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1ª Edição: In Battaglia Comunista, n.° 8, Abril 1952
Tradução: Júlio Henriques.
Colaboração de : António Oliveira
Trancrição: autorizada pelo tradutor.
HTML: Fernando A. S. Araújo
A desinfecção a que consagramos os noventa por cento do nosso pobre trabalho não se completará senão num futuro longínquo e prosseguir-se-à muito tempo depois de nós. Esta desinfecção combate a epidemia, muito difundida e sempre perigosa, dos que, por todo o lado e a todo o tempo, revêem, põem em dia, renovam ou inovam.
Seria inútil e mesmo nocivo especificar ou personalizar, procurar, de perto ou de longe, o lançador de bombas bacteriológicas; trata-se de individualizar o vírus e de lhe aplicar o antibiótico que obstinadamente afirmamos encontrar-se na continuidade da linha, na fidelidade aos princípios, na preferência dada 999 vezes sobre mil à ruminação catequista de preferência à aventura da descoberta científica nova, que exige asas de águia e para a qual vulgares mosquitos se sentem atraídos pelo destino.
Que se inquietem então os frementes voláteis quando, terra a terra, friamente, os trouxermos à altitude modesta que nos é dado atingir, a nós a quem todo e qualquer heroísmo, todo e qualquer romantismo, são interditos; a nós que utilizamos a ironia em vez do lirismo e que nos vimos contraídos a lembrar, de tempos em tempos, às pessoas demasiado fogosas: não brinquem aos faetontes!(1)
Enquanto que muitas têm o histerismo do cálculo sublime, nós experimentamo-lo com a aritmética e verificamos se sabem contar com os dedos.
Pobres daqueles que crêem poder ser, como se diz hoje, os porta-vozes do movimento proletário de classe e que se gabam de exprimir a teoria revolucionária, se não digeriram e não assimilaram ainda a mudança crucial no decurso da qual a nossa doutrina abandonou as posições tradicionais.
Pobres de todos, mas, antes de mais, pobres dos grupos que querem colocar-se à extrema-esquerda do movimento e personificar a luta contra as suas degenerescências. Foi muitíssimo mais fácil aos oportunistas e àqueles que colaboravam com a classe inimiga difamar a «esquerda» acusando-a de ilusionismo, de sectarismo, de extremismo formal, de incompreensão da total dialéctica do marxismo.
A resposta e a defesa da esquerda comunista internacional consistiram e consistem em demonstrar que a recusa das concessões, transacções e manobras não provém duma queda na mística e na metafísica da simplória criança que, como as velhas crenças religiosas, abrem todas as portas com a chave duma única antítese entre dois princípios opostos: o bem e o mal. O «bem», para nós, seria igual a proletariado, o «mal» seria igual a capitalismo: em todos os tempos, em qualquer lugar, outra bússola não seria precisa; o capitalismo, mal absoluto, é sempre este mal — sempre único — , sempre o mesmo, e o resto é vento.
Levámos a cabo longas lutas para demonstrar que não raciocinávamos assim e que tínhamos compreendido «a dialéctica da História viva», demascarando o erro do oportunismo post-leniniano e traçando de forma suficientemente exacta a linha do seu percurso verdadeiro durante trinta anos, da ortodoxia à renúncia.
Não nos perturbarão lembrando-nos que os termos das antíteses se transformam em cada grande fase histórica. Aos que crêem em todas as místicas, àqueles para quem o bem só pode ser o filho do bem, o mal filho do mal — se não os «valores eternos» inscritos na luz do espírito tombariam — nós retorquiremos que, pelo contrário, segundo a nossa doutrina revolucionária, o comunismo é filho do capitalismo e que só podia ser engendrado por ele, e que, apesar disso, e mesmo justamente por isso, o comunismo deve dar-lhe combate e abatê-lo.
Os tempos históricos da mudança e da queda das posições estabelecem-se pelo efeito das condições e das relações materiais, nunca pelo efeito da vontade boba de vigilante de homúnculos(2) ou de grupúsculos que, ridiculamente convencidos da sua própria importância, se designaram a si próprios para controlar que não nos enganemos de caminho.
O Manifesto Comunista teve uma difusão tardia em Itália. No prefácio de 1/2/1893 à edição italiana, Friedrich Engels tinha evidentemente indicado a «comum opinião» de que se tratava dum país e dum proletariado «em atraso». Opinião tão comum e tenaz que a mínima das coisas, meio século depois, teria ainda sido «fazer-se» o segundo Risorgimento, o segundo 1848. E Engels recorda então 1848 para lembrar que esta revolução contemporânea do Manifesto não foi socialista mas preparou na Europa o terreno para a revolução socialista.
Lembramos esta época para nela procurar duas grandes verdades que se situam ao nível do «dois mais dois quatro» mas que é preciso, evidentemente, «re-situar». Ei-las: «O Manifesto presta inteira justiça à acção revolucionária que o capitalismo teve no passado. — A primeira nação capitalista foi a Itália.» Mastiguemos bem: o fim da Idade Média feudal e o início da era capitalista são fixados por Engels na época, não de Walter Audisio, mas de Dante.
Dissemos várias vezes que o Manifesto é uma apologia da burguesia. E acrescentamos que hoje, após a segunda guerra mundial e após a reabsorção da revolução russa, era preciso escrever uma segunda, não em função das filosofias dos valores, que projectam na ideologia burguesa o implacável economismo e o espírito merceeiro próprios à classe e à época, mas porque temos necessidade de fazer a apologia do acusado para concluirmos que é tempo de o condenar à pena capital.
Para o provar deveríamos citar todo o Manifesto. Limitar-nos-emos a repor nove palavras em memória:
«A burguesia teve na História um papel eminentemente revolucionário.»
Ocupemo-nos duma passagem ulterior. Em virtude das exigências da classe dominante, as relações de produção pré-burguesas eram, em certo sentido, estáticas, enquanto que as relações de produção burguesas são impetuosamente dinâmicas. A diferença deriva da ruptura dos pequenos círculos de satisfação das necessidades, das ilhas autárquicas de produção-consumo. Eis a tese tantas vezes enunciada mas quão nova:
«Em lugar das necessidades antigas satisfeitas pela produção local (soletre: lo-cal), outras se manifestam que reclamam, para serem satisfeitas, os produtos de países e de climas mais longínquos.»
O Capital de Karl Marx (que quem tiver horror do cheiro a bafio e a múmia procure grandes textos novos) contém um parágrafo, o 4.° do capítulo I, que, numa dezena de páginas, resume toda a obra e o seu assunto — entendamo-nos: toda a obra escrita e não escrita de Marx, e isto para provocar algum despeito aos mija-cópias da última literatura da moda e os dissuadir de continuarem a escrever. Este capítulo intitula-se «O carácter fetichista da mercadoria e o seu segredo». Para o conhecer é suficiente ser um trabalhador manual analfabeto. Mas para o intelectual que dele se quer tornar mestre uma cinquentena de anos de escola primária podem não ser suficientes.
Como ordem-do-dia do «Parteitag» (Congresso do Partido), em relação ao qual quebram a cabeça aqueles que querem fornecer-lhe uma base «verdadeiramente política» (é favor aclarar a garganta), nós proporíamos: leitura e aplicação — olhando pela janela — do parágrafo 4º, capítulo I.
Marx encontrava-se em presença duma tese já estabelecida pela economia política clássica. Ele nomeia assim a escola que procurou abertamente a natureza da produção capitalista nascente, sem lhe esconder nenhum aspecto, «contrariamente à economia vulgar que se contenta com a aparência... e se fica, de forma pedante, por erigir em sistema e proclamar verdade eterna as ilusões mais banais e mais idiotas de que os agentes da produção burguesa gostam de povoar o seu universo, como o melhor dos mundos possíveis.» Escola vulgar ainda viva, à qual juntamos os grandes economistas do género de Sombart e de Keynes. Marx aceitou por conseguinte uma tese, uma descoberta, da economia clássica: «o valor de troca duma mercadoria é dado pelo tempo de trabalho necessário à sua produção».
A ciência proletária aceita, por um lado, esta verdade; por outro lado demonstra que, se esta verdade contém implicitamente a convicção de que enquanto o mundo for mundo os objectos utilizados pelos homens para satisfazer as suas necessidades terão o carácter de mercadorias, tal «verdade científica» cai ao nível da asserção arbitrária, mística, ao nível do fetiche, quer dizer: ao nível duma mentira, não diferindo em nada das mentiras contidas nas ideologias e nas crenças da época pré-burguesa e que a ciência burguesa ridiculariza. (Esta já não se ri tanto quanto se ria antes. Este fenómeno foi previsto.)
Sigamos algumas das diligências sugestivas de Marx, depois de termos, por nossa vez, antecipado, com um objectivo didáctico, aquilo a que ele queria chegar. Os objectos de consumo não foram sempre mercadorias e encontram-se afectados a um preço e a um valor de troca que provém dos tempos de trabalho que neles são cristalizados — mas não permanecerão sempre mercadorias; uma vez feita a análise completa do modo industrial capitalista de produção, decorre daí não só que não é necessário que todos os objectos que satisfazem as necessidades da nossa existência sejam mercadorias e sejam trocados pelo seu preço e valor, mas que, pelo contrário, num certo momento, eles deixarão de o ser.
Sabemos desde a escola primária o que este enunciado significa «politicamente». Ele significa isto: o modo de produção capitalista não é eterno e destruir-se-á com a vitória da classe operária. Ele terá desaparecido quando não existirem mais nem valores de troca nem mercadorias, quer dizer: quando deixar de existir a troca mercantil dos objectos de consumo, tal como a moeda.
Isso significa qualquer coisa de mais preciso: não pode existir no futuro uma economia que seja ainda mercantil e que já não seja capitalista. Antes do capitalismo houve economias parcialmente mercantis, mas o capitalismo é a última deste género.
Adversários obstinados da novidade nós demonstraremos, a quem souber ler, que isto estava escrito já.
Disponho, por exemplo, duma vela e tenho necesidade de luz. Sirvo-me da vela e acendo-a: consumi-la-ei em poucas horas. Até aqui nada de misterioso, nem na vela, nem na luz. «O carácter místico da mercadoria não provém por conseguinte do seu valor de uso [propriedade que tem a vela de dar luz]. Ele não provém também dos caracteres que determinam o valor [tantos gramas de estearina] ».
De onde provém, por conseguinte, pergunta Marx, o carácter enigmático que toma o objecto de consumo ao revestir a forma de mercadoria? É evidente: desta própria forma. Não se tome por banal o que é profundo.
A forma valor, quer dizer: a relação que se estabelece entre a vela e a determinada quantia de dinheiro com que a pagamos, não é uma relação entre coisas, entre a estearina e o sujo dinheiro republicano; ela esconde uma relação social entre os homens que participam na produção. A relação monetária mercantil parece ser um simples meio para trocar a vela que acendo por, digamos, os fósforos que produzi; ela parece ser uma relação entre produtos: na realidade é uma relação entre produtores, é uma relação social. Mais ainda: é uma relação entre classes sociais. É aqui que Marx desvenda o mistério do «fetiche» mercadoria.
«Todo o mistério da forma mercadoria consiste, por conseguinte, simplesmente, em que as mercadorias devolvem aos homens o carácter social do seu trabalho como se ele fosse (mas não é!) o carácter objectivo dos próprios produtos do trabalho; por consequência, apresentam (ilusoriamente!) a relação social dos produtores com a colectividade como se fosse uma relação entre objectos existindo fora dos homens. Através deste qui pro quo (equívoco) os produtos do trabalho tornam-se mercadorias, coisas efectivamente «super-sensíveis», quer dizer: coisas sociais.»
Marx quer, entretanto, explicar melhor este «golpe», pelo qual a inocente vela (contrariamente ao ramo seco arrancado da árvore e utilizado pelo homem primitivo na sua caverna), se torna, fazendo-se portadora de valores de troca, a expressão da relação de exploração exercida pelo patrão da fábrica de velas contra os seus operários. Ele faz uma comparação com a estimulação da retina, que nos aparece como objecto existente no exterior do olho que o vê. Mas a luz irradiada pelo objecto e a estimulação do olho são realidades físicas, enquanto que a forma valor já não tem nada de físico, não está nem na estearina nem na luz ou em qualquer estimulação do meu nervo óptico. É apenas uma relação social determinada dos homens entre si, que reveste aqui para eles a forma fantástica duma relação das coisas entre elas. «É por tal razão que, para se encontrar uma analogia com um tal fenómeno, devemos refugiar-nos nas regiões nebulosas do mundo religioso.»
Como, na mística, «os produtos do cérebro do homem têm o aspecto de seres independentes», o mesmo se passa com os produtos «das mãos do homem no mundo mercantil». «Um fetichismo semelhante é inseparável da produção mercantil.»
Marx, que não é um literato, mas um lutador, vê defronte de si, em cada linha que escreve, o adversário de classe. Ele não é um «pensador», não monologa mas, pelo contrário, dialoga com o seu inimigo. Vocês acreditaram, teóricos da burguesia, que atingiram o último grau do desenvolvimento, limpando do espírito do homem os fetiches das crenças nas divindades que justificavam a autoridade da classe a que sucedem. Vocês erigiram um novo e mais triste fetiche que nós atiraremos contra os vossos altares, os Bancos, e expulsaremos dos vossos templos, as Bolsas, por nossa vez.
«Ora esta forma adquirida e fixa do mundo das mercadorias, a sua forma dinheiro, em vez de revelar os caracteres sociais dos trabalhos privados e as relações sociais dos produtores, não faz senão escondê-los... Estas formas constituem justamente as categorias (conceitos de base) da economia burguesa. Elas são socialmente válidas como formas mentais objectivas para exprimir as relações de produção deste tipo de produção historicamente determinado, a produção mercantil».
Todo o misticismo se dissipa se nos referirmos a um outro tipo de distribuição, não mercantil.
Pedimos a Marx a demonstração do carácter transitório das formas mercantis e a confirmação da tese conexa: as formas mercantis surgiram numa certa etapa da História e só quando terão desaparecido nos encontraremos na etapa comunista. É então que Marx, dum só golpe, nos transporta de Robinson Crusoé à sociedade de amanhã. É o nosso método habitual e clássico: com dados indiscutíveis do passado, elaborar a análise do desenvolvimento de amanhã. Que aqueles que, tendo-o lido sem o lerem, dizem que Marx fica pela ciência prudente dos factos contemporâneos e apenas dá uma fotografia do capitalismo da sua época (por conseguinte, o imbecil peralvilho de 1952 sabe disso mais do que ele), que esses façam limpar as pálpebras ramelosas; o comunismo realizado encontrá-lo-ão ao fim da página 15.
Visto a economia gostar das robinsonadas, partamos daí, diz Marx. Robinson tem necessidades e satisfá-las com os objectos que conseguiu juntar: salvou o tinteiro, a pena e um grande livro e deles faz o inventário; mas fiquemos por aí. Robinson não tem actividades duplas, não embolsa nem dispende dinheiro; à sua volta não há qualquer espécie de mercadorias. Marx transporta-nos então da «ilha luminosa de Robinson até à sombria Idade Média europeia». (Este dardo é para vocês, liquidadores das vergonhas feudais, que glorificam a esplêndida civilização do néon de hoje. Vocês compreendem apenas que a luz vem da luz: deum de deo, lumen de lumine. Nós, pelo contrário, reconhecemos a necessidade da passagem da luz do comunismo primitivo generoso, sem mercadorias, às sombras da sociedade feudal, depois ao esgoto fétido da civilização burguesa, para se continuar para além dela. Nada é fetiche para nós, nem sequer a raiva contra o capitalismo.)
Pois bem! Na Idade Média não há ainda, numa escala geral, mercadorias; o privilégio da classe dominante é constituído por prestações pessoais de trabalho, honestamente visíveis. A forma social do trabalho é também a forma natural, isto é, a particularidade. Não, como na forma mercantil, a generalidade. Procuremos compreender. Voltei o lagar para o teu lado e tu beberás, amplamente, o copo cheio. É menos ignóbil do que comprar no estaminé o líquido capitalista envenenado, contendo água e corante para aumentar a margem de lucro.
Relações claras na noite da Idade Média. A mentira do padre predomina? Mas «o dízimo a pagar ao padre é mais inteligível do que a bênção do padre». A prestidigitação infecta da relação da escravatura humana, apresentada como uma relação equitativa, recta, entre coisas trocadas, será o particular da época burguesa ulterior.
Mas pode ele existir uma actividade humana apta a satisfazer as necesidades essenciais sem uma tal mentira moderna, sem um tal fetiche do mercado? Pode, diz Marx, dando o exemplo em três tempos: passado, presente, futuro.
Passado: figura completamente abstracta, utilizada com fins analógicos, Robinson não nos interessa. O homem para nós é a espécie humana, não a pessoa humana: este ser estranho e solitário, e evidentemente estéril, só conhece bens de consumo, não conhece bens de troca, e, não se encontrando no Paraíso, afora a vantagem de passar sem Eva, obtém os bens úteis pelo seu trabalho. O nosso exemplo do passado tomamo-lo nas comunidades primitivas. Entre o Manifesto e O Capital a investigação arqueológica positiva estabeleceu que não só certos povos, mas todos, tiveram na origem uma organização baseada no trabalho de todos e na propriedade de nenhum.
Organização que é «o trabalho comum, quer dizer: o trabalho imediato associado, sob a sua forma natural primitiva, tal como se apresenta na primeira fase da história de todos os povos civilizados».
Presente: do trabalho em comunidade «temos um exemplo perto de nós na indústria rústica e patriarcal duma família de camponeses que produz para as suas próprias necessidades trigo, gado, linho, pano, vestuário, etc. Estes diversos objectos apresentam-se para a família como produtos diversos do seu trabalho e não como mecadorias que se trocam reciprocamente. Os diferentes trabalhos começam por possuir... a forma de funções sociais, porque são funções da família, a qual, tal como a produção mercantil, tem a sua divisão do trabalho. As condições naturais (estações, idade, sexo...) regulam para cada um a distribuição do trabalho e a sua duração».
Indicámos por várias vezes que estas ilhas de organização autónoma existem não só nos continentes atrasados, onde o mercado mundial não penetrou, mas também nos países burgueses: em 1914 uma dama da Calábria, grande proprietária, podia gabar-se de dispender apenas «um centavo» por ano em agulhas e por não comprar mais nada. Se não fossemos dalécticos diríamos que o nosso ideal reside em tais ilhas. Pelo contrário, dizemos que é útil que sejam o mais rapidamente possível dissipados e absorvidos, quer seja na Calábria ou no Turquestão, pelo ciclo infernal do capital mercantil.
Futuro: «Representemo-nos enfim [o tom modesto empregado, a fim de evitar o modo utopista, não permite às pessoas superficiais compreender que se trata aqui do programa da revolução proletária] uma associação de homens livres (historicamente, para nós, livre equivale a não-assalariado), trabalhando com meios de produção comuns e dispendendo, segundo um plano combinado, as suas numerosas forças individuais como uma mesma e só força de trabalho social... O produto total dos trabalhadores associados é um produto social. Uma parte serve de novo como meio de produção e permanece social; mas a outra parte é consumida e por consequência deve repartir-se entre todos. [Atenção: procure-se a precisão «em partes iguais» — não se a encontrará]. O modo de repartição variará segundo o organismo produtor da sociedade e o grau de desenvolvimento histórico dos trabalhadores».
Para bem se estabelecer que este «estado de coisas» (qual, ó censores e distraídos, senão o comunismo, o impossível comunismo?!) é a negação da produção mercantil, Marx faz a comparação examinando um dos modos de repartição, quer dizer: que «a parte entregue a cada produtor o seja proporcionalmente ao seu tempo de trabalho» (seria o estádio inferior do comunismo, justamente a límpida ilustração de Lenine baseada na crítica de Marx ao Programa de Gotha — outro «martelar» formidável de dados fundamentais). Pois bem!, aqui, na organização comunista, «as relações sociais dos homens nos seus trabalhos e com os objectos úteis que deles provêm permanecem simples e transparentes na produção, bem como na distribuição».
A parte final do parágrafo trata das ideologias que necessariamente reflectem os três estádios: economias pré-mercantis, economias mercantis, organização não-mercantil ou socialista.
As antigas religiões nacionais são particulares ao primeiro estádio bárbaro e semi-bárbaro baseado em condições de despotismo e de escravatura.
A sociedade de mercado universal encontra a sua religião apropriada no cristianismo e, para além de tudo o mais, no seu desenvolvimento burguês, a Reforma.
É apenas no terceiro estádio, comunista, que a vida social rasgará o véu místico que lhe esconde o seu aspecto. Como o dissemos outras vezes, há um «mas»: «mas isso exige que exista na sociedade um conjunto de condições de existência materiais, as quais só podem ser, elas próprias, o produto dum longo e doloroso desenvolvimento».
E Marx termina pelo sarcasmo final e a assimilação às tolas superstições «do conhecimento de si-mesmo» de que é capaz a época burguesa.
Ele escolheu Bailey, nós poderíamos escolher Einaudi. O sábio capitalista diz:
«O valor [isto é, o valor de troca] é uma propriedade das coisas. A riqueza [valor de uso] é uma propriedade do homem».
Deste modo pode ele cientificamente deduzir que haverá mercadorias in eterno e ricos in eterno (na significação mais imbecil, todos os homens serão ricos).
Nós, que pela revolução aboliremos as mercadorias e os ricos, nós demonstramos, de momento, a estes pretensos sábios, que, pelo contrário, são as coisas que têm a propriedade de possuir um uso útil aos homens, e que são apenas os homens e as relações actuais que têm a propriedade mercantil, de tal forma que o valor de troca exprime um atributo dos homens, o de serem exploradores ou explorados.
Quanto mais a opinião da ciência oficial é esclarecida e está na moda, mais ela conclui que as relações capitalistas são insubstituíveis e «naturais» e, por nosso lado, mais nós a consideramos como uma traficância integral. O seu calibre é semelhante ao das idiotices que a força cómica de Shakespeare põe na boca do seu ridículo personagem Dogberry:
«Ser um homem bem feito é um dom das circunstâncias, mas saber ler e escrever, isso vem-nos da Natureza».
Enquanto que a questão é tão simples (porém, o simples conquista-se duramente, e o que é complexo está à mão dum qualquer negociante de cultura), há pessoas que vêm dizer que é preciso «fórmulas novas». Com que objectivo? Para explicar a Rússia e a perplexidade do edifício marxista, pelo facto de que lá os meios de produção já não são propriedade privada e de que, todavia, lá existe um capitalismo não diferente, milimétricamente, dos do Ocidente! Todo o vasto bando internacional estalinista explica, em grandes clamores, que na Rússia existe o socialismo integral. Todo o não menos vasto bando capitalista explica a mesma coisa: o comunismo existe lá; sendo, este último, nada mais nada menos do que a ditadura central e estadual sobre todos os bens e sobre todos os homens (de que se tem um horror particular no delicioso mundo livre).
Rebuscadores de fórmulas novas, venham confrontar-se um pouco com as fórmulas antigas. Receio muito que em vez de vos acordar a abertura do vosso instituto superior de investigação, convirá mais por-vos na «classe dos burros».
É possível que seja verdade que Demóstenes se tenha tornado o maior orador superando à força uma gaguez inata, rolando pedras na boca; mas nós suspeitamos muito dos «cacagli» em marxismo. (Terão compreendido que em dialecto meridional «cacaglio» quer dizer gago.) Uso escandaloso do dialecto? Para Estaline talvez, que nega que a língua nacional é um produto transitório de classe. Pelo contrário, o dialecto está por vezes mais próximo do pensamento da classe dominada. Dante fortaleceu a revolução na medida em que os burgueses opuseram o toscano vulgar ao latim dos senhores feudais e dos prelados. Na Rússia os aristocratas sussurravam o francês e os revolucionários proletários dissertavam em alemão. Estaline, ignorando as duas línguas, exprime bem o facto de que uma das características da formação do poder burguês é a exaltação da língua nacional.
De resto, se vos horroriza passar por camponês, convém lembrar que Stenterello(3) é um personagem florentino. Assim refrescados no Arno(4) , voltemos ao Moskova.
Não pode haver hesitação para classificar a Rússia segundo um dos três estádios: pré-mercantil, mercantil e socialista. No tempo de Engels o primeiro estádio tinha ainda manifestações sugestivas, não só nos principados asiáticos como no mir, comunidade rural da Rússia europeia. Mas será possível soldar este comunismo de ilhas fechadas, primitivo e rudimentar, com o comunismo de toda a sociedade apetrechada de forma moderna? Engels, que era um grande e prudente diplomata da revolução, lembrou, ao apresentar o Manifesto aos russos, o que Marx tinha conjecturado em 1882: talvez seja um ponto de partida, se a revolução russa anti-feudal dá o sinal à revolução proletária no Ocidente. Se assim não fosse, ou se o sinal fosse insuficiente, a Rússia deveria atravessar o estádio mercantil. É o que ela está a fazer. O derrubamento da armadura feudal czarista provocou este resultado: engolir todas as ilhas fechadas da Europa oriental e da Ásia, graças a uma industrialização acelerada dos territórios atrasados, nas vagas irresistíveis do sistema mercantil.
Resultado, note-se, revolucionário. Marx e Engels pensaram sempre que um segundo 1848, já não burguês mas proletário, não poderia ser vitorioso enquanto existisse na Rússia um poderoso exército feudal. Desde 1917 que esta situação contra-revolucionária está eliminada.
Como eles, nós pensamos que para se poder transformar a revolução anti-feudal em revolução proletária na Rússia (linha de Lenine), a condição indispensável era a vitória revolucionária na Europa.
Na situação de 1952, a Rússia não constrói o socialismo, constrói o capitalismo, assim como a Alemanha, a Áustria, a Itália, o construíam depois de 1848.
Hoje, a Inglaterra, a América, a França e os outros países industriais já não constroem o capitalismo interior, defendem o capitalismo mundial. As suas máquinas de Estado trabalham apenas num sentido contra-revolucionário. Os seus Estados têm a artilharia apontada unicamente contra o futuro e não em parte contra o passado e em parte contra o futuro.
Não insistiremos mais aqui sobre a questão da natureza mercantil da organização económica, para podermos desenvolver em seguida a questão da dissolução das ilhas fechadas no mar único do comércio geral, para explicar as conclusões teóricas do facto de que, em países dados, o processo está em acção e que no território doutros países «já não há ilhas económicas». E demonstraremos que esta distinção se encontra nas páginas de Marx, onde desenvolve a história da passagem do trabalho parcelar ao trabalho associado, base necessária da revolução proletária e da organização social comunista.
Foi anunciado que daqui a dois ou três anos a Rússia poderia trocar com os outros países mercadorias num valor anual de 40 biliões de rublos, o que significa 10 milhões de dólares ou 6 biliões e 300 milhões de liras.
A propaganda atlântica tem a pretensão de fazer crer que são verdadeiras patranhas e que, se 40 biliões são de facto dispendidos, é com o único objectivo de fazer efeito sobre os eleitores de Trifouilli para que elejam o presidente da câmara kominformista(5).
Nós quereríamos que os sábios da economia ocidental nos explicassem como é que os capitães de indústria que partiram para Moscovo poderiam ser, não como diz romanticamente l'Unità [órgão do P.C. Italiano] noivos à janela, mas sim noivos de Potemkine(6), quer dizer: tipos de quem se escarnece. E valia mais que tais sábios discutissem de outros fenómenos, como a decisão stalinista de Truman consistindo em requisicionar a indústria siderúrgica e de fixar por decisão do Estado os preços dos salários, visto restar uma margem útil sobre o aço de 8 dólares por tonelada. Ou então de fenómenos como a fundação pelos capitalistas duma sociedade financeira internacional para o desenvolvimento económico com o objectivo de resistir às intervenções dos governos nos negócios.
O desenvolvimento actual do capitalismo no sentido da planificação do lucro foi previsto pela doutrina marxista. A questão está clara: não há uma migalha de socialismo neste desenvolvimento, mas, para a economia dialécticamente oposta, a economia burguesa, esta política dirigista é justamente «o socialismo». Para Vilfredo Pareto, por exemplo, o socialismo não é o que nós dizemos que é, quer dizer: a organização sem mercado e sem comércio; bem pelo contrário, ele entende por socialismo uma intervenção arbitrária de elementos morais e legais no facto económico natural (o marxista sustém o inverso, isto é, a intervenção do facto económico no modo de ser do artifício legal e moral). De qualquer forma, Pareto é lógico quando declara: os sistemas socialistas [tal como os compreende] não diferem dos diversos sistemas proteccionistas. Estes, acrescenta ele, representam, propriamente falando, o socialismo dos empresários e dos capitalistas. Este socialismo, visto por Pareto, mais de meio século antes, deixamo-lo de bom grado a Truman e a Estaline. Nunca como hoje foi tão claro que o socialismo soviético é o socialismo dos capitães de indústria. (Mas na Rússia suprimiram-nos! Pois bem, hoje, importam-se...).
Dez milhões de dólares representam um valor duplo do que representam as importações da Grã-Bretanha, seis vezes mais que as importações da Itália, igualizando as da América. Equivalem ao trabalho anual de 26 milhões de operários e, provavelmente, ao de todos ou quase todos os trabalhadores russos já colocados na produção (não em ilhas fechadas, mas na de toda a população dum país desenvolvido mais a metade dos habitantes da URSS actual). Se a metade do esforço de trabalho deste povo, não absorvido por consumos de tipo pré-mercantil ou asiático, equilibra com o seu preço no mercado mundial o esforço produzido pelo trabalho dos países capitalistas, não temos necessidade de outros dados para definir a economia russa como capitalista.
E como duvidar que se nada em pleno estádio mercantil quando a projecção ideológica consiste numa dominação completa da religiosidade popular, encorajada e utilizada pelo poder público?
No diálogo de troca entre a mercadoria russa e o dólar que a paga, entre a mercadoria americana e o rublo que a paga, quase não temos necessidade de exprimir o seu «carácter fetiche». Os objectos não falam, as mercadorias não falam, mas onde as mercadorias, umas como as outras, são produzidas, a relação é, na realidade, relação de exploração salarial.
Nada nos diz que neste momento a troca não seja real, sensível e abertamente. A troca funcionou durante a guerra de 41 a 45, sob diversas formas: armas e munições de Oeste contra esforço e trabalho industrial e «militar» de Leste. Hoje, as indústrias respectivas desenvolvem a acumulação do capital (facto social, mesmo em regime burguês), no sentido do armamento para uma guerra imperialista (Truman invoca razões de defesa nacional para a requisição das empresas e para a militarização dos grevistas) ou no sentido da satisfação mercantil recíproca na troca internacional.
Para se ter, a propósito da Rússia, um discurso novo, não serve para nada saber-se que é servido caviar na mesa de Estaline e uma sopa de milho no escabelo do operário. Isto poderia ser compatível com um comunismo de estádio inferior. No estádio superior será dado caviar a toda a gente... e a sopa de milho aos maus alunos que têm o vivo desejo de brincar aos professores.
A nós interessa-nos perguntar se tendo rublos no bolso podemos ter caviar e sopa de milho. E se também o podemos, uma vez feito o cálculo de troca, tendo no bolso dólares ou liras.
Depois disso, o carácter fetiche do caviar ou da sopa de milho já não tem segredos para nós; o mesmo se passando com o carácter supremamente simplório dos discursos novos.
Notas:
(1) espécie de pássaro entre a qual se encontra o cisne — (nota do tradutor). (retornar ao texto)
(2) pequeno ser sem corpo, sem sexo, dotado dum poder sobrenatural, imaginado por feiticeiros — (nota do tradutor). (retornar ao texto)
(3) Personagem da comédia florentina inventada em 1790 por Del Buono. Alusão a um outro artigo, «Partido Stenterello», Battaglia comunista, n.° 3, 1951. (retornar ao texto)
(4) Rio de Itália, que passa em Florença e Pisa — (nota do tradutor). (retornar ao texto)
(5) pró-russo — (nota do tradutor). (retornar ao texto)
(6) Alusão a Catarina II da Rússia e ao seu favorito Potemkine. Aquando duma viagem da imperatriz através dos campos russos, Potemkine concebera uma aldeia desmontável que fazia transportar através do país e que dava a visitar a Catarina sempre que esta queria conhecer o estado dos camponeses, os quais eram substituídos em cada visita. A imperatriz ficou assim com uma impressão muito favorável do estado dos campos e dos seus subordinados. (retornar ao texto)
Inclusão | 22/07/2008 |