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O trabalho aqui apresentado é um resumo, menos do que isso, uma simples sistematização de notas para um capítulo de uma tentativa de maior vulto sob o título geral, talvez excessivamente ambicioso para minhas possibilidades pessoais, de "O marxismo no Brasil”.
Tenho perfeita noção de que a contribuição que posso dar é das mais modestas. Entretanto, acolhi com entusiasmo a oportunidade oferecida por esta revista. Primeiro, porque julgo indispensável que alguma cousa seja feita neste sentido e, estando meu trabalho muito atrasado, um compromisso público representa um acicate, uma responsabilidade que obriga a trabalhar mais intensa e organizadamente. Segundo, porque, lançadas algumas ideias à luz do dia, para fora do quarto de estudo, elas passam a beneficiar-se da crítica e da controvérsia. Terceiro, porque uma publicação parcial talvez venha a interessar a algum leitor benevolente que se disponha a ajudar na busca de informações e documentos, suavizando a falta dramática de aquivos com que se defronta um trabalho de tal natureza.
O Manifesto de Prestes e a Plataforma de Vargas são os dois documentos políticos mais importantes do decisivo e histórico ano de 1930. Ambos estão situados no pórtico dos acontecimentos atuais. Um e outro figuram em relevo como a expressão mais acabada e sistemática das duas principais tendências novas que surgiam no país. Não se limitaram a abordar apenas problemas de caráter imediato, pretendiam divisar a perspectiva de muitos anos. Ambos faziam a crítica da situação imperante no país, tendo em vista um novo desenvolvimento na vida nacional.
Já são passados quase trinta anos e parece que já é hora de iniciar, ao menos iniciar, a indispensável análise crítica e o confronto daquelas posições teóricas e políticas com a realidade. Para isso, julgo necessário partir do estudo de três documentos essenciais ao esclarecimento da questão:
O Manifesto de Prestes é considerado aqui anterior à Plataforma da Esplanada do Castelo porque foi uma aplicação das “Teses” da I.C. As novas ideias e tendências políticas de Prestes já eram conhecidas. Não podiam deixar de influir nas ideias e na tática da Aliança Liberal. Verifica-se, logo, uma diferença importante. A I.C. elabora teses, o PCB as adota, Prestes lança manifestos, enquanto a Aliança Liberal dirige-se às massas em comícios.
Em sua intervenção no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, Otto Kuusinen fez uma referência às teses da Internacional Comunista sobre os países coloniais e dependentes. Kuusinen era secretário da I.C. e, nessa qualidade, teve papel destacado na elaboração dessas teses, em 1928, e na sua aplicação prática, nos anos posteriores. Entretanto, quase 30 anos depois, transfere a outros a análise de atos e concepções que ninguém pode conhecer melhor do que ele, ao afirmar tranquilamente que
“nossos historiadores e propagandistas devem estudar e rever com espírito crítico... as célebres teses do VI Congresso da Internacional Comunista sobre a questão colonial, por exemplo”.(1)
E afirma logo em seguida:
“Concretamente, tenho em vista a definição e a apreciação do papel da burguesia nacional nos países coloniais e semicoloniais contidas nessas teses. Já no momento em que essas teses sobre a questão colonial foram elaboradas, elas estavam marcadas de sectarismo. Nas novas condições do presente, quando a autoridade da União Soviética cresceu grandemente, essa apreciação não corresponde mais em nada à realidade.”
Estamos, pois, diante de um repúdio frontal e completo às teses do VI Congresso da I.C. sobre a revolução nos países chamados de subdesenvolvidos no linguajar atual, os países coloniais e dependentes. É preciso revê-las criticamente. O espectro do revisionismo ronda a Europa.
Revisão, não porque tivessem perdido atualidade, porque a situação tenha mudado e as teses tenham sido superadas pelo desenvolvimento histórico. Não. No próprio momento em que foram concebidas e elaboradas “já estavam marcadas de sectarismo”. Falando claro: estavam erradas.
Revisão, concretamente, de toda uma posição de princípio, da concepção do papel das classes sociais num dado momento em determinados países. Pois era falsa e errônea a “apreciação do papel da burguesia nacional”. De fato, uma concepção errada do papel, das possibilidades e perspectivas de toda uma classe — e de uma classe em crescimento como é a burguesia nacional dos países subdesenvolvidos — leva inevitavelmente, como levou em maior ou menor grau até os dias atuais, a um falseamento total do quadro político, arrasta a uma concepção abusiva e idealista, não marxista, da correlação de forças, determina um plano tático e estratégico divorciado da realidade hístórico-concreta. Sem compreender a situação e o papel da burguesia nacional não se pode compreender o papel e a situação do proletariado nacional.
Essa declaração é, fora de dúvida, uma contribuição para se localizar a raiz e o conteúdo do sectarismo, na sua forma específica e concreta, tal como se manifesta e atua entre nós. Não se trata tão somente de “mudar de métodos”, de passar a uma nova linguagem, falando macio com os aliados, de adotar a “operação sorriso” e a tática das palmadinhas nas costas. O que conta, aqui, é a “apreciação do papel da burguesia nacional”, apreciação que “não corresponde mais em nada à realidade”. Eis o que é preciso rever com espírito crítico, revisão que não devemos esperar cumprida, antes, pelos historiadores e propagandistas soviéticos a quem se dirige Kuusinen. Esta tarefa é nossa.
O VI Congresso da I.C. reuniu-se em Moscou, em setembro de 1928. É o mesmo Kuusinen quem nos informa que estavam presentes, com direito de voz e voto os representantes dos oito seguintes países da América Latina: México, Argentina. Chile, Colômbia, Paraguai, Brasil, Cuba e Equador. Acrescente-se que o PCB enviou três delegados.(2)
“As questões do movimento revolucionário e comunista na América Latina não figuravam na ordem do dia do Congresso como ponto especial”. Foram tratadas “durante o debate sobre o informe do Executivo sobre a guerra e, particularmente, sobre a questão colonial”, esclarece Kuusinen.
Como ponto de partida, foram reafirmadas as teses de Lênin sobre os povos coloniais e semi-coloniais apresentadas muito antes, no II Congresso, com a declaração de que elas
“conservam todo o seu valor e devem servir de premissa no trabalho ulterior dos Partidos Comunistas”.
Entretanto, o VI Congresso não tomou em conta o fato de que as teses de Lênin concentravam a atenção no Oriente colonial e muito particularmente na China.
“A determinação exata (grifado por mim. IA) da relação da Internacional Comunista com o movimento revolucionário nos países dominados pelo imperialismo, a China particularmente (grifado por mim, IA) é um dos assuntos mais importantes para o segundo Congresso e a própria Internacional. A revolução mundial entra num período no qual é necessário um conhecimento exato dessas relações”.
Lênin falou de olhos postos na China. Exigiu um “conhecimento exato”, que destacaria as enormes diferenças entre o Oriente asiático e a América Latina, entre a China e o Brasil. Entretanto, o VI Congresso adotou resolução em que determina:
“O Congresso incumbe à C.E. da I.C. de conceder uma atenção maior aos países da América Latina, a elaboração de “programas de ação” para os partidos correspondentes...”
É verdade que foi designada uma comissão para a formulação de tais “programas de ação”, dela fazendo parte os delegados latino-americanos. Mas o fato é que pelo menos a delegação brasileira voltou à pátria sem nenhum documento. O relatório que apresentou, como colhi em depoimento pessoal de um dos delegados, foi baseado em notas e no que a memória guardou. Na realidade, sua participação foi mínima, para não dizer nula, na feitura do “programa”. Lênin estava morto, foi esquecida a tarefa do “conhecimento exato” da realidade. Stálin dava as cartas, foi cumprida à risca a incumbência de traçar “programas de ação”. Os PP. CC. da América Latina não eram chamados e estimulados ao estudo da situação real de seus respectivos países. Recebiam “programas de ação”, prontinhos e acabados. Vem de longe esse método do prato feito.
O exame das “Teses” da I.C. revela, de logo, que elas não estabelecem nenhuma diferenciação entre os diversos países e regiões da América Latina. Pretendem aplicar-se a todos, indistintamente. Estabelecem um padrão igualmente válido para todos. Generalizam algumas informações obtidas da Bolívia e dos países da América Central.
“Na vida econômica dos países da América Latina, dizem as “Teses”, domina a agricultura e a forma dominante de organização da mesma é a grande propriedade, enormes plantações e latifúndios gigantescos... (que) se formaram, como regra geral, como resultado direto da pilhagem da população indígena”.
Daí a conclusão de que as massas camponesas são compostas de índios, em boa parte. Isto, é claro, tem que ver com certos países da América Latina (Bolívia, México). Mas não se aplica ao Brasil, onde o índio é questão secundária neste assunto. Não obstante, houve em nossas cidades inscrições murais e volantes concitando os índios à união e à tomada das terras. “índios, uni-vos!” Se ao menos fosse em tupi-guarani.
“Como regra geral, os proprietários das grandes fazendas são ou capitalistas estrangeiros (ingleses ou norte-americanos) ou agentes diretos dos mesmos”.
Isto cabe à América Central dominada pela “United Fruit Co.”. Mas não é, evidentemente, a “regra geral” no Brasil, onde o grande fazendeiro de café, de gado ou de cacau é nativo, ligado a empresas imperialistas através de um complexo sistema de intermediação comercial, sujeito aos ditames de um comprador monopolista e privilegiado que manipula preços e mercados.
Assim era visto o campo. Quanto à formação e desenvolvimento do proletariado, a apreciação das teses é unilateral e confusa. Ei-la:
“O capital imperialista que explora os países da América Latina, do mesmo modo que as demais colônias e semi-colonias, (o grifo é meu, IA) contém o desenvolvimento industrial, pois o fim principal que persegue é obter matérias primas e semifabricadas a baixo preço. Entretanto, para as necessidades correntes dessa indústria de extração, e para a exploração rapace das reservas de matérias primas é preciso um proletariado industrial, e o proletariado cresce sem interrupção nos países da América Latina...”
Temos aqui que tudo se passa “do mesmo modo que nas demais colônias e semicolónias”. Ora, não é bem isso. É um tanto diferente que nas demais colônias e semicolónias. Também não se explica que o proletariado cresça “sem interrupção” apenas “para as necessidades correntes da indústria de extração”. Ignora-se, nas “Teses”, ao menos em relação ao Brasil, o surto industrial propiciado pela primeira guerra mundial. A Internacional desconhecia, por exemplo, o censo brasileiro de 1920. Nem sabia que os trabalhadores paulistas já tinham decretado o boicote das Indústrias Matarazzo, em 1917-18. Ignora-se a burguesia nacional. Mais ainda: Kuusinen declara que a burguesia nacional “acha-se situada no campo da contrarrevolução”.
As “Teses” estabelecem que os países latino-americanos
“estão em vésperas de revoluções democrático-burguesas”.
E que estas
“podem transformar-se rapidamente em revoluções socialistas e que é neste sentido que deve fundamentalmente orientar-se o movimento revolucionário”.
Daí resultam diretivas, subordinadas ao seguinte objetivo estratégico:
“A orientação geral dos Partidos Comunistas dos países da América Latina deve ser a luta pelo governo operário e camponês e pela federação das repúblicas operárias e camponesas dos ditos países”.
Dessas posições é que Kuusinen partiu para estabelecer e difundir diretivas com sua responsabilidade e autoridade de secretário do Komintern. O “programa de ação” tinha os seis pontos seguintes:
“Os comunistas em sua propaganda e agitação devem acentuar especialmente as seguintes palavras de ordem:
Na agitação do Partido Comunista deve ocupar um lugar central a palavra de ordem do governo operário e camponês (grifado por Kuusinen), ante o chamado governo revolucionário da ditadura militar da pequena burguesia”.
Era isto que estava em vigor em 1930.
Em 1930, Prestes ainda não era oficialmente membro do PCB, no qual ingressou formalmente só mais tarde, em 1934. Mas o Manifesto de Maio já é elaborado como a resposta de um comunista aos acontecimentos. É uma aplicação das “Teses” da IC e, ao mesmo tempo, um documento com traços pessoais, prestista.
Prestes dirige-se “ao proletariado sofredor de nossas cidades”, aos trabalhadores oprimidos das fazendas e das estâncias, à massa miserável do nosso sertão. E muito especialmente aos revolucionários sinceros.(3) Define a situação como a de uma campanha política encerrada. Tudo aquilo, “no fundo, não era mais do que a luta entre os interesses contrários de duas correntes oligárquicas, apoiadas e estimuladas pelos dois grandes imperialismos que nos escravizam”. A campanha da Aliança Liberal só foi “aparentemente democrático”, pois, “mais uma vez, os verdadeiros interesses populares foram sacrificados e vilmente mistificado todo o povo”. Assinala que houve gente sincera no movimento que contou com “o concurso ingênuo de muitos e de grande número de sonhadores ainda não convencidos da inutilidade de tais esforços”. Não pode deixar de reconhecer que “entre os elementos da Aliança Liberal (há) grande número de revolucionários sinceros com os quais creio poder continuar a contar”. Faz autocrítica pública. Também errou: “em parte, por omissão e, em parte, por indecisão fomos também cúmplices da grande mistificação”. Pois, “a tudo assistimos calados, sacrificando o prestígio da revolução”. Além disso “houve quem afirmasse... apoiar politicamente os liberais por ordem de seus chefes revolucionários. Não foi desmentido”. Reconhece suas ilusões. Acreditava no “milagre que seria a eventualidade de uma luta armada entre as duas correntes em choque e que desta luta entre as duas correntes" surgisse "aquela que viesse satisfazer realmente as grandes necessidades de um povo empobrecido, sacrificado e oprimido”.
De um lado, satisfaz a I.C. que lhe exige uma ruptura completa, nega qualquer conteúdo popular ao movimento da Aliança Liberal, recusa admitir que o recurso às armas é pelo menos viável, possível, muito provável. A I.C. desencadeia violenta campanha contra o prestismo. E lhe mostra que o prestismo está sendo explorado capciosa e criminosamente. Mesmo os poucos que informaram sobre o entusiasmo popular nos comícios da Aliança Liberal não foram capazes de resistir ao mandonismo cruel do Bureau Sul Americano da I.C. que se negava a recolher qualquer depoimento verídico sobre o Brasil. A realidade tinha que enquadrar-se no esquema, e acabou-se. Os fatos não existem desde que não se ajustem às “teses” pré-fabricadas.
Mas essa ruptura se resolve em termos tenentistas. Os antigos companheiros da Coluna não o acompanham porque não veem o que se passa realmente: não veem que existe o domínio imperialista, que existe o latifúndio. Justifica-os: são vítimas, ingênuos, sonhadores, enganados. Proclama que são revolucionários sinceros. E a eles, particularmente a eles se dirige, certo de poder continuar contando com eles Não reconhece que o povo esteja ausente, pois denuncia a mistificação das massas.
Afinal já estava correndo o mês de maio, o manifesto tinha sido adiado, já tinha havido a eleição presidencial, consumada foi a mistificação das urnas. Getúlio aceita a derrota. Não saiu revolução nenhuma. O caso estava encerrado e isto ajudaria a convencer os antigos companheiros de que era Prestes quem fazia a apreciação correta da situação. Agora separados, coincidiam na falta de confiança em relação aos políticos da Aliança Liberal, em que não era mesmo a “sua revolução” a que se articulava. O manifesto oferece a solução para um velho problema dos tenentes — nada de mistura com os politiqueiros, com os porta-vozes da oligarquia, esses desonestos e frios calculistas. Quer manter no campo da revolução os velhos companheiros, sem a mácula da aliança espúria com agentes do imperialismo e do latifúndio.
Prestes reflete no manifesto a convicção de que só o marxismo pode indicar a solução. Entretanto, a decisão que toma não se produz no campo da ciência, mas no terreno da confiança, da fé. Não no quadro da análise multilateral da realidade, mas no plano das teses comprovadas artificiosamente por aspectos e fatos isolados. O argumento é o “eu não dizia? cadê a revolução?” Assim, Prestes é arrastado pelo subjetivismo do Bureau Sul Americano e não pelo aprofundamento de sua consciência de marxista. A ruptura com as velhas concepções políticas é, na prática, o isolamento do tenente mantido numa redoma para permanecer puro e imaculado, longe de contacto com os politiqueiros.
O tenente levou o marxismo de reboque, ao isolamento. O marxista deixou o povo à mercê dos politiqueiros.
Tudo é justificado pela análise e interpretação da realidade oferecida pelo esquema de roupagem marxista.
“Somos governados por uma minoria... proprietária das terras, das fazendas e latifúndios e senhora dos meios de produção e apoiada nos imperialismos estrangeiros”.
Estas são as classes no poder, tais são suas relações com o imperialismo, assim é seu Estado, seu poder político.
A dinâmica desse regime é assim descrita:
“O governo dos coronéis, chefes políticos, donos das terras, só pode ser o que aí temos: opressão política e exploração impositiva. Toda a ação governamental, política e administrativa gira em torno dos interesses dos senhores que não medem recursos na defesa de seus privilégios. De tal sistema decorrem quase todos os nossos males.”
“Vivemos sob o jugo dos banqueiros de Londres e Nova York. todas as nossas fontes de renda dependem do capitalismo inglês ou americano em cujo poder estão também os mais importantes serviços públicos, os transportes e as indústrias em geral. Os próprios latifúndios vão passando aos poucos para as mãos do capitalismo estrangeiro. A eles já pertencem as nossas grandes reservas de minério de ferro do Estado de Minas Gerais, extensas porções territoriais da Amazônia e do Pará onde talvez estejam nossos depósitos petrolíferos. todas as rendas nacionais estão oneradas pelos empréstimos estrangeiros.”
E mais adiante:
“Os capitais estrangeiros investidos em nossa produção provocam um crescimento monstruoso em nossa vida econômica, tendente exclusivamente à exploração das máquinas naturais (sic) das fontes de matérias primas, reservando o mercado nacional para a colocação dos produtos fabricados nos entrepostos imperialistas. A atividade desse capital só pode, portanto, ser prejudicial ao país. Dessa forma, todo o esforço nacional, todo o nosso trabalho é canalizado para o exterior”.
Essa economia, como é descrita no Manifesto de Maio, está em crise.
“A crise econômica... é incontestável. Os impostos aumentam, elevam-se os preços dos artigos de primeira necessidade e baixam os salários”.
Sem quebrar os grilhões, tal situação só pode agravar-se, pois
“a única solução encontrada pelo governo, dentro das contradições do regime em que se debate, são os empréstimos externos com uma maior exploração da massa trabalhadora e consequente agravação da opressão política”.
Assim se desenhava, já em 1930 o dilema da revolução agrária e anti-imperialista ou colonização total. A opressão do latifúndio gera um regime liberticida. O domínio imperialista recai sobre a massa trabalhadora e agrava mais e mais a opressão política. As forças da revolução são, portanto, os operários e camponeses. A burguesia industrial nem sequer é lembrada, não tem nenhum papel positivo a desempenhar na revolução. As contradições inter-imperialistas também não representam nada de positivo, de aproveitável em benefício da revolução. Ao contrário, as lutas inter-imperialistas “preparam o esfacelamento da nação”. Estamos, dessa forma, diante de uma revolução especialíssima, sem aliados e sem reservas.
Desse documento fica de pé a denúncia do imperialismo, o chamado ardente à luta anti-imperialista. Essa é uma questão que ninguém mais poderá ignorar. É um avanço: introduz uma noção da realidade objetiva na consciência política nacional. Mas na concepção das forças revolucionárias o esquema é falho, omisso, mutilando a realidade. Nega o papel da burguesia nacional. E não toma em conta o fato que a própria Coluna Prestes pôde constatar: a não existência de um movimento camponês.(4) Para denunciar o imperialismo não era necessário apelar para as “Teses” da I.C., em 1928. Lênin já o tinha feito em 1916. A falta do “conhecimento exato” estava puxando a teoria para trás. Em consequência, cria-se uma situação tantas vezes repetida no movimento revolucionário marxista brasileiro de 1930 para cá: tem razão, está certo em tese. Mas, ignorando ou deformando peculiaridades nacionais de nosso país, perde a razão, erra e colhe derrotas sobre derrotas.
Em seu manifesto de 1930, Prestes apresenta uma perspectiva revolucionária de tipo soviético.
Feita a caracterização do regime, assinala que o propósito de remediar seus males
“pelo voto secreto ou pelo ensino obrigatório é ingenuidade de quem não quer ver a realidade nacional”.
O que a análise demonstra e a situação comprova é a necessidade e a viabilidade da revolução agrária e anti-imperialista. Não há dúvida alguma sobre o caráter do governo a ser levado ao poder por essa revolução.
“O governo a surgir precisará ser realizado pelas verdadeiras massas trabalhadoras das cidades e dos sertões”. Será ‘‘um governo de todos os trabalhadores, baseado nos conselhos de trabalhadores da cidade e do campo, soldados e marinheiros”.
O programa desse governo será a
“confiscação, nacionalização e divisão das terras, pela entrega da terra gratuitamente aos que nela trabalham. Pela libertação do Brasil do jugo do imperialismo, pela confiscação e nacionalização das empresas nacionalistas (sic) de latifúndios, concessões, vias de comunicação, serviços públicos, minas, bancos e anulação das dívidas externas”.
Esse governo é necessário porque só ele será
“capaz de garantir todas as mais necessárias e indispensáveis reivindicações sociais: limitação das horas de trabalho; proteção aos trabalhos das mulheres e das crianças; seguros contra os acidentes, o desemprego, a velhice, a invalidez e a doença; direito de greve, de reunião e de organização”.
Portanto, temos aí que as reivindicações mínimas, “as mais indispensáveis e necessárias”, só podiam ser obtidas com a conquista política máxima — o poder dos conselhos de operários, camponeses, soldados e marinheiros. O poder soviético. Nada menos. Esse é o primeiro sofisma dos burocratas dogmáticos da I.C. ao qual iria sucumbir Prestes.
Esse governo é viável pois “as possibilidades atuais de tal revolução são as melhores possíveis”. De um lado, a crise econômica interna é incontestável. De outro lado, a situação do imperialismo é de grandes dificuldades: desocupação de grandes massas de trabalhadores nas metrópoles, insurreições nacionalistas nas colônias “Além disso, o Brasil, pelas suas naturais riquezas, pela fertilidade de seu solo, pela sua extensão territorial, pelas possibilidades de um rápido desenvolvimento industrial autônomo, está em condições vantajosíssimas para vencer com relativa rapidez nesta luta pela sua verdadeira e real emancipação”.
Aqui se argumenta com dados de natureza diferente. Quanto ao campo da reação, mostra-se que está mergulhado em dificuldades econômicas e políticas, minado por contradições internas. Mas, quanto ao campo da revolução, apela-se para um argumento geográfico — a extensão territorial, a riqueza e a fertilidade do solo do Brasil. E desse dado geográfico é que se deduz a possibilidade de um rápido desenvolvimento industrial autônomo. É a ideia do país rico, grande, ideia de manobra militar. Mas a fôrça social, as massas, as classes, seu grau de organização, seu nível de consciência, sua disposição de luta — nada disso entra em linha de conta. O inimigo está em crise, desorganizado, confuso — admitamos para maior facilidade. Mas, e a revolução? Estará ela de posse dos elementos mínimos indispensáveis para lançar-se ao ataque? A isso não se dá resposta. Nesta hora é esquecida a teoria da revolução de Lênin. A afirmação vazia, oca, puramente verbal, da grandeza geográfica transformada em tese teórica do marxismo criador, o apelo ao ufanismo pequeno-burguês e lírico, eis o recurso do sectarismo. Seu alimento é o atraso teórico.
Assim se apresenta o segundo sofisma do esquematismo subjetivista, não marxista e alheio à dialética materialista, ao qual iria sucumbir Prestes. Esses dois sofismas são as duas lâminas da tenaz em que Prestes seria envolvido e cercado, ele que vinha de correr todo o Brasil quebrando e rompendo cercos.
A Plataforma da Esplanada do Castelo,(5) documento programático de uma campanha eleitoral e devendo manter coesa uma variada frente política, é vazada em linguagem completamente diferente do Manifesto de Prestes, que tem em vista uma insurreição e expõe concepções de um partido contra todos os demais. Manifestações da mesma época, respondendo à solicitação dos mesmos problemas, os dois documentos representam o início de um diálogo, de um debate que se vem desenvolvendo até os dias de hoje.
Tanto Getúlio como Prestes dirigem-se ao povo, aos trabalhadores das cidades e dos campos, aos mesmos “revolucionários sinceros”, tenentistas. Vargas proclama que “o programa é mais do povo que do candidato”. Em larga medida atende ao que se pode chamar a ala esquerda da Aliança Liberal. Exige a anistia plena, geral e absoluta como “imperiosa necessidade” reclamada pela consciência nacional. Vai mais longe.
“A anistia será providência incompleta sem a revogação das leis compressoras da liberdade de pensamento”.
Cauteloso, pede “leis de defesa social”, novas,
“que se inspirem nas necessidades reais do país e não se afastem dos princípios sadios de liberalismo e justiça”.
Explica as razões: é para que nos espíritos não seja mantido o “fermento revolucionário”.
No capítulo referente à legislação eleitoral, resguarda-se das expressões violentas, não ataca nominalmente as oligarquias, mas articula um a um, com implacável frieza, os argumentos de um libelo. Estão calafetadas “todas as frestas por onde pode passar um sopro salutar de renovação — eis o regime vigorante, frondosamente, no Brasil”. É o retrato de um monopólio político fechado, odioso, em que os direitos dos cidadãos “são triturados pela máquina oficial, pela violência, pela compressão, pela ameaça”.
Vai direto e franco à questão social.
“Não se pode negar a existência da questão social no Brasil”.
Neste mesmo capítulo, tratando de assunto tão explosivo, opondo-se tão radicalmente ao ponto de vista do Catete (a questão social é um caso de polícia), Vargas vai mais longe e enfrenta o problema da terra. Descreve a situação de
“centenas de milhares de brasileiros que vivem nos sertões, sem instrução, sem higiene, mal alimentados e mal vestidos”,
para proclamar que
“é preciso grupá-los, instituindo colônias agrícolas; investi-los na propriedade da terra, fornecendo- -lhes os instrumentos de trabalho, o transporte fácil...”
A principal crítica então feita à Plataforma da Aliança Liberal, cedo transformada em Plataforma de Getúlio (assim como o partido dos comunistas acabaria se transformando no Partido de Prestes), é que ele “roubou” as reivindicações levantadas pelo PCB. Isto nem chegou a se transformar em discussão política. Nesse terreno não se discutem direitos autorais ou de paternidade. As questões políticas existem objetivamente e não porque alguém resolva trazê-las à tona.
O fato é que a Plataforma de Vargas fez a crítica da legislação social vigente.
“O pouco que possuímos não é aplicado ou só o é em parte mínima, esporadicamente, apesar dos compromissos que assumimos, a respeito, como signatários do Tratado de Versailles, e das responsabilidades que nos advêm da nossa posição de membros do “Bureau Internacional do Trabalho”, cujas convenções e conclusões não observamos”.
Traça um programa de reivindicações: salário mínimo, férias, higienização das fábricas e usinas, construção de vilas operárias, proteção ao trabalho da mulher e do menor, estabilidade, amparo na doença e na velhice. Preconiza “a adoção de providências de conjunto que constituirão o nosso Código do Trabalho”.
O importante, para uma análise marxista desse documento, é verificar de que ponto de vista de classe tais questões são abordadas. Em nome de que interesse de classe falava Vargas?
É mais do que evidente que não tomava posição em nome dos interesses específicos, próprios, do proletariado e das massas trabalhadoras. Isto é claro não porque o próprio Vargas fosse um fazendeiro da fronteira, como nós todos, partidários do marxismo, temos argumentado ingenuamente durante anos a fio. É um pobre materialismo dialético esse que procura interpretar todo um desenvolvimento histórico pelo número de cabeças de gado duma fazenda de São Borja. Getúlio, desde o início, proclamou na sua Plataforma que
“tanto o proletário urbano como o rural necessitam de dispositivos tutelares, aplicáveis a ambos, ressalvadas as respectivas peculiaridades”.
Não se trata, pois, de um movimento independente da classe operária. Aí é que estava o centro ideológico e programático da divergência. Nesse ponto é que devia incidir nossa crítica de princípio, crítica que devia estar apoiada concretamente numa ação real que impusesse e fizesse respeitar essa independência de classe dos trabalhadores. Mas não é isso apenas. Era preciso responder à pergunta: dispositivos tutelares de quem? quem pretende ser o tutor? quem se candidata a mentor, ao posto de dirigente ideológico e prático do “proletariado urbano e rural”?
Cronologicamente, o Manifesto de Prestes é posterior à Plataforma de Getúlio. Tinha tempo suficiente para enfrentar a tarefa. Mas para isso precisaria estudar a realidade do Brasil e não a forma literária, verbal, de ajustar essa realidade ao esquema prévio traçado pela IC em 1928. Precisaria inclusive, nesse confronto dos fatos reais com as concepções importadas, fazer a crítica da tese básica sobre o papel da burguesia nacional. Porque, como podemos ver agora (somente agora, tarde, demasiadamente tarde, para evitar erros grosseiros, em tempo de começar a acertar pelo menos daqui por diante) Getúlio, em todas as questões novas que aborda, coloca-se do ponto de vista da burguesia nacional. Essa é que devia ser a tutora dos trabalhadores.
“É incontestável, sob muitos aspectos, o progresso material do Brasil”, diz a certa altura. Evidentemente, o ex-ministro da Fazenda não se refere aos produtos agrícolas de exportação então em crise. O que a Plataforma advoga é o incremento das forças produtivas, pois “a medida da utilidade social do homem é dada pela sua capacidade de produção.” Está pensando nos interesses burgueses de atrair mão de obra qualificada, quando afirma que
“nenhuma atração exercerá, realmente, o Brasil sobre bons operários rurais e urbanos do estrangeiro enquanto a situação do proletariado, entre nós, se mantiver no nível em que se encontra.”
Agitou as reivindicações dos trabalhadores. Mas argumentou com as vantagens daí decorrentes para o desenvolvimento da burguesia. É a esses interesses de classe que correspondem as exigências de arejar e atualizar o ensino já formuladas no Manifesto da Convenção Liberal, onde se denunciava que “os cursos de especialização, priticamente, não existem entre nós”. Não é o latifúndio, mas a burguesia sequiosa de progresso que reclama atenção às ciências econômicas, às disciplinas financeiras e administrativas, aos cursos técnico-profissionais, “cujas vantagens ninguém mais contesta”. A perspectiva que oferece é a do desenvolvimento econômico, numa série de ideias que podem ser assim resumidas: produzir muito e barato a maior quantidade possível de artigos — cultura do trigo, exploração do carvão nacional, aproveitamento gradual das quedas d’água para produção de eletricidade, adicionar álcool aos óleos que nos faltam, subdividir a terra. Com essas medidas, acumular recursos para lançar-se à industrialização. Teme indústrias artificiais.
“O surto industrial só será lógico, entre nós, quando estivermos habilitados a fabricar, senão todas, a maior parte das máquinas que lhe são indispensáveis”.
Isto não permite mais
“adiar, imprevidentemente, a solução do problema siderúrgico”.
E aqui eleva o tom, em claro estilo nacionalista:
“Não é só o nosso desenvolvimento industrial que o exige: é, também, a própria segurança nacional, que não deve ficar à mercê de estranhos, na constituição dos seus mais rudimentares elementos de defesa”.
Em mais de um ponto da Plataforma aparece claramente esta ideia de mostrar que os interesses da industrialização correspondem às necessidades da segurança nacional e que, portanto, o Exército, as forças Armadas têm um papel a desempenhar, são um esteio e força propulsora da batalha do desenvolvimento econômico Esta não é simplesmente uma ideia inspirada por motivos técnicos, é uma ideia política, uma perspectiva para a fermentação política no seio das forças Armadas e liderada pelos tenentes.
Vislumbra-se, dessa forma, o plano político da disposição de forças que a Plataforma tem em vista como expressão dos interesses da burguesia nacional. É um plano de uma burguesia fraca econômica e politicamente, sem forças para romper com os senhores da terra e menos ainda para denunciar abertamente o imperialismo. Essa burguesia procura aliados e os meios de abrir uma brecha na estrutura agrária que ela ainda não pode transformar radicalmente. esses aliados são os tenentes, os militares, os quadros políticos da pequena burguesia aos quais ela oferece postos de comando, e os trabalhadores, o movimento operário que ela procura pôr a seu serviço. A nosso ver está aí descrita em linhas muito gerais o que pelo menos tendia a ser a esquerda da coligação de forças que era a Aliança Liberal.
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Dessa ala esquerda, excluíram-se os marxistas que deveriam exprimir e encarnar os interesses próprios, específicos dos trabalhadores, das massas populares, das forças avançadas e progressistas, no quadro dos interesses nacionais do Brasil. O desenvolvimento da situação até os dias presentes está mostrando de maneira cada vez mais cortante que a causa dessa autoexclusão, materializada no Manifesto de Prestes, está na apreciação incorreta e não científica da estrutura de classes da sociedade brasileira. Colocar a burguesia nacional no campo da contrarrevolução é vendar os próprios olhos, leva a formular exigências descabidas inviáveis ao proletariado e sua vanguarda. Nada mais alheio ao marxismo na teoria e na prática. Pior — nada mais eficiente para denegrir o marxismo, adulterá-lo, transformá-lo numa grotesca caricatura, empobrecê-lo até à indigência e dar pasto a todas as calúnias dos seus inimigos e detratores.
O processo histórico real, nesses quase 30 anos já decorridos, estraçalhou ambos os esquemas, o de Prestes e o de Getúlio. Não existe mais ninguém, neste país, capaz de negar o papel positivo, progressista da burguesia nacional. O movimento operário, às vezes sufocado brutalmente pela violência, outras vezes acaudilhado e amesquinhado, emerge à tona, afirma-se como força nova, independente, cioso de sua autonomia.
Entretanto, os que deveriam e queriam agrupar a classe operária sob a bandeira do marxismo não o conseguiram, falharam clamorosamente, porque substituíram o método do materialismo dialético pelo dogma stalinista.
O resultado atual é que a classe operária se encontra politicamente acéfala. Cobrir esta lacuna, preencher este vácuo — eis a tarefa gigantesca que a história incumbe aos marxistas brasileiros. Pelo menos criar as condições preliminares para que isto possa ser feito — eis o que se esforçam por construir os comunistas renovadores .
Início da páginaNotas de rodapé:
(1) V. discurso de O. Kuusinen. "XX." Congrès du Parti Communiste de l'Union Soviétique — Recueil de documents édité par “Les Cahiers du Communisme”, Paris, 1956. (retornar ao texto)
(2) Todas as informações e citações relativas às Teses do VI Congresso da I.C. são tomadas do trabalho de Kuusinen, "Para a libertação dos povos coloniais e semicoloniais”, editado no México, em apêndice ao folheto de Lênin, “A guerra e a humanidade” (Ediciones Frente Cultural, 1939). Dados complementares por mim colhidos pessoalmente junto a pessoas que participaram dos acontecimentos não trazem menção da fonte por motivos óbvios. Identifico-os como acréscimo às citações. (retornar ao texto)
(3) O Manifesto de Maio vem reproduzido quase integralmente no livro de Abguar Bastos. “Prestes e a revolução social”. Editorial Calvino, 1946. (retornar ao texto)
(4) V. Lourenço Moreira Lima. “A Coluna Prestes — Marchas e Combates”. Editora Brasiliense. 1945. “Só houve adesões sérias à Coluna, no Maranhão e no Piauí”. Em página indignada, o A. crítica os sertanejos que “se colocaram ao lado do governo”. “fugiram para os matos”, “conservaram-se nas suas casas”, “massa amorfa que não tem a ideia de liberdade”. Págs. 181- 182. (retornar ao texto)
(5) Getúlio Vargas. “A nova política do Brasil”, I vol. José Olímpio Editora. 1938. (retornar ao texto)
Inclusão | 26/03/2014 |