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Fonte: Revista Princípios, nº 35, nov/94-jan/95, págs: 16-22.
Transcrição: Diego Grossi
e HTML: Fernando A. S. Araújo.
O recurso à diversa realidade entre Europa e América Latina, como defesa perante o eurocentrismo, já era uma característica do movimento intelectual latino-americano daqueles anos. Já estava, por exemplo, no discurso de Haya. Só pouco depois, com Mariátegui, pôde registrar-se a passagem a uma atitude de toda uma perspectiva cognitiva, embora não seja claro se isto foi o produto de uma elaboração consciente. Não foi, em todo caso, sistemática.
Anibal Quijano, organizador e comentarista de José Carlos Mariátegui, Textos básicos, p. IX.
Já se discutiu muito sobre as contribuições da Mariátegui(1), com vistas a sua formação, maturidade intelectual e política, compreensão do marxismo e dos muitos temas que abordou com originalidade e espírito criativo, relações com o mundo histórico circundante e exterior, integridade, penetração e denodo pessoal. Nenhum dos assuntos e atributos chegou a ser esgotado. Ele escapou, entretanto, às falhas da memória coletiva e sua presença superou todas as formas de isolamento que ameaçaram a sua obra ainda em vida. Isso aconteceu porque foi mais que “um fermento radical” da ordem – um autêntico revolucionário, que exerceu influências pioneiras com raízes profundas na realidade americana.
Interessa-nos o que ele representaria, hoje, graças às peculiaridades de seu pensamento e ação, nesta trágica etapa de negação do socialismo. Parece que o capitalismo oligopolista automatizado e “global” suprimiu para sempre diversas correntes do anarquismo, do socialismo e do comunismo. O marxismo, em particular, espelharia não a Humanidade em vir a ser e o seu futuro, mas as quinquilharias arcaicas dos meados do século XIX, na Inglaterra e na França. Estraçalhado pelo apogeu da Guerra Fria seria o índice de debilidades congênitas e dos paradoxos que esmagaram “ideólogos dogmáticos” com suas fantasias exóticas. Adeus ao marxismo e às suas ilusões!…
É uma aventura arriscar-se às indagações que proponho. Contudo, o significado do marxismo lançou centelhas luminosas sobre os dilemas teóricos e práticos com os quais Mariátegui se confrontou, embora em instantes que descortinavam fortes esperanças e nos quais as querelas apenas desvendavam os germes de uma evolução previsível. Ele não usava anteparos estreitos e sucumbiu, menos que outras figuras marcantes do marxismo, às acomodações que cegaram ou paralisam sucessivas gerações de revolucionários experimentados.
É obvio que Mariátegui não engoliria a mistificação do “socialismo está morto”. Ele sabia amadurecidamente que o capitalismo não consegue resolver os “problemas humanos”, que ele gera e multiplica. O “axioma” de Schumpeter, segundo o qual o capitalismo só sucumbiria por seus êxitos, jamais caberia em sua cabeça. Sua convicção era clara: os progressos do capitalismo redundam em aumento geométrico da barbárie. Essa realidade sempre foi subestimada de uma perspectiva eurocêntrica. Um marxista peruano, todavia, não tem por que enganar-se a respeito. Basta olhar para trás ou para o presente. Êxitos e progressos trazem consigo contradições crescentes — no extremo fatal implosivas. Uma civilização que repousa na riqueza, na grandeza e no poder por quaisquer meios exige um sistema social de exclusão, opressão e repressão. Ela pode manter-se e reproduzir-se liberando suas potencialidades fascistas e racistas, ou seja, a devastação da natureza, da humanidade e da cultura. É sua estrutura, funcionamento e ritmos históricos que arruínam seus alicerces e sua continuidade. Não importa se os agentes históricos sejam proletários ou todos os que repudiam a iniquidade como estilo de vida.
Por isso, o diálogo com Mariátegui deve possuir a natureza de uma opção lúcida. O que está dado como uma “sociedade aberta” ou como uma “ordem social democrática” fecha-se para a imensa maioria (silenciosa e contestadora) e só oferece “democracia” às elites no poder (isto é, às elites das classes dominantes). A questão não abarca todas as técnicas, instituições e valores sociais dessa civilização. Mas seus fundamentos axiológicos e tecnológicos, asfixiantes e incoercivelmente corrosivos. Portanto, nos dias que correm, Mariátegui — ao contrário de tantos anarquistas, socialistas e comunistas — encontraria dentro de si a indagação fundamental: como representar e explicar a totalidade histórica intrínseca ao capitalismo monopolista automatizado? O que ele promete de novo à evolução da humanidade e da “civilização pós-moderna”? O que ele reserva aos de baixo, à “escória”, “ao trabalhador mecânico” inativo, aos estratos inferiores e intermediários das classes médias? O que ele remete e arranca da periferia, subcapitalista ou em desenvolvimento capitalista, e àqueles países nos quais a lenta transição para o socialismo não foi ainda arrasada? Ciência, tecnologia, tecnocracia racionalizada foram, por fim, colocadas a serviço de “homens livres e iguais” ou servem apenas à concepção romana de riqueza, grandeza e poder — repetida no “destino manifesto” dos Estados Unidos e na conglomeração de potências que encarnam a mesma aspiração de atingi-la? E qual é a essência civilizatória desse capitalismo ultramoderno? Ele contém a propensão a abolir as classes, a dominação de classes e a sociedade de classes? Ou as oculta por trás de uma miragem pela qual a “ideologia” escamoteada reaparece com vigor nunca pressentido no “neoliberalismo”?
O livro 7 Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana e em Defesa do Marxismo delimita a postura de Mariátegui. O intelectual orgânico da revolução não se trai e tampouco atraiçoa os ideais, as certezas e as esperanças que a tornam uma realidade próxima ou remota. Os que têm sorte vivem os momentos decisivos da revolução. Os que devem trabalhar por seu advento ou contra as adversidades que os detêm e parecem suprimi-los “para sempre” multiplicam sua capacidade de luta política e refinam as suas qualidades críticas. De um lado, porque precisam ir até o fim e até o fundo – sem ambiguidades e fraquezas, que facilitariam a desmoralização e a adesão aos vitoriosos por circunstâncias. De outro lado, porque as revoluções proletárias irromperam em sociedades de desenvolvimento desigual, atrasadas diante dos recursos da civilização capitalista irremediavelmente pobres, “colonizadas” ou neocoloniais e dependentes. O marxismo não compendia receitas, seja da “sociedade ideal”, ou seja dos meios para chegar à transição propriamente e ao comunismo. As ilusões eurocêntricas difundiram uma ótica revolucionária que não procede de Marx nem de Engels, identificados com os proletários e suas miseráveis condições de vida na passagem da reprodução simples para a acumulação acelerada. Nada ruiu “para sempre”. O que se evidencia são as dificuldades inerentes a uma revolução tão complexa, que tem em mira uma nova sociedade, uma nova civilização e um novo ser humano.
Vejo em Mariátegui o intelectual marxista mais puro e apto para perceber o que sucedeu; e, se estivesse vivo, para traçar os caminhos de superação que ligam dialeticamente a terceira revolução capitalista à plenitude madura do marxismo revolucionário. Marx referiu-se uma vez aos vários marxismos possíveis. O erro decorrente das primazias eurocêntricas e bolchevique, no seio do marxismo como filosofia política, emana de uma obnubilação histórica. Acreditam na inevitabilidade do que deveriam provocar e orientar como agentes coletivos; esqueceram a afirmação essencial de Marx sobre os diversos graus do desenvolvimento capitalista e seus impactos “naturais” sobre o curso das revoluções, capitalista e socialista. Simplificando o marxismo, complicaram suas tarefas práticas e bloquearam ou enfraqueceram os ritmos, históricos, das duas revoluções, encadeadas por Marx e Engels objetivamente e na noção concreta da “revolução permanente”. As distâncias que separam Mariátegui de Haya de La Torre(2), por exemplo, originam-se de sua compreensão sem censuras do marxismo. Só ele podia compreender os ritmos lentos e graduais da revolução peruana e aceleração contínua de processos que afetavam o nacionalismo, o populismo, o antiimperialismo, mas não terminavam nele. A vitória destes só fincava no solo histórico as premissas históricas do ciclo revolucionário decisivo, que Haya não pressentia nem desejava. Patenteia-se, pois, o quanto Mariátegui transcendeu à órbita do marxismo triunfante do seu tempo e o quanto ele compartilha conosco na necessidade de ir mais longe ou perecer.
O desafio frontal do entroncamento do fim do século XX com o século XXI refere-se ao socialismo e ao comunismo. Nunca o que parece morto esteve tão vivo e chamejante. As contradições do capitalismo monopolista da era atual encurtaram o espaço até da social-democracia associada à reprodução de ordem. A Guerra Fria e a recuperação de hegemonia norte-americana somam-se aos conglomerados capitalistas continentais e à expansão sem precedentes do mercado, sob o impulso da interação do capital financeiro, empresas gigantes e tecnocracia automatizada. O capitalismo monopolista perdeu, no entanto, a faculdade de esconder-se por trás do espelho. Ele não pode ocultar ideologicamente as periferias que nascem e crescem dentro e através dele. O “neoliberalismo” reduz-se a uma representação rudimentar do modo de produção capitalista e os abusos internos e externos crescentes não alimentam qualquer utopia propriamente dita (“liberal e libertária”). Assim ao retirar o socialismo e o comunismo da cena histórica, inocula e insufla nas massas insatisfações anticapitalistas. Ao mesmo tempo, os países que permanecem fiéis ao marxismo e ao comunismo (apesar das aparências), como China e Cuba, são focos de tensão e desempenham os papéis de “aliado perigoso” ou simulam o papel mais arriscado de pseudo-satelização imperialista. Convivemos, pois, com uma situação histórica rica para o socialismo e o marxismo revolucionário. Circunstâncias que fomentam o inconformismo a partir de dentro e desembocam em uma das saídas possíveis, seu enlace com o socialismo e o marxismo, como alternativa para uma ordem social totalitária que ignora suas estruturas e dinamismos reais. Os países que ainda não se desprenderam do ventre materno revolucionário fazem tudo o que podem, ainda de que forma oscilante, para conciliar as pressões “neoliberais” com a continuidade e o fortalecimento da pré-transição para o socialismo. Ao prepararem-se para “ganhar fôlego”, definem seu próprio campo no plano mundial e contra as tendências da “globalização capitalista”.
Mariátegui não chegou a conhecer esse trâmite trágico. Mas intuiu para onde caminhava o capitalismo monopolista — visível em suas entranhas na América Latina, e no Peru de modo especial — e apreendeu com dolorosa clareza os entrechoques entre a teoria e a prática marxista na URSS (e como eles se equacionavam externamente, graças à arquitetura e à relação entre meios e fins na Internacional Comunista). Sempre foi discreto na defesa intransigente do marxismo. Sua discrição, porém, procedia de um embrião dialético, não da ingênua propensão para forjar lealdades destituídas de sentido revolucionário. Afastou-se o quanto pôde de algo como a heresia vulgar. Sem confundir, porém, o marxismo com os desvios mais ou menos graves da revolução russa pós-bolchevique e sua irradiação internacional. Suscitou desconfianças iníquas e terminou envolvido em incompreensões que culminaram em seu “congelamento programado”. Essa experiência dramática, que se deu com outras figuras de projeção equivalente, conferiu maior profundidade à sua ótica marxista. Eu a encaro como o fator primordial da grandeza de sua perspectiva histórica e do conteúdo cerrado adquirido por sua visão do marxismo, em todos os seus desdobramentos.
O sofrimento, a auto-superação e a sublimação consciente de esperanças e decepções permitiram-lhe interpretar o presente como antecipação do futuro. Evitou as banalidades, que não cabiam dentro de si mesmo e em relação com o complexo mundo bipolarizado. E livrou-se, como Gramsci, dos grilhões que poderiam, em outras circunstâncias psicológicas, morais e políticas, forçá-lo à capitulação ou à alienação. Demonstrou não só o seu estofo. Afirmou-se como intelectual marxista por excelência da América Latina. É pena, por isso, que tenha se contido com tamanha hombridade diante da exposição de suas descobertas e inquietações. Além de sua condição saliente de “apóstolo do marxismo”, ele rastreia as premissas históricas do marxismo como teoria e prática, no universo com o qual terçou suas armas (delimitando, implícita ou explicitamente, como as referida premissas se definem, concretamente, nas Américas Latinas do seu tempo).
Nada nos põe mais longe da “morte do socialismo” e do “fim do comunismo”. Como pensador, nunca simplificou as coisas para ninguém. A democracia não era um “valor universal”, um valor em si e por si. Na mais precisa tradição clássica do marxismo, ela não era uma instituição a ser herdada, mas construída coletivamente pelos seres humanos, ao longo de um movimento interrompido exatamente pela dominação de classe da burguesia. A transição deveria quebrar a inércia e repunha o processo em termos de novas contradições, pois é da natureza do socialismo que a maioria componha, de fato, a premissa lógica e histórica de sua constituição e dissolução. A sua plenitude dependeria, porém, dos meios e técnicas socialistas de auto-emancipação coletiva suscetíveis de sustentar, intensificar e renovar o advento do comunismo. A luta de classes teria de exaurir-se historicamente para que isso acontecesse. O jargão dos “traidores do marxismo”, que racionalizam sua escabrosa conversão “democrático burguesa” com fórmulas vazias, está fora de lugar e pressupõe uma mistificação inqualificável. Desse ângulo, Mariátegui é o farol que ilumina, dentro da pobreza e do atraso da América Latina, os limites intransponíveis da civilização capitalista e as exigências elementares da “civilização sem barbárie”, que as revoluções proletárias não lograram concretizar. Era cedo demais? Elas perderam o rumo? A essas perguntas só a história em processo poderia responder. As equações de Mariátegui classificaram precisões contidas na tradição clássica, paradoxalmente como se ele fosse um Max Weber a serviço do comunismo (repetindo, de certa maneira, a tragédia de Gramsci).
É natural que o Peru ocupe uma posição privilegiada no pensamento de Mariátegui. Ele procede, não obstante, rente à tradição marxista — o Peru não se desloca das várias Américas e da inserção passiva-ativa de todos os envolvidos nos mundos históricos dos “conquistadores”, antigos e modernos. A sua condição de peruano é básica. Ele tinha atrás de si e sob seu olhar uma grande civilização, o destino dos seus portadores e os seus escombros. Isso o impelia ao estudo do passado e do presente que nenhum outro marxista de envergadura poderia realizar. E o obrigava não só à busca de analogias e de diferenças que procediam ou da situação homóloga das “nações emergentes” das Américas de matriz ibérica, ou do caráter variável da colonização e da independência como processo de longa duração. Sua inteligência sociológica foi, portanto, impulsionada para a investigação macro-histórica de modelo marxista. Ela percorre um vasto horizonte e tem de esclarecer-se na Europa, como fonte original do tipo de colonização direta, posta em prática pelos invasores-exploradores, e nos Estados Unidos, pioneiros de um estilo de imperialismo despótico e devastador.
O resumo acima é supérfluo e desnecessário. Arrisquei-me a fazê-lo porque ele explica o que o intelectual polimórfico procurava em seus estudos na Europa e em suas investigações concentradas. Ele não se aferrou ao marxismo por uma sedução da moda. O seu percurso europeu se inicia sob os auspícios intelectuais diversos, que podiam encaminhá-lo por outras vias menos ásperas. Os 7 Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana permitem sondar por que ele mergulhou sem retorno nessas vias e, depois, ultrapassando-as, se propôs a enriquecer o marxismo fora e acima dos eixos eurocêntricos. Os que leram o breve, mas pujante, ensaio de Marx sobre a Índia arriscariam um paralelo – mas ele é totalmente falso. Ainda na órbita dos escritos de Marx, não seria descabida a Introdução à Crítica do Direito em Hegel, que inaugura no pensamento europeu a temática da sociobiologia da dependência nas relações da Alemanha com a França. Ora, Mariátegui explorou essa temática em uma direção menos dolorosa e cruel. O paralelo, embora brilhante, também é falso. A atração de Mariátegui pelo marxismo, malgrado outras influências divergentes e em dados momentos muito fortes, brota da descoberta de uma resposta à sua ansiedade de observar, representar e explicar processos históricos de longa duração e de uma proposta revolucionária concomitante, que vincula dialeticamente passado, presente e futuro. Colonização e descolonização, revolução social e ser peruano e latino-americano entrelaçavam-se irreversivelmente. A captura da inteligência de Mariátegui não provinha da escala de grandeza de Marx como filósofo, crítico da ciência-social existente e combatente do socialismo revolucionário consequente. Ele deitava raízes mais profundas no esclarecimento do ser, no entendimento integral de uma civilização nativa estiolada pela colonização e na necessidade de romper com um opróbrio que esta só explicava parcialmente.
Acredito que essa abordagem global apanha propensões intelectuais abertas (por seu talento e pelas oportunidades culturais da sociedade peruana e do mundo europeu) e decide as razões da opção pelo marxismo de um intelectual refinado, da vasta cultura e de muitas inquietações, e elucida por que a escolha chegara tão fundo à mente e ao coração de Mariátegui. Entenda-se, porém, que essas mesmas razões sobrepunham-se a um impulso criador igualmente agudo, que o retirava da condição de prosélito. À medida que suas indagações avançam, ele se mede com a tradição marxista mais pura e exigente; e se eleva, dentro dos marcos culturais peruanos e latino-americanos, ao nível dos fundadores do marxismo, como produtor de conhecimentos e homem de ação. Se tivesse vivido até hoje, travaria muitos embates a favor e contra deslocamentos das revoluções proletárias e não fugiria às constrições impostas por esta época, que alarga e complica as tarefas teóricas e práticas dos que se pretendiam marxistas.
É evidente o que assinala esta última excursão sobre Mariátegui. Após percorrer a epopéia e a queda da civilização inca, e de esquadrinhar os aspectos incisivos da evolução da economia, da sociedade e do Estado no Peru, ele firmou um tirocínio sobre os conflitos de párias, classes trabalhadoras, estamentos senhoriais e classes dominantes, que afirmavam a revolução socialista como o ponto de chegada e de partida de uma nova época. Aprendeu, em vida, que a civilização capitalista possui desproporcional capacidade de autodefesa e de contra-ataque para derrotar as insurreições e para inibir revoluções proletárias vitoriosas em ascensão. Seus dirigentes recorrem simultaneamente ao mercado, à mudança tecnológica, à ciência, à cultura de mercado, à mudança tecnológica, à ciência, à cultura de massa, ao desenvolvimento, e à retração da produção, ao militarismo, às alianças contingentes, ou permanentes, à geopolítica, à diplomacia, à guerra etc. para estraçalhar ou interromper insurreições internas e revoluções promissoras no exterior. Trata-se, portanto, de uma civilização capaz de interferir nos ritmos históricos cruciais e de tirar proveito imediato e de longo prazo dessa vantagem. Ela pode, entretanto, sofrer confrontações internas e externas. Só o socialismo revolucionário pode intervir nesse complexo processo e detonar ações de massas para refreá-lo, enfraquecê-lo e destruí-lo. O movimento socialista não é só uma alternativa de reforma social. Ele irrompe como a única ameaça à existência e à sobrevivência de tal civilização.
A defesa do marxismo de Mariátegui fundava-se nesses dois pólos. Os ritmos históricos desencadeados e regulados no interior e para fora pela civilização capitalista. A capacidade potencial do socialismo de implodir essa civilização — também a partir de dentro para fora —, impondo-lhe ritmos históricos mais rápidos, mais fortes e mais destrutivos. Não é o caso de recorrer-se a incursões comparadas. Os fatos falavam por si (pelo menos até o desfecho da Guerra Fria). Como outros marxistas (e revolucionários nacionalistas não-marxistas), Mariátegui sustentava a previsão de que a erosão iniciada não se recomporia e tenderia a crescer após a Revolução Russa e várias insurreições que eclodiam em toda parte. Nesse contexto, a recuperação da iniciativa capitalista de agressão poderia suscitar palavras-de-ordem: “o socialismo morreu” ou “o comunismo acabou”. Sua base de sustentação empírica e prática seria débil. O horizonte intelectual de Mariátegui estava preparado para repelir tais formulações, malgrado ocorrências divergentes e incongruências na prática socialista serem notórias à sua observação e avaliação crítica. Prevalecia a confiança no socialismo revolucionário e no marxismo, que o convertera em figura mestra legendária dos revolucionários do Peru e das Américas.
Após sua morte veio o golpe fatídico. A URSS investiu demais na Guerra Fria e seus desdobramentos. Retirou compensações políticas valiosas para o chamado mundo socialista. E, em algumas ocasiões, impôs aos adversários derrotas auspiciosas. Estes recorreram aos métodos da luta clandestina, amparados por insatisfações internas, conflitos de raças, etnias, religiões e classes dissimulados e por instituições especializadas na contra-insurgência, legais e religiosas. O colosso que pareceria imbatível foi implodido, provocando sua incapacidade de autodefesa e a conquista pelos aliados dos baluartes que deveriam funcionar como periferia (inclusive na defesa do núcleo soviético). Ocorreu um desabamento por etapas encadeadas. Fortaleceu-se a pseudo-explicação científica do “fim das ideologias” e difundiram-se os slogans sobre “o desaparecimento do socialismo” e a “morte do comunismo”. Como compensação, ofereceu-se o ersatz que repõe o “neoliberalismo” em um universo de oligopólios, conglomerações de sistemas econômicos, e a “globalização” como marca do novo tipo de imperialismo. A análise sociológica desse conjunto de complexos micro e macroeconômicos, sociais, culturais e políticos é uma empreitada difícil. Um dos aspectos salientes tem a ver com a desigualdade dos ritmos históricos, entre a civilização capitalista e a emergente civilização semi-socialista. Os ritmos históricos mais rápidos e fortes deslocaram os ritmos históricos mais lentos e fracos. As forças humanas que sustentavam estes últimos ritmos históricos eram extremamente desiguais. Encerrou-se um período de longa duração da história recente. A vitória de uma civilização, no entanto, não indica a “morte” ou o “fim” da outra. Novas correlações de forças humanas terão de decidir o que irá sobreviver – a civilização com ou sem barbárie, em longo prazo; ou combinações imprevisíveis no presente.
Esse balanço sumário permite indagar: as proposições marxistas mariateguianas absorveriam as fórmulas simplificadoras – “desaparecimento do socialismo”, “fim das ideologias” ou “morte do comunismo” – e seriam complacentes com o “neoliberalismo”? Há um sentido da história, ao qual Mariátegui sempre esteve atento de modo firme e lúcido. O Peru, agora com as Américas ricas e pobres, encontra-se em uma encruzilhada. O capitalismo de nossos dias é, por natureza, concentrador e centralizador. Tem de apoiar-se na opressão e na repressão para reproduzir-se. O desafio impõe-se pela “consciência falsa”, burguesa ou não, disseminada nas elites no poder e entre os miseráveis e os desempregados que se desprendem das classes médias “baixa” e às vezes “média” (segundo os conceitos norte-americanos). O capitalismo não dispõe de uma lâmpada de Aladim para distribuir riquezas e voltar a “padrões dignos de vida” para todos. O “neoliberalismo” consiste, de fato, em um fascismo neocolonial. Constata-se, pois, uma “ironia do destino”. O fantasma das sociedades pobres e subdesenvolvidas da América Latina resultava de uma contradição: fascismo ou socialismo? Neste contexto, as proposições de Mariátegui marchariam como antes, de acordo com a redução de Engels: socialismo ou barbárie? São proposições que não foram varridas pela tempestade. Mariátegui ainda se ergue como um farol, que ilumina o horizonte intelectual e político dos que querem conferir aos latino-americanos a opção pelo marxismo.
Notas de rodapé:
(1) José Carlos Mariátegui nasceu em Moqueguá, sul do Peru, a 14 de julho de 1894. Foi jornalista, poeta e um dos primeiros marxistas latino-americanos. Morreu no dia 16 de abril de 1930. Para uma notícia biográfica ver ALIMONDA, H. H. José Carlos Mariátegui, Coleção Encanto Radical, São Paulo, Brasiliense, 1983. (retornar ao texto)
(2) Haya de La Torre foi o líder do aprismo, corrente nacionalista peruana. Fundou em 1924, no México, a Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA). (retornar ao texto)
Textos de referência:
Bibliografia
MARIÁTEGUI, J. C. 7 ensayos de interpretación de la realidad peruana. Lima, Biblioteca Amauta, 1972 (usei também a edição brasileira do livro, para o qual escrevi uma apreciação sociológica global).
MARIÁTEGUI, J. C. En defensa del marxismo — Polémica revolucionaria. Lima, Bibioteca Amauta, 1980.
QUIJANO, Aníbal. José Carlos Mariátegui — textos básicos (edição comentada). Lima, México, Madri, Fondo de Cultura Económica, 1991.
ARICÓ, José. Mariátegui y los orígenes del marxismo latinoamericano. Cuadernos Passado y Presente, Siglo Veintiuno Editores, 1978.
Inclusão | 16/04/2014 |