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Primeira Edição: Revista América Libre, em 18 dez 2000, Edição digital.
Fonte: http://www.marxists.org/espanol/tematica/mujer/autores/berkins/2000/xii.htm
Tradução: Pedro Feilke
HTML: Fernando A. S. Araújo
Direitos de Reprodução: Revista América Libre. Este artigo pode ser reproduzido sujeitos ao reconhecimento da América Libre como a fonte original e incluir um link para seu site, http://www.nodo50.org/americalibre/.
Eu sei que muitos se perguntam o que faz um travesti neste lugar. Porque muitas pessoas têm uma idéia absolutamente equivocada ou estão carregadas de mitos sobre o que é um travesti. Eu quero dizer que também sou feminista. O primeiro problema que nós travestis temos, é que nem a sociedade nem o Estado reconhecem o travestismo como nossa identidade. As pessoas que nos criticam mais fortemente são as hierarquias eclesiásticas. A Igreja nos demonizou absolutamente. Por exemplo, pensam que se vocês escutam a uma travesti, vão terminar virando travestis. Relacionam-nos a uma idéia de contágio. Posso lhes dizer que podem ficar tranqüilos, que não irão se transformar em nada se me escutarem.
Outra coisa é a questão de por que podemos falar de tantas coisas, e a que mais evitamos e tememos é o corpo. Eu amo perfeitamente o meu corpo. Como dissera Lucienne Stoine em 1845:
“Não quero o direito à propriedade do voto, se não posso manter meu corpo como um direito absoluto”.
Então aqui começa nosso problema.
A realidade latino-americana é que o travestismo se dá entre os 8 e 10 anos de idade. O primeiro que acontece é a expulsão familiar, e assim uma expulsão social depois. Esta sociedade não está preparada, todavia, para dar-lhe um tipo de contenção.
Na República Argentina existem três organizações de travestis, e nós trabalhamos sobre uma população direta de 3000 companheiras travestis. A expectativa de vida das travestis na Argentina e em quase toda América Latina não supera os 30 anos. As causas da morte são: mortas pela polícia, sem que nenhum estado investigue nada. Outra causa é o uso indiscriminado de cirurgias. O sistema capitalista criou um só modelo de mulher: linda, doce, muito bela, que é a que o patriarcado consome. Então nós, quando começamos a viver nossa realidade, a única alternativa de sobrevivência que nos resta é a prostituição, se eu fosse fazer isso, o máximo que conseguiria seria uma ninharia, porque tenho 92 kilos. Então, é tão forte a idéia da imagem, que as companheiras terminam sendo vítimas dessa questão. Porque o que a sociedade nos diz é: “está bem, este garoto não quer ser um homem, que seja mulher. Porém não qualquer mulher. Mas uma mulher esplêndida”, como a travesti mais famosa do Brasil, Roberta Close. “Como Roberta Close ou nada”. Esses são os modelos que vão impondo. Desta forma se produzem situações de muitíssima violência. O fato de que nós estamos condenadas à prostituição, atenta também contra nossa própria auto-estima.
Eu sofri sete anos de encarceramento pelo simples fato de ter desafiado esta sociedade, e dizer “isto é o que eu sou”. Na Argentina, há mais de 9 anos nós começamos a nos organizar. A mudança mais profunda aconteceu através de conhecer o feminismo, as lésbicas feministas. Então começamos a lutar, e temos um programa que se chama “Construindo a cidadania travesti”. Obviamente, a palavra “cidadania” não tem nada de liberalismo, mas sim um sentido muito mais amplo e revolucionário.
Apontamos quatro coisas: a educação, a saúde, a moradia e o trabalho. Na Argentina seguem sendo criadas fortíssimas leis que castigam o travestismo. Para que vocês entendam o que eu digo, eu estou absolutamente orgulhosa de ser travesti, e se nascesse de novo, gostaria que tudo fosse exatamente igual. Mas essa sociedade maneja a coisa binária de homens e mulheres. Quando nascemos, a parteira olha entre as pernas e diz: “tem um pênis”, ou “tem uma vagina”. A isso, à genitália, te aderem o sexo, e ao sexo um gênero. E como dizia a companheira, não é o mesmo ser homem que mulher, muito menos em uma sociedade tão patriarcal e machista como é a latino-americana. Então, se você não se comporta de acordo com sua genitália, tem um comportamento como a outra opção, que é ser mulher. Sou uma travesti, uma pessoa que tem sua genitalidade e que pode viver perfeitamente construída sob outra identidade ou sob outro gênero, que é o feminino. Agora já não há tantos modelos. Talvez, daqui mais 2000 anos de luta, eles poderão dizer "as mulheres, homens, travestis... e uma lista interminável ", quando se referirem ao gênero.
Nós começamos a atacar a hipocrisia burguesa. Porque o mundo, os homens castíssimos, se nos vêem nos prostituindo, nos chamam de “pecadoras”, e se reclamamos nossos direitos, nos chamam de “comunistas”. Então começamos a atacar a burguesia, a hipocrisia burguesa. Porque se há 10.000 companheiras se prostituindo todas as noites, é porque há 10.000 homens que as consomem. De noite, tudo bem; mas de dia dizem: “matem elas, prendam elas, são o demônio”. Isso é uma hipocrisia. A sociedade pede castigo para quem se prostitui, mas não para quem consome.
Começamos a lutar. Em Buenos Aires, o Estado gasta 300 milhões de dólares para sustentar a polícia, que é a mesma polícia repressiva do processo, e não querem gastar nem dez dólares em educação, em capacitar-nos, em nos ver como sujeitos de direito.
Dentro de todas estas questões, também podemos ser socialistas, e posso ser feminista. Não é como se a única coisa que sou é travesti. Quando falava do tema do “mito”, as pessoas pensam que somos libertinas, que passamos o dia todo na cama, como uma deusa Vênus, atiradas fumando maconha, e que o mundo não nos importa nada. É outro estereótipo. Em nossa comunidade há de tudo, há companheiras que podem ser deste estilo, companheiras loiras, companheiras com 92 kilos, companheiras comunistas, temos uma diversidade. E temos essa diversidade porque somos pessoas. Eu vou dizer que as travestis são algo raro quando começarmos a cagar pela orelha, ou mesmo pelo nariz. Enquanto continuarmos a fazer pelo lugar que vocês fazem, não vejo o porquê do assombro.
Aí é quando a sociedade começa a ficar meio louca. Porque não é que lhes incomode que nós existamos. Eu vou pelo mundo, pareço uma senhora gordinha, e tudo bem. O problema começa quando nós começamos a pedir direitos. Quando nós dizemos: “não sigam matando companheiras, dêem-nos trabalho, educação, moradia, saúde”. Aí é quando a sociedade fica frenética.
A nossa situação é bem complicada. Algum dia eu gostaria que, em um grande evento, haja companheiras lésbicas, gays, travestis, participando sem descriminações dentro dos movimentos de luta. Porque acontece que algumas lutas parecem mais valiosas que outras. Si é por vítimas, nós temos vítimas. Se é por cárcere, nos conhecemos a prisão. Se é por repressão, temos repressão. Então, eu não vejo por que não se pode pensar de uma forma totalizadora, e pedir por todos os direitos.
Por que, se vão a uma marcha contra o FMI, contra o imperialismo ianque, por que não vem a nossas lutas também? Então, teremos que falar destas questões como uma coisa cotidiana, porque nós somos cotidianas também. Nós vivemos em comunidades, vivemos em casas, temos famílias, amigos, amigas, pensamos. Então, a reflexão que queremos fazer, é que estamos convencidas de mudar esta sociedade. Eu luto para mudar a sociedade. Estou absolutamente na luta contra o imperialismo, amo a liberdade. Porém não uma liberdade condicionada. Amo a liberdade absoluta, que cada um viva como queira. Amo absolutamente ser travesti. Por que parece que é de outro mundo? Então, a reclamação que estamos fazendo, é a construção de uma sociedade sem nenhum tipo de opressão, ainda que pareça muito dizer “as” e “os”. Se fala de “os revolucionários”, e as revolucionárias onde estão? Estavam aqui.
Tem-se que romper a esquemática do gênero. Que o homem tenha que ser o supermacho que grite e brigue, e a mulher que cozinhe e que vá com sua filha de lá para cá. Há mulheres revolucionárias que empunharam o fuzil. E há homens que podem cozinhar, e não são necessariamente menos revolucionários.
Outra questão é a do afeto e do corpo. Porque é que podemos falar, e se, neste ponto eu digo “peguemos as armas” todo mundo presta atenção, mas se dissesse “vamos tirar a roupa, vamos nos tocar” começa um pânico absoluto? Por que eu deveria sentir vergonha do meu corpo, se o mais valioso que temos é o corpo? É o corpo para a vida, o corpo para a luta, o corpo para tudo. É o bem mais absoluto que temos.
Insisto sobre este tema das lutas. Penso que temos de repensar completamente, e incluir. Também luto pelas pessoas sem terra, a pobreza me comove absolutamente, luto contra os ricos, luto contra todas as formas de opressão. A única coisa que lhes deixo como reflexão, é que vocês se juntem à nossa luta. Nada mais.
Notas:
(1) Lohana Berkins é uma ativista travesti argentina premiada em 2003 com o Prêmio Felipa de Souza por ativismo pelos direitos civis das lésbicas, gays, bissexuais e transexuais da Comissão Internacional pelos Direitos Humanos para Gays e Lésbicas (IGLHRC). Depois de passar um tempo na prisão e experenciar diversas formas de abuso policial, Berkins ajudou a fundar a Associação Luta pela Identidade Travesti e Transexual (ALITT) em 1994, com o propósito de educar e politizar os travestis argentinos, lutando contra a pobreza e o desemprego. Também é membra do Partido Comunista da Argentina. (retornar ao texto)
Inclusão | 20/02/2011 |