Sobre a Guerrilha do Araguaia(1)

João Amazonas

16 de Maio de 1996


Fonte: Fundação Maurício Grabois. Revista Princípios, edição 44, Fev-Abr, 1997, Pág. 64-78.
Transcrição: Diego Grossi
HTML:
Fernando A. S. Araújo


Inácio Arruda (Dep. Federal PCdoB/CE) João Amazonas – Sr. Presidente da Comissão dos Direitos Humanos, Deputado Hélio Bicudo; demais membros da Mesa; Srs. e Sras. Deputados presentes e convidados. Agradeço a oportunidade que me concedem de prestar um depoimento sobre o que se convencionou chamar Guerrilha do Araguaia.

Esta epopéia ganhou ampla repercussão recente com as reportagens do jornal O Globo, baseadas em informações de fonte militar. O assunto sempre foi proibido no país pelos militares, proibição que algumas vezes foi contornada. O Jornal da Tarde, de São Paulo, e o repórter Fernando Portela, já haviam revelado para o grande público, em princípio de 1979, uma série de aspectos da luta heróica do sul do Pará. Agora, com as publicações de O Globo, o Araguaia alcança maior divulgação.

Trata-se de acontecimento marcante na história das lutas populares no Brasil. O General Hugo de Abreu chegou a afirmar que essa foi a luta mais importante já realizada no meio rural.

Araguaia existiu! É impossível negar ou apresentar os fatos sob versão distorcida. O povo tem o direito de saber, de conhecer sua história recente, porque são essas lutas que acabam marcando o caráter do próprio povo.

Todos sabemos que há mais de trinta anos implantou-se no país uma ditadura militar que se voltou raivosamente contra o povo. As liberdades foram brutalmente suprimidas, e a atividade política, rigorosamente controlada, limitava-se a dois partidos, o MDB e a ARENA. Instaurou-se um regime de perseguição aos democratas conseqüentes, particularmente à juventude.

É claro que o povo brasileiro reagiu e promoveu inúmeras manifestações de protesto contra a tirania que se implantara no país. Uma dessas manifestações, que ficaram em nossa memória, foi a grande Passeata dos Cem Mil, que condenava a morte do estudante Edson Luís, no Rio de Janeiro.

Os militares responderam a estes atos com brutalidade nunca vista: torturas infames, assassinatos de presos políticos no DOPS e nos DOI CODI. Eu mesmo perdi muitos camaradas – os quais recordo sempre com muitas saudades – mortos nos órgãos de repressão, sob bárbaras torturas.

As greves foram proibidas. Os sindicatos interditados. Enfim, com o chamado Ato Institucional nº 5, impôs-se um regime de terror contra o povo, isso sem falarmos nos planos terroristas do Rio-Centro e das maquinações monstruosas do brigadeiro Burnier, denunciadas pelo capitão Sérgio, conhecido como Macaco.

É nesse ambiente que surge o Araguaia, organizado e dirigido na clandestinidade pelo Partido Comunista do Brasil. Araguaia não era um movimento subversivo, como costuma dizer a repressão, não visava implantar o socialismo no Brasil. Destinava-se a organizar a resistência armada contra a ditadura, já que não havia espaço para outras formas de luta nas cidades.

O objetivo político da Guerrilha do Araguaia estava enunciado em um documento largamente distribuído entre a população do sul do Pará, intitulado União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo. Esse era de fato o objetivo da luta guerrilheira do Araguaia, um movimento intimamente ligado à população camponesa pobre e sofrida da região.

Outras tentativas de resistência armada já haviam ocorrido no País, organizadas por outras correntes políticas, no Vale da Ribeira e em Caparaó. Porém, duraram pouco tempo. Araguaia resistiu por três anos, é uma página gloriosa das lutas do nosso povo. Enaltecer o Araguaia não é somente enaltecer o papel dos comunistas ou do Partido Comunista. Considero que com o Araguaia, orgulhamo-nos da fibra de nosso povo, da luta de nossa gente, capaz de dar a vida em defesa de princípios morais e políticos dignos da civilização.

No Araguaia encontravam-se jovens de diferentes formações, operários, camponeses, bancários, enfermeiras, médicos, engenheiros, geólogos e, principalmente, estudantes universitários.

Entre eles, o destacado dirigente comunista Maurício Grabois, Constituinte de 1946. Em seu conjunto, representavam a vanguarda do povo brasileiro, o contingente mais decidido da nossa população.

Todos eles lutaram bravamente. Tinham a seu favor o conhecimento da região e a ampla relação com a população local. Enfrentavam, porém, tremenda desigualdade no que diz respeito ao armamento que possuíam, em contraste com as armas sofisticadas das Forças Armadas. Essa luta, era a luta de cem contra vinte mil, a luta de Davi contra Golias. É justamente aqui que percebemos a importância dessa resistência, do ponto-de-vista histórico.

Apesar da desigualdade tremenda, jamais os que ali se encontravam deixaram-se abater. Jovens, homens e mulheres – aqui rendo minha homenagem às mulheres, e não eram poucas – que foram capazes de se igualar aos homens, e, às vezes, até ultrapassá-los em heroísmo e bravura. Homens e mulheres dispostos a todos os sacrifícios para defender uma causa justa, a causa do povo brasileiro, que aspira à liberdade e à justiça social.

As Forças Armadas atuaram no Araguaia como os bárbaros. As reportagens do jornal O Globo dão uma idéia do comportamento dessas forças que se orientavam contra os Guerrilheiros e contra a população local, inclusive contra religiosos de Marabá.

Cometeram crimes imperdoáveis, degolaram Guerrilheiros, expuseram corpos mutilados nas vilas e nas cidades para atemorizar a população, violaram as próprias leis da guerra, a convenção de Genebra, mataram prisioneiros indefesos, torturaram. Muitos dos torturados enlouqueceram, inclusive uma irmã de caridade que se encontra ainda hoje em Marabá. Perdeu a razão, devido às torturas que sofreu.

As Forças Armadas destruíram tudo o que podia lembrar a Guerrilha: incendiaram os barracos construídos pelos guerrilheiros e os móveis primitivos que eles haviam improvisado. Terminada a luta, passado mais de um ano, ainda prosseguiam na caça aos dirigentes do Araguaia, movidos pela idéia de que era preciso liquidar tudo. Aplicaram a política de terra arrasada – de não deixar vivo nenhum dos que combateram no Araguaia. Assim, um ano e meio depois, no dia 16 de dezembro de 1976, acabaram matando Ângelo Arroio, um dos comandantes da guerrilha, no episódio conhecido como a Chacina da Lapa. Nessa ocasião, haviam planejado também consumar o meu assassinato, segundo as declarações feitas pelo próprio General Dilermando Monteiro à revista "Isto é", em 1976.

Araguaia é mais um elo na longa cadeia das gloriosas lutas populares do Brasil. Devemos nos orgulhar dos feitos do nosso povo, que têm se rebelado diante de todas as injustiças. Nosso povo tem tradição de combate pela liberdade e pela democracia. Jamais curvou-se, submisso, à prepotência. São muitos os exemplos: Cabanagem, Guararapes, Canudos, Contestado, Revolta da Chibata, Zumbi dos Palmares, Revolução dos Alfaiates e, hoje, o Movimento dos Sem Terra. Esses movimentos sempre enfrentaram em desvantagem o adversário poderoso e arrogante. Esmagados no passado, deixaram exemplo que viverá para sempre. Nós, brasileiros, enaltecemos esse espírito de rebeldia que forma a tradição de combate pelas causas justas e afirma o próprio caráter de um povo.

A história – e a do Araguaia mais recentemente - , indica que neste país a opressão, a tirania e a submissão ao estrangeiro não vingarão, serão inevitavelmente combatidas. A liberdade, a justiça social, a independência da pátria acabarão triunfando.

É o recado que, daqui, eu poderia dar às forças reacionárias. Se tentam liquidar a soberania de nosso país e implantar regimes de opressão e violência contra o povo, pensem no que estamos discutindo hoje. Sempre haverá combatentes decididos, que se levantarão para defender a honra da nossa pátria e da nossa gente.

Ao denunciar os crimes cometidos pelas Forças Armadas devo dizer que não nos move qualquer propósito revanchista. Não somos opositores inflexíveis das Forças Armadas. Apreciamos os fatos do ponto de vista histórico. Hoje, vivemos uma situação cheia de perigos para a Nação. Os imperialistas tramam a destruição das fronteiras nacionais, a liquidação do Estado Nacional, o desmantelamento das Forças Armadas nacionais. Os democratas e patriotas resistem e resistirão a esses propósitos colonialistas. E sabemos que as Forças Armadas têm papel importante a jogar nessa resistência.

Precisamente por isso, acreditamos que as Forças Armadas, ao invés da pretensão de jogar o manto do esquecimento sobre fatos da História, ou da repetição de velhos chavões repressivos, deveriam reconhecer abertamente os crimes cometidos, que, inclusive, tiveram opositores no seio das próprias Forças Armadas. Não sou dos que acham que as Forças Armadas agiam unanimemente, que não havia discrepâncias dentro delas. Havia setores que condenavam as barbaridades cometidas.

Seria oportuno que as Forças Armadas proclamassem que tais crimes contra o povo jamais serão repetidos. As Forças Armadas são instituições pagas com o dinheiro do povo, não podem tê-lo como inimigo principal. É necessário que repudiem tais crimes, condição para que possam contar com a simpatia do povo, preparando-se para as grandes batalhas que poderão advir em defesa da soberania e da independência da Pátria.

O Partido Comunista do Brasil não faz proselitismo em função do Araguaia. Nosso Partido achou que cumpriu o seu dever, de procurar, em condições difíceis, o caminho da resistência, preparando o fim do regime de tirania implantado no Brasil.

O Partido Comunista simplesmente cumpriu o seu dever, e cumprirá em qualquer circunstância, porque é um Partido integrado com as raízes do nosso povo e que aspira a um regime de liberdade, de justiça social, de esperança para a nossa gente tão sofrida e humilhada, sujeita a um processo de degradação que horroriza a todos nós.

Enfim, queria terminar a fase inicial do meu depoimento, dizendo: Que vivam eternamente na lembrança dos brasileiros os feitos gloriosos dos Guerrilheiros do Araguaia.

PRESIDENTE (Deputado Hélio Bicudo) – Antes de prosseguirmos, gostaria de anunciar que se encontra nesse recinto o jornalista e ilustre parlamentar português Miguel Urbano Rodrigues, que participou do Parlamento Europeu e a quem peço se dirija à mesa para dela participar.

Dando prosseguimento aos trabalhos, vamos passar aos debates. Tenho aqui uma lista de parlamentares inscritos e vou chamá-los segundo a ordem de inscrição.

Concedo a palavra ao nobre Deputado Inácio Arruda. DEPUTADO INÁCIO ARRUDA – Sr. Presidente; Srs. Deputados; Sr. Presidente do PCdoB, ex-Deputado desta Casa, ex-Constituinte; Deputado Miguel Urbano. Inicialmente, cumprimento a Comissão, que acolheu por unanimidade o requerimento que fizemos para que o Presidente do PCdoB pudesse fazer esse depoimento. Além dos jornalistas que declinaram do convite, cito o Ministro da Justiça, que também deverá prestar esclarecimentos, visto que as reportagens anunciaram que o Ministério já tinha em mãos, há mais de dois anos, toda aquela documentação que inspirou as reportagens sucessivas do jornal O Globo.

Uma das questões que destino ao presidente do PCdoB, dirigente daquela resistência armada ao regime militar, é no sentido de buscar os aspectos que se põem hoje diante de nós para o esclarecimento mais amplo possível da população sobre o episódio do Araguaia. Um dos questionamentos centrais a respeito do Araguaia é o de que tratar-se-ia de uma resistência diminuta, de poucos e de homens que não tinham uma ligação forte com o povo da região. Por isso, teriam sido facilmente isolados.

Gostaria que o nosso convidado pudesse dissertar sobre o assunto e dizer se esse movimento teve uma ampla aceitação ou não, na região. Inclusive porque está vinculado a um problema que o Deputado Nilmário Miranda acaba de levantar, não só dos remanescentes que eram guerrilheiros e que foram para aquela região pela via da organização política do Partido Comunista do Brasil, mas daqueles que participaram da Guerrilha, que não eram membros do nosso Partido, e deram franco apoio àquele movimento de resistência.

Recentemente, reportagens sucessivas da televisão no local mostraram depoimentos de mães de jovens da região que participaram de forma ativa e que ajudaram a Guerrilha. Quero ouvir a opinião do Sr. João Amazonas a esse respeito e também sobre como essa organização política pode contribuir efetivamente para o esclarecimento e até para a localização de determinadas regiões. Hoje, um dos principais problemas é a desinformação sobre onde poderiam estar enterrados os Guerrilheiros do Araguaia. Existe um livro: Xambioá. Um dos militares que participou daquele episódio, já no seu final, fala que é um livro de ficção, mas passa a apontar regiões do sul do Pará onde possivelmente nós podemos ter cemitério de Guerrilheiros.

DEPUTADA SOCORRO GOMES – Sr. Presidente, Deputado Hélio Bicudo; nobre Presidente do Partido Comunista do Brasil, companheiro João Amazonas; nosso ilustre visitante, jornalista Miguel Urbano, ex-Deputado comunista de Portugal; demais deputados. Eu atribuo a maior importância a esta reunião e aos esclarecimentos prestados pelo Presidente do Partido. Muito tem se falado da guerrilha, e ninguém melhor para explicar as razões, os objetivos e como surgiu o movimento que o teve como dirigente.

Esse movimento apresenta-nos uma questão que continua atual. Se um povo é amordaçado, se são destruídos seus mais elementares direitos, se a soberania de um país é aviltada e não há qualquer forma de se opor do ponto de vista pacífico, como naquele momento; se todas as manifestações democráticas são cerceadas, concordo plenamente com o que o Partido Comunista do Brasil demonstrou na prática: o povo tem de encontrar formas para manifestar sua rebeldia, sua dignidade, seu espírito altaneiro. Foi o que a Guerrilha provou: o espírito heróico do nosso povo numa guerrilha integrada e dirigida por integrantes do PCdoB.

Não só o nosso Partido, mas várias outras organizações do povo brasileiro manifestaram-se naquele momento. A forma encontrada foi a da via armada, até porque as Forças Armadas estavam a serviço do que havia de mais podre e de mais reacionário, suprimindo as liberdades. Uma manifestação de duas ou três pessoas, era dissolvida a bala; pessoas eram torturadas até a morte. Enquanto existirem organizações como o PCdoB e pessoas como os Guerrilheiros do Araguaia, há esperança. Isto, para mim, é um ensinamento.

Mas, por outro lado, o momento também mostrou uma outra coisa, uma nódoa. Aquela coisa hedionda que fica na sombra – a tortura - , quando o Estado tem um lutador, um combatente, um opositor nas suas mãos, completamente indefeso, preso, sem nenhuma condição de defesa, e pratica um crime condenado pela humanidade, até o extremo da morte de um preso que está sob sua proteção, sob sua guarda.

Esta é uma questão, uma questão que ainda não foi resolvida, como disse o Presidente do PCdoB, João Amazonas. Houve uma anistia. Mas anistia para torturadores? Não há lei no mundo que os proteja. Foi rompida qualquer convenção. E a vida ali não valia nada. Não só a vida do ponto de vista físico, mas do ponto de vista da dignidade.

Portanto, é uma questão que precisa ainda ser respondida pelas Forças Armadas. Elas devem explicações à sociedade brasileira. Enquanto isso não for respondido – reforçando as palavras do nosso visitante - , há necessidade de que as Forças Armadas respondam e digam que, de fato, houve erros e crimes hediondos foram cometidos. Que seja encontrada uma forma em que a sociedade perceba que há uma vontade de corrigir esses erros e não mais cometê-los. E por que? Porque esses crimes se perpetuam. Eles ocorrem até hoje. Por isso são atuais, como ocorreu em Eldorado dos Carajás e em Corumbiara. As vítimas estavam indefesas, completamente desprotegidas. Fez-se uma execução sumária. O poder da força e da truculência vem sendo demonstrado.

Então, é necessário, de fato, que haja uma punição rigorosa para esses crimes. Penso também que, do ponto de vista do Parlamento brasileiro, também essa questão não tem sido respondida à altura. Um projeto do Presidente da Comissão foi completamente desvirtuado. Em suma: foi derrotado o projeto que trata dos crimes militares e que deveriam ser julgados pela justiça comum.

Gostaria, por último, de dizer que é necessário que se conheça essa página da história. É necessário que se enterre os mortos e, principalmente que se conheça o que aconteceu ali no Araguaia. Foi a truculência mais desvairada dos opressores contra uma manifestação da sociedade, que estava oprimida. Em que pese ter sido 100, 69 ou 80 guerrilheiros, o que estava ali era a vontade expressa da sociedade brasileira naqueles jovens. Era o sentimento da esmagadora maioria da nação. Tanto é que o regime foi derrotado, porque o povo, agindo daquela forma, instaurou uma nova fase na história de luta contra a ditadura.

Quero dizer que estamos aqui à disposição para encaminhar mais essa batalha, que é a localização dos corpos. Entendemos também que precisamos do apoio de todos os partidos, porque este não é um assunto da esquerda ou do PCdoB. É um assunto da sociedade brasileira. Pedimos a todos os parlamentares que tem um compromisso com a democracia que apóiem a Comissão Externa, para que possamos ir às últimas conseqüências na busca dos restos mortais dos desaparecidos.

DEPUTADO HAROLDO LIMA – Sr. Presidente, Deputado Hélio Bicudo; Sr. Presidente do Partido Comunista do Brasil, ex-Deputado Constituinte de 1946, João Amazonas; Deputado Pedro Wilson; Deputado Miguel Urbano Rodrigues; Srs. Deputados; minhas senhoras, meus senhores. Na realidade, ouvimos do dirigente do Partido Comunista do Brasil uma exposição sintética sobre o significado histórico do Araguaia no Brasil.

Vimos o camarada João Amazonas ressaltar que o Araguaia é visto hoje pelo seu Partido, e por ele próprio, como um fato de enorme importância histórica. Mas um fato histórico que, por conseqüência, como todos os fatos dessa natureza, a própria comunidade deve, por um lado, reverenciar e, por outro lado, prestar contas. Ou seja: temos ainda algumas dívidas a serem pagas com relação ao Araguaia. Decididamente, uma dívida foi paga, depois de muita batalha: consegui-se que aos mortos do Araguaia fossem dados certificados de óbito. Não foi fácil. Foi longa essa luta. Agora é necessário que se localize os restos mortais dos Guerrilheiros do Araguaia. Assim, a partir daí, poderemos dar por cumprida essa etapa que o movimento democrático e popular brasileiro tem a cumprir, que é de justamente homenagear o Araguaia na sua devida altura.

Gostaria de informar aos presentes e ao Sr. Presidente, que, desde que chegamos aqui na Câmara dos Deputados, já há quase quatorze anos, com os Deputados daquela época, que eram em número menor, e os Deputados progressistas dos demais partidos, procuramos nos orientar no sentido de tentar chegar ao esclarecimento de fatos, que até hoje não foram suficientemente esclarecidos.

Estivemos mais de uma vez com os Ministros da Justiça, do Exército, da Marinha, de governos passados, fizemos viagens ao Araguaia, vasculhamos diversas hipóteses de encaminhamentos para elucidar certos aspectos. A partir de determinado instante, começamos a sentir dificuldades quase que intransponíveis. Nestes últimos anos, as coisas passaram a ficar numa espécie de “banho-maria”.

Eis que agora, com as reportagens feitas pelo jornal O Globo, o assunto retorna com muita força, porque há indicações mais recentes. Isto fez com que a direção do Partido, em comum acordo com a bancada nesta Casa, deliberasse reorganizar uma Comissão Interna do PCdoB, constituída por mim, pelo deputado Aldo Arantes e pelo Deputado Linbderg Farias, para acompanhar, junto às Comissões desta Casa e junto aos órgãos do Governo (Ministério da Justiça, Ministério do Exército etc.) as iniciativas inspiradas pelas ultimas revelações.

Quero aproveitar a oportunidade para fazer algumas perguntas tópicas ao Presidente do Partido, Sr. João Amazonas. Devo dizer que em relação a algumas delas eu tenho uma certa idéia, mas sei que aqui há muita gente que é mais nova e não tem informações mais precisas. Há muitas curiosidades.

Gostaria de saber topicamente: a preparação do Araguaia durou quantos anos? O camarada João Amazonas morou na região do Araguaia? Durante quanto tempo? Tendo morado – eu sei que o fez – qual a sua atividade específica na região do Araguaia?

Sei que na região do Araguaia, foram assassinados e morreram em combate muitas pessoas importantes na vida do Partido, na vida dos trabalhadores brasileiros, mas essa história é muito pouco contada. Para não me estender muito, pediria ao Presidente João Amazonas que dissesse algumas breves palavras sobre quem foi politicamente, na história do Brasil, e na história da luta popular brasileira, pelo menos três pessoas: Maurício Grabois, Ângelo Arroio, Osvaldo Orlando Costa. Quem foram essas pessoas? O que eles fizeram?

Sei também que no Araguaia morreu uma pessoa que é conhecida no Partido como Preto Chaves. É personagem num livro de Graciliano Ramos e esteve preso com este escritor – que, no livro Memórias do Cárcere, relata que o encontrou na cadeia. Eu pediria ao camarada João Amazonas que dissesse alguma coisa sobre ele – uma figura mitológica na nossa história, um homem que vem desde os porões da nossa luta contra a tirania e a arbitrariedade.

Em seu relato, Amazonas chama a atenção sobre a existência de um espectro amplo de tipos humanos no Araguaia. Referiu-se a trabalhadores, geólogos, médicos, enfermeiras e, sobretudo, segundo salientou, estudantes. Minha pergunta é: o que fazia esse tipo de gente lá no Araguaia, sobretudo durante anos seguidos? Qual a atividade que eles desenvolviam?

O Partido Comunista do Brasil é conhecido como um Partido intransigente, de luta, o “Partido da Guerrilha”, etc. Em passado recente, escutávamos a militância dizer: “um, dois, três, quatro, cinco, mil, um Araguaia em cada canto do Brasil”. Pergunto: o Partido que organizou e dirigiu o Araguaia prevê a possibilidade de novos “Araguaia”?

JOÃO AMAZONAS – Falar sobre o Araguaia, sobre a vida dos guerrilheiros, sobre suas emoções, sobre sua atividade naquela região, seria tomarmos uma grande parte do tempo.

Começo dizendo que estive no Araguaia como dirigente do Partido, desde o começo de 1968. De vez em quando vinha a São Paulo, onde passava um mês, porque era o principal dirigente do Partido, e depois voltava à atividade de preparação de uma luta muito difícil. Tivemos apoio da população e precisamos dizer que a orientação que seguiu o Partido no Araguaia não foi a que, por exemplo, adotou Che Guevara na Bolívia. Che Guevara chegou na Bolívia com a idéia de organizar uma força estranha no interior do país, e de que essa força devia começar a combater em certo momento e acabaria, como em Cuba, derrotando os inimigos e se tornando vitoriosa. Não! Achávamos o contrário: sem conhecer a população, sem merecer o seu apoio, sem ajudá-la em suas dificuldades, a Guerrilha do Araguaia não poderia existir. Este era o nosso pensamento principal. Chegamos, em fins de 1967, ao Araguaia. Todos que foram, se empenharam a fundo na tarefa de ajudar a população, conhecendo-a e prestando serviços desinteressadamente, para que esta população visse quem eram aquelas pessoas que estavam ali, pela prática diária.

Assim, eu poderia revelar uma centena de casos. Por exemplo: o destacamento onde eu estava localizado, Gameleira, ficava numa região de babaçu. As mulheres daquela região se dedicavam a quebrar babaçu – mão-de-obra difícil e dura – para conseguir algum dinheirinho para comprar o querosene, sal, etc. Onde estávamos, havia uma família próxima. Veio uma mulher e nos disse: “eu queria que vocês autorizassem, que eu entrasse na área de vocês, onde vocês estão, pra quebrar babaçu”. Como não? Pode estar à vontade e quebrar o babaçu que quiser. Essa mulher ficava fazendo aquele barulho o dia todo, quebrando babaçu. Um dia, a japonesinha, a Sueli, levou-lhe um cafezinho. A mulher caiu em prantos. Chorava e dizia: “nunca aconteceu isto na minha vida. Virem me trazer um cafezinho aqui”. Foi uma cena emocionante; ainda hoje, quando recordo o fato, sinto a emoção do momento.

Também no Araguaia, os comunistas tratavam de dar indicações mais avançadas para a população, sobretudo no terreno da organização. Um vizinho nosso, um pouco distante, vivia sozinho e tratava de sua pequena roça com grandes dificuldades. Um dia este camponês ficou muito doente. Na Amazônia, não existe só a selva e os animais perigosos, mas também as doenças como a leshimaniose, a malária, etc. Este camponês ficou imobilizado. Tivemos informações por outros camponeses. Na época de plantar, se não o fizer, acabou-se; não pode plantar noutra hora, tem de plantar naquela época.

Então, decidimos convocar outros camponeses e propor a eles: vamos lá domingo, fazer um mutirão na roça desse companheiro que está doente, plantar para ele. Vamos ver se podemos assegurar que ele tenha condições de sobrevivência. Assim foi feito: conseguimos mobilizar vários camponeses da região. Fomos para lá no domingo, fizemos um mutirão, limpamos, plantamos, o pessoal estava alegre, cantando. Fizemos tudo. Depois tivemos uma conversa com eles. Os camponeses diziam assim: “companheiros, o ano que vem vai ser um ano bom porque começou nossa união”. Com aquele ato que estávamos fazendo, chamando para trabalhar em conjunto, assegurando a vida de um companheiro que estava sem condições de realizar seu trabalho, estimulávamos a organização.

São dois fatos que cito ao acaso, para mostrar que centenas de fatos como estes se repetiram e, por isso, os “paulistas” – como dizia a reação – eram queridos e respeitados por essa massa. Basta dizer que a nossa casa, o nosso barracão ficava um pouco separado. Havia uma picada na frente e os camponeses diziam o seguinte: “moça, não passa nessa estrada desacompanhada. Pois não é que agora as moças passam desacompanhadas aqui?! É porque sabemos que vocês respeitam as pessoas, vocês não vão fazer nada de mal com as pessoas que passam aqui

Com isso, fomos ganhando a simpatia e o amor da população. Quando o inimigo atacou, em 12 de abril de 1972, deu-se um fato importante; ninguém havia dito lá que iria resistir armado ou coisa que o valha. Chegou o Exército e, antes de chegar no primeiro ponto onde estavam acampados alguns companheiros, parou numa residência para pedir informações. O camponês ficou muito assustado, viu que era o Exército. Então, o camponês começou a conversar e a ganhar tempo. Chamou o filho pequeno e disse: “vai por dentro da mata e, avisa seu Joca que o Exército está aqui e vai pra cima deles”. E assim foi feito.

Quer dizer, houve apoio da população desde o primeiro momento. Este apoio acabou refletindo-se no fato de haver participado da guerrilha mais de 40 camponeses. Participaram da guerrilha, integraram-se com o movimento guerrilheiro.

Mas não foi só isso. Como é que esse movimento poderia durar três anos, se não tivesse o apoio da população? A população espadeirada, torturada e arrancada com suas crianças do local em que viviam, buscava meios de dar alimentos aos guerrilheiros, fazia sacrifícios para ajudá-los.

Devo dizer que não foi só a população. Alio houve sacerdotes da Igreja Católica que prestaram ajuda aos guerrilheiros, porque eles também viam o que acontecia. Um dos padres com que conversei dizia assim: “o que vocês fizeram? Exerço há 15 anos o sacerdócio nesta zona e tenho dificuldade de ganhar a consciência da população. O que vocês fizeram para serem tão admirados, tão queridos por esta população?” E respondíamos: “não fizemos nada. Trabalhamos e convivemos com eles”.

Por isso, é um erro pensar que o Araguaia foi um movimento isolado. Foi um movimento que contou com amplo apoio da população. E essa população sofreu barbaramente com a introdução das Forças Armadas nos locais onde viviam. Há depoimentos – isso, O Globo publica hoje – de pessoas que ficaram loucas devido às torturas. Arrancavam dezenas de famílias dos seus lares e as jogavam para outros locais, sem condições de sobrevivência, como castigo. Tenho uma lembrança muito viva do afeto da população.

Também não fizemos isto artificialmente. Nós, como comunistas, queríamos aprender como nos ligar ao povo, como poderíamos ser verdadeiros representantes do povo. Fazíamos essa experiência social e política.

Por isso, devo dizer: para nós, o Araguaia foi uma grande experiência. Demonstrou que o nosso povo tem qualidades imensas, vontade de luta, de apoiar todos aqueles que realmente lutam pela justiça e liberdade.

Nós não vivíamos diferente do povo. Vivíamos como o povo vivia. É claro que nós tínhamos sal, açúcar, um cafezinho de vez em quando, mas o resto era igual como vivia o povo. Também tínhamos roça, plantávamos, colhíamos, caçávamos para viver. Tudo isto nos identificou com a população local.

Neste país, quem quiser dirigir uma luta de maior envergadura do nosso povo, tem que aprender a conviver com o povo, tem que auscultar os seus sentimentos, sentir a maneira como ele encara a vida e a realidade. Só vencemos o caminho difícil porque pensamos em termos de povo e não em termos de uma pequena elite que se arvora em vanguarda capaz de substituir o povo na tarefa que a ele compete.

Essa preparação durou quatro anos.

Quando eu e Maurício Grabois fomos para o Araguaia, tínhamos 60 anos e muitas vezes montamos em lombo de burro e percorremos 15 léguas dentro da mata, porque era preciso dar exemplo também, era necessário dirigir a luta de forma concreta e não como oficiais que comandam a tropa – que deve realizar os piores trabalhos.

Maurício Grabois é uma personalidade, que a História do nosso País ainda vai registrar como um dos exemplos dignos de nosso povo, uma referência. Foi um jornalista de primeira qualidade, Líder da bancada Comunista na Constituinte de 1946, um grande parlamentar, homem simples, alegre e um comunista de verdade. Quando compreendeu que o único caminho para opor uma resistência organizada à tirania era se situando no campo, não vacilou. Levou o filho também, um jovem interessantíssimo, o André Grabois, que chegou no Araguaia dizendo assim: “eu vim para cá e não sei fazer nada”. E, depois, dava lições de como se deveriam fazer as coisas, porque era um jovem inteligente, que aprendia rapidamente e era capaz de cumprir bem as suas tarefas.

Maurício Grabois morreu de armas na mão. O Exército o emboscou em superioridade muito grande e ele morreu atirando, caiu ao lado dos outros companheiros, mostrando que era decidido. Ele já tinha escrito um bilhete aos religiosos de Marabá, assinado por outros guerrilheiros, em que dizia: “nesta terra já existe gente disposta a morrer pela liberdade”. E assim aconteceu: morreu pela liberdade.

Arroio era um operário mecânico da Moóca, em São Paulo, jovem inteligente que procurou estudar a ciência militar e que tinha uma grande capacidade de direção. Homem bastante respeitado, era um dos comandantes da Guerrilha do Araguaia. Foi lutador de primeira ordem que cumpriu o seu dever até a morte.

O outro é o Osvaldão, uma figura histórica. Deve-se um dia escrever a história desse personagem: um negro de quase dois metros de altura, um homem sério, simples, com todas as qualidades de um herói, combatente de primeira linha. Era conhecido na região como um homem de força extraordinária. Em matéria de demonstrar força, nenhum fazia mais do que ele, nenhum carregava o peso que ele era capaz de carregar. Atirava e caçava muito bem. Foi um elemento fiel, até o fim, à causa que defendeu. Lutou com heroísmo. Era ligado à população e muito querido. É uma dessas figuras – penso - que ainda se deverá destacar na História de nosso povo.

O Preto Chaves é outro. Foi marinheiro e foi para o Araguaia com mais de 60 anos. Participou da Insurreição de 1935. O Graciliano conta em Memórias do Cárcere, que ele foi o preso que mais apanhou. Apanhou – parece – durante um ou dois anos todos os dias, tal era o ódio que a reação tinha por um elemento, era um elemento de grande valor, o Preto Chaves.

Que faziam os engenheiros, geólogos, jornalistas, médicos, enfermeiros? Primeiro, aprendiam com o povo, serviam ao povo, não há dúvida nenhuma. Preparavam-se para uma luta difícil, a luta de Davi contra Golias, de 100 contra 20 mil. É o que faziam esses companheiros. Todos eles eram pessoas de cultura, que tinham conhecimentos superiores. E devo dizer, nunca deixaram, no Araguaia, de fazer discussões de caráter científico e cultural, de promover entre os companheiros certos atos que ajudavam a viver culturalmente. Mesmo no serviço rude e difícil nunca perderam o contato com a cultura.

Lembro-me precisamente do dia 31 de dezembro de 1971. Fizemos uma festa de confraternização no destacamento B. Tínhamos completado 23 elementos neste destacamento. Então, fizemos um ato à noite, numa noite enluarada – lembro-me nitidamente; lá não tem iluminação elétrica. Era uma noite tão bonita, de fim de ano. E a nossa festa consistiu em algumas diretivas militares. O Osvaldão assumiu o comando dos seus 23 homens. Deu algumas ordens de tipo militar, considerando formado o destacamento para o combate, etc. Depois, a Walquiria, o companheiro dela e mais alguns, nos surpreenderam, realizando um teatro social de alta qualidade. Fiquei pensando na capacidade dessa gente, em sua capacidade de criação, e na vivência com a cultura, que eles não haviam perdido.

Por isso, o Araguaia não é uma escola como a reação procura dizer, de brutalidade. Costumam dizer: “os que foram para lá, viveram duramente, coitados e morreram”. Não. Araguaia é uma página de bravura, de vida nova, de alta compreensão do ser humano. O Araguaia é tudo isto. É preciso encará-lo, do ponto de vista histórico, como uma experiência que deve ficar marcada, introduzida na História do nosso país.

Por último, a pergunta sobre “um Araguaia em cada canto do país”. Os jornalistas já me perguntaram sobre isto: “e vocês, vão preparar novos Araguaia? Como é isso?” Devo dizer que nós não atuamos nestas questões como aventureiros, como blanquistas, como irracionais. Para nós, o problema da luta é também de compreensão científica dos problemas que enfrenta o povo. Araguaia é um problema ligado a uma determinada situação, a circunstâncias dadas, ele está encaixado nesta circunstância e levá-lo para não sei onde, não dá certo. Aquela forma de luta correspondia a uma situação concreta do lugar. Por isso, não vamos pensar que patenteamos o Araguaia e agora temos que fazer Araguaias por aí a fora. Nós pensamos que se deve levar em conta o caráter da luta. As grandes lutas têm caráter democrático, ou nacional, ou social. A luta de caráter democrático apresenta formas determinadas de ação. A de caráter nacional apresenta elementos distintos, a social apresenta outras formas. Acho, por exemplo, que o Brasil está ameaçado de ter que travar uma luta de caráter nacional. E uma luta de caráter nacional não é o Araguaia que vai resolver, porque é uma luta que envolve toda a Nação, tem que se encontrar muitas outras formas de todo o povo brasileiro se levantar para defender a sua Pátria, e se tornar vitorioso nesta batalha. A luta do Araguaia assumiu um caráter democrático, não há dúvida nenhuma; era ampla a luta contra a ditadura. A luta social apresenta sentido ainda mais profundo, porque diz respeito a transformações maiores da sociedade, busca novos sistemas sociais e envolve outras formas de combate. Por isso, o Araguaia não é uma questão que deva ser repetida aqui, acolá, sem maior compreensão das coisas. É preciso pensar cientificamente. Hoje, o povo trava a luta contra o desemprego, contra a miséria, contra a fome, contra as violências políticas, etc. Nestas batalhas estamos sempre e todos os dias junto com o povo. Mas, as lutas de maior profundidade, as lutas que determinam mudanças no quadro da sociedade, estas exigem uma verdadeira revolução.

Era o que tinha a dizer, respondendo às perguntas que me foram feitas.

DEPUTADO ALDO ARANTES – Deputado Hélio Bicudo; companheiro João Amazonas, Presidente do meu Partido, o PCdoB, companheiro Pedro Wilson, conterrâneo, amigo de lutas; e meu querido amigo Miguel Urbano, que temos grande prazer de receber aqui no Brasil e com quem estive em Portugal, num encontro sobre o Timor Leste e em outras ocasiões. A questão do Araguaia ficou no esquecimento durante muito tempo. Foram algumas manifestações localizadas, isoladas, tentativas de colocar um manto para obscurecer a resistência armada do Araguaia. Mas, na verdade, nada mais gratificante do que a vida. Um fato histórico da dimensão e do significado do Araguaia não teria como ficar indefinidamente no esquecimento.

A partir das matérias publicadas pelo jornal O Globo, o assunto veio às primeiras páginas de toda a grande imprensa. Isso é um fato indicativo da conjuntura política que nós estamos vivendo. Por que, num determinado momento, um fato que durante tanto tempo ficou no esquecimento, ocupa as páginas dos jornais e dos noticiários das televisões? É porque trata-se de um fato importante e significativo.

Acho que o depoimento de João Amazonas vem – digamos assim – colocar a questão nos seus verdadeiros termos, exatamente porque se trata de uma pessoa que teve uma participação direta no episódio e pode, portanto, analisá-lo e trazer para a sociedade brasileira informações extremamente ricas, no sentido de um resgate histórico dessa luta. Essa luta, como foi dito aqui, não é uma luta do PCdoB. Essa é uma visão estreita. A luta do Marighela não é a luta da ALN. Na verdade, isso tudo faz parte de um patrimônio do povo brasileiro na luta contra a ditadura militar. Nós temos que compreender dessa forma. Não é a luta da ALN, do PCdoB, do Marighela, do Lamarca, do Arroio ou do Amazonas, não. É a luta do povo brasileiro que encontrou diferentes formas para resistir à ditadura militar. Evidentemente, este caminho que o PCdoB encontrou, teve um resultado mais eficiente, porque procurou ligar-se às massas da região.

Esse resgate histórico tem uma importância muito grande porque caracteriza o significado, o conteúdo fundamental dessa luta: a libertação do povo. Igualmente, esse resgate é importante como testemunho para a História e, até mesmo, exemplo para gerações futuras. É um pouco a questão que o Amazonas citou. Apesar de todos os problemas, nós sabemos que um País tem condições de avançar quando encontra homens e mulheres com a capacidade suficiente de submeter a sua vida aos interesses coletivos e, inclusive, em determinada circunstância, morrer na luta em prol de uma sociedade mais justa.

Ao ouvir o depoimento do Amazonas, guardei suas palavras: “o PCdoB lutou naquele momento, e, no futuro, continuará lutando”. E eu me lembrei do sul do Pará, de Rio Maria, onde inúmeros militantes do PCdoB, líderes camponeses, foram assassinados pela repressão local, pelos latifundiários locais. Lembro-me do João Canuto, dos irmãos Brás e Ronan, dos irmãos Canuto, do Expedito. Em certo sentido, há um simbolismo muito grande, porque é um pouco a continuidade da luta do sul do Pará, sob forma diferente e com a presença de militantes do PCdoB à frente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria.

A atual batalha dos trabalhadores rurais, o assassinato dos trabalhadores do sul do Pará, em Eldorado de Carajás, mostra, na verdade, que é uma luta mais ampla de todo o povo brasileiro.

Gostaria apenas de fazer algumas perguntas muito tópicas. João Amazonas falou do programa da Guerrilha do Araguaia, expôs com clareza que a Guerrilha do Araguaia não tinha como objetivo implantar uma revolução socialista e tinha um programa, que era o da ULDP. Eu gostaria que o Amazonas explicitasse um pouco mais o conteúdo programático da Guerrilha do Araguaia, as questões principais do programa da ULDP.

Foi dito aqui que um número razoável (de 40 camponeses) incorporou-se à Guerrilha. Pergunto: há informações de assassinatos de camponeses neste período, além dos que se integraram na Guerrilha? Porque há uma dúvida. Com tão grande violência dos militares naquele momento, certamente pessoas da população, civis, não necessariamente integrados à guerrilha, tais como amigos e colaboradores, foram atingidos. Há informações a este respeito?

Outra questão, referente à identificação do local da Guerrilha. Como o Exército chegou? Como se iniciou o processo de repressão à Guerrilha do Araguaia?

O Deputado Haroldo Lima fez perguntas sobre algumas figuras destacadas do Araguaia. O próprio companheiro João Amazonas falou que a juventude teve um papel decisivo na Guerrilha do Araguaia. Destaca-se aí a figura de Helenira Rezende, ex-dirigente da União Nacional dos Estudantes, entidade da qual participei. Gostaria que o nosso companheiro Amazonas falasse um pouco dessa querida combatente.

DEPUTADA JANDIRA FEGHALI – Sr. Presidente, Deputado Hélio Bicudo; Deputado Miguel Urbano; Presidente do PCdoB, João Amazonas. Algumas perguntas que eu iria dirigir ao João Amazonas, ex-Constituinte de 1946, já foram feitas. Gostaria, então, de formular uma pergunta, expressando um sentimento. Confesso que foi muito emocionante ouvir sua primeira exposição no início desta reunião. Nós, que entramos no Partido depois desse momento, tínhamos o Araguaia sempre como uma marca muito forte, uma marca histórica de luta, uma lição de vida. Ao mesmo tempo, sentíamos a distância de não ter vivido aquele processo. Tínhamos igualmente o sentimento da sombra: como acontece uma coisa dessas num país como este, sem a sociedade saber, sem ter a informação necessária, sem conseguir conhecer a sua verdadeira história?

Quando o João Amazonas começou a falar, o primeiro sentimento que me veio foi o de quando imaginaríamos, numa reunião formal, oficial, da Câmara dos Deputados, poder falar do Araguaia? Quando imaginaríamos que, com a derrubada da ditadura e no momento político em que vivemos, conseguiríamos trazer aqui João Amazonas, aos seus 84 anos de idade, presidindo o Partido Comunista do Brasil, para falar da Guerrilha do Araguaia, luta armada desenvolvida neste País e que até hoje não tinha conseguido chegar às páginas dos grandes jornais, muito menos à televisão?

É ainda mais emocionante quando a gente vê um Guerrilheiro do Araguaia como João Amazonas, percorrendo toda a sua trajetória de 1935 até agora, sem nenhuma mancha em seu currículo, sem uma acusação que desmereça sua atividade política ou a organização que ele preside, que, de qualquer forma, pudesse fragilizar a verdade de seu depoimento. É emocionante para nós, militantes deste Partido – e com muito orgulho - , é emocionante para esta bancada, que atua no Congresso Nacional sob a direção deste Partido, trazer para falar do Araguaia alguém que dele participou e que pode, com toda autoridade e altivez, falar deste acontecimento.

Para nós, militantes mais recentes do Partido – entrei para o PCdoB em 1981 – é muito emocionante assistir uma reunião formal da Câmara dos Deputados sobre este tema e com a tranqüilidade com que assistimos.

Neste momento, sabemos de todos os limites que temos na Comissão formada no Ministério da Justiça, e do Governo Fernando Henrique. Até mesmo conseguimos compreender que, de formas diferentes, antes tínhamos o Araguaia, hoje temos Eldorado de Carajás, na mesma região sul do Pará, onde mais de 700 camponeses já foram eliminados pela repressão. Onde temos uma política de segurança que, cada vez mais, é o braço armado da defesa do capitalismo e do capital contra o trabalho, cada vez mais contra o cidadão. Num momento como este, vemos que a democracia tem várias formas de ser violentada. Antes era da forma como aqui expressou o João, no Araguaia, e hoje é da forma que estamos vivendo, com os massacres de Eldorado de Carajás e de Corumbiara, Carandirú, Candelária, com medidas provisórias legislando pelo Congresso, com o “toma lá da cá” legislando pelo povo brasileiro, com a lei eleitoral e partidária cada vez mais restritiva. A ameaça à democracia continua, por outras formas, mas está aí; é crescente.

A pergunta que eu formulo é a seguinte: que propostas nós poderíamos direcionar à atuação do Congresso nos limites que hoje estão postos para nós, na correlação de forças estabelecida no Brasil, em particular na Comissão, para que possamos avançar além do que diz respeito à indenização das famílias. (Isto é justo mas não resolve o problema. Não abriremos mão de cobrar indenização para os familiares, mas isso de forma alguma responde a tudo que ocorreu no Brasil).

Há a questão de achar os corpos e permitir que as famílias emocionalmente possam, de alguma forma, encerrar um capítulo tão dramático de suas vidas. O que mais, João, você consegue enxergar para que avancemos nesse processo em direção à Comissão de Direitos Humanos, representada pelo Nilmário, e dentro dos limites do Parlamento que participamos? Como você avalia este processo? Que avanços poderíamos ainda conseguir dentro desses limites, na luta democrática e no reconhecimento da verdadeira História do Brasil?

DEPUTADO ALDO REBELO – Sr. Presidente da Comissão, Dr. Hélio Bicudo; Sr. jornalista e ex-Deputado Dr. Miguel Urbano Rodrigues; companheiro João Amazonas, Presidente do PCdoB. Sabemos que, além da atividade do dia-a-dia, da sobrevivência e da ação ligada aos trabalhadores rurais no Araguaia, os militantes do Partido também desenvolviam outras atividades. Parece-me que, na área de saúde, chegou-se a improvisar um hospital que funcionou durante algum tempo, a partir da iniciativa de um médico gaúcho, João Carlos Haas Sobrinho. Como esse trabalho foi construído e o que o Partido via no significado desse tipo de iniciativa?

Outra pergunta é sobre as razões da escolha desse local: porque o Partido privilegiou a escolha do sul do Pará, confluindo com o norte de Goiás, para o desenvolvimento dessa atividade de resistência à época do regime ditatorial?

DEPUTADO SÉRGIO MIRANDA – Sr. Presidente da Comissão, Deputado Hélio Bicudo; jornalista Miguel Urbano; querido camarada João Amazonas. Acho que esse depoimento que está prestando nesta Comissão tem uma dimensão histórica: guardar nos Anais da Casa a opinião e a divulgação de certos fatos ocorridos durante um episódio da nossa História, que ficarão guardados nos arquivos do Congresso Nacional e, sem dúvida alguma, serão estudados e analisados sobre os olhos dos historiadores, dos políticos, sobre os olhos dos que querem conhecer a história do nosso povo.

O comentário sobre a Guerrilha do Araguaia – e isso se refletiu também na sua intervenção – além de ter um aspecto político, tem o aspecto emocional forte. Todos nós que convivemos com muitos dos camaradas que morreram temos, às vezes, uma certa dificuldade, um certo pudor de preservar uma coisa importante para nós. E não tenho dúvida ao dizer que foram os melhores entre os nossos que ali entregaram as suas vidas. Acho importante que além desse aspecto emocional, que, na sua intervenção, você conseguiu politicamente dimensionar, abordasse outros aspectos.

Tenho enfrentado, após as reportagens de O Globo, muitas perguntas num tom mais íntimo. Perguntam: “valeu a pena?” Esse pessoal era jovem e talentoso. Considero que esta pergunta procura olhar apenas a dimensão individual. Se valeu a pena? Acho que a História responde. Compreendo, às vezes, quando lemos alguns livros sobre história, a dificuldade de se descrever o momento histórico.

Somente aquelas pessoas que viveram aquele momento compreenderam o fato de que muitos jovens e pessoas com mais experiência viram que aquele era o único caminho, uma coisa quase natural, de resistir à política daquele tempo. Não havia dúvida. Claro que convivíamos com os nossos medos, com as nossas dificuldades, mas aquilo ali era quase uma imposição das circunstâncias. O que diferenciou – e tem um aspecto mais de elaboração política da guerrilha – do ponto de vista positivo, foi que muitos jovens também deram a sua vida. Mas a questão do Araguaia foi uma experiência de resistência que teve essa dimensão, uma preparação mais cautelosa, uma procura de identificação com o povo, tanto que foi uma resistência que durou mais tempo. O Araguaia representa também a grandeza, as dificuldades do nosso povo, as nossas dificuldades, e o grau de experiência de resistência desse tipo.

Eu queria comentar dois aspectos importantes. Primeiro, o problema do Araguaia ter sido a preparação de uma resistência no interior do Brasil. Muitas pessoas também, ao fazer um comentário sobre a trajetória do nosso Partido, tentam fazer esquemas: “esta é a posição da China ou de Cuba”. Não vêem que isso é uma experiência nossa. É lógico que a experiência internacional da luta do proletariado serve como base para nossa elaboração. Às vezes, chamava-me a atenção o problema dos debates que se fazia naquele período com o objetivo de conhecer o Brasil. O Brasil real de hoje é apenas o litoral, as grandes cidades. Para uma luta de transformação nacional era necessário conhecer o Brasil mais profundamente, procurando identificar o nosso povo. Mesmo hoje, quando o campo tem uma população muito menor do que tinha naquele tempo, o acontecimento político de denúncia da crise social, da busca de solução para os problemas de Eldorado dos Carajás, marca a conjuntura do momento. Uma luta do interior é que determina e expõe com crueza a insensibilidade social do governo. Parece-me que Eldorado dos Carajás é como um tiro dizendo: o Brasil pobre, o Brasil esquecido do interior do Pará existe.

Então, o Araguaia é um avanço na elaboração do Partido, em função dessa busca de conhecer o Brasil, de olhar o Brasil na sua dimensão espacial, na sua dimensão mais ampla, não o Brasil restrito a pequenos núcleos, que são mais divulgados, mas o Brasil grande – podemos dizer assim.
Seriam basicamente esses três aspectos: situar o Araguaia como uma resistência política, ligada ao aspecto conjuntural, que você tão bem expressou na sua intervenção. Isso do ponto de vista dessa dimensão, do momento político e da opção pessoal de cada um dos que ali participaram e deram sua vida.

Outro aspecto é o da experiência do Partido, de elaborar uma estratégia de resistência, que foi capaz de uma preparação de longo período, que não se deixou cair, que não foi atingida pela repressão, uma repressão feroz. Mostra o poder da disciplina, que sempre foi uma das características da formação do PCdoB e dos comunistas, a disciplina e a capacidade das lideranças do Partido de conquistarem a confiança dos seus militantes. Porque jovens – como nós, à época – de 17, 18 anos, só entrariam num projeto se tivessem confiança de entender que as pessoas que estavam dirigindo mereciam essa confiança.

Por último, essa concepção que o companheiro expressou muito bem, em termos de conhecer o povo, de servir ao povo. Fiquei emocionado, agora, nessa última notícia do Fantástico: uma moça do povo – falava de uma guerrilheira chamada Cristina, não sei nem qual o nome real dela – que ensinava: se você tem comida, você deve dividir com o outro; se você sabe ler, você deve ensinar o outro a ler. Ela dizia: “um dia eu falei com ela que eles poderiam morrer”. É essa concepção: nosso sangue é que vai regar, que vai adubar o caminho da construção da liberdade.

Então, esse aspecto ficou de certa forma impregnado, um tipo de conduta. Um outro depoimento dizia assim: olha, a gente deixava nossas mulheres, o camponês saia e deixava o Osvaldão lá, porque tinha confiança nele. Então, são episódios muito tocantes dessa trajetória.

Queria ressaltar esse aspecto. Acho que o seu depoimento hoje, Amazonas, resgata o significado histórico da luta, situa numa cadeia, que vem de muito tempo, de lutas de nosso povo, fruto das circunstâncias concretas. Que outras forças políticas, outros jovens, outras pessoas, já fizeram, já enfrentaram essas lutas e vão enfrentar no futuro.

Acho que o resgate político não ficará apenas na dimensão pessoal ou emocional, que é importante para nós, mas terá essa dimensão histórica do significado da luta do Araguaia. Essa importância já foi demonstrada pela Comissão dos Direitos Humanos, ao ouvir seu depoimento.

DEPUTADO LINDBERG FARIAS – João Amazonas, Presidente do PCdoB; Sr. Presidente da Comissão dos Direitos Humanos, Deputado Hélio Bicudo. Minha pergunta baseia-se em dois trechos da intervenção do João Amazonas. Primeiro, quando falava do sentimento de solidariedade, de fraternidade em vários gestos, como o do café oferecido a uma camponesa; e o exemplo da solidariedade do plantio para um camponês que estava doente.

Outro trecho que me chamou a atenção foi aquele em que o senhor falava da participação dos jovens, dos estudantes universitários, na guerrilha do Araguaia: da Helenira Resende, do André Grabois e do João Carlos Haas.

Deixo aqui um depoimento especial. Uma das coisas que me aproximou mais da luta política, até do PCdoB, foi quando entrei no Centro Acadêmico de Medicina da Universidade Federal do seu Estado, o Rio Grande do Sul. Era uma liderança destacada no movimento estudantil, e foi para a guerrilha.

Recordo-me de um fato, que fez parte do nosso discurso de posse no Centro Acadêmico de Medicina da Universidade Federal da Paraíba: o João Carlos Haas fez vários trabalhos científicos na guerrilha e trabalhos de assistência à população. De forma que, quando foi assassinado, seu corpo foi transferido para o Município de Tocantinópolis, se não me engano, e houve uma grande manifestação da população no seu enterro. Aquilo me sensibilizou profundamente.

Logicamente, é errado analisar a história como repetição repetir a historia da Guerrilha do Araguaia aqui e ali, não. Mas a Guerrilha do Araguaia desperta nos jovens, esse romantismo, de lutar por uma causa mais coletiva, de lutar por um Brasil de justiça social, de liberdade plena. É essa a leitura que a juventude faz da Guerrilha do Araguaia. Ou seja: jovens, democratas, camponeses, pessoas do povo que participam heroicamente de uma luta por mudanças, exigindo transformações radicais da nossa sociedade.

Quero saber do Presidente do meu Partido, o ex-Deputado Constituinte João Amazonas, quais são os reflexos, na sua avaliação, desta experiências para as futuras gerações? E também para a juventude, explicitando o papel de jovens destacados como André Grabois; a Helenira Rezende ( que foi vice-presidente da UNE, ex-estudante da USP) e de João Carlos Haas, que ainda hoje é uma espécie de símbolo para estudantes de medicina de nosso país.

JOÃO AMAZONAS – De fato, muitas são as perguntas que surgem quando discutimos uma luta como a do Araguaia. Particularmente porque no Brasil sempre se procurou esconder, abafar os fatos relativos a resistência popular.

A concepção dominante nas Forças Armadas, que veio do colonialismo português, é sempre esta: matar até o último combatente, matar todo mundo, não deixar pedra sobre pedra. Pensam que com isso a história não tomará conhecimento dos crimes praticados. Em Canudos,por exemplo, o Exército matou a última criança - não só matou o último homem, matou a última criança -, mas não consegui matar Euclides da Cunha, que transformara em reportagens repetidas a ferocidade da luta que travou-se ali. Ninguém pode impedir que os fatos históricos acabem se revelando com a sua força. Infeliz do povo que não tem história. Essa é que é a realidade. E nós precisamos cultivar todos esses fatos marcantes, significativos, na História do nosso pais.

Muita gente aprende nas escolas que houve a batalha de Itararé e que houve a guerra do Paraguai e outras mais; mas as lutas de nosso povo? Penso que nesse sentido, O Globo presta um bom trabalho, porque, sem divulgar, sem um conhecimento mais amplo dos fatos, ficamos sempre na ignorância. Trazer esses fatos para a discussão, para debate, ajuda a população a compreender seu papel nos dias de hoje, na luta que está aí diante de nós.

No Brasil, há muitos Silverio dos Reis, há muitos capitulacionistas, muitos fisiológicos e etc., mas a natureza de nosso povo é a da rebeldia. Em um país tão rico e privilegiado como o nosso, temos que criar uma feição diferente, que realmente seja de um País no qual se assegure uma existência feliz, digna e cheia de esperança a seu povo. Quem deve construir somos nós, o povo brasileiro. Ninguém vai construir isso por nós.

A juventude desempenhou um grande papel no Araguaia. Jovens, alguns do 4º ano de medicina, outros com o 5º ano de História, todos jovens quem sairam da universidade para uma luta que eles sabiam que poderia ceifar as sua vidas. E com o entusiasmo, com que desprendimento! Só mesmo a força da juventude podia assegurar isso.

Foi um espetáculo esse problema dos jovens, com sua combatividade, com sua alegria. Os senhores pensam que no Araguaia tinha alguém amarrado na corda, obrigado e disciplinado à força? Não, no Araguaia havia alegria. Eu não via ninguém alí esmagado, com vontade de sair. Havia alegria de estar numa tarefa daquela ordem, e alegria de compreender, de estudar e de participar de uma batalha histórica.

Helenira foi um dessas jovens. Há um entrevista na Revista do Araguaia que caracteriza Helenira como uma jovem séria, estudiosa. Perguntei-lhe uma vez: “Helenira, e depois que você sair daqui, o que você quer ser mesmo? Você estudava para ser o que?” Ela disse: “você sabe eu estava querendo ser crítica de arte”. Imaginem, pensando em crítica de arte e estava lá no Araguaia de arma em punho para enfrentar o inimigo. E Helenira. Surpreendida numa emboscada, ao invés de fugir, enfrentou o inimigo armado e muitas metralhadoras, possuindo apenas uma carabina. Atirou até o último tiro. Uma grande personagem, como eram todos os que participaram do Araguaia.

João Carlos Haas Sobrinho. Que figura! Era uma dessas criaturas que a gente fica pensando se existe mesmo. João Carlos tinha acabado de se formar em medicina, em Porto Alegre, com uma grande perspectiva no Rio Grande. Apareceu a necessidade da luta e João Carlos se inscreveu. Pensou: vão precisar de médico e eu vou inscrever-me para isso.

João Carlos veio para São Paulo, conversou conosco. Perguntamos-lhe em que era especialista. Ele respondeu: “sou especialista em pouca coisa, aprendi em geral a Medicina”. Dissemos: “então você faz o seguinte: vamos mandá-lo para o Ponto Socorro do rio de Janeiro para você fazer um curso, porque vamos precisar de quem atenda gente de perna quebrada, com tiro no lombo, etc.” Ele disse: “sim vou”. Fez um curso de pronto socorro no Rio de Janeiro e depois disse: “como é que vou começar?”. Situamos João Carlos numa cidade maranhense, às margens do Tocantins: Porto Franco. E João Carlos acabou construindo um pequeno hospital. Era queridíssimo pela população. Havia um lutador em Goiás, que se chamava Porfírio, o velho Porfírio, e ele não aparecia como comunista. Um dia, chega lá o filho do velho Porfírio e diz pra ele: “olha meu pai está morrendo, não tem quem o atenda, não tem dinheiro nenhum, não tem recursos. Será que o senhor poderia dar uma ajuda?. ”Ele respondeu: “como não?”. Foi buscar, junto com o filho, o velho. Tratou-o, curou-o. O velho ficou bom. E não cobrou coisa nenhuma, porque ele não era de cobrar mesmo, e eles não tinham o que pagar. Era um elemento muito querido. O exército, quando matou João Carlos, pegou o caixão levou para a cidade de Tocantinóplolis, pôs em exposição pública, para dizer ao povo “olha aqui o médico que vocês falam, olha o que aconteceu com ele, terrorista e não sei mais o que”. E uma multidão vinha de Porto Franco, de todos os lugares, para ver o caixão e, ao mesmo tempo, prestar a última homenagem a um médico tão humanitário, tão digno. Foi imensa a fila de gente que passou por Tocantinópolis.

Então, para falar dos Guerrilheiros, teríamos que falar de um por um, e não termina essa grandiosidade, essa coisa que orgulha a gente e que, afinal de contas, dda forças para todo mundo compreender o que significa tudo aquilo.

Por que esse local? Houve luta nas cidades e nas devemos prestar nossa homenagem a todos esses jovens que tombaram nas cidades, numa luta também desigual. Pertenciam a outras correntes políticas mas todos eles deram suas vidas, todos enfrentaram a reação e são dignos dessa homenagem do povo brasileiro, contribuíram para luta contra a ditadura. Mas a luta na cidade tornava-se impraticável naquela altura. Não era possível a gente fazer a guerrilha na avenida Faria Lima ou na avenida Rio Branco. Tinha que se em algum lugar que assegurasse certas condições, que preservasse esse punhado de combatentes duma força poderosa que poderia vir. Nos não tinhamos nenhuma ilusão sobre isso, e o melhor local que se apresentava depois de várias pesquisas foi o Araguaia. Ponto interessante de confluência de grandes rios, fronteira com Goias, Maranhão, Pará. Onde havia uma população disseminada com muita pobreza, muito sofrimento. Onde havia uma mata densa também. Ali se apresentavem condições muito positivas para desenvolver uma luta desse tipo. Por isso nós escolhemos o Araguaia. E não erramos, a luta tinha de ser alimesmo.

De resto, como disse aqui, poderiamos falar o tempo todo sobre esses personagens do Araguaia. Eu pessoalmente, convivi com muita gente lá, e me lembro sempre com saudades e com respeito de todas as pessoas. Penso que nosso dever hoje – e o estamos fazendo aqui – é justamente o de resgatar esses fatos de nossa História.

Quando estive na Europa, visitei alguns museus. Fiquei admirado. Ali estavam as pulseiras de ferro que se usaram, os instrumentos de tortura, os buracos cavados no solo onde eram colocados os presos; enfim havia uma espécie de reconstituição, de como foi a luta, dos instrumentos, inclusive, que foram utilizados contra a população, contra os rebeldes.

No Brasil, o testemunho de verdade histórica, a História de nosso povo, não existe, porque aqui perdura a teoria do colonialismo português. Apagar tudo, liquidar tudo que diz respeito ás lutas do povo.

O que se passou com Tiradentes? Esquartejaram o seu corpo puseram em exposição em praça publica, salgaram os lugares onde ele andou para que não nascesse mais nada ali. Quer dizer é o obscurantismo, a brutalidade.

O que é a Revolta da Chibata? É um feito glorioso: um punhado de marinheiros se rebela no cruzados Minas Gerais contra a injustiça do castigo feudal da chibata. A Marinha faz um acordo em que anistiava todos os marinheiros rebelados. E eles acreditaram nisso. Em seguida assassinou a todos, escaparam apenas dois. O almirante Negro foi um deles. Antes de sua morte eu conversei com ele no Rio de Janeiro, Disse-me: “Amazonas, sabe porque escapei? Nos fomos metidos numa fortaleza onde durante o dia a maré enchia e inundava quase pela metade a cela onde estávamos. Havia somente um quadrado de um palmo e meio numa grade, por onde entrava o ar. Escapei porque eu e um companheiro fomos os últimos a entrar. Então fiquei com o nariz naquele buraco, os outros todos morreram asfixiados”. Faz parte da História, foi um crime que se cometeu contra os direitos humanos. Mas, no Brasil, se apaga tudo, não se deixa nada como testemunho da luta realizada.

Em Canudos, destruíram tudo. Não deixaram nem mesmo o local da luta. Fizeram um lago, uma represa, naquele local, para não deixar nenhuma marca do que foi a batalha de Canudos. Canudos foi uma luta de que tipo? O direito de defender a sua crença; esse direito foi negado, esmagado a ferro e fogo pelo Exército.

Por isso, a constituíção de História de nosso País, com dados e fatos concretos, é parte da educação de nosso povo.

No Araguaia foi a mesma coisa: até as bananeiras que plantamos para ajudar a nossa alimentação foram destruídas. O Exército arrancou tudo, fez a operação "limpeza". Não deixou nada que pudesse lembrar que naquele território houve uma luta armada, que houve jovens combatentes que queriam a liberdade e a justiça social. Quanto aos barracos construídos pelos Guerrilheiros também foram arrasados. Tudo foi destruído. Um homem civilizado diria: não toquem nisso! Isso faz parte de história. Porém destruíram tudo, como também assassinaram quase todos!

Penso que o Araguaia é um grande acontecimento. E devemos tratá-lo como foi: um acontecimento da História. Nós pensamos assim. Quando eu era jovem, ouvi falar dos 18 do Forte de Copacabana. Um dia, saíram 18 oficiais do Forte de Copacabana para morrer. E davam exemplo. Eu ficava pensando: tais pessoas ultrapassaram o próprio sentimento de preservar a vida para dar um exemplo desse tipo.

Não é verdade? Araguaia foi a luta de 100 contra 20 mil. Os 20 mil deviam se sentir humilhados, acovardados, traídos, porque mobilizar 20 mil para lutar contra 100 jovens combatentes, destemidos, é uma covardia muito grande, é uma indignidade. Por tudo isso, é preciso que vejamos esse acontecimento do ponto de vista histórico. Nosso povo tem um grande futuro, porque nosso país, como disse, é privilegiado, possuindo grandes as riquezas, com todas as possibilidades de ter uma das populações mais cultas do mundo. Nós temos que ajudar a formar esse povo. E o Araguaia ajuda.

Deputado Hélio Bicudo – Antes de encerrar essa sessão, gostaria de oferecer a palavra ao companheiro e parlamentar Miguel Urbano Rodrigues para breves considerações a respeito deste ato.

Miguel Urbano Rodrigues - Sr Presidente, Srs .Deputados; Presidente do PCdoB, meu querido camarada João Amazonas. Ao ouvir, com profunda emoção, o depoimento de João Amazonas, esta lição de História – repito as palavras do Deputado Hélio Bicudo -, o meu pensamento voou a propósito de uma expressão que ele empregou repetidas vezes, e que veio muitas vezes aqui, depois, no debate: “valeu a pena?. O meu pensamento voou para 35 anos atrás. Encontrava-me na cidade de Conacri, na República da ex-Guiné Francesa, onde estava instalado o Quartel General de todos os movimentos de libertaçao das colônias portuguesas. Dias antes começara a inssureissão angolana, com o assalto às prisões de Luanda. E eu encontrei nestes dias, homens que se tornaram sujeitos da história do seu povo. Conheci – e foi o começo de uma amizade profunda, que durou até a sua morte – Amilcar Cabral, que foi uns dos mais lúcidos, dos mais inteligentes e dos mais puros revolucionários do continente africano deste século.

Recordo-me de uma primeira conversa que tivemos e que marcou muito a minha vida. Eles estavam organizando o inicio da guerrilha do GC, o Partido Africano da independência da Guiné e do Cabo Verde – duas pequenas colônias que, isoladamente, não tinham condições para a luta. E ele me disse mais ou menos assim: “Miguel, o que me dói antes de começar essa luta é a certeza de que devido à estupidez, à irracionalidade, ao reacionismo do facismo e do colonialismo português, gente que está viva neste momento, camponeses da sua terra, vão vestir uma farda e vão mandá-los para os campos de batalha de Angola, de Moçambique e Guiné. Esses homens que estão vivos, estão com um trator ou um cavalo, dentro de dois ou três anos estarão mortos, e uma número certamente maior dos meus compatriotas, tal como os Angolanos, Moçambicanos. Mas na vizinha da Guiné, Conacri, milhares deles vão morrer”. E ele empregou essa expressão: “valleu a pena”! Vão morrer, “valerá a pena”!

Passaram-se os anos, 13 anos de guerra colonial. A insurreição da Guiné começa,e, nas guerras coloniais portuguesas, entre mortos e mutilados graves, morreram 25 mil portugueses e - embora não haja estatísticas precisas, porque o oprimido, a vitima tem sempre menos cuidado – mais de 100 mil africanos morreram numa guerra inútil.

Esses homens – Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Eduardo Santos – eram tratados como bandoleiros e terroristas, o mesmo tipo de discurso das forças reacionárias no Brasil para qualificar os guerrilheiros do Araguaia. Passados 16 anos, os presidentes das jovens Repúblicas Africanas eram aplaudidos de pé no parlamento português, iam dormir nas camas do Palácio Real de Queluz, dos reis de Portugal. E, nesta altura, eram tratados como heróis africanos,e, entre aqueles que os aplaudiam, estavam os capitães do MFA..

Falou-se a pouco dos militares, e o camarada João Amazonas chamou a atenção para as generalidades e para os aspectos conjunturais: não se pode nunca julgar as Forças Armadas como totalidade, na longa duração da História, pelos erros, pelos crimes cometidos por uma geração e por aqueles que comandam os morticínios. A aplaudir homens, como líderes africanos, estava esta geração dos capitães do MFA, e muitos deles eram jovens tenentes, jovens oficiais e capitães no campo de batalha de Angola, do outro lado. Quer dizer, a combatê-lo.

E, por tudo isso, eu repito: senti muita emoção a participar de uma sessão como essa, na qual escuto a lição do camarada João Amazonas. Não é apenas – ele fez questão de dizer – a geração Araguaia, porque a luta é mais extensa, atinge toda a América Latina. O tempo passou e a visão da História é diferente. Ninguém se recorda ou poucos sabem o nome do sargento (Mario Teram) que teve que se embebedar para matar Che Guevara; dos fuzis que mataram os guerrilheiros da Frente Sandinista, antes mesmo de se concretizar a unidade de todos os esbirros, de todos os pequenos e médios criminosos que assassinaram uma geração que bem merece a qualificação heróica.

Eu penso que, da soma das pequenas e grandes lutas que se travaram – lutas por estratégias diversificadas -, umas resultavam de avaliação mais correta, que a História veio a confirmar. E sequer é fácil para nós, hoje, formularmos juízos categóricos sobre a correção ou a incorreção de determinada estratégia, porque a História não se cumpre sempre de acordo com a lógica. Se assim fosse, não veríamos a Revolução Cubana resistir de pé contra o imperialismo americano nas condições em que está, travando a batalha em condições que, por vezes, contrariam frontalmente a lógica da História.

O que se coloca realmente é o da existência de uma luta justa, assentada num olhar para a humanidade, sobre o projeto de transformação de vida, e que conta com uma geração generosa que se dispõe a oferecer o que há de melhor em cada um de nós – o bem supremo, que é a vida. E que se faz, como se fez no Araguaia, justifica-se: “valeu a pena”.

E, para terminar, queria apenas dizer aos deputados, ao João Amazonas, meu querido e velho companheiro de trabalho, Hélio Bicudo, que eu trago a esses heróis – do Araguaias e de todos os outros do continente americano que deram suas vidas por causas justas – a minha modesta homenagem de velho e combatente comunista, que se curva com admiração, diante dessa geração que contribuiu decisivamente para a transformação revolucionária do mundo e que contribui para o avanço da humanidade.


Notas de rodapé:

(1) Completava-se 24 anos de uma epopéia conhecida na História do Brasil como Guerrilha do Araguaia, quando revelações inéditas sobre o período vieram à tona. Numa série de reportagens que movimentou o panorama político e comoveu a Nação, o jornal O Globo revelou fatos que contagiaram outros órgãos da imprensa escrita – a exemplo do Correio Braziliense e da Folha de S. Paulo – com repercussões nas TVs.
De repente, o que há algum tempo seria inimaginável, foi para o horário nobre, e até mesmo o Fantástico noticiou uma viagem contemporânea ao Araguaia. O que antes era proibido veio à luz. Como numa revelação de que a energia da História e a pusilanimidade do autoritarismo são verdades implacáveis da vida, frutos amadurecidos pelo tempo.
Num dos cenários de grandes batalhas do Brasil de hoje, a Câmara dos Deputados, apresentei um requerimento, subscrito também pelos deputados Agnelo Queiroz (PCdoB/DF) e Socorro Gomes (PCdoB/PA), que resultou numa audiência pública da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, no dia 16 de maio de 1996. Esta reunião teve como personagem central um destacado protagonista da Guerrilha, o ex-deputado constituinte (1946) João Amazonas – o principal dirigente do Partido Comunista do Brasil e organizador das forças que acentuaram um momento culminante de resistência à ditadura militar (1964-1984). Por unanimidade, a Comissão aprovara o convite ao homem que é o atual presidente do PCdoB.
O depoimento de João Amazonas, que publicamos nesta edição, representa um momento histórico. A emoção contagiou deputados e convidados, que reagiram à narrativa e ao exame dos fatos como se revivessem a saga dos Guerrilheiros e da população do Araguaia. O impacto da reconstituição pode ser contemplada nas intervenções, que reproduzimos. Este documento segue para o acervo de um resgate que ainda está por se completar, mas, certamente, trata-se de uma contribuição para o amplo esclarecimento dos fatos e circunstâncias, devido a um povo que caminha rumo à plena prosperidade, sob o signo de sua inevitável libertação. (retornar ao texto)

Inclusão 31/03/2012
Última alteração 23/02/2016