A Teoria Enriquece na Luta por um Mundo Novo

João Amzonas

Agosto 1990


Fonte: Revista Princípios, nº. 18
Transcrição: Diego Grossi Pacheco
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Fernando A. S. Araújo
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Não é a primeira vez que o marxismo, como doutrina revolucionária da construção da sociedade, passa por uma crise interior. No primeiro decênio do século, Lênin tratou desse assunto no artigo "Acerca de Algumas Particularidades do Desenvolvimento Histórico do Marxismo”. Na atualidade, ocorre também uma crise que surge na metade dos anos 1950 e se aprofunda com a dominação do revisionismo por largo período na União Soviética e em outros países. Gerada por fatores objetivos e subjetivos, no plano da construção do socialismo, a crise manifesta-se com muita força em todos os campos da atividade político-social. Vive-se um clima de renegação de valores fundamentais, de apostasia e ceticismo, de negação de princípios básicos do materialismo histórico, de condenação de experiências revolucionárias válidas. A bússola da marcha da História como que perdeu sua referência essencial. Domina a confusão, a falta de perspectiva do caminho seguro para alcançar os fins projetados – a substituição do capitalismo em declínio pelo socialismo científico.

A doutrina de Marx desenvolve-se dialeticamente

A crise que defrontamos não é fenômeno de decadência do socialismo como muitos afirmam, desnorteados pela profundidade e duração da mesma. De certo modo, é uma crise de desenvolvimento da doutrina revolucionária que avança de maneira dialética. Objetivamente, surgem novas exigências na vida social que reclamam interpretações e soluções corretas. Tudo está em movimento na natureza e na sociedade qualquer que seja o regime nesta predominante. Daí a imprescindibilidade de conhecer as mudanças ocorridas e adotar novos procedimentos científicos. Se assim não se procede, a teoria perde a sua eficácia. A ciência social dá um salto qualitativo toda vez que adquire o conhecimento de determinada realidade em desenvolvimento e se mostra capaz de generalizar a experiência prática. Assim aconteceu na segunda década deste século, quando Lênin, analisando a transformação do capitalismo da livre concorrência em imperialismo monopolista, elaborou a teoria da revolução proletária em consonância com a nova época surgida dessa transformação. Que haveria sido do marxismo, como guia para a ação, se não se levasse em conta que o sistema capitalista entrava em outra etapa? Possivelmente, não se teria realizado a Revolução Socialista em um único país.

Também agora, quando o socialismo venceu uma importante fase da sua concretização, coloca-se na ordem-do-dia a reelaboração, com os novos dados da prática, da teoria da construção da sociedade do futuro.

O socialismo avançou e estagnou na URSS

Não há dúvida de que a União Soviética passou por importantes modificações no curso dos trinta e poucos anos de vigência do sistema socialista. Guiando-se pela teoria de vanguarda, resolveu complexos problemas que exigiam soluções originais. Organizou em novos moldes a economia do país que funcionou sem as crises cíclicas do capitalismo. Realizou uma das mais difíceis tarefas – a conversão da pequena e atrasada propriedade rural em grande propriedade social coletivizada. Num território em que a maioria da população era analfabeta, levou a bom termo a revolução cultural.

Promoveu o entendimento fraternal entre as múltiplas nações que compunham a URSS e incentivou o progresso em todas elas. Deu ao proletariado o status de classe dominante como previra Marx no Manifesto Comunista. Destaque particular teve a defesa do país que dependia da industrialização e do preparo moral e político do novo homem disposto a todo sacrifício para assegurar a continuidade da Revolução. O prestígio da União Soviética e do socialismo proletário, revolucionário, estendeu-se pelo mundo inteiro.

Entretanto, aí pelos anos 1950, começaram a aparecer fenômenos de estancamento. Desajustes na economia. Queda no ritmo da produção. Desinteresse pelo progresso social. Descontentamento na intelectualidade. Declínio do ânimo revolucionário. Era evidente que falhava o motor que aciona o avanço social. Os revisionistas apressaram-se em jogar a culpa do que sucedia no regime. Segundo eles, o capitalismo procedia melhor. E conspiraram visando a alcançar o poder. Os defeitos, no entanto, tinham de ser examinados sob outro prisma – o do marxismo, e corrigidos no quadro do sistema socialista.

De onde provêm os fenômenos negativos

O relativo estancamento, o afrouxamento da vontade revolucionária originam-se de dois problemas interligados. Erros cometidos na construção do socialismo. E desconhecimento de que se havia chegado a uma nova etapa da edificação socialista, o que exigia mudanças de profundidade.

Vai ficando claro que existia repressão política e ideológica na URSS sem nenhuma razão plausível. Era demasiada a concentração de poderes nas mãos de poucas pessoas. O Birô Político do PCUS e, dentro dele, um ou alguns dirigentes constituíam uma espécie de poder supremo, inatingível. A constituição dos órgãos dirigentes do Estado se fazia a partir das indicações de cima sem a indispensável participação democrática do povo. As massas ficavam distantes das decisões que diziam respeito à vida da população e do país. Suas entidades sociais – sindicatos, associações populares, femininas, juvenis e outras – não gozavam ou dispunham de pouca autonomia, careciam de iniciativas próprias e se convertiam em apêndices do Partido. Aos artistas, impunha-se o método do realismo socialista, correto na perspectiva do socialismo, mas não pode ser adotado por decreto, intempestivamente, transformado em arte oficial. A inspiração do artista, do escritor, tanto em relação ao conteúdo quanto à forma, é questão subjetiva, dependendo de como ele encara a realidade, ou de como foge da realidade pela abstração. Está provado que ainda se criam obras de grande valor cultural à margem do realismo socialista. Apesar do combate formal sempre empreendido contra a burocracia, ela pontificava por toda parte, prejudicando imensamente a participação das massas dos diferentes campos de atividade. Atingia fortemente o Partido que, pouco a pouco, perdia o espírito revolucionário.

O fato de dirigir como vanguarda, sem um correto modo de atuação, conduziu em muitos casos a colocar o Partido acima das massas. Florescia o método impositivo, de dar ordens vindas do alto, desprezando ou pouco utilizando o método da persuasão, do convencimento político e ideológico, que é o principal. Ser comunista e, sobretudo, dirigente, propiciava vantagens pessoais. Criaram-se lojas especiais para atender aos que dirigiam o Partido. Isto sem falar que a ascensão social passava pela adesão à organização de vanguarda da classe operária. Em geral, os comunistas ocupavam os principais postos da administração, no governo e nos Sovietes, das organizações sociais, culturais, científicas. Eram diretores das empresas, das escolas, dos centros de pesquisas etc. Nem todos os comunistas usufruíam dessas vantagens. As regalias distribuíam-se entre a parcela dos que ocupavam cargos de direção, o que tornava o privilégio ainda mais afrontoso.

Assim, a organização da sociedade socialista, embora de tipo novo, e superior em todos os aspectos à do sistema capitalista, apresentava sérios defeitos, mostrava-se de algum modo monopolizada pelos comunistas. É importante salientar que os documentos fundamentais do Partido, incluindo as obras de Stalin, definiam com certa clareza os princípios do socialismo e até condenavam em palavras vários dos males aqui apontados.

Quando se estuda esses materiais, há neles, teoricamente, muita coisa a aprender. A prática, entretanto, parecia desligada da teoria. Os dados da realidade não se ajustavam àquilo que se escrevia.

Estes e outros erros não mencionados motivaram enormes prejuízos à causa revolucionária. Atrasaram a construção socialista, retardaram a marcha da revolução. Serviram de caldo de cultura à irrupção revisionista. Os adversários do comunismo afirmam que são erros do socialismo que se mostrara inviável. Na verdade, são fruto da inexperiência e de concepções estranhas ao proletariado. Nada têm a ver com o socialismo que é o sistema emancipador dos explorados e oprimidos, modelador da comunidade livre, culta e progressista do futuro.

Etapa nova novos problemas teóricos

Tais erros contribuíram para o desencadeamento da crise que afeta o marxismo, deram argumentos tendenciosos ao oportunismo, facilitaram o domínio revisionista. Mas a crise tem outro componente – a não compreensão de que a URSS entrava numa etapa nova.

Um balanço da construção do socialismo, na década de 1950, indicaria que se chegara a uma etapa mais avançada dessa construção. Apareceram problemas de magnitude a serem resolvidos no campo da teoria e da prática.

A generalização da experiência sob critérios marxistas tinha de levar à reformulação, em muitos aspectos, da teoria da construção socialista. Teses e conclusões que vinham sendo aplicadas mostravam-se superadas, serviram em determinado período, não tinham mais validade.

No terreno econômico, face à demanda do consumo em crescimento e à necessidade de elevar o nível técnico do país, era preciso dar peso maior ao sistema intensivo de produção e menor ao extensivo, tanto mais que se processava uma revolução técnico-científica em âmbito mundial. A reconstrução imediata da economia soviética, destruída maciçamente durante a guerra, fez-se (e parece que não podia ser realizada de outra forma) de maneira extensiva. Os revisionistas, usurpando o poder em 1956-57, continuaram por muitos anos os métodos extensivos cujos resultados negativos são bem conhecidos. Encarando a realidade, Gorbachev tenta reestruturar a economia em crise usando tecnologia moderna. Mas o faz no quadro do sistema capitalista, atraindo recursos e investimentos do capital financeiro internacional, renegando o socialismo e dizendo estupidamente que só naquele sistema poder-se-á cumprir essa tarefa.

No terreno político, havia que acentuar a necessidade da ampliação da democracia socialista. O analfabetismo fora liquidado, crescera o nível cultural da população. As classes exploradoras tinham desaparecido. O regime se consolidava. Mais liberdade, mais democracia era condição indispensável para o ulterior desenvolvimento material e espiritual da sociedade. A situação requeria debates, polêmicas, críticas, espírito criador, contestação à mediocridade. Somente com liberdade seria possível demolir as manifestações de arrogância, de prepotência, de despotismo capazes de ocorrer em regimes de centralização necessária.

No campo social, a realização das tarefas mais avançadas da edificação socialista reclamava maior mobilização, conscientização, iniciativa e impulso revolucionário das massas. Era preciso criar outras formas de incentivos morais e materiais. A experiência demonstrou que o conceito comunista de ser o trabalho um dever social, e não simples meio de subsistência, não fora ainda assimilado pela maioria da classe dos proletários. É uma questão ligada ao melhoramento contínuo e num nível bastante alto das condições de vida da sociedade como um todo. As organizações de massas, sobretudo os sindicatos, tinham de assumir responsabilidades crescentes na direção da produção e nos assuntos de interesse público, visando a romper com a excessiva centralização da cúpula dirigente do país, que entravava a iniciativa das massas e freava o rápido andamento das tarefas planejadas. Deviam-se buscar novos caminhos para pôr em prática o princípio de que o socialismo é obra dos trabalhadores, neles repousa toda a grandeza da construção socialista.

Quanto ao Estado, este precisava sofrer importantes modificações. É um dos problemas mais complexos e delicados da transição que leva ao comunismo. Compreende-se como instituição necessária, mas de caráter transitório. Nos primeiros tempos da revolução desempenha um papel fortemente repressivo contra as classes derrocadas do poder que resistem com ódio centuplicado às profundas transformações efetuadas que contrariam radicalmente os seus interesses. Mas não pode ter idêntica atitude frente às grandes massas do povo que gozam de ampla liberdade para defender a revolução e construir a nova vida. No curso da transição, o Estado deverá realizar dois objetivos essenciais.

De uma parte, estruturar um sistema jurídico-constitucional para o conjunto do país, que estabeleça os direitos e as garantias dos cidadãos, a serem rigorosamente respeitados, de modo que cada pessoa sinta-se protegida contra abusos do poder e desfrute da liberdade de fazer o que pretende, dentro da ordem constituída. É a feição democrática do Estado socialista. De outra parte, incorporar, de diferentes maneiras, milhões de trabalhadores na administração, a fim de ampliar constantemente as bases do poder proletário e educar as massas mais atrasadas. O Estado socialista já não é um simples aparelho destinado a reprimir os inimigos de classe, tem muitas outras funções importantes, as quais, uma após outra, devem passar-às mãos da sociedade organizada socialmente. Pouco a pouco ir-se-á extinguindo. É o aspecto dialético do Estado que se converte no não-Estado. Evidentemente, na nova fase da edificação socialista, impõe-se a criação de mecanismos de democratização crescente do Estado, de maneira a assegurar a ampliação da democracia, com vistas à participação em larga escala das massas na direção e realização das tarefas fundamentais.

Mudanças também tinham que suceder na atividade do Partido Comunista. Ele baseia sua atuação numa teoria revolucionária que está em desenvolvimento. Cumpre papel destacado, insubstituível, na direção da revolução e da construção do socialismo. Seus métodos e procedimentos políticos modificaram-se com a evolução da sociedade. O nível de consciência dos trabalhadores, no socialismo, eleva-se constantemente e, em muitos aspectos, aproxima-se do grau de consciência do Partido. A relação partido/massas não pode assim ser alicerçada em termos de dirigentes e dirigidos. A integração do partido com as massas, na verdadeira expressão do termo, adquire importância ainda maior. É preciso ser comunista e massa ao mesmo tempo, dirigente e dirigido também.

Paulatinamente, torna-se necessário, com o avanço do socialismo, ir dividindo com os trabalhadores em geral a direção concreta da vida da sociedade, a fim de que estes exercitem sua capacidade de gerir os assuntos da coletividade e assumam em toda a plenitude a missão que lhes cabe historicamente. A revolucionarização das fileiras comunistas deve ser permanente para combater a rotina, o apego aos cargos, a auto-suficiência, a tendência ao burocratismo.

Esta exposição sucinta de alguns problemas da construção do socialismo indica que as mudanças em curso estão a requerer tratamento teórico aprofundado.

Examinando de maneira crítica o passado recente e a experiência vivida, constata-se que a teoria, ao não ter respondido às exigências da evolução social, entrou em crise. E dela somente pode sair, reelaborando os fenômenos novos, dando-lhes correta interpretação.

É tarefa transcendental dos nossos dias reformular, em muitos aspectos, a teoria da edificação socialista, a partir do precioso material acumulado na URSS até meados da década de 1950, e em outros países que seguiram idêntico destino. Reformular não significa invalidar a base teórica que existia. Significa atualizar criadoramente o marxismo. É o único meio de repor em seus lugares questões controvertidas ou deformadas pelos falsos socialistas. É a maneira de desfazer a confusão, de esclarecer milhões de pessoas abaladas com a destruição do socialismo na URSS e em outros lugares. É também o modo de contestar arrasadoramente a propaganda burguesa de que o marxismo já não serve para a época atual.

A crise do marxismo será superada

Doutrina criadora e de vanguarda, o marxismo progride com a vida e a faz avançar. Não permanece estático. Desenvolve-se e aperfeiçoa-se. Engels, e depois Lênin, sempre bateram forte nessa tecla.

"A nossa teoria não é um dogma – disse Engels – mas a exposição de um processo de evolução e esse processo envolve sucessivas fases”. (Carta a Florence Kelley).

"Não temos absolutamente – afirma Lênin – a doutrina de Marx como qualquer coisa de acabado e intangível; ao contrário, estamos persuadidos de que ela somente colocou as pedras angulares da ciência que os socialistas devem fazer progredir em todos os sentidos se não quiserem se atrasar na vida”. ("Nosso Programa").

A crise do marxismo será superada tão prontamente quanto maior for o empenho dos autênticos revolucionários em investigar suas causas e ir ao fundo das questões teóricas que norteiam a marcha da classe operária no rumo do comunismo.

A teoria revolucionária ilumina o caminho da libertação, da construção de uma vida nova. Não se pode avançar com segurança sem o domínio da ciência social. Os princípios que dela decorrem são fundamentais para orientar a estratégia e a tática das forças progressistas em luta contra o sistema reacionário e ultrapassado do capitalismo monopolista.

Defendendo os fundamentos teóricos do marxismo, avancemos, respondendo aos desafios de nossa época. O socialismo, o comunismo são invencíveis, representam o futuro radioso da Humanidade.


Fonte
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Inclusão 26/09/2010