fundamental na minha vida e formação intelectual, na maneira como eu faço política. O Armênio não apenas influenciou a mim, mas a todos os comunistas da minha geração. Foi pela influência política do Armênio, que a idéia de que a democracia não é apenas um instrumento se introduziu no pensamento e na ação política da esquerda brasileira.

Lillian Witte Fibe: Para entrevistar o jornalista Armênio Guedes, convidamos João Batista Natali, repórter especial do jornal Folha de S.Paulo; Milton Coelho da Graça, jornalista do portal Comunique-se e professor da Unicarioca; Maria Inês Nassif, editora de opinião e colunista do jornal Valor Econômico; e o Gildo Marçal Brandão, professor do Departamento de Ciência Política, da Universidade de São Paulo e autor do livro A esquerda positiva: as duas almas do Partido Comunista (1997); a Carmen Amorim, que é repórter aqui da TV Cultura, traz as perguntas enviadas por telespectadores. [...]. Boa noite Armênio Guedes.

Armênio Guedes: Boa noite.

Lillian Witte Fibe: Como vai, você está bem?

Armênio Guedes: Tudo bem.

Lillian Witte Fibe: Armênio, nós falamos, no comecinho, que você foi sempre uma espécie de guru [da] esquerda brasileira. Eu queria aproveitar essa sua vocação e essa sua experiência de guru, tirar um pouco da sua sabedoria e pedir para você refletir sobre o futuro do Brasil a partir de agora. Lógico que nós estamos em um governo histórico, um governo do PT [Partido dos Trabalhadores], um governo de esquerda. Tem muita gente que fala, a gente sabe, que é um governo de esquerda que não fez uma política de esquerda, mas é o PT que está aí. O que será da esquerda brasileira no futuro? Você acha que essa hegemonia veio para ficar? Que a direita está sepultada ou não tem chance tão cedo de ser eleita e de ser escolhida para o poder, tamanho foi o sucesso, aliás, de popularidade do presidente Lula até agora?

Armênio Guedes: Bom, espero que seja isso, que a direita esteja sepultada, não é? Não que a direita... A direita se modificou um pouco. E há um ponto, às vezes, de encontro, que é o centro ou, às vezes, centro direita, centro esquerda. E é até difícil caracterizar o que é, realmente, a esquerda e o que é a direita.

Lillian Witte Fibe: Está meio fora de moda, não é?

Armênio Guedes: Não, não é fora de moda. É que a situação que se criou é uma situação nova e nós ainda... Eu tenho acompanhado, tenho lido muita coisa sobre o futuro da esquerda, o que será a esquerda, e ainda é uma coisa muito turva; as águas ainda não estão límpidas. Agora, eu acho que, em relação ao Brasil, eu  tenho uma visão um pouco mais crítica. Eu sou otimista, mas eu sempre digo: não é um otimismo a Pangloss [personagem eternamente otimista de Candide, a obra mais conhecida do escritor francês Voltaire (1694-1778)]. Esse otimismo hoje, eu o submeto a um crivo mais sério. Eu me apoio na idéia do Gramsci, [Palmiro] Togliatti muito definida por [Enrico] Berlinguer que eles chamam "do otimismo da vontade e o pessimismo da inteligência". Uma vez alguém perguntou, entrevistando o Berlinguer: “dizem que você é um homem triste, que você tem um pessimismo”. E ele disse: “olha, eu sou um otimista a longo prazo. Mas, a curto prazo, quando nós nos fixamos naquilo que é uma espécie de elo entre o passado e o futuro, que é o presente, esse elo, a gente tem que se fixar nele, e muitas vezes a gente pode chegar à conclusão de que o futuro não é tão brilhante como a gente pensava". Esse futuro imediato, mais próximo. Nós podemos até mesmo ver que nós estamos diante de uma situação que pode nos levar a uma nova barbárie, não é?

Lillian Witte Fibe: Por exemplo?

Armênio Guedes: Por exemplo, veja a situação da Itália hoje, em que, [mesmo] com a democracia tem um governo que é uma volta ou uma inauguração, talvez, a gente não sabe - eu tenho a impressão que ele será suplantado, em cinco, seis, dez anos - mas é um desses exemplos de que nem sempre o futuro é aquilo que nós desejamos, não é? [Refere-se ao governo de Silvio Berlusconi, primeiro-ministro da Itália por quatro mandatos, o último começou em 2008. Foi fundador e líder do partido Força Itália, considerado o homem mais rico da Itália e o 15º do mundo, é empresário de comunicações, bancos e entretenimento]. Quando o sujeito é um otimista finalista, que acha que a história sempre marcha para um desenvolvimento constante, isso induz a uma certa fatalidade que é um erro, não é? Então, quando se tem equilíbrio e se olha o presente como esse elo entre o futuro e o passado, a gente vê quais são as possibilidades de induzir, de conduzir as coisas de forma que se expresse aquilo que, às vezes, está incrustado na história que é o avanço da sociedade, o avanço da democracia, enfim...

Lillian Witte Fibe: Mas, espera aí. Então, ele enrolou, enrolou e não respondeu. Como nós vamos ficar? Esse seu...

Armênio Guedes: É porque é enrolada essa questão.

Lillian Witte Fibe: Esse seu otimismo de longo prazo e pessimismo de curto prazo...

Armênio Guedes: O que eu quero explicar melhor é o seguinte: se eu fosse um voluntarista eu [diria]: "eu acho, como os voluntaristas dizem, que nós vamos continuar avançando, avançando e avançando". Mas eu quero dizer que há o outro lado também, que há a possibilidade que nem sempre é de avanço.

Lillian Witte Fibe: Por exemplo, quando a Itália elegeu uma extrema direita é isso?

Armênio Guedes: Sim, claro. Mas não é o caso hoje do Brasil, eu penso. Eu acho que, em relação ao Brasil, eu tenho esse otimismo controlado. Não é esse fatalismo de que vai ser assim. Isso é o que eu queria explicar. Mas acho que a eleição do Lula, depois de um período de transição, [porque foi] uma transição muito especial essa nossa, foi uma transição em que não houve um governo de transição. O primeiro governo que [conduziu] essa transição depois da anistia que durou cinco anos, já era, portanto, um período de transição, ainda [fazia parte do] regime militar [refere-se ao governo de João Baptista Figueiredo (1979-1985), último presidente militar no Brasil] O que explica, por exemplo, essa discussão que está havendo hoje em torno do terrorismo. Se os terroristas devem ou não ser levados; [se eles devem ou não] ser julgados pelos crimes que cometeram...

Lillian Witte Fibe: Devem ou não, Armênio?

Armênio Guedes: Na verdade, no momento que se deu a anistia... [porque] nós temos que analisar isso politicamente. As forças políticas estavam presentes, era o começo do declínio da ditadura. E nós, por exemplo — isso daí eu digo com um certo orgulho — nós, comunistas, defendíamos que não era através da violência e do desespero que nós íamos derrotar a ditadura, mas que era [preciso] ter paciência e consciência porque os fatores permanentes estavam funcionando no sentido de encontrarmos uma saída política, superar a ditadura e conseguir a redemocratização da vida política e da sociedade brasileira. Isso foi o que realmente ficou comprovado. Nós defendíamos uma tese certa e não a tese dos desesperados que se lançavam à luta armada depois de termos sofrido uma derrota grande em 1964. Então, isso mostra que essa tese defendida hoje pela condenação do “terror”, na época, nós tínhamos que fazer um acordo porque nós não tínhamos força para impor a nossa vontade. Os voluntaristas achavam que deviam ser logo levados, superado. Mas nós não conseguimos nem as eleições diretas, não é? As rupturas da ditadura foram parceladas, não é? Não foi uma ruptura violenta como houve em outros países. No caso, por exemplo, de Portugal, no caso da Espanha, onde houve um governo de transição logo depois da ditadura, não é? No caso do Brasil, mais ou menos, não foi desse tipo.

Gildo Marçal Brandão: Armênio, nós estamos condenados a essa origem? Condenados a permanecer no limite do que foi aquele processo de transição e aquele tipo de anistia? Quer dizer, será que não há hoje condições, na sociedade brasileira, de enfrentar essa questão, que é uma questão ainda em aberto. Quer dizer, não é uma questão só que implica a esquerda, [ela] continua. No Brasil, ainda se tortura nas delegacias, se tortura nas prisões.

Armênio Guedes: Claro.

Gildo Marçal Brandão: Só que não é militante de esquerda, é povão, trabalhador. Continua não havendo direitos civis em vastas áreas do território brasileiro. Quer dizer, será que nós temos que aceitar o limite dado naquele período, que era inevitável, você diz bem? Era inevitável mesmo, nós não tínhamos força para outra coisa, perfeito.

Armênio Guedes: Não, claro. Claro que nós já estamos em período muito mais avançado, não é? Eu acho que não é inevitável aceitar isso como uma coisa definitiva. Em primeiro lugar, eu acho que ela foi colocada, agora, pelo ministro Tarso Genro, de uma forma politicamente inábil. [Em agosto de 2008, o então ministro da Justiça do governo Lula, Tarso Genro, afirmou publicamente que a tortura não poderia ser considerada crime político e deveria ser excluída da Lei de Anistia. Para o ministro, era necessário julgar os torturadores que atuaram durante o regime militar. Os militares, em contrapartida, reagiram à declaração, afirmando, em um seminário sobre a Lei de Anistia que ocorria no Clube Militar do Rio de Janeiro, que o ministro Tarso Genro fazia um desserviço ao país].

Gildo Marçal Brandão: Inábil.

Armênio Guedes: Acho que não cabia a ele, a não ser como uma questão pessoal, mas não cabia ao governo - aí eu concordo com o Roberto Freire e outras pessoas que participaram, inclusive da Lei da Anistia, da [sua] formulação — de que seja o Estado que tem que fazer isso. Isso é um direito que cabe aos democratas, a qualquer cidadão. Por exemplo, eu tive um irmão que foi assassinado e eu gostaria de saber como esse meu irmão foi assassinado. Eu gostaria de saber quem foi o responsável por isso.

[...]: Além do seu irmão, mais 14 dirigentes comunistas, seus companheiros também, foram torturados até a morte, em 31 de março.

Armênio Guedes: Mas eu coloquei o meu irmão ao lado da coisa política. Eu vejo mais, primeiro, uma coisa política, mas também como um exemplo de que eu posso exigir que se abra um processo para saber, pelo menos saber, como foi que [meu irmão morreu]. Porque até hoje eu não sei como foi. [Assim] como outras pessoas não sabem como desapareceram seus parentes, não é? E as organizações políticas também não sabem o que aconteceu com os seus militantes, não é?

Milton Coelho da Graça: Armênio, o Bispo Desmond Tutu [primeiro negro a ser nomeado deão da catedral de Santa Maria, em Johannesburgo no período do apartheid [política oficial de segregação racial. Recebeu, em 1984, o Prêmio Nobel da Paz pela atuação contra o regime], depois, na reconciliação de brancos e negros na África do Sul, ele disse uma coisa muito importante quando montou aquela Comissão de Reconciliação Nacional: “não pode haver perdão sem arrependimento”. Infelizmente,  no Clube Militar, essa sessão que houve lá mostra que quem torturou não está arrependido. E não é possível também haver arrependimento se a pessoa não reconhece. Esse é o erro.

Armênio Guedes: Esse coronel [...], por exemplo, ele já disse aos jornalistas amigos que eu conheço que ele não tem nenhum arrependimento. Que ele fez o que tinha que fazer.

Milton Coelho da Graça: Exato.

Armênio Guedes: E pelas convenções internacionais, o terror não prescreve o crime anterior, não é?

Gildo Marçal Brandão: É crime comum e não político, nos termos da legislação internacional.

Armênio Guedes: Alguém que diz assim: “mas não há um risco de que a [Lei de] Anistia, que [se propôs a] abranger tudo, condene também a esquerda..."

Gildo Marçal Brandão: Sobretudo a armada, porque eles também põem no mesmo balaio todo mundo.

Armênio Guedes: Esquerda armada que praticou algum atentado, alguma coisa contra a vida de pessoas? Não é o caso. Porque foi feito pelo Estado, por agentes do Estado, os outros estão se defendendo, estão lutando contra uma arbitrariedade política que se abateu sobre a nação.

João Batista Natali: Você me permitiria mudar um pouquinho de assunto. Eu sei que é super importante, mas eu gostaria que a gente entrasse na parte da história, na parte da sua biografia em relação a essa história. Digamos que a gente apanhasse uma máquina do tempo e fôssemos perguntar para Armênio Guedes, em 1943, quando ele se tornou um militante de esquerda, no que ele acreditava? Ele acreditava que o Brasil seria um país socialista, estava lutando por isso. Ora, o socialismo nunca foi implantado e, provavelmente, nunca será implantado. Existe uma democracia, mas, na época, democracia não era uma visão que se tinha dentro do Partido Comunista. Mesmo dentro da sua biografia, essa visão é posterior, não é verdade? Então, voltando para o túnel do tempo, você seria comunista, mesmo sabendo que não haveria comunismo no Brasil ou não?

Armênio Guedes: Não.

João Batista Natali: Não seria?

Armênio Guedes: Porque a visão comunista era da revolução mundial, não é? Então, a gente sempre... Às vezes, vinha um e dizia assim: “nós temos tantas dificuldades para ter, às vezes, um transporte, arranjar um transporte para ir daqui até ali, para arranjar uma tipografia ilegal. Como nós vamos vencer essa máquina imensa que está aí e tal?”. A não ser que o povo se convença que há a necessidade disso, não é? Esse foi o início da minha reflexão para ser contra o chamado foco armado tão defendido pelos partidários da luta armada no início da ditadura, não é?

João Batista Natali: Certo.

Armênio Guedes: Como se houvesse uma situação, no Brasil, revolucionária, de que um pequeno foco... Isso é uma coisa do Mao Tsé Tung que punha fogo em todo o prado, não é? Não era o caso. Eu via que isso era um pouco de absurdo. Mas só despertei para tomar uma posição, isso só começou com a discussão que fizemos no 20º Congresso do Partido da União Soviética em que se denunciou os crimes do stalinismo.

João Batista Natali: Stalinismo.

Armênio Guedes: O culto à personalidade e aquela visão primitiva de luta de classe, de que a luta de classe sempre era uma guerra de classes, não é?

João Batista Natali: Agora, veja, por exemplo, em 1917, houve uma racha dentro da esquerda internacional, os comunistas foram para um lado, os social-democratas foram para um outro, logo depois da Revolução de 1917. Então, hoje quando a gente vê, quando eu comecei a ver que uma ala do Partido Comunista Brasileiro estava alinhada ao Partido Comunista Italiano, dentro do eurocomunismo, na década de 1970, por exemplo, então, todos tornavam-se comunistas sociais-democratas. Então, havia uma espécie de triunfo da socialdemocracia. Como se aquele racha que tinha ocorrido logo depois da revolução de outubro, ele não fizesse mais nenhum sentido. Ou seja, o “bom comunista” que acreditava na democracia, era também o social-democrata. É assim que você se vê ou que se via nessa época?

Armênio Guedes: É difícil de responder essa sua pergunta. Meio complicada.

Lillian Witte Fibe: Vamos deixar ele refletindo durante o intervalo. [...]

Lillian Witte Fibe: O Roda Viva está entrevistando o jornalista Armênio Guedes, ex dirigente do Partido Comunista Brasileiro. Em cinqüenta anos de  PCB Armênio marcou a vida pessoal de figuras que fizeram parte da história da esquerda brasileira.

[Seguem trechos de vídeos com depoimentos]

Sérgio Cabral [jornalista]: As coisas que falo, que eu escrevo, que eu penso são herdadas do Partido Comunista, ao qual eu pertenci. Mas isso, de modo geral. Agora, em particular, do que eu aprendi com Armênio. Armênio Guedes foi meu mestre, meu amigo, meu guru.

Zelito Viana [cineasta]: Quando a gente tinha dúvida da linha política a adotar, quando tinha dúvida [sobre] qual caminho [seguir], era o Armênio que a gente consultava, e isso até hoje. E eu espero que ainda por muitos anos.

Stephan Necerssian [ator]: Quanto mais o tempo passa, [quanto mais] as coisas acontecem, essa loucura que está o Brasil, mais o Armênio vira uma grande referência. Ele nos ajuda a manter os nossos sonhos vivos.

Fernando Gabeira [político e escritor]: Desse sonho, esse imenso sonho que passou por muitas décadas restou uma coisa fundamental, a fraternidade. É um homem que comemora noventa anos com seus companheiros de lutas históricas, tendo preservado esse aspecto fundamental.

Sérgio Besserman Vianna [professor PUC-RJ]: Para mim, foi o momento em que a luta contra a injustiça e a luta pela liberdade e pela democracia se uniram no pensamento dos eurocomunistas [eurocomunismo] italianos, das reflexões de Carlos Nelson Coutinho, Luiz Werneck Viana e da liderança de Armênio Guedes.

Luiz Carlos Prestes Filho [cineasta]: Armênio, desde a juventude acompanhou os passos de meu pai, Luiz Carlos Prestes. Acompanhou, apoiou e não somente foi uma testemunha desse processo, [como] foi uma cabeça muito presente em todos os momentos dramáticos das lutas democráticas brasileiras.

Carlos Nelson Coutinho [professor UFRJ-RJ]: E aprendi com ele, como comunista que sou, como socialista que sou, o extraordinário valor da democracia.

Ferreira Gullar [poeta]: Companheiro de muita luta, de muito sofrimento, de muita expectativa. Agora, eu só quero dizer o seguinte: é o comunista mais sorridente e mais doce que eu conheci na vida.

Lillian Witte Fibe: Então, Armênio, um pouquinho antes do intervalo, o Natali perguntou e a gente pediu um break para você refletir sobre se você ainda seria comunista, hoje, mesmo sabendo que o comunismo se inviabilizou no mundo e que não houve a revolução mundial com que todos sonhavam.

Armênio Guedes: Então vamos ver se eu consigo. Eu disse no começo [que] eu sou um comunista avulso. Eu acho que a minha cultura é uma cultura comunista. Quer dizer, eu não abro mão de certos valores de luta pela maior igualdade entre os homens, [não abro mão] do combate às discriminações; uma série de coisas,  um conjunto de princípios que vai nos levar a uma sociedade mais livre, é o que eu espero. Mas eu não abro mão de lutar por isso porque eu acho que essa luta é o que pode fazer com que coisas que existam na sociedade venham à tona, sejam cultivadas e produzam frutos, não é? De maneira que eu... Quer dizer, na minha vida de partido, quando eu comecei, a socialdemocracia era tida como social fascismo, não é? E isso até o próprio movimento comunista clássico, ainda na Internacional, concluiu que era um erro. Tanto que vocês conhecem uma peça do alemão lá, como é o nome?

[...]: Brecht

Armênio Guedes: É, em que ele mostra [as] grandezas e misérias do Terceiro Reich [refere-se a obra O terror e a miséria no Terceiro Reich, de Brecht] e [como] a desunião dos comunistas e os sociais-democratas permitiu a subida do Hitler ao poder, [já] que os dois juntos tinham uma maioria esmagadora de voto, mesmo na última eleição, quando o Hitler [foi] convidado para chanceler e implantou o nazismo na Alemanha. A unidade só se deu diante da cadeia, depois da derrota. Então, aí já começa também a política de frente única. Aí, já não era essa oposição tão... Sempre por parte dos comunistas ainda com uma visão utilitarista, conquistar a hegemonia na base de suplantar ou de esmagar a socialdemocracia, não é?

Maria Inês Nassif: Uma das coisas que o Armênio fala que eu acho genial é quando ele descreve o partido comunista "stalinista", vamos dizer assim, brasileiro. Ele fala que o partido tinha cultura do gueto. Só que você saiu do gueto, não é, Armênio? Eu queria saber como foi essa saída do gueto e como foi brigar com as pessoas que continuavam dentro do gueto? Como foi essa luta? Foram dois momentos especiais. Eu acho que foi na denúncia do stalinismo e, no período do exílio, que foram os embates maiores, não é?

Armênio Guedes: Olha, eu sempre tive uma visão um pouco crítica em relação a essa questão do gueto. Seguinte: quando o partido saiu à legalidade, é claro que o gueto anterior era o gueto também de um partido primitivo, aquela coisa da luta de classe contra classe, não se  [fazia] nem uma diferenciação, querendo acabar com a ditadura da burguesia e suplantar a ditadura do proletariado. Mas não nos interessava a forma como, segundo a nossa concepção da época, como a burguesia exercia a sua influência, [isso] não fazia diferença. Porque, às vezes, ela era classe dirigente e, às vezes, era a classe dominante, não é? Como classe dirigente era porque tinha hegemonia das idéias, [ou seja] tinha, mais ou menos, o apoio na sociedade, com forças sociais imensas, algumas passivas, não [tinha] nenhuma posição, mas a maioria, já tinha aquilo como dado. Mas nós não fazíamos essa distinção dessas duas formas de dominação do que a gente chamava que o Estado era sempre um Estado de classe. E era sempre, mesmo na democracia burguesa, era uma forma de ditadura, uma ditadura por ter a hegemonia na sociedade. As idéias da burguesia, da democracia burguesa tinham... Bom, mas não fazíamos essa distinção. Já aí, depois da chegada de Hitler ao poder, da vitória da frente popular na França, na Espanha, já se fazia essa distinção, não é? Então, nos uníamos com forças da pequena burguesia e de outras camadas sociais, não propriamente os trabalhadores, para evitar que, ou que pelo menos, a classe dominante fosse uma classe dirigente e não uma classe dominante. Então, posteriormente, fui vendo que, na minha compreensão, já não existia... que nós tínhamos que fazer política não no sentido apenas do assalto ao poder. [Porque] a política tinha que se desenvolver, talvez, começar a valorizar as reformas. Porque as reformas eram coisas que estavam modificando a sociedade, não é? Estavam melhorando a distribuição de renda. E a gente tinha aquela coisa, tinha o tal do socialismo real, não é? O socialismo real que...

Gildo Marçal Brandão: Que era um horror, não é?

Armênio Guedes: Que era um horror...Mas a revolução... A gente também não pode negar que a Revolução Russa mudou a face do mundo.

Gildo Marçal Brandão: Sim, mudou a face da...

Milton Coelho da Graça: Armênio, posso fazer? Você está falando muito do passado e você para mim não foi só líder dos comunistas avulsos no passado. Quero que você seja o oráculo: veja o futuro. Hoje você tem três países que têm os maiores índices de desenvolvimento econômico na faixa de 9% a 10%, em tom consistentes, existem outros que têm mais, mas é por ocasião, descoberta de minérios, etc, que são: China, Vietnã e Cuba. Os três estão mudando agora com a adesão à economia de mercado, dizendo que a economia de mercado não é um fator só do capitalismo. Ele pode ser aplicado também em países socialistas. E eles estão crescendo.

Armênio Guedes: Socialismo de mercado.

Milton Coelho da Graça: Agora, eu pergunto a você: a democracia que você vê é apenas um meio ou é também um fim, como dizem os comunistas e os vietnamitas e cubanos que dizem que a democracia será conquistada na medida em que elas também avançarem no desenvolvimento econômico?

Armênio Guedes: Na medida em que a democracia se livrar... o socialismo se livrar, como dizia o Berlinguer, da violência, abdicar da violência e, realmente, se apoiar nas coisas clássicas da democracia política, que não é democracia burguesa, é democracia, eu acho que o futuro é democrático sempre. Eu só vejo o futuro com democracia. Quando a gente diz que quer um valor permanente é porque a democracia também é uma coisa relativa no tempo e no espaço, não é?

Gildo Marçal Brandão: Mas, Armênio, à primeira vista, provoca uma certa, digamos assim, resistência, uma pessoa comum ouvir que comunismo e democracia podem ser compatíveis. Porque toda a propaganda diz o contrário. E os próprios comunistas, durante muito tempo, fizeram o contrário. Quer dizer, onde ganharam a parada implantaram regimes ditatoriais. Então, eu queria que você me explicasse o seguinte: como, no Brasil ou na Europa, se dá um comunismo que tenha uma combinação com a coisa da democracia? Segundo: esse comunismo que lutou contra a resistência ao regime militar — e foi importante para isso — mas esse comunismo não foi o grande beneficiário da luta pelo fim do regime militar. Quer dizer, é só olhar os governos existentes no Brasil de hoje, foram os homens que fizeram a luta armada que mudaram, [mas] não estou dizendo que continuam, mudaram. Mas, aparentemente, o velho comunismo foi importante na luta contra o regime, mas não foi o beneficiário  [dessa] luta na democracia, nessa democracia de 1984 para cá. Como você, com os seus cinquenta anos de militância comunista, vê esse processo? Você acha que valeu a pena? Acha que isso foi uma boa, uma boa coisa esse caminho?

Armênio Guedes: Eu acho. Quer dizer, a nossa posição de ser contra a luta armada e o fato de nós não sermos beneficiários, acho que não. Nós somos beneficiários porque nós [temos] a capacidade de exercer a democracia. E eu acho que os partidários da luta armada que você diz que foram beneficiados, [foram beneficiados] em parte, porque Lula e o partido trabalhista [Partido dos Trabalhadores] se, em 2002, quando eles venceram a eleição, se eles não tivessem feito a Carta aos Brasileiros [documento assinado em junho de 2002, pelo então candidato à presidência da República, Lula e o Partido dos Trabalhadores, atestando que respeitariam os contratos nacionais e internacionais, caso vencesse as eleições] que era uma mudança total de posição, em que eles já admitiam que tinham que cumprir compromissos institucionais, não eram mais aqueles homens que não assinaram a Constituição de 1988, já era uma posição completamente diferente, pelo menos a parte que dirigia. Eu, inicialmente, pensava que foi o Zé Dirceu que [escreveu a carta]. Mas, hoje, eu estou convencido que o documento... [Há] um livro do [Antônio] Palocci [foi ministro da Economia do governo Lula] que mostra que foi o Palocci o autor da carta e foi o homem que, realmente, deu um conteúdo ao governo do Lula.

Lillian Witte Fibe: Armênio. Espera aí, Natali. Armênio, a Carmem tem muitas perguntas de telespectadores e a gente ainda não deu voz à Carmem, isto é aos telespectadores.

Carmem Amorin: Então, tem uma pergunta, de São Paulo, do Hélio Gaspari. Ele diz o seguinte: o senhor conviveu por cerca de quarenta anos com Luiz Carlos Prestes e acabou de sair um livro agora do historiador russo, Dmitri Volkogonov [(1928-1995)], os sete chefes [Os sete chefes do império soviético] em que revela que o secretário geral do PC soviético, Leonid Brejnev, depois de um encontro com Prestes fez a seguinte anotação sobre o líder comunista brasileiro: “Ok. Mas, ele é um chato”. O que o senhor acha?

Armênio Guedes: Acho o seguinte, esse conceito de chato é uma coisa de relação pessoal. A gente pode dizer que tem o paradigma de chato um sujeito que seja intransigente, que seja monopólico na sua interlocução com outras pessoas, que seja... Pegajoso.

João Batista Natali: Mas, o Prestes era chato? A gente está perguntando para você, Armênio. O Prestes era chato?

Armênio Guedes: Eu convivi com Prestes, morei com ele uns dois anos na mesma casa. O Prestes era solteiro nessa época. Tinha perdido a mulher, aquela... Eu e o Gregório Bezerra dormíamos, éramos três na rua Coutinho, no Rio de Janeiro. Conversávamos muito, batíamos papo e tal. No meu conceito de chato, Prestes não era um chato.

Lillian Witte Fibe: Não era?

Armênio Guedes: Assim, pela aparência.

Lillian Witte Fibe: Não foi?

Armênio Guedes: Pela aparência me parece que o Brejnev era muito mais chato.

Armênio Guedes: Era um sujeito maçante. Quando falava parecia que estava bêbado, não sei se estava. Esse, realmente, eu o achava um chato. Há também muitos jornalistas, gente brilhante que é chata. Alguns colunistas que você não consegue ler porque toda a semana é a mesma coisa. Esse conceito de chato é muito relativo, não é? Depende de quem classifica o outro de chato. Para mim, não era um chato o Prestes não. Ele poderia ser um homem intolerante. Era intolerante, era muito intransigente. Mas era um homem afável, educado. Conversava de uma maneira cordial e tal. Eu mesmo, depois que Prestes rompeu com o Partido, e isso aí é o lado intolerante dele, não é? Ele rompia relações pessoais com as pessoas e ele não falava. Olha que eu conhecia bem o Prestes, me dava muito bem com a irmã dele, com a filha dele. E, no enterro do Gregório Bezerra, ele tinha feito a tal Carta aos Comunistas, eu estava no velório, ele chegou e eu olhei e disse: "se ele falar comigo eu falo com ele. Se ele não falar, eu não falo". Eu sou baiano, pobre e orgulhoso [risos] e educado. Se falar comigo, eu falo, mas também não fiz nenhum ato. Ele fingiu que não me viu. Tudo bem. Quer dizer, é um homem desse tipo, não é?

Lillian Witte Fibe: Ele fez cultura. Fez escola no "partidão" com esse negócio..

Armênio Guedes: Agora, eu sabia que ele...Várias pessoas me disseram que conversavam com o Prestes e ele dizia que: "desse pessoal do Partido aí, o único que eu respeito, não concordo com as idéias dele, mas respeito, é o Guedes, porque ele diz o que pensa".

Lillian Witte Fibe: ...Na cara das pessoas e não vai esperar no aeroporto próximo para ficar cochichando antes.

Armênio Guedes: Eu discordava do Prestes e da maioria do Partido naquele período pré-1964, tive várias discussões com o Prestes sobre isso porque ele queria dizer que o Jango era social conciliador e, de outro lado, estava o Lacerda. [Ele falava] que nós devíamos aproveitar, saber dos dois para sair pelo meio, não é? Era o nó húngaro, ele achava que em política também se podia fazer isso, e isso está errado. Nós estamos desse lado de cá. Nós estamos no universo do Jango, no universo da democracia. No universo das pessoas que querem as reformas. Agora, o que eu não concordo é com essa política que vocês estão levando de procurar um confronto com a direita porque o Prestes dizia: “se eles levantarem a cabeça nós esmagamos a cabeça”. Eu falava: "não vai ser assim".

Lillian Witte Fibe: Esmagar a cabeça não é legal. A gente vai fazer mais um intervalo, Armênio, lembrando que a memória do Roda Viva está disponível em nosso site: www.tvcultura.com.br/rodaviva onde você pode...

Armênio Guedes: Não era um chato.

Lillian Witte Fibe: Já ficou claro. No Memória Roda Viva você pode pesquisar o conteúdo do nosso arquivo e também mandar e-mails com críticas e sugestões. A gente volta já, já!

Lillian Witte Fibe: E a gente está entrevistando o jornalista e ex dirigente do Partido Comunista Brasileiro, Armênio Guedes. Armênio, eu estou roendo as unhas aqui para lhe perguntar sobre Solzhenitsyn [Alexander Solzhenitsyn (1918-2008) escritor russo e ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1970. Denunciou, em seus livros, a ditadura stalinista. Entre suas principais obras estão O primeiro círculo e Arquipélago Gulag]. Ele foi praticamente o seu contemporâneo, não é? Você morou em Moscou, ele foi sepultado com todas as honras de Estado na semana passada na Rússia e tudo o mais, você teve contato com a obra dele? A obra dele foi importante para suas reflexões sobre o comunismo? As denúncias dele sobre o Stalin, stalinismo, ou não?

Armênio Guedes: As denúncias dele sobre o Stalin e o stalinismo são bem avançadas para o seu tempo. Ele  ganhou o Prêmio Nobel em 1970...

Lillian Witte Fibe: Ele foi um contestador.

Armênio Guedes: Não o conheci. Só quando ele surgiu com o Prêmio Nobel.

Lillian Witte Fibe: Você não teve o contato antes.

Armênio Guedes: Não, não. Eu conheci mais a discussão e a repercussão que teve na França. Eu estava em Paris nessa época.

Lillian Witte Fibe: Então, não te surpreendeu aquilo, naquela época?

Armênio Guedes: Não, não...Mas quando houve a discussão do 20º Congresso, no Brasil, uma discussão que estava à margem da direção do Partido Comunista, do órgão central do partido e que foi [promovida pelos] jornalistas do jornal que se chamava Voz Operária e teve até um artigo chamado "Uma discussão que está em todas as cabeças" [escrito por João Batista de Lima e Silva, redator do jornal, sobre o Relatório Kruchev e os crimes de Stalin] que o Partido estava querendo conter... O Arruda Câmara tinha sido delegado do 20º Congresso, voltou e não reuniu o comitê central para prestar esclarecimento, não é? Eu acho que também não estava ainda muito a par das coisas, e tal. A verdade é que a discussão brotou e todo mundo começou a falar e todos os jornais do partido começaram, livremente, sem controle da direção, sem censura da direção, como era até então...

Lillian Witte Fibe: Carmem. Você tem uma outra pergunta, não tem?

Carmem Amorim: Tenho sim. A pergunta é do Heródoto Barbeiro, que é da Tv Cultura e da rádio CBN: "Luis Carlos Prestes, em 1934, quando morava em Moscou, foi aceito no Comintern e eleito para a executiva da Terceira Internacional, uma entidade controlada pelos soviéticos para apoiar os partidos comunistas do mundo. Até que ponto o Comintern influenciou a direção do Partido Comunista Brasileiro, já que Prestes era o seu secretário geral? 

Armênio Guedes: Prestes... Primeiro, em 1934, ele entra no Partido Comunista Brasileiro. E entra por imposição dos russos, dos soviéticos, não é? Porque o Partido Brasileiro, durante os anos 1920,  depois da Coluna Prestes, tinha uma posição anti "prestista". Achava que o Prestes [tinha] uma tendência pequeno burguesa na revolução, não reconhecia o papel da classe operária, dos comunistas à frente da revolução. E o Prestes, nesse período, nos anos 1930, 1932, estava exilado. E, em 1932, ele teve contato com membros da Internacional que formavam o Bureau Sul-Americano Internacional Comunista, em Montevidéu. Ele conseguiu, depois de ter trabalhado como engenheiro na Argentina, ser contratado para trabalhar como engenheiro na União Soviética. Ele vai em 1932 para a União Soviética e lá... Na realidade, o que Prestes queria, já nesse momento, depois de ter feito um manifesto anti-imperialista, era saber das coisas que estavam se passando na União Soviética e discutir, na Internacional Comunista, o problema do Brasil. Ele forçava por todos os meios, mas era difícil aquilo, até que ele conseguiu uma brecha. E ia às reuniões da Internacional e tal e era tratado como general sul americano rebelde. Até que um dia o [...] que era o secretário geral do Partido Comunista, conheceu o Prestes e teve uma conversa com ele e disse: “mas como esse homem não é do Partido Comunista?”. E obrigou os comunistas brasileiros a publicarem, na Voz Operária, que era o jornal conhecido do partido, a admissão de Prestes como membro. E só em 1936, no 7º Congresso da Internacional, ele é eleito para a comissão executiva da Internacional Comunista. E, logo em seguida, vem para o Brasil, em 1935... Mas antes, já antes de ser da Internacional, vem para o Brasil com a missão de organizar a Aliança Nacional Libertadora e organizar uma insurreição. Porque todas as condições, segundo as informações que Partido Comunista dava aqui, e que eram informações não verdadeiras, como se diz na linguagem política de esquerda, eram "baluartista”, de que havia focos de... Um secretário do Partido, nessa época, era um baiano, Antônio Maciel Bonfim, ele fez uma exposição para os membros da Internacional Comunista com mapas do Brasil e ia botando as bandeirinhas onde tinha focos revolucionários no Brasil. Diz o Prestes que quando acabou [a exposição], o Brasil estava coberto de bandeirinhas vermelhas, quer dizer, a revolução estava madura no Brasil, bastava organizar. E o Prestes veio com essa missão, organizar. [Mas] a informação era falsa, não tinha condições do Brasil criar o exército nacional revolucionário popular. A Aliança tinha tido um período muito curto de vida, foi logo posta na clandestinidade. E se transformou no que se chamou hoje a "intentona derrotada", como qualquer sujeito de bom senso naquela época poderia imaginar. Agora, então, essa é a sua origem dentro do Partido Comunista. Ele foi admitido na Internacional Comunista... Mas os partidos comunistas, eles não eram de uma qualidade do partido comunista, eram membros da Internacional Comunista. Tanto que os partidos eram partidos que representavam a Internacional Comunista no seu país para fazer a revolução mundial: era Partido Comunista da França, Partido Comunista do Brasil, Partido Comunista da China, Partido Comunista da Itália etc. Só na época da Segunda Guerra Mundial, quando a União Soviética estava na guerra, é que os russos viram, praticamente, que os partidos comunistas deviam ser partidos nacionais e não partidos ligados a uma organização internacional. Eles  viram que isso era também uma contrafacção; que isso favorecia o combate aos partidos comunistas como agentes de uma potência estrangeira. Então, o [Partido Comunista] Brasileiro, só nos anos 1950 trocou o seu nome para Partido Comunista Brasileiro e não do Brasil. Para quem não entende essa... E claro que, mesmo depois de ser Partido Comunista Brasileiro, o vínculo [continuou], nós éramos filhos do partido soviético. Como dizia o Berlinguer algum tempo depois: "cria do Partido Comunista da União Soviética". Mas ficamos adultos e independentes... Quer dizer, nós não chegamos a tanto, não é?

João Batista Natali: Posso só complementar uma pergunta que começou a ser feita pelo Gildo e acho que é importante. Obviamente, o Partido Comunista brigou na ditadura de uma maneira que não foi armada e assim por diante. Quando começa a acabar a ditadura no final dos anos 1970, o negócio era saber quem poderia sair ganhando. E quem saiu ganhando, dentro da esquerda, foi o PT naquela época. Então, quando você falou a respeito do governo Lula, que você era otimista e assim por diante, até parecia que você estava falando como se, naquela época, você fizesse parte desse grupo que formou o PT. Que foi o partido para o qual quando, finalmente, na briga política para saber quem ficava dono da esquerda, os comunistas perderam e foram praticamente dizimados, e o PT cresceu e teve uma importância eleitoral muito grande. Então, o que eu queria perguntar é o seguinte: você, como comunista daquela época, você tem mágoa do PT, ou não? Ou é um problema que já está resolvido, politicamente?

Armênio Guedes: Não. Eu não tinha mágoa do PT, eu achava que a posição do partido diante do PT era muito errada. Ele, em vez de procurar tomar contato com o PT e discutir, [já] que estava num bloco de forças que era contra a ditadura e queria a redemocratização do país, ele se afastou... Eu não sei se tinha a vaidade dos líderes sindicais do partido que tinham, no caso, um pouco de inveja do Lula, não é?  Eles não queriam admitir... enfim. Eu nunca tive essa posição. Eu achava que a posição do PT, depois que ele se transforma em partido, quando ele se desliga ali de todo o pessoal do PMDB, que era a grande frente contra a ditadura militar, eles tomam uma posição mais sectária que a do Partido Comunista do final dos anos 1950, 1960 e depois da Declaração de Março de 1985... Porque essa foi uma declaração que mudou a linha do Partido Comunista, já que propunha uma via pacífica para o socialismo, que valorizava o parlamentarismo e que o partido devia ser institucional, ou seja, dentro das instituições brasileiras e lutar como tal. Óbvio que com muitas restrições ainda, com o "pé atrás", já que havia o vínculo com a União Soviética. Mas, de qualquer forma, ali, no fim da ditadura, ali já começou a se defenir essa... Nós, os eurocomunistas - que nós nos chamávamos - e os humoristas nos chamavam de “neurocomunistas”, nós não queríamos seguir nem um lado nem o outro. Nós queríamos uma linha independente do partido, não é?

João Batista Natali: Agora, depois daquela grande ruptura, o Prestes tentou se filiar ao PT e o Lula disse: "eu não decido nada, você vai decidir com o diretório do seu bairro, lá no Rio de Janeiro, para saber se eles te aceitam ou não". Era uma maneira muito deselegante de falar com uma pessoa que tinha o porte histórico do Prestes. Você também tentou se filiar ao PT ou não?

Armênio Guedes: Não, não. Mas sempre tive relações amistosas com o pessoal do PT.

Milton Coelho da Graça: Por que os comunistas não ficaram no PMDB, onde eles já estavam?

Armênio Guedes: Essa é uma boa pergunta [risos]. Porque era a velha concepção de frente única para ter a hegemonia, quando viram que não tinha a hegemonia... Mas alguns ficaram, não é?

Milton Coelho da Graça: Mas por que não ficaram todos?

Armênio Guedes: Eu, por exemplo, eu continuei e o Gildo também participou em reunião para fazer programa para o PMDB. Eu trabalhei para o Aloysio Nunes Ferreira, que era deputado na Assembléia e tudo. Mas eu não queria me filiar. Porque desde o 20º Congresso, as modificações que foram feitas no partido... Eu via o que partido tinha umas coisas pela uma abertura, mas continuava o ranço de partido pró-soviético de assalto ao poder. Não era uma partido que via, realmente, na democracia  - e depois isso ficou claro - a democracia como um instrumento, a instrumentalização para se chegar ao... Era o desejável. Porque nela a luta de classes se desenvolvia de uma forma mais rápida, não é? Mas, quando tomasse o poder, aí acabava a democracia e a democracia devia ser proletária. Era uma ditadura, não é?

Lillian Witte Fibe: E a gente está entrevistando o jornalista e ex-dirigente do Partido Comunista Brasileiro, Armênio Guedes. Armênio, antes do programa terminar, pode falar o seu segredo de longevidade com qualidade de vida, por favor. Como a gente disse, no começo do programa, para quem pegou o programa no meio, noventa anos. Como se chega aos noventa anos assim, como diz a lenda, sendo comunista?

Armênio Guedes: Tendo sorte.

Lillian Witte Fibe: Só sorte?

Armênio Guedes: Quantas vezes eu atravessei a rua e não fui atropelado por um carro.

Lillian Witte Fibe: Sendo magrinho assim, a magreza também é importante? Diz a ciência, cada vez mais, que a magreza é o caminho do...

Armênio Guedes: Ia preso por acaso e escapava, não é? Fui abordado por um agente da CIA, consegui enrolar o sujeito e escapei. Sorte... Meu irmão, por exemplo, tinha uma atividade menos importante no partido do que eu e, coitado, foi assassinado.  Agora, de resto, eu sigo mais ou menos o conselho de uma tia minha. Quando perguntaram a ela — ela estava numa casa já de pessoas idosas — nesses programas do dia do idoso que aparecem por aí, perguntaram ao que ela atribuía sua longevidade? Era uma mulher muito inteligente, muito competente, foi sogra do Arruda, por acaso. E ela disse: “a três coisas, meu filho”, dizendo para o jornalista, “Cabeça fria, pé quente e barriga vazia”.

Lillian Witte Fibe: Pior é que barriga vazia...

Armênio Guedes: Porque ela comia um pouquinho, não é? Magrinha, ela era.

Lillian Witte Fibe: E você sempre comeu pouco e sempre foi magro desse jeito, a julgar pelas suas fotos.

Armênio Guedes: Agora eu estou gordo, continuo não comendo, mas engordei.

Carmen Amorin: Antônio Carlos Soares, de São Paulo, pergunta o seguinte: o PCB, mesmo na ilegalidade, entre os anos 1950 e 1960, de alguma forma, teve uma enorme influência na vida artística e cultural do Brasil. Foram pessoas ligadas ao PCB que criaram uma dramaturgia nacional, renovaram o teatro, o cinema e a música popular. Fundaram o PCB da UNE, que teve um papel fundamental nisso tudo. Esse papel do PCB tem sido pouco valorizado. Nenhuma força política, nem antes e nem depois, teve papel semelhante em nosso país. Como o senhor analisa?

Armênio Guedes: Eu até fiz, uma vez, um artiguinho na Gazeta Mercantil que tinha o seguinte nome: “Pródiga nas artes, madrasta na política". Porque, realmente, veja, não foi só no Brasil, isso foi no mundo inteiro. Se você pegar a França e a Itália, no próprio Estados Unidos, a influência do Partido Comunista na mobilização dos intelectuais foi enorme. E eu acho que foi porque os intelectuais, as pessoas esclarecidas sempre pensam no futuro da humanidade, aquele futuro que nós defendíamos utopicamente; o horizonte distante. A verdade é que... Isso, depois, foi se transformando numa coisa que ficava só... Tem um socialismo real e um dia a gente chega lá. Mas, o socialismo real era cacetada. Eu não digo nem que fosse só uma modificação dos homens, foi uma coisa que foi imposta pela vida também. Porque os comunistas chegaram ao poder, os bolcheviques e foram 14 nações que interviram [contra], aí veio a guerra civil. E, depois, o terror e as lutas internas no partido, a briga no partido. Podia se construir o socialismo no país ou [deveria ser] como Trotski queria: a revolução em todo mundo e tocar fogo. Quer dizer, a política produziu, então, o autoritarismo, a violência e o terror contra os chamados inimigos do povo e do proletariado, não é? Nas artes não. Nas artes, o sujeito era inspirado pelas aspirações e o imaginário de um mundo diferente, um mundo de igualdade, de fraternidade, de paz. Eram finalistas esses caras. Eram finalistas no sentido de que a humanidade marchava para isso, era uma fatalidade. Alguns até que criticavam, diziam assim: se era uma fatalidade o socialismo para que criar um partido para lutar pelo socialismo? Ninguém cria um partido para provocar as fases da lua, não é?

Maria Inês Nassif: Armênio, eu não sei se é impressão minha... Bom, você foi uma pessoa importante no movimento pela anistia no exílio, que foi como se conseguiu denunciar o regime. Eu queria que você contasse um pouco disso para a gente. E queria que me respondesse o seguinte: no final das contas, esse movimento pela anistia acabou sendo o grande congregador das esquerdas que estavam lá fora, independentemente da divergência de pegar em armas ou não, ou da tática de derrubar a ditadura, foi o grande catalisador da oposição ao regime militar lá fora, não é?

Armênio Guedes: Foi, foi sim. Por exemplo, quando... Para você ter uma idéia de como isso se desenvolveu. Eu, quando cheguei no Chile, tinha uma garotada, principalmente de estudantes saídos de São Paulo, estimo eu, que foi a massa maior de exilados no Chile. Eu ali, representando o "partidão", uma coisa horrorosa para eles, aquela coisa velha, e sei lá, conservadora, da revolução conservadora. Mas conversava com eles e dizia: “olha, eu estou aqui para conversar com vocês, não estou aqui para discutir a minha ideologia ou a sua ideologia. Se a ditadura deve ser derrubada, se nós devemos vencer a ditadura politicamente através de uma mobilização de massa, tem que começar lentamente e tem que partir de que nós fomos derrotados. Temos que ter paciência, não é só audácia. Não é isso que nós queremos discutir. É como organizar a denúncia da ditadura, os crimes da ditadura, não é? Vamos mobilizar a opinião pública mundial para ser um fator importante, uma pressão de fora para dentro, no sentido de apressar o fim da ditadura, não é?”. E quando ia fazer nove anos a ditadura, nós resolvemos fazer uma semana de denúncia dos crimes da ditadura, do que significava a ditadura para o Brasil. Nós já tínhamos várias coisas: tínhamos programa em rádio. Então...

Maria Inês Nassif: Isso no Chile?

Armênio Guedes: Isso no Chile. Nessa reunião, que foi na [...], chegamos lá e tinha 28 organizações de esquerda representando o grupo brasileiro no Chile, o grupo de exilados, não é? Começou a reunião, foi um tumulto tamanho e ninguém se entendia. Partidão, sentado ali e eu ouvindo aquilo. De repente, um mais tino disse: “bom, vamos parar um pouco, vamos ver como a gente organiza essa reunião porque assim não vai dar não. Nós não vamos fazer nenhuma semana de denúncias da ditadura aqui”. Aí pararam e tal. Estava sentado lá e chegou o Amarílio Vasconcelos, que tinha saído da direção do partido e disse: “olhe, Guedes, o pessoal está querendo que você vá dirigir a reunião porque...” E eu disse: “eu? Com essa esculhambação que está aí, eu não vou não. Agora, se vocês quiserem fazer uma coisa organizada, aí eu aceito”. Ele disse: “não. Então tá, eu vou lá”. Foi lá e tal".  Ai, eu disse que eles precisavam aceitar algumas regras que eu ia dizer. Foi lá, voltou e disse: “não, nós insistimos que seja você. Insistem que seja você”. “Tá bem, vamos lá!”. Sentei disse: “olha, três coisas aqui: vamos, primeiro, organizar uma ordem do dia. Segundo, só fala quem pede a palavra. O que pede a palavra é que fala, não é permitido apartes. E terceiro, a gente tem que resolver as coisas discutidas." Aí todo mundo concordou e em vinte, quinze minutos, nós acabamos a reunião porque não tinha nada que justificava. Era para fazer uma reunião em tal lugar; fazer um comício denunciando as pessoas que tinham sido assassinadas pela ditadura.

Maria Inês Nassif: Mas, vocês coletaram os dados que foi a base, depois, dos arquivos de tortura?

Armênio Guedes: Claro. Então, por exemplo, o Serra, que era muito ativo, era um dos cabeças disso. Nós tínhamos um boletim de... Chamava FBI - Frente Brasileira de Informação... Tinha um programa na rádio da CUT. Tínhamos um comitê de solidariedade para com as pessoas que chegavam. Chegamos a organizar um restaurante onde as pessoas iam comer, os refugiados iam comer mais barato, mas, ao mesmo tempo, era uma fábrica de alimentação para fornecer alimentação para os restaurantes de fábrica, não é? Enfim, nós tínhamos muita atividade. Fazíamos muita coisa.  Mas depois que chegamos a esse acordo, esse comitê a que o Serra se referiu aqui era, realmente, uma coisa muito lúcida, muito unitária. E nós ficamos não só companheiros, como amigos e fazíamos o nosso trabalho... Tinha uns "malucóides" ainda, aqueles que usavam boina, [com foto ou estrela de] Che Guevara e tal. Mas, acabavam trabalhando e fazendo alguma coisa dentro daquela linha geral. Isso nós conseguimos. E quando houve o golpe e nós fomos para o exterior... Eu, por sinal, tive a sorte de não estar em Santiago porque tinha ido para uma reunião do Comitê da Paz em Moscou. E foi lá que o golpe me pegou. Então, isso facilitou o meu trabalho. Eu voltei para Paris. Em Paris fiquei como dirigente de um grupo comunista, e aí fizemos um trabalho... Meu trabalho lá era um pouco diferente porque tinha que ficar clandestino, um erro do partido... Devia ter tirado logo o meu carnê de refugiado, e aí poderia trabalhar no meio de todo mundo.

Lillian Witte Fibe: Armênio. O nosso tempo, infelizmente, acabou. E a gente quer agradecer muito, sem querer te interromper já te interrompendo, como diria o Jô Soares. A gente quer agradecer muito a sua presença aqui, hoje, no nosso programa. Queremos agradecer a bancada de entrevistadores. Queremos explicar para o telespectador que, quando o nosso entrevistado se referiu ao Serra, é porque o governador de São Paulo, José Serra, apareceu aqui no estúdio de surpresa e ficou vendo o programa. Eles são muito amigos, há muitos anos, e por isso houve essa referência, porque o governador apareceu no estúdio de surpresa.


Inclusão