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Fonte: Portal Vermelho.
Transcrição: Diego Grossi Pacheco
HTML: Fernando A. S. Araújo, dezembro 2007.
Iza Freaza - Diógenes Arruda: há quanto tempo você está fora do Brasil?
Arruda – Olha, eu saí do Brasil depois que fui posto em liberdade. Eu estive preso de 11 de novembro de 1969 a 22 de março de 1972.
Iza – Você saiu porque lá (no Brasil) a barra estava muito pesada?
Arruda – Não, eu saí porque estava muito doente. Eles me soltaram provavelmente por isso. Quando saí fui rapidamente ao médico, que chegou à conclusão de que eu estava tuberculoso dos dois pulmões e que eu tinha de me submeter a umas operações para me recuperar, e que eu estava doente do coração e tinha que fazer uma operação na vista. Então, eu sou um refugiado que não sou refugiado. Por quê? Porque eu tinha que fazer todo esse tratamento médico fora do Brasil. Fui à Argentina, da Argentina fui ao Chile, para conseguir documentos, vim a Paris e fui a um médico.
A operação custava muito caro, e eu fiz um cálculo: voltando ao Chile e fazendo a operação com os melhores especialistas de Santiago, o custo seria menor com a viagem de ida e volta e a operação lá do que se eu fizesse a operação em Paris. Eu fiz essas operações (em Santiago) e o último médico, que foi o oftalmologista, me deu alta numa sexta-feira, às 5 horas da tarde. Eu fui à Air France comprar passagem e me disseram que no sábado estava fechado. Eu vinha na terça-feira. E na terça-feira houve o golpe (militar) no Chile. Portanto, eu fui pego (pelo golpe) no Chile acidentalmente.
Iza – Você foi preso lá?
Arruda – Não. Então, passadas umas duas semanas, estávamos vendo que vários brasileiros estavam sendo presos. Tinha vindo uma equipe ou duas da repressão brasileira, e eu considerei que devia me refugiar numa embaixada e optei pela embaixada da Argentina. Passei mais ou menos um mês lá e fui à Argentina e aí fui procurado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas. E alguns amigos tinham providenciado minha vinda para a França e, então, vim para cá. Passei seis meses antes na Argentina e vim para a França, onde estou até hoje, mesmo tendo várias andanças por várias partes da Europa, Oriente. . .
Iza – Antes dessa prisão de 1969 você já tinha sido preso?
Arruda – Já. Eu já tinha sido preso em 1937 com o golpe do Estado Novo, passei em prisão três meses, depois fui preso em 1940. Nessa prisão de 1940 estive incomunicável, sendo torturado durante dois meses. Depois passei incomunicável durante oito meses. Depois de eu ter me negado por dois meses a prestar qualquer depoimento, fui solto com um ano e dois meses de prisão, por um Habeas Corpus e porque não conseguiram uma palavra de minha parte — apesar de eu ter sido seriamente delatado. Assim aconteceu. Fui preso também, quando era já suplente de deputado federal, em fins de 1945, em São Paulo, mas por um dia e uma noite. Através de um grande movimento de deputados na Câmara Federal etc., fui solto. Também aí havia me negado a prestar qualquer depoimento. A última foi essa de 1969. Foram quatro prisões.
Iza – Você pode falar de sua atividade política, quando você começou a militar no Partido Comunista? Você pode começar falando da sua infância, para depois chegar lá na sua opção política... Você é de onde?
Arruda – Eu sou sertanejo, pernambucano. Nasci num sítio chamado Coruja, no município de Afogados. No Vale do Pajeú.
Iza – Família grande... Você tinha quantos irmãos?
Arruda – Eu era o irmão mais velho e tinha duas irmãs. Posteriormente nasceu um irmão. Mamãe morreu dele, meu pai casou a segunda vez e tenho mais duas irmãs e dois irmãos. E tem uma menina também que nasceu lá em casa e foi criada por uma irmã. Então somos cinco mulheres e quatro homens.
Iza – Seu pai era o quê?
Arruda – Meu pai era uma pessoa muito pobre. Trabalhava, fazia de tudo no interior de Pernambuco. Só vim a conhecer Recife em 1930. Aí, assisti ao movimento de 30 (a revolução, que levou Getúlio Vargas ao poder), participei de um movimento revolucionário de sargentos e cabos que se verificou em fins de 1931 em Recife. Eu tinha um primo estudante de medicina e que me iniciou no comunismo. Me recordo os primeiros livros que li sobre o comunismo. O primeiro foi um livro chamado A Educação Sexual na União Soviética (risos). O outro foi sobre a história das lutas sociais, que era de um escritor inglês chamado (ininteligível). Um outro de um engenheiro brasileiro na Rússia. . . Não me recordo o autor.
Bem, então eu fiquei, muito jovem, por volta de 1932, simpatizante do Partido, através desse primo meu. Posteriormente, em dezembro de 1934, ingressei no Partido. Eu entrei no Partido influenciado por vários fatores. Primeiro, por lutas que vinham se verificando no Brasil. Era a greve geral dos marítimos, a greve geral dos bancários, a greve geral dos funcionários dos correios e telégrafos, um movimento contra a guerra e o fascismo. E me influenciou muito a campanha que houve no Brasil contra a invasão da Itália na Abissínia. Fiquei profundamente impressionado e, nesse tempo, eu trabalhava no comércio e estudava. Era um estudante pobre. Posteriormente, me transferi para a Bahia. Ali também trabalhava e estudava.
Iza – Quanto tempo você ficou na Bahia, que é a sua segunda terra, como você costuma dizer?
Arruda – De fato, eu considero a Bahia a minha segunda terra. Ali eu cheguei muito jovem, com 19 anos de idade, e fiquei de dezembro 1934 a princípio de 1941. Participei ativamente do movimento sindical e também participei relativamente do movimento estudantil. Mas me interessava naquele tempo participar do movimento sindical. Muito jovem, ocupei postos de direção do Partido na Bahia. Com 22 anos de idade eu era o primeiro-secretário do Comitê Regional e fiquei nessa função até quando saí da Bahia, no início de 1941, depois dessa prisão de que falei.
Iza – Eu queria que você falasse se era muito difícil a militância nessa época. Parece que era uma época de muito movimento e a guerra, como você dizia, mobilizava muita gente. Havia também a Coluna Prestes, que vai servir de catalizador para uma movimentação grande. Eu queria saber como era o militante daquela época.
Arruda – De fato, a "Coluna Invicta", e eu era muito jovem, uma criança, 12, 10 ou 11 anos de idade... Meu pai se entusiasmou muito pela Coluna. Ela passou muito perto de onde nós morávamos. E aquilo impressionou muito os sertanejos. Posteriormente, meu pai participou do movimento de 1930. Foi voluntário e lutou não só em Recife, mas também em todo o Nordeste, até a Bahia. Isso também me impressionou profundamente.
Iza – As pessoas falam da Coluna hoje como se fosse uma lenda. A gente não consegue captar exatamente o que foi...
Arruda – Podemos dizer que a Coluna teve uma grande repercussão no Nordeste. Naquela parte onde se passa fome, onde existe retirante, flagelados, onde o povo era revoltado e naquele tempo só conhecia o governo por duas formas: ou para cobrar impostos ou em face da polícia, que chamava-se, naquele tempo, os macacos. Quer dizer: era a polícia militar de um lado e os impostos do outro. Então, o sertanejo era muito revoltado com os governos. E era sempre favorável às oposições. Principalmente aquele que pode se chamar de povo pobre, povo trabalhador.
Iza – Você é um pouco cangaceiro, não é?
Arruda – (Risos) Não sou um cangaceiro (risos), sou um comunista. Mas, de fato, você sabe que no sertão, no momento da minha infância e da minha juventude, havia uma grande ebulição. Muitas lutas. Eu tinha uma tia, irmã de papai, que era amiga da família Ferreira. E inclusive amiga do Virgulino, antes de Lampião entrar no cangaço. Nossa família era respeitada por Lampião. Também papai tinha um amigo que chamava-se, não sei por que, José "Chabordado" que, muito jovem, brigou com Lampião. E eu vivi na minha infância sabendo daquelas histórias de cangaceiros, daquelas lutas no sertão. E assim me criei como um elemento sem ter medo de polícia, sem ter medo de luta. E animado para a luta, inclusive para a luta armada (risos). E com ódio da polícia. Um ódio (ênfase) muito grande da polícia.
Você sabe qual foi o primeiro presente que meu pai me deu? Foi um revólver Schmidt-Wesson e um punhal (risos). Quer dizer: para eu me defender. Agora, na nossa família existia um preconceito de honra muito grande. Inclusive de fidelidade aos amigos. A primeira vez que eu fui preso, por exemplo, fui expulso da Bahia para Pernambuco e papai mandou um amigo dele saber qual tinha sido meu comportamento na prisão. Era para o amigo perguntar se eu tinha sido fiel aos meus amigos. Porque, se eu não tivesse sido fiel, ele nunca mais queria saber de ouvir falar de mim. E que eu não aparecesse mais lá em casa. Então, esse episódio é significativo porque fiquei muito aborrecido e tive que dizer a eles que eu era um comunista e que era, portanto, mais homem do que eles, e que eles deveriam me pedir perdão porque o meu comportamento não podia deixar de ser de fidelidade aos meus camaradas (ênfase e bate com a mão na mesa).
Iza – E o que ele respondeu?
Arruda - Claro que papai me pediu perdão! Isso era uma coisa significativa, sentimento de honra, de fidelidade ao amigo. Ele considerava que meus camaradas de Partido eram meus amigos. E um amigo não pode trair o outro amigo, tem que ser fiel. Assim eu me criei. Era o que se pode chamar a lei do sertão, da dignidade do homem, da lealdade para com os amigos.
Iza – Você já era muito danado nessa época, não é?
Arruda – Danado (risos)?
Iza – No movimento sindical...
Arruda – Sim, eu gostava. Era um homem prático. Eu gostava da luta. Gostava de participar do movimento sindical, participar de lutas. Na Bahia, por exemplo, participamos muito de lutas, de greves, de lutas operárias, mas também de choques com os integralistas. Porque houve, depois da derrota (do levante armado comandado pela ALN) em 1935, uma repressão tremenda no Brasil, mas o movimento se recuperou em 1937. Houve um ascenso democrático no país, houve uma anistia parcial e começou uma luta antiintegralista para impedir que eles ocupassem a praça pública. Então, operários e estudantes fizeram frente única em Salvador. E nós fizemos um compromisso de que os integralistas não ocupariam nem as ruas e nem as praças públicas em Salvador. Então, aí surgiram muitos choques e efetivamente o povo baiano não permitiu que os integralistas ocupassem a praça pública.
Iza – Teve algum caso curioso dessa época dos choques diretos com os integralistas?
Arruda – Sim. Tivemos choques sérios.
Iza – Quem eram os integralistas baianos dessa época?
Arruda – Me recordo de poucos. Renato de Azevedo e, se não me equivoco, Rômulo de Almeida. Depois, com o golpe do Estado Novo, veio o Landulfo Alves. Tinha o Isaias Alves, irmão do Landulfo Alves, que era um educador, mas um integralista ferrenho. Tem um episódio significativo de quando nós estávamos na prisão depois do golpe do Estado Novo, em 1937. Nós estávamos numa prisão, que era um forte na Bahia, e chegam o novo comandante do batalhão de caçadores, o chefe de polícia e o delegado de ordem política e social.
Mandaram todos os presos políticos formarem e, um deles, não me recordo se era o comandante do batalhão de caçadores, fez uma pregação e disse que por baixo daquela farda tinha o que mais orgulhava ele, que era uma camisa verde. E disse: Bem, todos os que são comunistas dêem um passo à frente, porque alguns vão para um campo de concentração no Mato Grosso e outros vão ser fuzilados. Então, tinha eu, um gaúcho que tinha participado da Coluna, chamava-se Sibélio, e um professor da escola de agronomia chamado Wagner Cabral. E uns líderes sindicais. Então, nós nos olhamos, e resolvemos, quando ele disse dê um passo à frente, todos darmos um passo à frente. E respondemos: Pior é na guerra. O homem ficou tão desmoralizado que deu meia-volta volver e desapareceu (risos).
Iza – Foi nessa prisão de 37?
Arruda – Foi na prisão de 37.
Iza – Você ficou na Bahia nessa prisão?
Arruda – Sim. Eu, o meu amigo Rui Facó, que era um jornalista brilhante...
Iza – Quem mais?
Arruda – Também estavam Nestor Duarte, o Aliomar Baleeiro...
Iza – Todo mundo preso...
Arruda – Todo mundo preso. Foi uma razia na Bahia.
Iza – Aí depois de solto você continuou sua trajetória no Partido...
Arruda – Ah, continuei...
Iza – Quero que você conte.
Albino Castro – Quando você foi solto?
Arruda – Eu fui solto dois ou três meses depois. Não me recordo agora. (interrupção da gravação) Pois eu vou te contar um fato que aconteceu na minha juventude. Na minha juventude, ser comunista era ser contra a família, ser inimigo mortal da religião, não respeitar a crença dos outros, ser, inclusive, inimigo da pátria. Isso tudo na versão dos inimigos. E ao ser solto e deportado para a minha terra, cheguei e tinha uma mulher que havia se criado junto com mamãe. Quando mamãe casou, ela foi morar com mamãe. Chamada Joaquina. E eu a chamava de mamãe Joaquina. Então, ao chegar lá, ela disse: Meu filho, você foi solto pelas minhas promessas à Nossa Senhora dos Remédios. E você vai pagar as promessas comigo? Você não sendo crente, você sendo ateu? Digo: Vou. Vou porque respeito sua crença. Se você acredita que eu fui solto pelas suas promessas, nós vamos juntos às igrejas pagar essa promessa.
E fui com ela. Entrei na igreja, o padre não queria me receber porque eu era comunista. Ela pagou as promessas, eu, claro que não me ajoelhei, fiquei ali ao lado dela. Ela não pagou as promessas porque não tinha dinheiro. Eu paguei as promessas por ela, comprando as ervas, dando o dinheiro lá na sacristia. O padre havia anunciado que eu não entraria na igreja. Ele não queria que eu entrasse. Fui com ela, porque respeitava a crença dela. Isso teve uma grande repercussão, porque ninguém acreditava. Só ela dizia: Não, eu conheço meu filho. Eu tenho certeza de que ele vai comigo pagar as promessas. Ele não tem crença, é ateu, mas ele respeita a minha religião. Sempre respeitou. Eu quase que era um filho de criação dela. Eu fui e isso, primeiro, desmascarou o padre e, depois, teve uma grande repercussão. Isso era muito importante naquela época, na minha juventude. Porque isso mostraria que nós, comunistas, somos efetivamente homens que temos amor à família, temos amor à pátria e respeitamos as crenças de quem quer que seja — católicos, protestantes, judeus etc., etc.
Iza – Uma vez a gente estava num restaurante e você falou: essa pizza está igualzinha a uma hóstia. Vai me dizer (risos): como você sabe? Então já comeu hóstia...
Arruda – (Risos) Não, não. Não, porque aconteceu um fato interessante. Meu pai era assim um ateu primitivo. Ele tinha um irmão que era padre.
Iza – Que era até grande amigo de Pio XII...
Arruda – Foi amigo de Pio XII. E ele dizia que não havia diferença entre um homem que vestia calça e outro que vestia batina. E que os filhos homens não deviam, de maneira nenhuma, ir à igreja, não deviam rezar, se confessar, porque, ele dizia: Os filhos homens eu crio — as mulheres, sua mãe cria. Então, desde jovem me criei dessa maneira. Graças a meu pai, que era um homem assim meio esquisito em relação à religião.
Iza – Nem na hora do maior aperto você nunca pediu: meu Deus, ou qualquer coisa aí, me ajuda aqui? (risos)
Arruda – Não pedi. Me socorri às minhas forças interiores (risos). Contando essas histórias... (rindo). Eu quero ver essa entrevista!
Iza – Voltando ao negócio sério...
Albino – Vocês estão em que ano aí na entrevista?
Iza – Nós estamos em 37, ele está contando como era a movimentação na Bahia... de 37 até 40...
Albino Castro – O Arruda foi que organizou... quer dizer: o Partido em 35 ou foi para a cadeia ou foi para o exílio. Uma parte, os militares, aquela coisa.
Arruda – Sim.
Albino – Quem reorganizou o Partido praticamente foi o Arruda na Bahia.
Arruda – Olha aqui: o Partido na Bahia se organizou um pouco depois da sua fundação. Assim por 24, 25. Mas sempre foi muito fraco. Apesar de ser um Partido que tinha muitos operários, o Partido que organizou o movimento sindical na Bahia, muitos deles (sindicalistas) foram anarquistas ou anarco-sindicalistas. Mas o Partido era bastante fraco. Existiam também os estudantes, os intelectuais — mas muito fraco. Tanto que na Bahia quase não teve movimento. Houve um grande movimento por ocasião da Aliança Nacional Libertadora, em 1935. Mas não houve luta armada. No movimento da Aliança Nacional Libertadora, cujo presidente chamava-se Edgard Matta, houve grandes comícios, grandes manifestações.
Eu me recordo que foi feita uma manifestação no Teatro Jandaia, na Baixa do Sapateiro, quando passava a caravana da ALN para o Nordeste e Norte do país. E o Teatro Jandaia superlotou — toda a Baixa do Sapateiro ficou cheia de gente. Operários (pronuncia pausadamente), muitos estivadores, operários do fumo, operários das docas, operários têxteis etc. Mas o Partido foi seriamente golpeado. Aí, um dos dirigentes principais do Partido, que era (Carlos) Marighella, foi embora, em 1936. Então, o Partido ficou muito fraco. Eu era um jovem membro do Partido, e me pareceu correto nós, depois da derrota de 1935, com as prisões cheias etc., levantarmos o Partido. E começamos seguindo duas linhas de conduta: reorganizar o Partido no movimento operário, ganhar os sindicatos, e organizar o Partido no movimento estudantil.
Também organizar o Partido, através do movimento sindical, na zona do cacau e no Recôncavo, na zona de cana-de-açúcar. Eu fui o organizador de sindicatos de assalariados agrícolas da cana-de-açúcar e também organizador dos sindicatos dos assalariados agrícolas do cacau. O nosso trabalho, a princípio, não era fácil. Havia muito sectarismo por parte dos camaradas operários do movimento sindical. Porque na Bahia havia Nosso Senhor do Bonfim e às vezes nossos dirigentes sindicais diziam assim: Graças ao Nosso Senhor do Bonfim, nós ganhamos a greve por aumento de salários etc. E nós tivemos que romper esse sectarismo também falando a linguagem do povo (bate na mesa). Indo a candomblé (ênfase), bebendo sangue de galo!
Iza Freaza – Você ia a candomblé mesmo? Não baixava nada... (risos)
Arruda – Ia a candomblé. Fui amigo do Joãozinho da Goméia.(1) Freqüentei muito o candomblé da (ininteligível). Era uma mãe-de-santo que havia feito a anunciação na África. Fui muito amigo, porque um filho dela era pescador e membro do Partido.
Bem, o nosso trabalho parece que rendeu bastante, porque nós levantamos o movimento sindical, organizamos uma união sindical de Salvador que agrupava naquele momento 64 sindicatos e fizemos lutas significativas. Me recordo que, no dia 1º de maio de 1940, fizemos uma passeata, em frente única de operários e estudantes, que foi da Praça Castro Alves até a Praça da Sé, ocupando toda a rua. Foi uma passeata por aumento de salários, por levantamento do movimento estudantil e contra o aumento da carne — chamado a luta contra o aumento da carne verde. Que era um monopólio da firma Magalhães.
Iza e Albino – Juracy Magalhães?
Arruda – Não. Os Magalhães que eram ligados a Clemente Mariani.(2) Das Casas Magalhães na Bahia, na Cidade Baixa. Que eram também usineiros, importadores e exportadores — eram magnatas na Bahia. Tinham bancos etc. Fizemos essa passeata no dia 1º e no dia 8 eu fui preso. Aí fui bastante torturado, em 1940. Bem, é preciso dizer que o nosso trabalho no movimento estudantil era de tal maneira significativo que nós tínhamos cinco professores e 96 estudantes na faculdade de medicina membros do Partido — o que era bastante significativo.
Albino – Entre eles Milton Caires de Brito...
Arruda – Entre eles Milton Caires de Brito, que era muito meu amigo e era o dirigente do Partido na faculdade de medicina.
Albino – Depois foi deputado por São Paulo...
Arruda – Depois foi primeiro-secretário do Partido em São Paulo, e deputado (federal) em São Paulo. Foi membro da Comissão Executiva do Partido, eleito na Conferência da Mantiqueira em agosto de 1943.(3)
Albino – Quer dizer: o Partido renasceu praticamente na Bahia. Depois da derrota de 35, do levante armado... quando ele voltou à legalidade... por exemplo, Prestes tinha passado dez anos na cadeia.
Arruda: O papel da Bahia foi grande no Partido da seguinte maneira: nós tínhamos, entre 37 e 40, o melhor trabalho sindical. Nós também consideramos correto participar de eleições municipais. E foi da Bahia que surgiu o movimento para a organização da União Nacional dos Estudantes. Me recordo que foi organizada a UEB (União de Estudantes da Bahia), tendo o Edison Carneiro à frente, o Aydano do Couto Ferraz, o Milton Caires de Brito etc. Eram estudantes pobres, que viviam nas chamadas repúblicas. Aí a UEB tirou um jornal, chamado Unidade.
Esse jornal pôde articular um movimento no Nordeste, o movimento estudantil, e foi a partir daí que se organizou a União Nacional dos Estudantes — depois do golpe do Estado Novo. O seu primeiro presidente chamava-se Antônio Franca. Era um estudante de direito, pernambucano — que depois desistiu da luta. Nesse tempo ele era membro do Partido. A Bahia deu uma contribuição significativa. Um jornalista muito conhecido, que trabalhou na Última Hora, por exemplo, chamado Medeiros Lima, foi um dos dirigentes da UNE nesse período. Era alagoano e dirigente da União dos Estudantes de Alagoas.
Albino – Eu reforcei essa pergunta pelo seguinte: em 45, quando o Partido volta à legalidade, você emerge praticamente como o segundo homem do Partido. Você desce da Bahia, trazendo um caminhão de quadros...
Arruda – (Risos)
Albino – E passa a dirigir, como secretário nacional do Partido, a organização. Quer dizer: o seu trabalho na Bahia foi tão importante, embora você seja pernambucano, que foi esse trabalho que te conduziu à direção do Partido. Porque você era um garoto...
Arruda – Eu me considero baiano de coração. Porque passei os melhores anos de minha juventude na Bahia etc. O caso foi o seguinte: depois que eu fui solto, em 1941, eu fui chamado... Em 1940, havia sido preso todo o Comitê Central do Partido, menos um elemento, que era um operário têxtil chamado Domingos Brás. Através do movimento estudantil e, posso dizer, através de um contato de João da Costa Falcão, que era um baiano, com o Edgar Carone, que é um historiador — nesse tempo era um líder estudantil em São Paulo —, o Domingos Brás me manda chamar para São Paulo. Porque, no período de 40 a 41, eu havia me destacado um pouco como dirigente na Bahia e vinha trabalhando junto à direção central do Partido. Bem, é preciso dizer que conheci Joaquim Câmara Ferreira em 1936, na Bahia — 36, 37.
Albino – Ele estava fugindo? Porque ele é paulista.
Arruda – Sim. O Comitê Central do Partido, com as perseguições que se verificaram no Rio e em São Paulo, se transferiu para a Bahia em 1936 e parte de 37. As últimas delegações que foram a Moscou informar sobre a insurreição de 35, partiram da Bahia. Uma delegação em 1937 e outra em 38. Então, fui chamado por Domingos Brás. Eu tive que fazer essa viagem pelo interior da Bahia, por Minas, e quando tomo o trem que vem de Minas, em Barra do Pairai, e vou chegando a São Paulo, próximo de Mogi das Cruzes, abro o jornal e tem: Prisão do Comitê Regional da Bahia. Domingos Brás etc. Aí, o que é que eu vou fazer? Vou voltar para a Bahia, para assumir novamente a primeira secretaria do Partido? Ou devo ficar em São Paulo? Eu vinha me integrar ao Comitê Regional de São Paulo. Então, eu resolvi ir para São Paulo.
Eu era um pau-de-arara, vinha com uma roupazinha de brim, no mês de abril, um frio que até as minhas rótulas tremiam. E resolvi reconstruir o Partido, junto com outros camaradas, em São Paulo. Me acompanhava Armênio Guedes. Então, o que fazer? Observei que os comunistas da colônia judaica, e os comunistas da colônia lituana, que eram operários metalúrgicos, não haviam sido presos. Procurei estabelecer contato com a prisão. Domingos Brás me informava que nem todo mundo tinha sido preso. Mas tinha se dado um fenômeno singular em São Paulo. Depois de 1935, todo ano o Comitê Regional caía. Parece que o inimigo cortava a cabeça do Partido, prendia o Comitê Regional, e deixava algumas pontas para ele acompanhar e golpear o Comitê Regional. E assim todo ano — 36, 37, 38, 39, 40, 41. Que fazer? Eu tracei um plano: botar de lado o velho Partido que a polícia tinha indicações e fazer um Partido novo. Não tinha outra maneira. Então, tive que me apoiar nos baianos. Fui chamando baianos para São Paulo.
Albino – Armênio já estava contigo...
Arruda – Já estava comigo. Chamei um companheiro que era o responsável pelo trabalho israelita na Bahia, ele veio. Aí entramos na colônia israelita — isso era muito importante porque nós éramos um Partido pobre, de andar de bonde de segunda, de segunda no trem, e passando uma miséria desgraçada. Me recordo que em São Paulo nós comíamos chuchu de manhã, chuchu à noite, chuchu a semana inteira, chuchu o mês inteiro porque não tínhamos outra coisa para comer senão chuchu com arroz e sal. E às vezes tomar uma xícara de café por dia — não tinha outra forma. Então fomos chamando... Na Bahia, nesse tempo, os estudantes de medicina se formavam e não tinham o que fazer. Então, como nós tínhamos muitos estudantes de medicina... mandam os médicos baianos para cá (ênfase). E nós fomos localizando nos bairros operários de São Paulo os jovens médicos baianos. O Milton Caires, me recordo, foi para o Tatuapé e aí estabeleceu contato com os operários metalúrgicos da (ininteligível). E fomos mandando também para o interior de São Paulo e para o Norte do Paraná. Para Londrina, que se abria naquele tempo, Jacarezinho etc.
E assim fomos levantando o Partido. Pouco tempo depois, estabelecemos contato com os ferroviários da sorocabana e com o Partido em Sorocaba, que não havia sido golpeado. Então, apoiados em alguns operários metalúrgicos... Me recordo de um chamado Antônio Vanucci, um velho operário metalúrgico da Atlas, dos elevadores Atlas, que era italiano — havia esquecido o italiano e não havia aprendido o português (risos). Mas era um homem de grande prestígio. Me apoiei também em dois operários metalúrgicos espanhóis. E num operário têxtil, não me recordo mais o nome dele. Esses quatro homens me ajudaram muito na formação. Meu segundo batismo de fogo foi com esses quatro operários — que ajudaram na minha formação como comunista. Eram operários de vanguarda, eram comunistas de muito valor. Posteriormente, nos operários de Sorocaba, da sorocabana etc. Foi assim que nós fomos reconstruindo o Partido.
Iza – E a polícia não conseguia mais pôr a mão em vocês...
Arruda – Aí, nunca mais a polícia de São Paulo meteu a mão num comunista. Até quando nós conseguimos conquistar a legalidade. Havia um judeu que trabalhava nas lojas "Quatro e Quatrocentos", no Rio de Janeiro(4) , e nós transferimos o Armênio Guedes para trabalhar, não me recordo se na United Press ou na Associated Press, no Rio de Janeiro. Mas era uma agência de notícias. Por intermédio desse judeu, nós tivemos notícias de Maurício Grabois, que era membro do Comitê Regional do Rio de Janeiro. Maurício havia estado, por ocasião do movimento de 35, em Minas Gerais, no Triângulo Mineiro etc. Maurício era um baiano, não sei se vocês sabem.
Albino – Baiano judeu.
Arruda – Judeu baiano. Ele foi amigo do Marighella desde o Ginásio da Bahia. Mas Maurício quis estudar na escola militar. Foi estudar na escola militar, em 1931, e aí entrou no Partido. Trabalho para cá, trabalho para lá, ele perdeu o ano. E na escola militar, quando se perdia o ano, ia para a tropa como soldado. Ele foi para a tropa. Aí, na tropa foi indisciplinado porque pegou umas cadeias e já era conhecido como comunista. Ficou mais um outro ano e ficou tuberculoso etc. Maurício foi um daqueles elementos que ajudaram a construir o Partido nas Forças Armadas. Mas eu conhecia já o Maurício de nome, através de alguns amigos comunistas — alguns camaradas que éramos amigos comunistas. No início de 1942, eu comecei a viajar para o Rio para ver se conseguia contato. Era muito delicado, porque as prisões que tinham se verificado em 1940 tinham como epicentro o Rio de Janeiro — porque houve fracassos, houve delações e traições. Inclusive de um secretário do Partido e alguns membros do Comitê Central.
Iza – Comitê Central ou Regional?
Arruda – Do Comitê Central. Alguns tinham se portado admiravelmente bem, mas outros tinham fracassado, barbaramente torturados. Maçarico nos pés, na bunda...
Iza – Maçarico?
Arruda – Maçarico elétrico (ênfase). Barbaramente torturados. Aí, se agigantam duas figuras. Mulheres. Que eram as estafetas entre o Comitê Central e o Comitê Regional de São Paulo. Uma eu não me recordo, eu sei que é uma personagem muito conhecida no livro de Jorge Amado Subterrâneos da Liberdade, e outra chamava-se Ireda (ininteligível). Ambas eram operárias têxteis. A que eu não recordo o nome era mulher de Domingos Marques, um operário têxtil de origem portuguesa. O Domingos estava tuberculoso e eles queriam que a mulher entregasse ele. Essas mulheres foram barbaramente torturadas — nunca disseram uma palavra. Ireda (ininteligível) ficou inutilizada e depois morreu em conseqüência das torturas. Bem, então nossa preocupação era reconstruir a direção do Partido. Nós todos éramos dirigentes do Partido muito jovens.
Iza – Que idade você tinha na época?
Arruda – Eu nasci em dezembro de 1914, era fins de 41 princípio de 42, estava com 26 anos – 25 para 26 anos.
Iza – Você já era do Comitê Central?
Arruda – Não. Eu estava como primeiro-secretário do Comitê Regional de São Paulo. Bem, então entramos em contato com o Maurício Grabois. Havia saído da prisão alguns ex-oficiais do Exército e também alguns antigos dirigentes do Partido, como José Medina, que era um operário naval e tinha sido secretário-geral da Federação Nacional dos Marítimos e ao mesmo tempo membro do Birô Político do Partido em 1935. Tinha tido um bom comportamento na prisão. Também tinha o velho Álvaro Ventura, que era estivador em Santa Catarina, que nós também havíamos estabelecido contato. Nós tínhamos contato, nesse período... era São Paulo, articulado com a Bahia — na Bahia tinha um jovem dirigente, muito jovem, que era Mário Alves —, tínhamos contato também com o secretariado de Sergipe, de Alagoas, de Pernambuco — mas que caiu em 1941 também — e com a Paraíba.
Bem, começamos a descer. Fomos a Santa Catarina e pegamos contato com Álvaro Ventura, e contato depois com o Rio Grande do Sul. Então, precisava ver a situação do Rio de Janeiro. É aí que nos encontramos com Maurício Grabois e nos encontramos também com o responsável pelo trabalho militar no Partido, que não havia sido preso. Naquele tempo era um tenente, ou capitão, do Exército, não me recordo, chamado Júlio Sérgio de Oliveira. Já morreu — morreu de câncer em 1956 ou 57. Nesse momento, chegavam, de Belém do Pará, João Amazonas e Pedro Pomar, que haviam fugido da prisão. Então, nós começamos, no princípio de 1942, estabelecer contatos, mas dizíamos o seguinte: Um novo Comitê Central só pode surgir se for a expressão da confiança completa dos Comitês Regionais. Então, em junho ou julho de 1942, fizemos uma reunião ampliada no Rio de Janeiro e foi tirado um Secretariado Nacional Provisório. Esse Secretariado tinha como missão reconstruir o Partido, recontatar os Comitês Regionais, rearticular o Partido e realizar uma Conferência Nacional para tirar um Comitê Central. Esse Secretariado era composto por José Medina, por mim e por Maurício Grabois.
Albino – Amazonas e Pomar não?
Arruda – Amazonas vai para a Comissão Sindical — nesse tempo ele já tinha reconstruído o Partido em Belo Horizonte e Juiz de Fora, e nas Minas de Nova Lima e Raposos. Então, vem como responsável de Minas Gerais, mas aí fica responsável pelo trabalho sindical. Pomar vem para trabalhar na Comissão de Organização, junto com outros elementos, como, por exemplo, um ferroviário de Pernambuco, chamado Agostinho Dias de Oliveira, que também tinha sido preso no Pará, e que tínhamos chamado. Nesse trabalho de reorganização, nós fomos pegando contato, e de contato em contato, com ex-presos políticos, fomos avançando na reorganização do Partido. Quando juntamos tudo, conseguimos uns 980 militantes.
Albino – O Prestes nesse tempo estava na cadeia. Ele era informado?
Arruda – Não. Ao mesmo tempo, nós fazíamos a luta contra o nazismo. Nós tínhamos a União Nacional dos Estudantes na mão, reconstruímos uma organização antiga que tinha no período de Olavo Bilac, chamada Liga de Defesa Nacional, organizamos um departamento trabalhista, e fomos avançando na luta pela participação do Brasil na guerra, pela conquista das liberdades, fomos estabelecendo uma nova linha política do Partido, e quando se verificaram os afundamentos dos navios os estudantes no Rio de Janeiro ocuparam o Clube Germânico e abriram a União Nacional dos Estudantes, legalmente no Rio de Janeiro. Fizemos um movimento pela participação do Brasil na guerra, com voluntários, fizemos com que todos os jovens do Partido se inscrevessem como voluntários, e todos os oficiais do Exército — e sargentos — no Partido também se ofereceram como voluntários. Esse foi o núcleo para a formação da FEB. Então nós fizemos voltar todo o Partido para o trabalho de massas, para o trabalho estudantil, para o trabalho sindical, para o trabalho popular, para o trabalho de luta contra o fascismo — a luta democrática.
Ao mesmo tempo estávamos reconstruindo o Partido. Um departamento sindical que se organizou na Liga de Defesa Nacional foi o embrião para formar o Movimento Unitário dos Trabalhadores, o MUT. As lideranças sindicais que saíam das prisões nós fomos articulando, nesse movimento, e fomos retomando todo o movimento sindical brasileiro — que havia sido tremendamente golpeado desde a insurreição nacional libertadora de 1935. Então, esse nosso trabalho foi adquirindo amplitude, a ponto de nós realizarmos, em agosto de 1943, uma conferência nacional, chamada Conferência da Mantiqueira, que se realizou num sítio de elementos do Partido, que eram camponeses pobres. Esse sítio fica próximo ao município de Barra do Piraí. A Conferência da Mantiqueira contou já com delegados da Paraíba, de Alagoas, de Sergipe, da Bahia, de Minas Gerais, do Estado do Rio, de São Paulo, de Santa Catarina, do Paraná e do Rio Grande do Sul.
Albino – E do Pará, o Amazonas...
Arruda – Sim. E do Pará. Do Pará também veio um delegado. Nessa Conferência a gente estava com uns mil e oitocentos militantes. Aí é que se tira um novo Comitê Central, na chamada Conferência da Mantiqueira. Esse Comitê Central tira uma Comissão Executiva e um Secretariado. Para o Secretariado são eleitos José Medina, eu, o Maurício Grabois e o João Amazonas. E para o Birô Político, ou Comissão Executiva, Pedro Pomar e outros elementos que não me recordo agora. Aí é que o Prestes é eleito membro do Comitê Central do Partido — Marighella também (foi eleito) membro do Comitê Central do Partido. E alguns outros presos políticos (foram eleitos) membros do Comitê Central e muitos outros camaradas já provados nas prisões, na clandestinidade, nas torturas etc. Nós éramos muito rigorosos a respeito desse problema.
Iza – Só ali que Prestes é eleito membro do Comitê Central?
Arruda – Sim, só ali que Prestes é eleito.
Albino – Ele foi nomeado em 1931, na União Soviética, secretário-geral no lugar de Astrojildo Pereira...
Arruda – Não, não. O Prestes só foi aceito no Partido em agosto de 1934. Depois, em 1935 ele vem ao Brasil, e é proposto para o Comitê Central. Há resistências no Comitê Central em 1934 para ele ser membro do Partido. Foi preciso uma solicitação do Comitê Executivo da Internacional Comunista. Também em 1935, uma solicitação do Secretariado Sul-Americano da Internacional Comunista para ele ser membro do Comitê Central. Porque aí ele era do Secretariado da Internacional Comunista, junto com Harry Berger, cujo nome verdadeiro era Arthur Ewert, que era um operário metalúrgico alemão que tinha sido deputado pelo Reichstag, tinha sido membro do Comitê Central do partido alemão e do secretariado do partido alemão, e também membro do Comitê Executivo da Internacional Comunista. E tinha outras personalidades. Muitos desses elementos foram presos, Berger passou dez anos na prisão. Morreu torturado barbaramente o Barron(5), que era um jovem comunista norte-americano, membro da Internacional da Juventude Comunista etc.
Albino – Astrojildo nessa época ainda era o secretário, não é?
Arruda – Não. Astrojildo tinha sido afastado de secretário-geral do Partido em fins de 1929 e expulso em 1930, como oportunista de direita.
Albino – E depois foi readmitido?
Arruda - Astrojildo só foi readmitido no Partido em 1945 com a legalidade. Ele passou, portanto, de 1930 a 1945 fora do Partido — durante praticamente 15 anos. (A gravação é interrompida.) Em todo esse movimento de reorganização do Partido, o trabalho de massa, o trabalho sindical, o trabalho popular, o trabalho estudantil... o Partido foi crescendo. Nós concentrávamos forças na luta democrática, antifascista, procuramos eliminar todas as tendências sectárias no Partido, e quando chega em dezembro de 1944 nós lançamos a palavra de ordem de "anistia ampla, geral e irrestrita". O movimento adquire corpo em janeiro através de uma campanha de massas muito ampla, da qual participa, inclusive, Osvaldo Aranha — mas na qual também nós botamos comunistas que saíram da prisão para falar em comícios. Essa campanha vai de janeiro a março. Em 17 de abril de 1945, nós conseguimos a anistia.
Albino – Para todo mundo, não é?
Arruda - Para todo mundo. Nesse momento, o Partido está com uns seis mil e oitocentos membros, através de um balanço que nós demos em fins de abril de 1945. Com a anistia, nós lançamos imediatamente a campanha por uma Assembléia Constituinte, democrática, soberana, livremente eleita. E lançamos também a campanha para o reconhecimento da União Soviética e de todos os países socialistas. E ao mesmo tempo começamos a lutar pela legalidade do Partido. Mas nós não iríamos pedir licença ao governo para lutarmos pela legalidade do Partido. Utilizamos um artifício. Procuramos fazer um grande comício(6) no Estádio de São Januário, do Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, em comemoração à anistia — portanto, a liberdade dos presos políticos. Esse comício superlotou o estádio.
Posteriormente, nós realizamos um grande comício no Pacaembu, em São Paulo, que também superlotou. No Pacaembu, nós lançamos a legalidade do Partido. O Partido Comunista do Brasil, a partir de hoje, está legal em todo o Brasil. Foi realmente um espetáculo emocionante. Porque, vamos contar "x" de abril, maio, junho o Partido passou para 40 mil membros, 50 mil membros, 60 mil membros, e em dezembro o Partido já estava com 80 mil membros. Era verdadeiramente emocionante. Nós não sabíamos o que fazer. Estávamos acostumados a dirigir um Partido pequeno. E como dirigir um Partido grande? Nós não sabíamos. Em São Paulo eu me recordo de uma fábrica que foi um espetáculo emocionante, a Arno. Uma fábrica metalúrgica.
Então chegaram os velhos espanhóis, com um bocado de jovens. E eu participei da reunião. Disseram: estamos aqui, nós somos velhos comunistas, mas essa juventude é que é realmente a liderança da fábrica. Esses são jovens de vanguarda na fábrica. Eles disseram: Nós queremos todos entrar no Partido. O que foi significativo foi que esses operários velhos disseram: Nós já demos o que podíamos dar. Essa juventude é nossa continuadora. E elegeram (ininteligível), um jovem de 20 anos de idade, como secretário da célula. Como é que se organiza uma célula do Partido? Nós não sabemos. É como no Sindicato? Não. É assim, assim, assado. Quem são os dirigentes? Vocês é que sabem quem são os dirigentes. Nós não sabíamos. E assim fomos organizando células e mais células nas empresas metalúrgicas, nas fábricas têxteis, no porto de Santos etc., etc. Posteriormente ao comício de São Januário, foi feito um grande comício no Recife(7).
Albino – Foi onde? Na Ilha do Retiro?
Arruda – Não. Foi no Parque 13º de Maio. Foi verdadeiramente emocionante. Pernambuco havia sofrido muito com a repressão. Vários dirigentes e militantes do Partido haviam sido mortos barbaramente pela polícia de Pernambuco. Entre eles, um irmão de Gregório Bezerra, chamado Lourenço Bezerra, que tinha uma mulher e cinco ou seis filhos. O maior tinha parece que 5 anos de idade. Pois bem. Foram quebrando as mãos, os braços do Lourenço, para ele dizer alguma coisa. E Lourenço, mesmo tendo uma mulher e cinco ou seis filhos, nunca disse uma palavra — e morreu assim. Também me recordo de um dirigente do Partido chamado Luiz Bispo, era o primeiro-secretário. Foi preso em 1936, reagiu à prisão e aqueles bandidos da polícia política de Pernambuco, que tinha Etelvino Lins à frente, torturam tanto o Luiz Bispo que depois tiveram que juntar os ossos e enterrá-los num saco de aniagem — porque aquilo já era uma massa informe. Mas Luiz Bispo também nunca disse uma palavra (pronuncia com voz grave e pausadamente).
José Francisco Cabelo de Rato, também um outro herói do Partido, e assim outros e outros tantos. Me recordo que em 1938, 39, havia — 37, 38 — um Secretariado do Nordeste do Comitê Central. O seu primeiro-secretário era um jornalista baiano, chamado Clóvis Caldeira, que foi torturado noite e dia (pronuncia pausadamente) sem parar durante um ano inteiro. Depois de uns dois anos, soltaram o Caldeira e ele parecia um homem que tinha saído de um campo de concentração. Magro, tuberculoso, sem poder falar. Mas o Caldeira nunca disse uma palavra (pronuncia pausadamente e com a voz grave). Foi preso com ele um major da Força Pública do Recife, se não me falha a memória chamado major Calmon.
Conheci depois o major Calmon andando com duas bengalinhas, porque botaram ele numa tortura com soda cáustica e as pernas dele secaram. E o major Calmon nunca disse uma palavra. Então, o povo pernambucano, os trabalhadores, os comunistas de Pernambuco, tinham muitos heróis e mártires. Quando se verificou o comício ali, eu me recordo, foi verdadeiramente emocionante. Eu como pernambucano fui instalar legalmente o Comitê Regional de Pernambuco. Fui também no comício do Parque 13º de Maio, e era impressionante a acolhida de operários, de estudantes para ingressar no Partido Comunista do Brasil.
Iza – E esse crescendo foi até...
Arruda – Esse crescendo foi... tivemos as eleições, em dezembro de 1945, tivemos mais de 12% da votação, fomos o primeiro partido no Rio de Janeiro, em Recife, em Santo André, em Santos, em Sorocaba, fomos o segundo partido em São Paulo. Nas eleições municipais: primeiro partido em São Paulo, elegemos o prefeito de Santo André, de Sorocaba(8), e disparado o primeiro partido em Santos, que era considerada a "cidade vermelha", a Stalingrado brasileira, primeiro partido novamente no Recife etc. Quer dizer: nos principais centros urbanos, e principalmente nos centros operários, nós éramos o primeiro partido. Ele foi crescendo em 1946, em março de 47 nós demos um balanço e o Partido estava com 220 mil membros. Porque em 47 nós íamos realizar o 4º Congresso do Partido.
Só que estávamos preparando o Congresso quando o Partido é fechado por um ato arbitrário, monstruoso, ilegal do Tribunal Eleitoral. O Partido é fechado no dia 7 ou 8 de maio de 1947, é jogado na clandestinidade.(9)
Albino Castro – Arruda, eu queria, antes de avançar até 47, falar mais do período da legalização. Por exemplo, quando Prestes saiu da cadeia ele foi àquele comício com o Getúlio. Quer dizer: o Partido saiu da cadeia, da ilegalidade, e dessa forma foi apoiar Getúlio. Getúlio simbolizava a ditadura. Isso é considerado para muitos um erro histórico do Partido. A aliança com o ditador... Que bem ou mal era o regime dele que tinha torturado e matado.
Arruda – Olha aqui, nós...
Albino – Prestes tinha passado dez anos na cadeia, ele fez aquilo sem consultar os companheiros que tinham reorganizado o Partido?
Arruda – Não, não, não...
Albino – Ah, não foi?
Arruda – Não. Hoje se olhando verifica-se, eu pelo menos acho, que a nossa linha política do período de 1945 a 1947 foi oportunista de direita. Nós acreditávamos que podíamos conquistar o poder através de um processo democrático, eleitoral, parlamentar etc. Éramos dirigentes jovens, os êxitos subiram à cabeça. Grandes vitórias, verdadeiramente desconhecidas na história do Partido e do movimento operário brasileiro. Bem... Mas nós tivemos muitas ilusões de classe. Entretanto, não podemos considerar, não creio correto, que era errada a política que adotamos em relação ao Getúlio. Tinha aspectos que deveriam ser corrigidos. Por exemplo: falar em ordem e tranqüilidade — isso era uma atitude oportunista. Não querer realizar muitas greves — outra atitude oportunista. O apoio incondicional a Vargas — também uma atitude oportunista.
Entretanto, o apoio a Vargas era correto. Em que sentido? Apoiar o governo Vargas no sentido das conquistas democráticas e nas concessões que ele dava em relação à participação da FEB, em relação à redemocratização do país, em relação ao reconhecimento da União Soviética, em relação à legalidade do Partido, em relação à convocação de uma Assembléia Constituinte. E surge aí um fenômeno original. É que na verdade no Brasil só quem lutou contra o Estado Novo, contra a ditadura de Vargas, foram os comunistas. Mais ninguém (ênfase). O seu Octávio Mangabeira tinha ido para Nova York, para os Estados Unidos. E mais ninguém. O resto é conversa fiada. Então, o Getúlio estava fazendo concessões e mais concessões às forças operárias, às forças populares, às forças democráticas.
É nesse momento que surgem elementos que haviam, como nós dizemos, comido na gamela durante todo os dez anos do Estado Novo para articular um golpe. Quiseram nos envolver nesse golpe. O certo é o seguinte: esse golpe contra o Getúlio foi preparado depois de um célebre discurso do senhor Adolf Berle Júnior, que era embaixador dos Estados Unidos, proferido em Petrópolis, onde disse que o comunismo era um perigo, que estava avassalando o Brasil. E deixando a entender que Getúlio estava fazendo concessões aos comunistas. Então, há toda uma encenação de preparação do golpe.
Na verdade, esse golpe não foi contra o Getúlio. Foi contra o processo de conquistas de liberdades: liberdade sindical, liberdades democráticas. E contra a democracia, porque o povo brasileiro estava avançando no sentido da democracia. Agora são esses tipos, aqueles velhos carcomidos, muitos deles vão para o PSD ou para a UDN — principalmente para a UDN —, que procuraram nos acusar. Uma vez fizemos um discurso na Câmara e desmascaramos. Dissemos o seguinte: passaram tantos mil comunistas, tantos mil aliancistas — membros da Aliança Nacional Libertadora —, pela prisão. Temos no Comitê Central do nosso Partido tantos elementos que somados os seus anos de prisão é tanto. Temos aqui deputados que também tiveram tantos anos de prisão. Morreram comunistas, como heróis e mártires do Partido, tantos e tantos. Levantem, queremos saber, entre os senhores, quantos mortos existem entre os seus partidários e quantos passaram pelas prisões. A Câmara foi esvaziando, porque eles não podiam levantar o dedo de ataque a nós. Nunca enfrentaram a luta assim com um debate conosco, franco e aberto, a respeito dessa acusação.
Agora, com Vargas sucedeu o seguinte: nós procuramos estabelecer um contato, e teve entendimentos antes do golpe dado contra ele em 1945. Dissemos: vamos à greve geral, vamos levantar as forças armadas. Nós tínhamos muita força, principalmente no Exército. E o Vargas disse: Prefiro renunciar e ir embora a fazer uma guerra civil. Porque começa comigo e vai terminar nas mãos dos comunistas. E o Vargas foi embora para a sua fazenda lá em São Borja e não quis enfrentar os golpistas no terreno que deviam ser enfrentados — através de uma greve geral, paralisando toda a vida do país, e através da luta armada. Porque os golpistas eram fracos. Quem tinha força nas forças armadas de fato era o Getúlio, naquele tempo, e os comunistas, o nosso Partido. E Getúlio não quis enfrentar a luta no terreno que era possível para garantir o processo democrático.
Albino – Agora, uma outra coisa curiosa... Ah, você não terminou. Desculpe. Termina, termina...
Arruda – Agora, posteriormente, quando são convocadas as eleições, o Getúlio toma a atitude de organizar... vem o PSD, vem a UDN, vem alguns partidos... e Getúlio toma a iniciativa de organizar o PTB. Não sei se vocês se recordam que o Getúlio deu uma entrevista à revista Globo, onde ele explica os motivos...
Albino – Lá do Rio Grande do Sul. É a revista do Érico Veríssimo.
Arruda - Então, ele dá essa entrevista e diz os motivos por que organiza o PTB. É preciso que a gente refresque a memória, hoje que se quer reorganizar o PTB. Bem, Getúlio dizia o seguinte: o comunismo está ganhando toda a classe operária. Foram organizados velhos partidos, como o PSD, a UDN, parecidos com os partidos antes de 30. E eu preciso — dizia ele — organizar um partido que entre na massa de salário mínimo e evite que o movimento operário seja totalmente ganho pelo Partido Comunista do Brasil. E foi com esse objetivo que Getúlio organizou o PTB — contra o Partido Comunista do Brasil. Para ver se conseguia barrar a nossa crescente influência no movimento operário e no movimento sindical.
De fato, o Partido tinha ganho a maioria já do movimento sindical. Tinha feito um congresso de delegados sindicais de todo o Brasil e organizou a Confederação dos Trabalhadores do Brasil. E nós derrotamos os chamados "queremistas", ou getulistas, no movimento sindical — os pelegos, naquele tempo —, e ganhamos a direção do movimento sindical. Só posteriormente, no governo de Dutra, essa Confederação dos Trabalhadores do Brasil foi fechada. Houve intervenção em dezenas e dezenas... centenas de sindicatos — intervenção em quase dois mil sindicatos. Fecharam as ligas camponesas, fecharam os comitês democráticos, ou comitês populares, fecharam o Partido...
Albino – Agora, uma coisa curiosa que eu acho... Por exemplo... Não sei se isso tem relação já com... Porque a gente aprende na história do Brasil, e vocês já são da história do Brasil, que desde a saída do Prestes (da prisão) passou a haver uma espécie de choque de liderança dentro do Partido. Em 45, o Partido foi à legalidade e em 46 participou das eleições, mas você e o Pomar criaram o Partido Social Progressista.
Arruda – Não, não, não (ênfase). Não havia naquele tempo um choque...
Albino – Tanto é que vocês foram deputados por um outro partido e não pelo PCB (então a sigla do Partido Comunista do Brasil).
Arruda – Não. Foi o seguinte: nós fizemos um acordo com o partido do Ademar de Barros, Partido Social Progressista, para as eleições suplementares (de 19 de janeiro de 1947) em São Paulo. Então, eu e o Pomar fomos candidatos a deputado e resolvemos apresentar as candidaturas — quem resolveu foi o Comitê Central do Partido — pelo Partido Social Progressista.
Albino – Porque já havia uma disputa no Partido...
Arruda – Não. Porque o Partido poderia ser fechado. Então, na verdade, nós elegemos...
Iza Freaza – Estratégia... Foi idéia sua?
Arruda – Não. Foi da Comissão Executiva do Partido.
Albino – Os portugueses fizeram isso também há pouco tempo.
Arruda – O PTB elegeu um deputado, que foi Emílio Carlos, nós elegemos dois, que foi o Pomar e eu, com uma votação verdadeiramente impressionante, e nós elegemos um senador, que foi o Cândido Portinari, o grande pintor. Ele foi eleito. Basta dizer o seguinte: o Roberto Simonsen, que havia sido apoiado pelo PSD, pelo Getúlio e por todo mundo, estava atrás da votação de Portinari cerca de 50 mil votos. Essa noite ia ser fechada a ata geral das eleições em São Paulo. Na noite seguinte, para surpresa, os quase 50 mil votos de diferença a favor do Portinari haviam passado milagrosamente... ou melhor dito: foram roubados e passados para Roberto Simonsen. Quer dizer: o Roberto Simonsen não foi eleito pelo eleitorado. Foi eleito pelo Tribunal Estadual Eleitoral de São Paulo. O verdadeiro senador eleito foi Cândido Portinari.
Portinari fazia uns comícios formidáveis, admiráveis. Ele contava muita história da vida dele, história de quando ele era filho de sitiantes lá em Brodósqui. E também histórias outras. Ele gostava de contar muitas histórias engraçadas. E no interior de São Paulo se gostava muito daquela maneira caipira que ele falava. Eu me recordo que participando de um comício com Portinari, ele contava uma história interessante. Quando ele estava fazendo os murais do Ministério da Educação, que são os chamados ciclos da história do Brasil, o Capanema, que era ministro da Educação, disse: Portinari, está faltando aqui um quadro. Ele disse: Qual é o quadro? Era botar Caxias como o pacificador do Brasil, o patrono do Exército. Porque senão aqueles murais seriam considerados subversivos. Não é possível — você faça essa concessão.
E o Portinari ficou bravo, não quis mais continuar a fazer os murais etc. Então, por muita solicitação, muitos pedidos de Capanema, Portinari aquiesceu em fazer o retrato de Caxias. Não um quadro. E de vez em quando o Capanema ia acompanhar a feitura dos murais. Um dia Capanema pergunta ao Portinari se ele já havia pintado o retrato de Caxias. Ele disse: Perfeitamente, pode vir olhar. O Capanema começou a olhar o mural sobre o pau-brasil, o mural sobre a era do ouro, depois o mural sobre a mineração, sobre o açúcar, o café, a pecuária também etc. E o Capanema vai olhando, vai olhando... volta e diz: Mas não está — não vejo o retrato de Caxias. Ele diz: É porque você não olhou direito. Volte a olhar os quadros. Aí, dizia o Portinari, o Capanema voltou e disse: Mas eu não vejo o Caxias. Onde é que você botou o Caxias?
Ele o chamou para frente do mural que era a pecuária e disse: Olha aqui nesse mural que você vê o retrato de Caxias. Ele disse: Mas eu não vejo, Portinari! Ele disse: Você não vê? Olhe para esta bosta de boi que ela tem a cara do Caxias (risos). Estava a cara de Caxias ali numa bosta de boi (risos). Então o Capanema disse: Não faça isso, Portinari! (rindo) Nós vamos todos para a cadeia! Ele disse: Bem, se você não quer o Caxias como essa bosta de boi eu apago o negócio e fica o dito pelo não dito (risos). E assim ele contava... e o pessoal ria (rindo), dava gargalhadas, batia palmas no interior de São Paulo. E assim (gargalhadas)... era maravilhoso! Isso não pode botar (na entrevista), não é?
Iza – Acho que sim. Lá eles vêem como é que é. E há quanto tempo... Portinari já está morto...
Albino – Agora tem uma história muito engraçada, não sei se é verdade. Dizem que quando o Partido foi para a ilegalidade você e o Pomar continuaram na bancada do PSP. Então quando chegava o Natal vocês iam lá com as mocinhas da juventude comunista recolher uma grana para o Natal das crianças comunistas.
Arruda – (Risos)
Albino – E diz que o Zezinho Bonifácio(10) , certa vez, botou a grana dele, bateu no chão e disse: Arruda, lembre-se bem de mim, estou contribuindo. Naquele tempo existia um medo de que o PC tomasse o poder. É verdade isso?
Arruda – Não me recordo. Eu soube que uma vez a uns jornalistas o Zé Bonifácio falou a respeito. Mas francamente não me recordo desse episódio. Talvez possa ser, mas me falha a memória a respeito. Não me recordo bem desse fato (risos).
Albino – Era uma espécie de pedágio...
Arruda – Em geral os dirigentes do Partido não faziam finanças. Nós tínhamos cuidado (risos). Eles sabiam que eu era dirigente do Partido...
Albino – Depois da ilegalidade do Partido é que vem a história, vamos dizer assim, mais controvertida sua dentro do Partido, não é? Que é a história em que normalmente a minha geração tomou conhecimento através do livro do Peralva, O Retrato. Que é talvez a única versão, ou uma das raras versões, que foi editada sobretudo nesse período que vai de 47 a 56, 57, que é o período da chamada "desestalinização", essa coisa toda. De maio de 47 até 52, que é o ano da morte de Stalin, qual foi o comportamento do Partido? Como ele agiu?
Arruda – 52 não, 53.
Albino – 53, é. O Partido estava preparado para essa ilegalidade? Primeiro tenho uma pergunta mais interessante: o Juracy Magalhães(11) fez uma provocação no plenário perguntando ao Prestes se a União Soviética declarasse guerra ao Brasil de que lado o Partido Comunista ficaria. Eu acho que o Prestes respondeu de uma maneira muito ingênua. Foi uma provocação a qual hoje certamente ele não responderia assim. Como é que você viu aquilo? Você estava na bancada do Ademar de Barros, não é?
Arruda – Não. Eu e o Pomar fomos eleitos pela legenda do partido de Ademar de Barros, mas quando chegamos na Câmara entramos para integrar a bancada comunista. Nos declaramos comunistas. Olha, efetivamente o Juracy Magalhães, como um sujeito muito reacionário, um agente americano desses de um servilismo sem limites, fez uma provocação uma vez num debate na Câmara. Eu creio que, naquele momento, a posição realmente justa, do ponto de vista internacionalista proletário, era dizer o seguinte: Se há uma guerra das potências imperialistas contra a União Soviética, que naquele momento era um país socialista, e o Brasil participa ao lado dos Estados Unidos, da Inglaterra, da Alemanha etc., qual era a posição dos comunistas brasileiros?
A posição dos comunistas brasileiros seria de se colocar contra essa guerra de intervenção, como se colocaram na época da guerra da Alemanha nazista, contra a Alemanha nazista e em defesa da União Soviética, naquele tempo parte do socialismo. E lutar, no caso brasileiro, contra o governo que se integrasse numa coalizão anticomunista, anti-soviética. Então, o papel de um comunista, de um internacionalista, era fazer a guerra civil, era fazer a revolução no Brasil para evitar que a União Soviética, naquele tempo país socialista, fosse esmagada como havia se tentado na época de Hitler. O debate foi muito aceso na Câmara e eles tentaram, através dessa manobra provocadora, isolar o Partido. Não me recordo quais foram os termos da pergunta do senhor Juracy Magalhães, nem me recordo da resposta do senhor Luiz Carlos Prestes.
Mas me recordo que nós procuramos ver como não seríamos isolados. E tínhamos que fazer que ele (Juracy Magalhães) saísse (ininteligível). Não foi difícil. Taticamente, a saída foi o seguinte: nós movimentamos toda a máquina partidária no Brasil inteiro, principalmente da Bahia ao Pará, do Norte/Nordeste, e fizemos uma campanha de massas para que os americanos entregassem as bases militares e navais, que ainda estavam ocupadas por eles desde o período da guerra. E dissemos: Fora, americanos! Fora americanos das nossas bases e de nosso país! Fizemos uma campanha de comícios — o comício do Rio de Janeiro teve mais de 100 mil pessoas. Na Bahia, foi um comício impressionante. Em Recife, foi um comício de quase 200 mil pessoas.
Iza – Em que ano?
Arruda – 46. Esse movimento foi de tal importância que se criou no meio da massa um ódio contra os americanos que eles não podiam sair na rua. Mesmo na Bahia, algumas baianas haviam se casado com oficiais americanos e não puderam sair na rua. Ficaram isolados. Americanos recebiam navalhadas nas ruas de Salvador e de Belém do Pará.
Albino – É verdade. Inclusive a irmã de Marta Rocha...
Arruda - A irmã de Marta Rocha, casada com um americano. A juventude na Bahia fez um movimento de repúdio de tal maneira que a moça teve de ser mandada para os Estados Unidos. Foi um movimento verdadeiramente impressionante, de sentimento antiamericano que surgiu no nosso povo. Legítimo. Foi a nossa saída. Isso representou uma grande conquista para o povo brasileiro, porque os americanos queriam permanecer nas bases navais e nas bases áreas.
Iza – Em que dia o Partido entrou na ilegalidade?
Albino – Oito de maio.
Iza – Na hora em que você soube do negócio, o que você estava fazendo? Você foi cassado imediatamente? E qual foi a reação do Partido? Salve-se quem puder? Como foi?
Arruda – Não. O Partido foi colocado na ilegalidade entre 7 e 8 de maio de 1947. Nós já sentíamos que isso ia acontecer e tomamos todas as medidas. Primeira medida: destruir todos os arquivos do Partido. Recolher os arquivos para os refúgios. E tomamos as medidas também de preservar todas as direções do Partido. Na verdade, não foi preso ninguém. Tomamos uma série de outras medidas para um reajuste do trabalho na clandestinidade. Com o Partido naquele tempo tendo uns 200 mil membros e estando dirigindo o movimento sindical, o movimento camponês e o movimento estudantil, era preciso encontrar as formas adequadas para ir para a clandestinidade. Claro, quando um partido vai para a clandestinidade ele diminui os seus efetivos. Mas o Partido recuou organizadamente, não sofrendo os golpes que a reação desejava desferir.
Iza – Eram quantos deputados?
Arruda – Em 47 nós fizemos o seguinte: deixamos alguns deputados, porque a cassação dos mandatos só veio em janeiro de 48.
Iza – Quer dizer: o Partido ilegal e vocês legais?
Arruda – Legais. Mas recuamos aqueles mais visados e deixamos outros atuando para desmascarar as medidas reacionárias do governo Dutra.
Albino – Tem inclusive a história de que Prestes fugiu da polícia no dia da cassação dos mandatos do Partido e se refugiou no apartamento do João Mangabeira no Hotel Glória...(12)
Arruda – Não. Isso não é verdade. Nós tínhamos um aparelho clandestino bastante bem organizado. O Partido naquele tempo era rico. Por quê? Porque, avaliem vocês: nós tínhamos 17 deputados. Ganhava um deputado 24 mil cruzeiros. Marighella e Amazonas, que eram solteiros, recebiam cerca de 600 cruzeiros. Eu era casado e recebia 1 200 cruzeiros.
Iza – O resto ficava para o Partido?
Arruda – Todo o resto ficava para o Partido.
Iza – De 24 mil, tirava 600, no caso do Marighella...
Arruda – Marighella, Amazonas... Os solteiros. Os casados tinham proporcional à família. Ainda tínhamos os vereadores — nós éramos o partido majoritário no Distrito Federal. Tínhamos vários deputados... nove deputados estaduais em São Paulo, 11 deputados em Pernambuco...
Iza – E foram cassados quantos?
Arruda – Foram cassados todos. Então, isso dava uma base muito grande para o Partido. Nós tínhamos realmente grandes reservas para a direção do Partido, para o Comitê Central, de tal maneira que pudesse não sofrer com as dificuldades naturais que surgem com o Partido na clandestinidade.
Iza – Quando é que você cai na clandestinidade?
Arruda – Eu recuei, mas pouco tempo depois voltei à Câmara. Nós aparecíamos na Câmara durante todo esse período.
Iza – E quando começaram as lutas internas no Partido?
Arruda – Então, dá-se o golpe contra o Partido e nós, através de uma reflexão, vimos que nossa linha política não era correta. É preciso dizer que nós éramos todos jovens dirigentes do Partido. O único dirigente mais velho era o Prestes. E os êxitos tinham sido muito grandes, subiram à nossa cabeça e não observamos que na linha do Partido havia fortes componentes reformistas. Então, através de uma avaliação crítica nós fomos chegando à conclusão de que a linha do Partido era uma linha essencialmente oportunista. Nós acreditávamos ingenuamente que podíamos chegar ao poder através da via democrática, parlamentar, eleitoral. Era realmente uma linha oportunista de direita.
Poucos dias ou poucas semanas depois da ilegalidade do Partido nós começamos uma discussão e chegou a que em janeiro de 48 começássemos já a reformulação da linha do Partido. Essa reformulação foi feita posteriormente, com o Manifesto de Agosto de 1950. Esse Manifesto, na essência, já indica uma posição revolucionária. No entanto, cometemos um erro aí sério de esquerda, que foi subordinar demasiadamente a tática do Partido à estratégia. Tática e estratégia ficaram fundidas. Ora, isso levou a uma rigidez na tática, falta de amplitude na tática, falta de flexibilidade na tática, que dificultava a abordagem das massas pelo Partido. Levava à subestimação dos conhecimentos táticos, de nos aproximarmos mais e mais das massas. Em fevereiro de 51, seis meses depois, chegamos à conclusão de que havíamos, ao sair de uma posição reformista de direita, caído numa posição esquerdista.
Iza – Qual era a posição? Você pode definir assim politicamente? Uma era pela via parlamentar. E a outra?
Arruda – A outra... nós dizíamos que já tinha de ser pela luta armada.
Iza – Essa declaração de 50...
Arruda – É. Então, com o Manifesto de Agosto começa a se elaborar uma linha política revolucionária no país. Mas, como nós caímos em posições esquerdistas, em fevereiro de 1951 nós começamos a pensar na necessidade de elaborar um programa do Partido. Então, tiramos uma grande comissão, e tiramos subcomissões, para trabalhar no programa do Partido. Esse programa nós levamos quase um ano para elaborá-lo. E, então, pela primeira vez elaboramos um programa revolucionário. É preciso dizer que para a elaboração desse programa nós recebemos a ajuda teórica inestimável de Stalin. Dado que se imaginava corretamente o seguinte: num texto de Lênin, ele afirmou algumas vezes que se a revolução, tendo sido vitoriosa na Rússia, fosse vitoriosa também na China e na Índia, estava decidida a vitória da revolução socialista proletária mundial.
Mas acontece que a independência da Índia foi (ininteligível) da burguesia. Então, foi uma revolução frustrada, ou truncada — ou não se realizou propriamente uma revolução na Índia. (trecho ininteligível). Bem, pensavam os bolcheviques, e o camarada Stalin, que essa tese de Lênin podia ser reformulada no seguinte sentido: uma vez vitorioso o socialismo na União Soviética, e vitoriosa a revolução na China e no Brasil (ênfase), estava decidido o destino da revolução socialista proletária mundial. E essa tese era inteiramente correta, porque se a gente pensa como teve repercussão na América Latina a revolução em Cuba, com cerca de 7 milhões de habitantes, quanto mais no Brasil, um país de dimensões continentais — que repercussão iria operar uma revolução vitoriosa no país!
Albino – Agora vamos entrar no terreno em que você é mais conhecido, mais polêmico no Brasil. Nesse período que vai do pós-guerra até 53, você na prática era quem dirigia o Partido. Era o homem que tinha contato com Stalin, era o homem que ia a Moscou...
Iza – Tem até o bigode parecido...
Albino – Tem até o bigode parecido...
Arruda – (Risos)
Albino – A gente queria saber como era o seu relacionamento...
Iza – Como era o Stalin?
Arruda – Então, nós recebemos uma grande ajuda teórica, ideológica...
Iza – É verdade que você era o único que Stalin recebia?
Albino – Do Brasil...
Arruda – Não. Uma grande ajuda teórica do partido bolchevique e do camarada Stalin. Principalmente nesse processo de elaboração do programa, ele teve um papel de dizer como podia desempenhar uma revolução vitoriosa no Brasil. De fato, eu tive a oportunidade de conhecer pessoalmente Stalin. Foi por ocasião do 19º Congresso do partido bolchevique. Stalin era um figura extremamente simpática. Modesto, simples, afável, não tem nada disso que se propalou no mundo. E ele tinha muito carinho com o nosso Partido. Eu não privei particularmente com o camarada Stalin. Lamentavelmente não privei (ininteligível). O camarada Stalin tinha bastante carinho pelo nosso Partido e nos ajudou do ponto de vista teórico. Usava aquela roupa de soldado (pronuncia pausadamente). (trecho ininteligível). Agora, isso de ele cortar algumas cabeças... (cansado, Arruda pede para interromper a entrevista).
Notas:
(1) Nascido João Alves Torres, homossexual assumido, ele desafiava os conservadores ao dançar na noite em cabarés ou desfilar vestido de mulher, como fez no carnaval de 1956. Ganhou a mídia e, até a sua morte prematura, em 1971, virou referência para o culto afro, especialmente no Sudeste do Brasil. (nota de Osvaldo Bertolino) (retornar ao texto)
(2) Advogado, jornalista e banqueiro, participou da formação do Partido Social Democrático — PSD — da Bahia, em 1945 elegeu-se constituinte pela União Democrática Nacional — UDN — e afastou-se da Câmara em dezembro de 1946 para assumir a pasta da Educação e Saúde Pública do governo Dutra. (nota de Osvaldo Bertolino) (retornar ao texto)
(3) Na verdade, ele foi eleito na 3ª Conferência de 1946 (nota de Osvaldo Bertolino) (retornar ao texto)
(4) Leôncio Basbaum, antigo militante e dirigente do Partido (nota de Osvaldo Bertolino) (retornar ao texto)
(5) Victor Allen Barron, radiotelegrafista e técnico em radiocomunicações (nota de Osvaldo Bertolino) (retornar ao texto)
(6) Leia o discurso feito por Luiz Carlos Prestes neste comício. (retornar ao texto)
(7) Leia o discurso proferido por Luiz Carlos Prestes neste comício. (retornar ao texto)
(8) Arruda se equivoca: o Partido não elegeu o prefeito de Sorocaba (nota de Osvaldo Bertolino) (retornar ao texto)
(9) Compreensivelmente, Arruda se equivoca: o 4º Congresso era para ser realizado em 1946. Uma nota da Comissão Executiva do dia 16 de abril de 1946 informa que o Congresso seria adiado "para data mais oportuna" e anunciou a convocação da 3ª Conferência Nacional — quando Milton Caires de Brito foi eleito para a Comissão Executiva. O registro do Partido foi cassado no dia 7 de maio de 1947 (nota de Osvaldo Bertolino) (retornar ao texto)
(10) José Bonifácio Lafayette de Andrada, elegeu-se deputado à Assembléia Constituinte de 1946 pela UDN de Minas Gerais, continuando a exercer o cargo com mandato ordinário. Foi participante ativo da vida política do país, sendo um dos articuladores do movimento que culminou com a queda do presidente João Goulart e o golpe militar de 1964. Faleceu em 18 de fevereiro de 1976 (nota de Osvaldo Bertolino) (retornar ao texto)
(11) Tenente na década de 20, um dos principais articuladores da revolução de 30, interventor e governador da Bahia até 1937, afastou-se de Getúlio Vargas com a decretação do Estado Novo. Ajudou a fundar a UDN, partido pelo qual elegeu-se constituinte em 1945 (nota de Osvaldo Bertolino) (retornar ao texto)
(12) Esse episódio ocorreu, na verdade, quando a polícia invadiu a casa de Maurício Grabois, já em 1948. Prestes estava na residência. Ambos fugiram e se refugiaram no apartamento de Octávio Mangabeira, no Hotel Glória (nota de Osvaldo Bertolino) (retornar ao texto)
Fonte |
Inclusão | 10/12/2007 |
Última alteração | 04/12/2015 |