Da Crise de Agosto à Frente de Libertação Nacional

Mário Alves

Dezembro de 1961


Fonte: Revista Estudos Sociais, Volume III - Nº 11 - Dezembro 1961, Diretor: Astrojildo Pereira.
Transcrição: Alfredo dos Santos
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.

A crise política que abalou recentemente o Brasil foi um dos choques mais profundos entre os grupos comprometidos com o atraso e com a dependência do país e as forças que aspiram ao progresso e à libertação. Em alguns dias, o povo brasileiro viveu uma experiência equivalente a vários anos de luta. Desenhou-se com maior nitidez o quadro das contradições existentes na sociedade, revelou-se à fisionomia real de cada corrente política, configurou-se a disputa das forças que voltarão a enfrentar-se no futuro.

Causa imediata da crise de governo, a renúncia do Sr. Jânio Quadros parece surpreendente a muitos observadores que analisavam a superfície dos acontecimentos. A verdade, porém, é que após sete meses de vida o governo havia chegado a um impasse e debatia-se em meio a sérias contradições.

Embora haja comprometido sua candidatura com as forças políticas mais reacionárias, vinculadas ao imperialismo e ao latifúndio, o Sr. Jânio Quadros desfraldou na campanha certas bandeiras que atraíram para o seu nome o apoio de grande parte da burguesia e de consideráveis setores populares. Seu governo nasceu, assim, marcado pela duplicidade. Em obediência ao esquema eleitoral que apoiou sua candidatura, os postos-chave das forças armadas foram entregues a um dispositivo militar reacionário e o ministério composto predominantemente por homens de confiança dos círculos financeiros internacionais. Quando se tornou necessário, entretanto, obter cobertura política para a realização de certas reformas, sobre tudo no campo da política externa, teve o Sr. Jânio Quadros que buscar o apoio de setores identificados com o pensamento nacionalista e popular. Sua política assumiu, deste modo, o caráter de um compromisso instável entre posições basicamente antiacionais e antipopulares e certas mudanças favoráveis aos interesses do país.

Sua reformulação da política externa não modificava, no fundamental, a situação dependente que o Brasil ocupa na órbita do sistema imperialista, mas foi uma tentativa de conciliar essa dependência com algumas atitudes novas e de grande repercussão internacional. A dubiedade dessa política era evidente. Enquanto assumia a autodeterminação de Cuba, Jânio Quadros reafirmava fidelidade aos tratados internacionais interamericanos que atam nosso país à política hegemônica dos Estados Unidos. A expansão de nosso comércio exterior ao mercado socialista, consubstanciada nos resultados da missão João Dantas, fazia-se acompanhar da consolidação das dívidas nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, além da obtenção de novos créditos que agravaram a dependência financeira do país. Afastando-se em certa medida dos quadros tradicionais das relações externas do Brasil, tal política não significava uma ruptura da dependência ao imperialismo. Era, antes, uma iniciativa no sentido de continuar a dependência em novos moldes, sob formas mais adequadas à nova situação do mundo.
Ao suprimir importantes controles cambiais e desvalorizar o cruzeiro, o governo Jânio Quadros realizava, paralelamente, graves concessões aos interesses monopolistas estrangeiros, atendia a exigências de setores retrógrados ligados ao latifúndio e ao comercio exportador, assim como a círculos da grande burguesia interessados na abolição do subsídio cambial. Esta política econômico-financeira implicava a aceleração acelerada do custo de vida, a imposição de maiores sacrifícios ao povo e não deteve, mas, ao contrário, acentuou o processo inflacionário.
As aparentes incoerências do governo do Sr. Jânio Quadros têm a sua lógica interna. Expressam a situação peculiar das classes dominantes do Brasil, particularmente da grande burguesia, na presente fase do processo de desenvolvimento capitalista e dentro das condições atuais do mundo.

O círculos dirigentes brasileiros não podem romper com o sistema imperialista, ao qual estão ligados por múltiplos laços e fundamentais interesses de classe. Esforçam-se por manter o Brasil dentro do sistema capitalista mundial e se dispõem a cumprir os compromissos básicos que atrelam o país a este sistema, sobretudo quando se sentem a ameaça representada pelo avanço do socialismo. Opondo-se às transformações radicais de caráter anti-imperialista e antifeudal, necessárias para assegurar o progresso independente de nossa economia, inclinam-se para uma política de desenvolvimento econômico baseada nas inversões de capital estrangeiros. Sentem, à luz da experiência mundial, e especialmente do exemplo cubano, que as medidas radicais dirigidas contra a dominação dos trustes e a grande propriedade agrária podem desencadear um movimento revolucionário em que as massas exploradas da cidade e do campo assumirão um papel decisivo.

De outro lado, no entanto, os setores dominantes do Brasil, em particular aqueles ligados ao processo de industrialização, percebem a necessidade de ceras mudanças para a sustentação de seus próprios privilégios de classe. A fim de defender seus interesses econômicos, entram por vezes em conflito com o capital monopolista estrangeiro, buscam novos mercados consumidores e fornecedores no exterior, cogitam da ampliação do mercado interno mediante algumas medidas de reforma agrária. Além disso, temem a radicalização da consciência política das massas, que se opera com rapidez na situação atual, e compreendem a conveniência de efetuar certas reformas antes que o povo fala a revolução. À realização dessa política, são impulsionados também pela nova situação do mundo. Em virtude do fortalecimento do campo socialista e do debilitamento do imperialismo, contam com maiores possibilidades para aumentar seu poder de barganha em relação aos círculos monopolistas dos Estados Unidos. Especulando com as dificuldades crescentes do imperialismo norte-americano, tratam de obter certas vantagens numa associação em que têm sido sempre o sócio menos favorecido. Essa atitude dos círculos dirigentes da América Latina encontrava expressão ainda tímida na “Operação Pan-Americana” e levou recentemente o governo de Kennedy a formular a “Aliança para o Progresso”.

São tais as contradições da política das classes dominantes que explicam a instabilidade e a precariedade das bases do verno do Sr. Jânio Quadros. À medida que cumpria os compromissos que o vinculam ao imperialismo e ao latifúndio, especialmente no terreno da política econômico-financeira, suscita a oposição e a resistências das forças nacionais e populares. Quando adotava certas posições que saiam dos marcos da submissão tradicional ao imperialismo, sobretudo no campo da política externa, feria poderosos interesses que exerciam pressão sobre o governo. A política de respeito à autodeterminação de Cuba e de aproximação com os países socialistas e os países neutros, porquanto afetava o sistema de dominação imperialista na América Latina, não podia deixar de provocar uma aberta hostilidade dos grupos mais reacionários das classes dominantes, encastelados dentro do aparelho de Estado e armados com o controle dos comandos militares.

Em tais condições, a política do Sr. Jânio Quadros, orientada no sentido de manter a dominação imperialista, embora com algumas mudanças destinadas a torná-la “aceitável” na situação atual do Brasil e do mundo, não podia solucionar os problemas básicos e prementes do país, contribuindo para agravá-los. A inflação e a carestia em progressão aram os sintomas mais evidentes de que a crise estrutural continuava a aprofundar-se. Depois de sete meses no poder, o Sr. Jânio Quadros não tinha assegurado uma sólida base popular e, simultaneamente, enfrentava os ataques da reação extrema. Sua renúncia, que significava uma capitulação diante da ofensiva dos setores mais reacionários, comprovou mais uma vez o malogro da política de compromisso com o imperialismo e o latifúndio.

★ ★ ★

Deflagrada a crise de governo, as forças em choque se polarizaram em torno de duas posições fundamentais. De um lado, o grupo golpista tentava violar a legalidade constitucional e impedir a posse do vice-presidente Goulart, com o objetivo de interromper o processo democrático, implantar uma ditadura reacionária e obstar o avanço do país no sentido do progresso e da libertação. De outro lado, agrupavam-se variadas forças políticas e sociais em defesa da legalidade constitucional e da posse do vice-presidente eleito. Unidas em função deste propósito comum, tais forças, no entanto, diferenciavam-se profundamente quanto aos motivos de sua posição e aos objetivos que perseguiam.

As forças nacionalistas e populares defendiam a legalidade constitucional como fim de assegurar o processo democrático em curso e garantir as liberdades necessárias à luta pela emancipação nacional e pelas reformas básicas na estrutura econômico-social do país. Entre tais forças, ocupando posições importantes no momento de resistência democrática atuavam, no entanto, setores conciliadores da burguesia, frequentemente inclinados a compromissos com o inimigo. Ademais, o bloco legalista abrangia também forças reacionárias e comprometidas com o imperialismo, como a maioria do Congresso Nacional, a grande imprensa burguesa, os setores dirigentes do PSD e da UDN. Não sendo, por princípio, infensas a uma ditadura reacionária, consideram estas forças que, na situação atual do Brasil, a política mais conveniente para a defesa de seus privilégios consiste ainda na manutenção do regime representativo e de restritas liberdades democráticas. Temem que um regime abertamente reacionário impulsione as massas mais rapidamente para a revolução como ocorreu em Cuba. Este ponto de vista foi, aliás, compartilhado por um porta-voz tão influente do imperialismo norte-americano como o New York Times, ao comentar a crise política no Brasil e criticar a ação dos golpistas.

Estas contradições da frente legalista são um dos elementos básicos para compreender o mecanismo da conciliação que coroou a crise de governo. Em face do vasto e poderoso movimento popular que se ergueu por todo o país contra os intentos da camarilha golpista, tonou-se evidente que a implantação de uma ditadura reacionária significaria provavelmente o início de uma guerra civil, a radicalização da resistência democrática e a predominância em seu seio das forças de esquerda, das massas trabalhadoras e populares. Esta eventualidade era temida tanto pelo grupo golpista como pelas forças reacionárias e conciliadoras do bloco legalista. A solução de compromisso, o cambalacho em torno da emenda parlamentarista, surgiu assim como a única alternativa.

Aos golpistas não restava outro caminho, pois sentiram desde logo que não contavam com um sólido dispositivo militar e se achavam cada dia mais isolados. Através da solução de compromissos - parlamentarismo com a posse de João Goulart - ainda esperavam salvar algumas posições, como realmente lograram fazer. As forças reacionárias da frente legalista - a maioria parlamentar, os dirigentes do PSD e da UDN - consideraram que o acordo à base do parlamentarismo era o caminho mais fácil, não só para evitar uma guerra civil de consequências imprevisíveis, mas também para manter sob o seu controle o Poder Executivo e o Presidente da República. As correntes conciliadoras, inclusive a direção burguesa do PTB e o Sr. João Goulart, inclinaram-se ao compromisso para evitar um choque violento com a reação, temendo que este fosse o ponto de partida para um processo de luta revolucionária das massas.

Embora se consumasse a fórmula conciliadora, a crise demonstrou que o movimento popular atingiu um nível sem precedentes na história recente do país. As greves políticas da classe operária e dos estudantes, as manifestações de rua, o alistamento de voluntários para a luta contra os golpistas, a formação de batalhões populares e de comitês de resistência democrática tiveram uma influencia decisiva no sentido de isolar o grupo da extrema reação. O sentimento de frustração manifestado em face da solução conciliadora revela que importantes setores das massas estavam dispostos a marchar para lutas de caráter mais radical. Nesta mobilização popular, os comunistas desempenharam destacado papel, constituindo a força mais ativa e consequente e marchando ombro a ombro com as demais correntes democráticas e de esquerda.

Apesar das proporções que tomou a resistência popular, as massas não puderam impedir a conciliação como inimigo, nem aprofundar a luta até o esmagamento completo dos golpistas e a obtenção de maiores êxitos. A crise demonstrou que as massas e sua vanguarda não estavam suficientemente maduras, do ponto de vista político e ideológico, para uma luta de maior profundidade, nem se achavam preparadas para a eventualidade de uma brusca mudança das formas de luta.

O fato de que os setores conciliadores da burguesia , ocupando posições dirigentes na frente legalista, tivessem arrastado o movimento de resistência à conciliação, indica mais uma vez aos setores de vanguarda a necessidade de concentrar esforços na educação revolucionaria e na organização das forças fundamentais do movimento anti-imperialista e democrático - a classe operária, os camponeses e as camadas médias. Sem aumentar em grau considerável a influência destas forças no movimento, não se pode obter êxito na luta contra as manobras conciliadoras da burguesia.

Cabe acentuar que o golpe reacionário de agosto, diversamente do que ocorreu em crises anteriores, levou o país à beira de uma guerra civil. Este é um fato novo e da maior significação, já que revela a gravidade das contradições existentes e a radicalização da consciência das massas. Não é demais sublinhar um fenômeno tão indicativo da profundidade da crise como a divisão das forças armadas e a quebra generalizada da disciplina militar. Nenhum esparadrapo parlamentarista poderá vedar facilmente as feridas abertas no aparelho de Estado pela intentona golpista. Não está excluída, portanto, a possibilidade de novos choques, e choques violentos, entre as forças da reação e as forças democráticas. As massas e sua vanguarda hão de ter isto em conta.

Como conclusão geral sobre a crise, deve-se assinalar que o povo brasileiro obteve uma vitória. O grupo que representa a reação extrema não logrou interromper o processo democrático, implantar uma ditadura reacionária obediente aos interesses imperialistas, suprimir as liberdades e os direitos constitucionais. A derrota desses intentos fortalece o movimento pela libertação e o progresso do país. Mas a conciliação impediu que a vitória popular tivesse um alcance mais profundo. Não tendo sido esmagado, nem sequer punido por suas ações criminosas, o grupo golpista mantém algumas posições, de onde pode reencetar sua atividade conspirativa. O movimento de resistência não pode desenvolver-se plenamente até alcançar o triunfo completo. Consequentemente, formou-se um governo que prossegue no caminho tortuoso do compromisso com o imperialismo e o latifúndio.

★ ★ ★

A solução conciliadora não eliminou as contradições que geraram a crise e tendo mesmo a aprofundá-las. Continuam a agravar-se os problemas de estrutura do país, cujos reflexos se fazem sentir na elevação vertiginosa do custo de vida, no clamor crescente pela reforma agrária, na desvalorização vertical do cruzeiro em relação ao dólar e no aguçamento dos antagonismos sociais.

Em face de tais problemas, o governo parlamentarista do Sr. Tancredo Neves, como Sr. João Goulart, na Presidência da República, encontra-se paralisado pelas suas contradições internas. Nascido de uma componenda entre a maioria parlamentar reacionária do PSD e da UDN, as correntes conciliadoras representadas pelo atual Presidente e o grupo golpista, o gabinete encarna, tanto por sua composição como por seu programa, a política de compromisso com a dominação estrangeira e a velha estrutura agrária. Acotovelam-se no Conselho de Ministros homens de confiança dos círculos financeiros dos Estados unidos e membros da Frente Parlamentar Nacionalista, em um estranho conúbio que não pode inspirar confiança ao povo. Padece ainda o governo de uma debilidade fundamental – baseia-se em uma maioria parlamentar superada em um Congresso que se revelou incapaz de atender às aspirações mais prementes das massas e realizar as reformas inadiáveis que o país reclama. O programa do atual Conselho de Ministros expressa claramente a orientação que a grande imprensa burguesa denomina apropriadamente “janismo sem Jânio”: mantém em seus aspectos essenciais, tanto no terreno econômico-financeiro como no da política externa,a ficha de conduta do governo anterior.

Quanto ao novo sistema parlamentarista, improvisado nos bastidores da conciliação como solução de emergência para a crise, revela-se na prática uma incubadora de novas crises de governo. Parlamentarismo sui generis, cortado sob medida para o gosto nacional, nele o poder executivo é dividido entre o Primeiro-Ministro e o Presidente da República, que dispõe também de relativamente amplas facilidades para governar. Se tivermos em conta certas contradições existentes entre o grupo burguês conciliador do PTB, liderado pelo Sr. João Goulart, e os interesses dos grupos oligárquicos representado pela maioria parlamentar do PSD e da UDN, é previsível que o novo sistema de governo dê margem a conflitos em um futuro próximo.

Outro fator de instrumento do atual governo é o dispositivo militar em que ele se apoia, estruturado à base do apaziguamento dos oficias golpistas. Realizadas apenas algumas alterações nos comando superiores, muitos agentes do golpe foram conservados em postos importantes da Aeronáutica, da Marinha e mesmo do Exército, onde se rearticulam e conspiram febrilmente para novos atentados à legalidade.

Em face desta situação extremamente instável e prenunciadoras de novas crises, processa-se um reagrupamento das forças políticas. Congregam-se, de um lado, as correntes nacionalistas e populares que não aceitaram a conciliação com o golpismo, repudiam a política de compromisso do atual governo e exigem a realização imediata das reformas de base. São correntes variadas por sua composição social, abrangendo o movimento operário, as organizações estudantis, setores militares, parlamentares nacionalistas, inclusive círculos da burguesia liderados por homens como os governadores Leonel Brizola e Mauro Borges. Estas forças tendem a unir-se em torno da Frente de Libertação Nacional. Os grupos comprometidos com o sistema de espoliação estrangeira e atraso latifundiário tratam igualmente de reorganizar suas forças. Sua brigada de choque foi derrotada momentaneamente, mas não esmagada. Forçados a aceitar um compromisso, compreendem como este é inconsistente e preparam-se para voltar à carga, com o objetivo de impedir maiores êxitos das forças nacionalistas e populares. Considerando o desgaste sofrido por Carlos Lacerda com a aventura golpista, tentam criar uma liderança baseada em homens como Carvalho Pinto, Cid Sampaio e Juraci Magalhães. Em torno do gabinete do Sr. Tancredo Neves movimentam-se, por sua vez, os setores partidários da estabilização do atual compromisso, buscando, de um lado, conter as forças populares descontentes e, de outro lado, apaziguar por meio de concessões os grupos da extrema reação.

Por conseguinte, na situação nova que surge após a crise, o inimigo não está apenas no grupo golpista, mas naquelas forças reacionárias que, embora tendo adotado posição legalista, agora se opõem às mudanças na estrutura econômico-social. São estas forças o sustentáculo do compromisso com o imperialismo e o latifúndio. Pela lógica objetiva dos acontecimentos, tenderão a aliar-se aos golpistas para enfrentar as correntes nacionalistas e populares. Não é possível avançar sem superá-las, arrancá-las do poder.

Esta é precisamente a razão de ser da Frente de Libertação Nacional, que marca uma etapa nova e superior do movimento anti-imperialista e popular. Ao incluir exigências como a nacionalização imediata das empresas estrangeiras de serviços públicos (Light e Bond and Share) e a emenda constitucional que permita uma reforma agrária profunda, a “Declaração de Goiânia” reflete a radicalização dos objetivos desse movimento. É uma tomada de posição mais avançada que se impõe com uma força cada dia maior, não como fruto do desejo de quem quer que seja, mas em virtude do agravamento dos problemas do país. À medida que se avoluma a indignação popular, os grupos reacionários se dizem também partidários de reformas e formulam pseudo-soluções para a questão agrária, a remessa de lucros do capital estrangeiro ou a elevação do custo de vida. Torna-se necessário pois, que a forças populares contraponham soluções efetivas e profundas a fórmulas escamoteadoras como as “revisões agrárias” de Carvalho Pinto e Cid Sampaio, assim como à chamada lei antitruste e à regulamentação da remessa de lucros, enviadas ao Congresso por Jânio Quadros e encampadas pelo atual governo. Esta radicalização há de conduzir, certamente, a choques mais sérios com as forças reacionárias e à necessidade de derrotar as manobras conciliadoras.

A premência das reformas de base coloca na ordem do dia à necessidade de substituir o governo atual por um outro poder político, que represente as aspirações das massas trabalhadoras, das camadas médias e dos setores progressistas da burguesia, e possa, deste modo, empreender as transformações reclamadas. Uma poderosa ação de massas orientadas no sentido das reformas e contra a política de compromissos do atual gabinete poderá levar à sua queda e abrir caminho para a formação de um novo governo. Dentro do atual sistema parlamentar, porém, esta ação deve ser de tal ordem que no Parlamento se forme um bloco de forças capaz de oferecer a base necessária à constituição de um governo nacionalista e democrático. Não se pode omitir nesta solução o papel a ser desempenhado pelo Sr. João Goulart, caso se disponha realmente a ficar com o povo e não ao lado das forças reacionárias, com as quais tem conciliado até agora. Nem o Brasil é a Inglaterra, nem o Presidente Jango é a Rainha Elizabeth. A fim de cumprir os compromissos que o ligam aos trabalhadores e ao movimento nacionalista, o Sr. João Goulart tem condições de influir para a formação de um Conselho de Ministros que inspire confiança à nação.

Ao lado disso, é evidente que as reformas de base requerem a introdução de emendas constitucionais orientadas no sentido de alterar alguns dispositivos reacionários da Carta de 194. Necessário se torna, por exemplo, suprimir no parágrafo 16 do artigo 141 a exigência eu estabelece indenização “prévia” e “em dinheiro” para os casos de desapropriação por utilidade pública ou por interesse social, criando assim um obstáculo à realização de uma reforma agrária radical ou a nacionalização de empresas monopolistas estrangeiras.

Considerando o caráter do atual Parlamento, em cuja composição é sensível a predominância de forças reacionárias, só é possível conceber a formação de um gabinete nacionalista e democrático e a aprovação das reformas básicas e das empresas constitucionais mediante um poderoso movimento de massas que comova realmente o país, altere a correlação de forças políticas e obrigue aquele órgão representativo a atender à vontade do povo. O desencadeamento destas ações populares há de estar, sem dúvida, no centro das preocupações de todas as correntes patrióticas, sobretudo daquelas que se agrupam em torno da Frente de Libertação Nacional.

A realização das eleições parlamentares em outubro de 1962 abre outra perspectiva para a modificação radical da composição da Câmara dos Deputados, com a eliminação do predomínio reacionário atual e a formação de um bloco majoritário disposto a empreender um novo curso. Esta perspectiva deve merecer a atenção das forças políticas ligadas ao povo. Mas, quando se tem em vista gravidade da situação atual e a urgência dos problemas a enfrentar, as eleições do próximo ano aparecem ainda como uma solução longínqua para questões que exigem resposta imediata.

Nestas circunstâncias, se o Congresso continuar resistindo às transformações inadiáveis na estrutura do país, se prosseguir a política de compromisso com a reação e o imperialismo - característica essencial do governo Tancredo Neves - poderá colocar-se diante das massas outro caminho: a convocação de uma Assembleia Constituinte, capaz de empreender as reformas básicas que a nação reclama.

Seja qual for o caminho concreto que leve às transformações já maduras no seio da sociedade brasileira, o que a situação exige não são simples paliativo, cuja ineficácia já está comprovada, mas verdadeiras e profundas mudanças revolucionárias, que firam fundo os privilégios dos monopólios estrangeiros e dos senhores da terra, que melhorem efetivamente a situação das massas. Estamos convencidos, os comunistas, de que tais mudanças só poderão ser plenamente alcançadas com a substituição das classes que se encontram no poder, com a formação de um governo revolucionário do qual participem o proletariado, os camponeses, as camadas médias e a burguesia nacional, e no qual a classe operária, como a força revolucionária mais consequente, deverá ter o papel dirigente.

Na luta por tais objetivos, o povo brasileiro vem empregando os meios legais que lhe são proporcionados pelo atual regime, vem utilizando as possibilidades existentes a fim de que as transformações da estrutura econômico-social se realizem pela via pacifica. Não é possível, entretanto, responder de antemão se os objetivos revolucionários serão ou não atingidos por este caminho, já que a resposta a tal problema depende não apenas das forças da revolução, mas também faz forças da reação. Os inimigos do povo brasileiro resistirão, por todos os meios possíveis, à perda de suas posições. Se conseguirem empregar a violência para impedir a ascensão das forças revolucionárias ao poder, poderá ser colocada na ordem do dia a solução por um caminho não pacífico.

Quando o povo manifesta, por todas as formas, sua indignação contra o atual estado de coisas, não devemos esquecer a grave advertência contida na Declaração de Goiânia:

“Não se luta por uma legalidade que só deixa a milhões de brasileiros o direito de morrer de fome; pugnamos por uma legalidade autêntica, que assegure o pronunciamento das grandes massas em defesa das reformas fundamentais”.


Inclusão 13/03/2015